ESCOLA NACIONAL DE SAÚDE PÚBLICA
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ
RENDA BÁSICA DE CIDADANIA E POLÍTICA SOCIAL NO BRASIL
ELEMENTOS PARA UM DEBATE
Tese apresentada com vista obtenção do título de
Doutora em Ciências na área de Saúde Pública
MARÍLIA PASTUK
ORIENTADORA: SÍLVIA GERSCHMAN
Março de 2005
AGRADECIMENTOS
À Sílvia Gerschman, orientadora.
À minha mãe, Avany Pastuk, pelo incentivo de sempre.
À Margot, Quelo e Iuri, por todo afeto.
A todas as companheiras e companheiros da Ação Comunitária do Brasil do
Rio de Janeiro, particularmente à Carla Maria da Silva, Cláudia Fonseca,
Maria Celeste Lopes, Neuza Roque, Viviane Martins, Eduardo Bracony Jr e
Anderson Corrêa Silva, pelo apoio solidário.
Aos funcionários, professores, professoras e colegas da ENSP pela ajuda,
possibilidades de aprendizagem e troca.
A Eduardo Suplicy e Carlos Frausino, pelo incentivo e troca.
À Maria Regina Soares de Lima e Alicia Ugá, pelas contribuições
acadêmicas.
À Tema Pechman e à Cláudia Boccia, pelo profissionalismo da revisão.
A Arnaldo Goldemberg, pela retaguarda.
THANKS
To Sílvia Gerschman, the person who guided this work.
To my mother, Avany Pastuk, for the incentive of always.
To Margot, Quelo and Iuri, for all affection.
To all the friends at Ação Comunitária do Brasil/RJ, mainly to Carla Maria da Silva,
Cláudia Fonseca, Maria Celeste Lopes, Neuza Roque, Viviane Martins, Eduardo Bracony
Jr and Anderson Corrêa Silva, for the solidary support.
To the employees, professors and colleagues at ENSP for the aid, possibilities of learning
and exchange.
To Eduardo Suplicy and Carlos Frausino, for the incentive and change.
To Maria Regina Soares de Lima and Alicia Ugá, for the academic contributions.
To Tema Pechman and Cláudia Boccia, for the professionalism of the revision.
To Arnaldo Goldemberg, for the support.
RESUMO
O objeto deste trabalho são as políticas públicas sociais, particularmente
àquelas relacionadas com a transferência direta de benefícios monetários de
caráter não-contributivo. Este visa oferecer elementos para um debate mais
substantivo acerca da pertinência da implantação da renda básica de
cidadania no Brasil no sentido de inovar do ponto de vista social e fazer
frente à maior problemática que o país tem revelado historicamente que diz
respeito à desigualdade na sua estrutura de distribuição de riquezas e
renda. A questão da justiça social na alocação de recursos está subjacente à
temática considerando a modalidade de renda em questão como uma
política potente do ponto de vista redistributivo. Neste sentido foram aqui
trabalhadas as formulações teóricas John Rawls e Amartya Sen, importantes
representantes do debate atual sobre princípios de justiça capazes de
promover os ideais de igualdade e de liberdade. A renda básica de cidadania
é considerada congruente com os princípios de justiça formulados por
Rawls, além de estimular a aquisição das “capacidades” ou “liberdades”
propostas por Sen.
ABSTRACT
The object of this work is the social public politics, particularly those related
with the straight transference of monetary benefits of not contributive
character. It aims to offers elements for a more substantive debate
concerning the relevancy of the implantation of the basic income of
citizenship in Brazil, in the direction to innovate of the social point of view
and to make front to the greater problematic the country has disclosed
throughout the years in respect to inequality in its structure of distribution
of wealth and income. The question of social justice in the allocation of
resources is underlying to the thematic considering the modality of income
in question as one powerful politics of the distributive point of view. In this
direction the theoretical formularizations of John Rawls e Amartya Sen had
been worked, since they are important representatives of the current
debate on the principles of justice capable to promote the freedom and
equality ideals. The basic income of citizenship is considered coherent with
the formulated principles of justice, besides stimulating the acquisition of
the “capacities” or “freedoms” proposed by Sen.
INTRODUÇÃO 1 I A JUSTIÇA SOCIAL EM JOHN RAWLS E AMARTYA SEN 8 I.1 Considerações Iniciais 8 I.2 John Rawls 17 I.2.1 Considerações preliminares 17 I.2.2 Crítica ao utilitarismo 20 I.2.3 A opção pelo contrato social e o liberalismo de Rawls 23 I.2.4 A posição original e o véu de ignorância 25 I.2.5 Os princípios de justiça 26 I.2.6 A justiça como eqüidade 29 I.2.7 Implicações redistributivas 32 I.2.8 A democracia em Rawls 33 I.2.9 Críticas à teoria rawlsiana 37 I.3 Amartya Sen 39 I.3.1 A teoria da capacidade 39 I.3.2 O desenvolvimento como liberdade 46 I.3.3 A crítica ao utilitarismo 48 I.3.4 A crítica a Rawls e a contribuição de Nussbaum 50 I.4 A título de conclusão 53 II DA RENDA MÍNIMA À RENDA DE CIDADANIA 57 II.1 O Estado de Bem-Estar Social Revisto 57 II.1.1 Origem e Desenvolvimento 57 II.1.2 A contribuição de Offe & Lenhardt 65 II.1.3 A crise do Welfare State 66 II.2 Propostas de Transferência Direta de Renda 80 II.2.1 Considerações iniciais 80 II.2.2 As contribuições de Friedman, Aznar, Gorz e Rosanvallon 89 II.3 A renda básica ou a renda básica de cidadania 98 II.3.1 Propostas concretas 106 III RENDA MÍNIMA E RENDA DE CIDADANIA NO BRASIL 119 III.1 A questão social na América Latina 119 III.2 A dissociação entre pobreza e desigualdade – A relação entre pobreza e exclusão 128 III.3 O sistema de proteção social brasileiro III.3.1 Considerações iniciais III.3.2 1930-1995 III.3.3 1995 até a atualidade III.4 Renda mínima e renda de cidadania III.4.1 Renda mínima III.4.2 A renda de cidadania BIBLIOGRAFIA ANEXOS Programas de transferência monetária na América Latina
1
INTRODUÇÃO
O Brasil reconheceu formalmente direitos sociais no final do século
XX, depois de um prolongado período de ditadura militar que, embora
tivesse adotado a ideologia desenvolvimentista do Estado-Nação e
produzido alguns poucos avanços na área social, não incluiu na sua agenda
pactos sociais visando à universalização da cidadania, cujo conceito –
equivocadamente – foi chancelado como luta contra a pobreza. Direitos
sociais como à saúde, por exemplo, só foram reconhecidos no Brasil com a
promulgação da Constituição Federal de 1988 (Sposati, 2002).
Tal Constituição, dita “Cidadã”, estabelece como objetivos da
República:
“construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (art.3º). Como
fundamentos do Estado democrático de Direito o texto constitucional
afirma a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Os direitos sociais incluem educação, saúde, moradia, trabalho, lazer,
segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e
assistência aos desamparados” (art.6º).
A Constituição “Cidadã”, assim, apontou para uma mudança no
caráter do sistema de proteção social brasileiro, o qual se tornou mais
igualitário e universalista. De fato, entre outros aspectos, percebe-se no
texto dessa Carta o aprofundamento da vertente redistributiva das políticas
sociais; o maior controle público e social de sua execução e regulação; a
expansão da cobertura e o atenuamento do vínculo contributivo como
estruturador do sistema (Costa, 2002 apud Draibe, 1989).
No entanto, a realidade brasileira está longe de cumprir esses
preceitos constitucionais, o que faz com a maioria da população não tenha
2
direitos de cidadania garantidos. Um exemplo concreto neste sentido diz
respeito à situação da criança e do adolescente, particularmente daqueles
de mais baixa renda. Embora o Brasil conte com uma legislação avançada
com relação aos direitos destes, o Estatuto da Criança e do Adolescente,
promulgado em 1990, sua operacionalização tem se mostrado incipiente
uma vez que a implementação de políticas sociais correlatas tem sido muito
lenta, pouco eficiente e eficaz (Unicef, 1997).
Dessa forma, se observa uma distância significativa entre a lei
constitucional, as leis ordinárias e as práticas sociais adotadas no país
restringindo, muitas vezes, a cidadania às liberdades civis e políticas. Tal
fato fica agravado quando se considera que o Brasil é marcado por uma
profunda desigualdade decorrente de uma política oligárquica, de uma alta
concentração de renda e elevada exclusão social.
Conforme Barros et alli. (2000), existiria um número bem menor de
pobres no país se seu grau de desigualdade social fosse condizente com o
de desenvolvimento econômico; ou seja, se seu crescimento tivesse
implicado na melhoria da qualidade de vida do conjunto da população
respectiva, o que não ocorreu. Assim, falta no Brasil uma política
redistributiva que, implantada gradual e responsavelmente, busque uma
maior eqüidade, permitindo a redução do tremendo fosso que separa ricos e
pobres no bojo da sociedade. No entanto, essa não tem sido a orientação
que o governo brasileiro tem seguido nos últimos anos, muito mais
preocupado com ajustes macroeconômicos, os quais tornam restritos tanto
a atuação quanto o gasto na área social.
Frente ao exposto, não é à toa que o Brasil apresente um baixo índice
de desenvolvimento humano. Na realidade, a adoção de um paradigma
desta natureza (incluindo indicadores de renda, saúde e educação) depende
não só da revisão do modelo econômico adotado no país de forma a
articulá-lo com o social, como também do aprofundamento do respectivo
processo de democratização no sentido de viabilizar o empoderamento
grupos socialmente vulneráveis.
3
De todo modo, o governo Lula inovou quando fez do Brasil o primeiro
país do mundo a aprovar uma Lei, em janeiro de 2004, que institui a renda
básica de cidadania no bojo do mesmo, beneficiando todos os brasileiros e
estrangeiros aqui residentes, há cinco anos ou mais, com a transferência de
um benefício monetário, de forma universal, equânime, uniforme e
incondicional. Mas, o que significa tal aprovação? Será que, de fato, o Brasil
está caminhando em direção à universalização de direitos, como determina
sua Carta Constitucional? Quais os principais desafios neste sentido? Como
estão os programas de transferência de renda já implantados no país?
Quais seus maiores impasses? Como será trilhado o caminho em direção à
renda de cidadania?
No sentido de precisar melhor as questões supracitadas e contribuir
com o debate acerca das mesmas foram eleitas como objeto deste trabalho
as políticas públicas sociais adotadas nas duas últimas décadas,
particularmente àquelas relacionadas com a transferência direta de
benefícios monetários de caráter não-contributivo até chegar-se à proposta
da renda básica de cidadania, considerando-se o caso desta em particular.
Tal trabalho visa oferecer elementos para uma reflexão mais
substantiva acerca da pertinência dessa última, visando fazer frente à maior
problemática que o país historicamente tem revelado que diz respeito à
desigualdade na sua estrutura de distribuição de riquezas e de renda. A
questão da justiça social na definição de políticas afins está subjacente à
discussão que o embasa, considerando a renda básica de cidadania como
uma política potente do ponto de vista redistributivo, o que será visto nos
capítulos II e III subseqüentes.
O primeiro capítulo resgata aspectos gerais das formulações teóricas
de John Rawls e de Amartya Sen com relação à justiça social incluindo
noções de igualdade e liberdade, que servem como fundamento para a
concepção de políticas públicas em geral e da renda básica de cidadania em
particular.
4
Tais autores concebem a justiça como um valor moral complexo que
abriga formas diversas de liberdade, além da eqüidade social; reconhecem
o papel do Estado em fazer cumpri-la diante das restrições que o mercado
coloca neste sentido e tendem a favorecer a idéia de que as políticas sociais
implementadas pelo mesmo [Estado] são formas insubstituíveis de
realização da justiça distributiva.
Rawls e Sen acreditam, ainda, que determinados direitos individuais
invioláveis devem ser protegidos pelo Estado e também na neutralidade
deste com relação às diferentes concepções de “boa vida” que os cidadãos
possam ter. Por meio dos seus trabalhos, ressaltam a “adequação moral de
uma política distributiva respaldada por princípios de justiça consensuais”
(Peixoto Ramos, 2003:4).
Quanto à Rawls, é um dos pilares do pensamento político conhecido
como “liberal”, segundo o qual uma concepção de justiça adequada deve
ser capaz de assegurar a possibilidade de todos os indivíduos de uma
sociedade particular realizar seu projeto de vida. Dessa forma, o autor
pretende conceber um Estado plural e neutro a um só tempo.
No que diz respeito a Sen, se propõe a compreender melhor os
processos de distribuição de vantagens e oportunidades que se produzem
em economias de mercado, fazendo uso de critérios de justiça para tanto.
Segundo ele, a adoção de mecanismos democráticos no bojo dessas
economias pode ser uma das vias para melhor articular o binômio
igualdade-liberdade. De certa forma, é o que John Rawls, com claras
semelhanças e diferenças com relação à Amartya Sen, também se propõe a
realizar.
O segundo capítulo desse trabalho procura resgatar em grandes
linhas a trajetória que vai das propostas de renda mínima até a proposta de
renda básica de cidadania, sobretudo no contexto europeu, passando pela
análise da origem e desenvolvimento do Estado de Bem Estar Social neste
Continente, bem como da crise respectiva, visando apresentar o contexto
5
em função do qual programas de transferência direta de renda começaram
a ser implementados.
O terceiro capítulo trata especificamente da implantação de
programas de transferência monetária no Brasil, passando por uma análise
geral da trajetória do sistema de proteção social latinoamericano e
brasileiro e das problemáticas da pobreza, da desigualdade e da exclusão
social. Este finaliza com uma discussão acerca do percurso que levou à
aprovação da lei que institui a renda básica de cidadania no país, incluindo
o debate em torno dos programas correlatos.
Na conclusão aponta-se para os principais impasses e contradições
que se diagnostica no Brasil com relação à efetivação, na prática, da lei
retrocitada. Em tal conclusão, transporta-se o tema da justiça distributiva
para a realidade do país analisando-se a pertinência de atribuir à renda
básica de cidadania papel preponderante neste sentido, avaliando-se a
coerência da sua concepção com a realização dos princípios de justiça
propostos por John Rawls e por Amartya Sen. Finalmente, traz-se à tona
novas questões que poderão ajudar no desdobramento do debate que se
pretende estimular.
- Procedimentos Teórico-Metodológicos
Para fins desse trabalho, a democracia foi entendida “como o regime
político fundado na soberania popular e no respeito integral aos direitos
humanos”, [que significa contemplar] “as liberdades civis e a participação
política ao mesmo tempo em que se reivindica a igualdade e a prática da
solidariedade” (Benevides, 2001:1).
Considerou-se ainda a capacidade de governar enquanto fundamental
na modelagem dos limites e possibilidades dos processos de viabilização das
políticas públicas (Gaetani, 1997). Nesse sentido, se partiu da crença que a
qualificação do debate sobre tais políticas estava intrinsecamente
relacionada com a análise do funcionamento do Estado mais
6
especificamente das relações - nem sempre harmônicas - estabelecidas
entre os poderes executivo, judiciário e legislativo que, no caso do Brasil, se
ressentem dos longos anos do autoritarismo político. Aqui “os partidos
políticos são profundamente frágeis e a lógica da barganha político-
sistêmica prevalece, em detrimento de posicionamentos políticos sobre o
conteúdo dos problemas”, conforme ressalta Gaetani (1997).
Quanto às políticas sociais, assumiu-se que estas, por sua vez, se
ressentem de uma abordagem intersetorial, não dialogando entre si. Estas,
traduzidas em
“burocracias auto-contidas e auto-referenciadas (saúde, educação e
assistência social, entre outras) possuem uma baixíssima articulação
horizontal. Acostumadas à posição de crônicas pedintes do comando
econômico, paradoxalmente [...] costumam competir entre si [...] por
recursos financeiros, competências legais, visibilidade institucional,
interlocução com agências multilaterais de fomento, atendimento da
classe política etc” (Gaetani, idem).
Neste contexto, citando Kliksberg (1994), identificou-se os três
“mitos” presentes no imaginário da sociedade política, que afetam a gestão
das políticas sociais, quais sejam: a) a pretensa ilegitimidade do gasto na
área, como se os recursos ai alocados fossem objeto de uma destinação
fatalmente inútil; b) a crença na ineficiência congênita do gerenciamento
social; c) a visão burocrática-formalista da gestão respectiva, como se os
processos de formulação e implementação das políticas devessem
responder a um continuum. A estes mitos, Kliksberg acrescenta ainda a
fragmentação das políticas sociais e a despolitização de sua carga de
conteúdo pelas autoridades econômicas. Neste sentido, segundo ele,
contextualizar as políticas sociais é, antes de mais nada, recuperar sua
dimensão política e conflitiva, isto é, re-politizá-las.
Quanto à intersetorialidade, para fins do trabalho ora apresentado, foi
definida como a “articulação de saberes e experiências no planejamento,
realização e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações
7
complexas visando o desenvolvimento social, superando a exclusão social”
(Junqueira & Inojosa, 1997). Esta foi percebida ainda como um novo
paradigma para os programas sociais, o qual pressupõe uma forma de
interação diferenciada entre os atores que conformam o aparato estatal e a
sociedade civil. Pressupõe ainda a adoção de mudanças nas diretrizes e
práticas na estrutura administrativa-organizacional da qual estes fazem
parte.
A realização desse se deu a partir do pressuposto que a
intersetorialidade, assim como outros aspectos que a renda básica de
cidadania sugere, estava condicionada ao grau de comprometimento do
poder público com os grupos de interesse que lhe dão sustentação e são
aliados e à sua maior ou menor sintonia.
Quanto à viabilidade político-institucional de sua implementação no
contexto do país, partiu-se do pressuposto que tinha a ver com as relações
estabelecidas entre o executivo e o legislativo e destes, com a sociedade
civil. Neste sentido, foi feito um acompanhamento sistemático da
tramitação no Congresso Nacional (no Senado Federal e na Câmara dos
Deputados) do Projeto de Lei que institui a Renda de Cidadania no Brasil,
sancionado pelo presidente da República em 08 de janeiro de 2004.
Paralelo a esse, foi feito um acompanhamento do debate acerca dos
programas de transferência de renda no executivo, da unificação daqueles
do Governo Federal e das avaliações para a ampliação da sua cobertura.
Igualmente foram analisadas propostas similares implantadas no país
identificando seus pontos de convergência, divergência e contradições.
Pretendeu-se especificamente sistematizar o debate acadêmico e
político em torno da proposta da renda básica de cidadania, da viabilidade
político-institucional de sua implementação e das implicações decorrentes
no sentido da definição de uma política social para o país que revelasse
aspectos inovadores, como a integralidade e a intersetorialidade.
8
Tal debate foi analisado a partir da utilização de fontes secundárias
de pesquisa e da realização de entrevistas semi-estruturadas com principais
personalidades que estão trabalhando com esta temática, seja na academia,
em institutos de pesquisas e fundações, seja no legislativo e/ou no
executivo.
Assim, para a realização desse trabalho, optou-se por uma
metodologia qualitativa de investigação e pesquisa, baseada na ótica da
realidade construída por atores diversos que interagem entre si. Como
estratégia, optou-se pelo estudo de caso (análise da tramitação do Projeto
de Lei que institui a renda básica de cidadania no país), o qual buscou
analisar um fenômeno em termos compreensivos em função do contexto
que o condiciona e é por ele condicionado. Finalmente, optou-se pela
utilização da técnica da observação participante.
9
I A JUSTIÇA SOCIAL EM JOHN RAWLS E AMARTYA SEN
I.1 Considerações Iniciais
Segundo Laisner, o século XX pode ser considerado como o século do
triunfo da democracia, já que o regime democrático foi estabelecido como
organização política preeminente deste período. Nas palavras da autora:
“[...] as instituições básicas da democracia e seus princípios
tornaram-se, hoje, moedas comuns e incorporaram-se à retórica
prevalecente, assumindo valores de algo próximo ao próprio do senso
comum. O fortalecimento e a universalização do sufrágio universal,
da equilibração dos poderes, da liberdade de expressão e de
associação, do reconhecimento formal dos direitos sociais, de
garantias civis e prerrogativas cidadãs trouxeram consigo aspirações
por sociedades mais justas e igualitárias” (2002:2).
Tais aspirações, no entanto, entram em contradição com o grau de
desigualdade social, “a violação de liberdades políticas elementares e de
liberdades formais básicas, o crescimento alarmante da violência urbana e o
descaso com os direitos humanos” existente, o que, embora pudesse ser
considerado como “um descompasso entre princípios democráticos e sua
aplicação” (Laisner, 2002:2), não é verdadeiro uma vez que o conceito de
democracia não tem um sentido unívoco.
Nesse contexto, no campo das teorias da justiça proliferam princípios
e concepções que separam desigualdades justificáveis daquelas que não o
são, em que, além da eficiência econômica, da eqüidade e da igualdade, a
própria democracia desponta como um dos critérios para essa classificação.
Segundo Bobbio, o conceito de democracia tem dois significados
nitidamente distintos: seja associado a um valor universal, seja a um
sistema político, diferenciando democracias formais de democracias
substanciais. As primeiras, segundo o autor, indicam um conjunto de meios,
10
de regras de comportamento que não estão relacionadas com os fins. Já as
segundas indicam um conjunto de fins, “entre os quais sobressai o fim da
igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios
adotados para os alcançar” (Bobbio, 1982:328).
“Juntamente com a noção comportamental de Democracia, que
prevalece na teoria política ocidental e no âmbito da ‘political
science’, foi-se difundindo, na linguagem política contemporânea, um
outro significado de Democracia que compreende formas de regime
político como as dos países socialistas ou dos países do Terceiro
Mundo, especialmente, dos países africanos, onde não vigoram ou
não são respeitadas mesmo quando vigoram algumas ou todas as
regras que fazem que sejam democráticos, já depois de longa
tradição, os regimes liberais-democráticos e os regimes sociais-
democráticos. Para evitar a confusão entre dois significados tão
diversos do mesmo termo prevaleceu o uso de especificar o conceito
genérico de Democracia como um atributo qualificante e, assim, se
chama de ‘formal’ a primeira e de ‘substancial’ a segunda. Chama-se
formal à primeira porque é caracterizada pelos chamados
‘comportamentos universais’ (universali procedurali), mediante o
emprego dos quais podem ser tomadas decisões de conteúdo diverso
(como mostra a co-presença de regimes liberais e democráticos ao
lado dos regimes socialistas e democráticos). Chama-se substancial à
segunda porque faz referência prevalentemente a certos conteúdos
inspirados em ideais característicos da tradição do pensamento
democrático, com relevo para o igualitarismo. Segundo uma velha
fórmula que considera a Democracia como Governo do povo para o
povo, a democracia formal é mais um Governo do povo; a substancial
é mais um Governo para o povo” (Bobbio, 1982:328).
Pelo visto, historicamente, "democracia" assume um significado
formal ou substancial, conforme se ponha em maior evidência um conjunto
de regras cuja observância é necessária para que o poder político seja
efetivamente distribuído entre a maioria dos cidadãos, ou um ideal em que
um governo democrático deva se inspirar, que é o da igualdade. De todo
11
modo, Bobbio reconhece que não se pode imaginar uma democracia sólida
e forte que não esteja fundada sobre princípios de justiça.
Pode-se considerar, assim, que o conceito de democracia se refere a
um tipo de sistema político que acontece em um contexto determinado, no
qual é importante observar a regra da maioria, cuja base está em um
princípio de igualdade em que todos têm o mesmo poder de escolha e
decisão.
No entanto, conforme ressalta Machado da Silva,
“[...] regimes democráticos não garantem de antemão a igualdade,
mas geram a possibilidade de que ela venha a ser atingida aos
poucos, por meio do próprio conflito social. [...] [tais regimes] abrem
possibilidades de aprofundamento progressivo da igualdade entre os
seres humanos, com a vantagem de, não sendo regimes de força,
permitir que nesse movimento sejam preservadas as diferenças entre
os indivíduos e os grupos, isto é, as características particulares que
eles mesmos prezam” (2004:2).
O autor chega às seguintes conclusões relativas aos regimes
democráticos:
a) se assentam sobre dois pilares: Estado forte no sentido de aceito e
legitimado e esfera pública ampla;
b) têm vocação para aprofundar progressivamente a igualdade social
sem impor uma homogeneização forçada;
c) “pacificam” a luta dos inferiores pelo aprofundamento da igualdade
social (Machado da Silva, 2004:4).
Machado da Silva considera que tais colocações são definições e
ideais a um só tempo, uma vez que dizem respeito “a uma avaliação do que
é e do que precisa vir a ser”. Ou seja, na sua percepção “a própria definição
da democracia já é crítica da situação que é capaz de identificar e
propositiva sobre a intervenção necessária. Por princípio, ela não pode se
12
satisfazer com o que encontra na realidade”. Em face desse quadro, ele
ressalta que “democracia” não é um conceito estático e, sim, dinâmico.
“[A democracia] não se refere a uma estrutura parada no tempo,
congelada, cristalizada, mas a um processo. Por isso, diz-se que a
cidadania – termo que se refere ao conjunto dos atores no processo
democrático – é uma conquista. Cidadãos(ãs) não nascem feitos(as),
surgem na luta, no conflito social que, dependendo de seu
encaminhamento, pode produzir uma democratização das relações
sociais” (Machado da Silva, 2004:4).
Tal democratização pressupõe a existência de liberdade e de
igualdade, os quais, por sua vez, são conceitos relacionados entre si.
Segundo Silva Filho
“Bobbio remete um conceito a outro [liberdade à igualdade e vice-
versa], na medida em que ambos suscitam a harmonia, a ordem
entre as partes (indivíduos em relação) de um todo (a sociedade).
Apesar dessa tênue demarcação, igualdade sinaliza um fato, justiça,
um ideal. A pertinência da igualdade ou não é sua aplicabilidade nas
relações sociais. Nesse particular [esta] pode assumir duas faces: a
de equivalência (aquela da simetria entre o dar/fazer e uma situação
anterior com o ter ou posterior com o receber) e a de equiparação
(onde se almeja igualar na relação pessoas com atributos diversos)”
(2004:3).
O autor acrescenta, ainda, que a relação entre liberdade e igualdade
pode se equivaler à relação entre liberdade e justiça, porquanto justiça
pressupõe um ato realizado em consonância com a lei e com uma relação
de igualdade. Pelo exposto, pergunta: quais critérios devem ser utilizados
para vislumbrar a justeza ou não de determinada igualdade?
Segundo Kerstenetzky, esses critérios podem ser identificados no
campo das teorias da justiça onde proliferam concepções e princípios que
separam desigualdades justificáveis daquelas que não o são. A autora
13
apresenta algumas das principais alternativas contemporâneas de justiça
em contraposição àquela que julga de uso ordinário. Esta última atribui
exclusivamente ao mercado a tarefa de distribuir vantagens sociais e
econômicas e, ao Estado de direito, zelar pela lei e a ordem necessárias ao
funcionamento satisfatório respectivo (2003:78). Kerstenetzky contrasta
essa teoria com outra, que considera “espessa”.
“[Essa outra teoria] concebe a justiça como um valor moral
complexo, abrigando não apenas eficiência e liberdade econômica,
como também outras liberdades (entre elas a política), além da
igualdade. Embora conceda ao mercado primazia na alocação de
recursos econômicos, aqui há o reconhecimento de que o Estado tem
uma importante função complementar na distribuição de vantagens
socioeconômicas. Trata-se, pois, de uma concepção de justiça social
[que tem como justificativa] o fato de que o mercado opera sobre
uma distribuição prévia de recursos e vantagens, que, por sua vez,
predetermina as chances de sucesso dos indivíduos em suas
transações econômicas, ensejando desigualdades ‘injustas’ (isto é,
não baseadas exclusivamente na escolha e na responsabilidade
individual) de chances de realização de projetos de vida”
(Kerstenetzky, 2003:78).
O filósofo político John Rawls e o economista Amartya Sen estão
entre aqueles estudiosos que mais se enquadram na categoria supracitada
ao conceberem a justiça como um valor moral complexo que abriga formas
diversas de liberdade, além da eqüidade social, e ao reconhecerem o papel
do Estado em fazer cumpri-la diante das restrições que o mercado coloca
nesse sentido. Assim, tendem a favorecer a idéia de que as políticas sociais
implementadas por este são formas insubstituíveis de realização da justiça
distributiva. Acreditam, ainda, que determinados direitos individuais
invioláveis devem ser protegidos pelo Estado e também na neutralidade do
mesmo com relação às diferentes concepções de boa vida que os cidadãos
possam ter. Por meio dos seus trabalhos ressaltam a “adequação moral de
uma política distributiva respaldada por princípios de justiça consensuais”
(Peixoto Ramos, 2003:4).
14
Quanto à Rawls, é um dos pilares do pensamento político conhecido
como “liberal”, segundo o qual uma concepção de justiça adequada deve
ser capaz de assegurar a possibilidade de todos os indivíduos de uma
sociedade particular realizar seu projeto de vida. Dessa forma, o autor
pretende conceber um Estado plural e neutro a um só tempo. Mas, como
conciliar tais quesitos e ainda garantir uma ordem social justa?
Pensando nesse sentido, o autor propõe-se a fundamentar princípios
que possam garantir a configuração de uma sociedade moderna com
cooperação social eqüitativa entre seus cidadãos enquanto pessoas livres e
iguais, mas que são profundamente divididas por doutrinas religiosas,
filosóficas e morais incompatíveis entre si. A questão central para ele é
como chegar, nas democracias pluralistas contemporâneas, a um acordo
sobre princípios que devem regular as instituições básicas da sociedade
(Manfredo de Oliveira, 2003:1).
Rawls, assim, tomou a si a reflexão sobre um dos mais difíceis
dilemas da sociedade atual, qual seja: como conciliar direitos iguais em
uma sociedade desigual, ou melhor dizendo, como harmonizar as ambições
materiais daqueles indivíduos mais talentosos com os desejos dos menos
avantajados com vistas a melhorar a situação de vida destes últimos? Com
esse propósito, o autor fez um significativo esforço intelectual visando
conciliar a meritocracia com a idéia da igualdade, além de se aprofundar na
definição da justiça como eqüidade e na sua operacionalização em
sociedades concretas1.
Com a publicação do seu livro, hoje um clássico - Uma Teoria da
Justiça -, em 1971, John Rawls renovou o campo da filosofia política, já que
talvez pela primeira vez na história dessa filosofia tenha surgido uma teoria
que tratava também das condições concretas para sua efetivação prática.
Tal livro marcou, ainda, o início de um profícuo debate entre liberais e
comunitaristas quanto à natureza e justificativa de proposições morais e
político-filosóficas.
1 Tal esforço culminou com a publicação de O Direito dos Povos (1999), de sua autoria.
15
De fato, nessa obra, Rawls construiu uma rigorosa teoria da justiça
que tem como princípios fundantes a liberdade e a eqüidade. Para tanto, fez
uso de um recurso fictício, a posição original que remete a uma situação
hipotética na qual “as pessoas, ignorando sua posição e [...] dos demais na
sociedade, bem como seus talentos e habilidades respectivos [o “véu de
ignorância”], escolhem aqueles princípios mais eqüitativos, pelos quais [...]
não sairiam perdendo” (Rouanet, 2002:2).
Rawls identifica dois princípios de justiça formulados por tais pessoas,
em função dos quais busca realizar uma síntese entre a tradição do
pensamento político associada a Locke e aquela associada a Rousseau,
acentuando as questões da liberdade e da igualdade presentes em um e no
outro pensador, respectivamente. Dessa forma, no conflito entre os
princípios sagrados na Revolução Francesa (1789), liberdade e igualdade,
Rawls afirma a prioridade da liberdade (primeiro princípio) sob a igualdade
(segundo princípio), buscando compatibilizá-las no sentido de viabilizar a
“fraternidade democrática”.
O estudo da teoria da “justiça como eqüidade”, por ele formulada,
contribuiu igualmente para a concepção de políticas sociais, levando em
conta a justiça e a eqüidade, além da afirmação da liberdade de escolha
individual. Dentre essas políticas se destacam aquelas relativas à defesa de
direitos de minorias e as de cunho redistributivo, como a de renda básica ou
renda de cidadania. A teoria da justiça de Rawls possibilitou, ainda, uma
série de desenvolvimentos teóricos de diversos tipos.
De fato, com a publicação de Uma Teoria da Justiça, segue-se a
publicação de Nozick, Anarchy, State and Utopia, em 1974, e, mais tarde, a
de Dworkin, Taking Rights Seriously, em 1977, visando renovar o
liberalismo. A partir da década de 80, nos EUA, surge uma reação contra o
individualismo liberal, provocada pelas críticas de autores denominados
comunitaristas. Dirigida particularmente contra Ralws, tais críticas
reconhecem, contudo, que a obra deste autor alterou os princípios da teoria
liberal contemporânea, particularmente a concepção de liberdades
individuais, pensada em uma perspectiva política fora do quadro do
16
individualismo utilitarista. Para os comunitaristas, todavia, a concepção
liberal de justiça procedimental de Rawls revela a prioridade equivocada do
justo sobre o bem, a partir de princípios teóricos abstratos baseados em
uma noção individualista da pessoa e da sociedade.
As formulações teóricas de Rawls influenciaram também o
economista Amartya Sen que postula uma teoria de “desenvolvimento como
liberdade” e não propriamente uma teoria de justiça. Nas palavras de
Peixoto Ramos:
“O conceito mais importante da obra de Sen é o de desenvolvimento
[o qual, segundo ele,] ‘pode ser visto como um processo de expansão
das liberdades reais que as pessoas desfrutam’ [Sen, 1999:17]. O
elemento mais enfatizado dessa definição é a noção de liberdade
como fim e também como principal meio do desenvolvimento. Este
seria o que Sen chama de papel constitutivo e ao mesmo tempo
instrumental da liberdade. Nesse sentido, o conceito de
desenvolvimento é muito mais amplo do que o de crescimento
econômico, sendo este apenas um dos meios possíveis para se
alcançar os diversos tipos de liberdade. Existem outros requisitos
para o desenvolvimento igualmente valorizados por Sen, [no entanto,
quanto] às liberdades exaltadas por ele são de diversas naturezas:
liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais,
garantias de transparência e segurança protetora. Todas essas se
inter-relacionam na medida em que uma é importante para a vigência
das outras” (2003:13).
A partir daí o autor afirma que uma sociedade deve ser avaliada de
acordo com as liberdades substantivas que proporciona aos seus membros.
Esta constitui a razão pela qual a liberdade deve ser vista como central ao
desenvolvimento, ou seja, o progresso deve ser medido de acordo com a
quantidade de liberdades reais que proporciona aos cidadãos que dele
participam. Uma outra razão é a da eficácia, isto é, o desenvolvimento
depende da liberdade que as pessoas têm “para cuidar de si mesmas e para
influenciar o mundo” (Sen, 1999:33).
17
Assim, Sen define o desenvolvimento como o processo de ampliação
da capacidade dos indivíduos de terem opções, de fazerem escolhas, de
serem livres para fazê-las. Relativizando os fatores materiais e os
indicadores econômicos, o autor insiste na ampliação do horizonte social e
cultural da vida das pessoas. Segundo ele, a base material do processo de
desenvolvimento é fundamental, mas deve ser considerada como um meio
e não como um fim em si.
Na sua percepção, a ação pública e a participação democrática são
fundamentais para elaborar e implementar políticas voltadas para a
igualdade que atendam aos setores mais desfavorecidos. Como
conseqüência, postula que o desenvolvimento múltiplo das liberdades de
cada indivíduo e de todos, e seu exercício democrático, é condição básica
para a eficácia de políticas e programas autenticamente igualitários.
Nesse sentido, Sen se propõe a compreender melhor os processos de
distribuição de vantagens e oportunidades que se produzem em economias
de mercado, fazendo uso de critérios de justiça para tanto. Segundo ele, a
adoção de mecanismos democráticos no bojo dessas economias pode ser
uma das vias para melhor articular o binômio igualdade-liberdade. De certa
forma, é o que John Rawls, com claras semelhanças e diferenças com
relação à Amartya Sen, também se propõe a realizar.
Considerando a idéia de justiça social que está presente na
formulação de qualquer política que vise diminuir a desigualdade, será
apresentado a seguir o pensamento dos autores supracitados.
“Aquilo que a todos afeta a todos respeita”
(máxima medieval citada por John Rawls em Theory of Justice).
I.2 John Rawls
I.2.1 Considerações preliminares
A trajetória intelectual de Rawls é longa e complexa. Por meio dela, o
autor faz uma revisão permanente de suas próprias formulações teóricas,
18
mantendo, no entanto, a consistência interna de sua obra, considerada uma
das mais importantes referências para a filosofia política do século XX até a
contemporaneidade. De fato, seu livro Uma Teoria da Justiça foi saudado
pelo mundo acadêmico como uma obra magistral nesse campo, uma vez
que propõe um novo paradigma para o estudo da justiça em oposição à
supremacia do utilitarismo ético e do positivismo jurídico, particularmente
daquele adotado no mundo anglo-saxão.
Como Rawls bem afirmou em uma entrevista que concedeu em 1998
à revista Commonweal, o problema central de sua reflexão ético-política
desde Uma Teoria da Justiça (1971) até o Liberalismo Político (1993) e O
Direito dos Povos (1999) sempre foi o de oferecer argumentos razoáveis em
defesa da democracia constitucional, por meio da difusão de uma idéia de
razão pública. Nesse sentido, a concepção de uma teoria da justiça como
eqüidade (justice as fairness) foi apenas o marco inicial para um desafio
normativo que esteve presente em toda a sua trajetória, impelindo-o ao
pensamento ético-político, qual seja: "por que defender a democracia como
a melhor forma de governo e de sociabilidade?"
Rawls procura articular o conceito de liberdade com o de igualdade,
situando-se na tradição contratualista de John Locke, Rousseau e Kant.
Considera como impraticáveis as teorizações ligadas às correntes filosófico-
políticas hegemônicas, principalmente o utilitarismo, que, segundo ele, se
contenta apenas em proporcionar o maior bem-estar para o maior número
de indivíduos, sem se preocupar com a igualdade social2. Em contraposição
a este, o autor formula uma nova teoria de contrato social para identificar
os princípios de justiça necessários para viabilizar a sociedade justa e bem
ordenada.
2 O conceito de utilidade é fundamental para o utilitarismo e pode ser definido como “o nível de felicidade ou satisfação que a pessoa obtém de suas circunstâncias” (Mankiw, 1999:436 apud Peixoto Ramos, 2003). O objetivo do utilitarismo, assim, é que o bem-estar coletivo seja o máximo ou que o saldo dos ganhos e das perdas da coletividade seja positivo. Pouco importa, neste caso, que a situação de certos indivíduos particulares piore de maneira considerável, que haja injustiças ou que sejam sacrificados os interesses de certas pessoas. Para maximizar o interesse geral, seria até desejável que fossem sacrificadas as pessoas menos úteis à sociedade.
19
Em Uma Teoria da Justiça Rawls afirma que seu objetivo é apresentar
uma concepção de justiça que generalize e leve a um grau mais alto de
abstração a teoria do contrato social, o que o faz baseado na idéia da
cooperação. Nessa obra, postula que uma determinada situação será justa
uma vez que seja adotado em relação à mesma um sistema de regras
gerais, consensuadas, que a definam como justa, as quais serão construídas
por meio de uma seqüência de acordos hipotéticos realizados entre pessoas
autônomas, com obrigações auto-impostas. Tais acordos, por sua vez, são
resultantes de uma barganha eqüitativa que estas realizam quando estão
na posição original, sob o “véu da ignorância”, o que assegura que não
levarão vantagem ou desvantagem nas negociações, tendo em vista dotes
naturais ou contingências de vida que lhes são específicas.
Na concepção de Rawls, podem ser identificadas quatro etapas na
organização de uma sociedade bem ordenada. Na primeira, escolhem-se os
princípios de justiça (na posição original); depois vem a fase da convenção
constitucional; em seguida, a da elaboração das leis; por fim, a do
cumprimento efetivo destas. No decorrer de tais etapas o “véu de
ignorância” fica mais delgado, até extinguir-se na quarta etapa. Para o
autor, esse esquema é aplicável a sociedades que já superaram as questões
cruciais de seu processo de desenvolvimento, ou seja, sociedades liberais e
democráticas.
Na sua primeira grande publicação, Uma Teoria da Justiça, Rawls não
faz uma distinção explícita entre a dimensão moral e a especificidade
política de suas formulações teóricas. No entanto, com a publicação de
Liberalismo Político procura reformular a “justiça como eqüidade” não mais
como uma doutrina moral abrangente, mas como uma teoria política capaz
de conjugar o igualitarismo (igualdade de bem-estar social) e o
individualismo (liberdades individuais) inerentes a uma concepção pública
de justiça, que viabilize a coexistência pacífica de pessoas com diferentes
doutrinas religiosas, concepções do bem e preferências ideológico-
partidárias3. Nas palavras de Augusto Ramos:
3 Essa é a idéia do pluralismo razoável que garante a sobrevivência de instituições democráticas. Conforme o autor, tal esclarecimento não se trata de uma retratação ou mudança de posição de sua
20
“A série de artigos que Rawls escreve após a publicação de Uma
Teoria da Justiça culminando na obra Liberalismo Político reflete a
intenção do autor de insistir numa interpretação liberal do seu
pensamento a partir da explicitação política dos seus principais
conceitos. Procurando tematizar os princípios de justiça a partir de
uma concepção política de pessoa e das liberdades básicas que as
sociedades democráticas modernas historicamente universalizaram, a
obra posterior de Rawls intenta mostrar que o fim da teoria da justiça
como eqüidade é elaborar uma concepção da justiça política e social
em harmonia com as convicções e as tradições as mais enraizadas de
um Estado democrático moderno” (s/d:70).
Rawls constrói princípios de justiça levando em consideração os
seguintes elementos: i) a idéia de uma sociedade bem ordenada que
funcione como um sistema justo de cooperação; ii) que esse sistema seja
operado por cidadãos livres e iguais que agem segundo fins racionais,
superando divergências e diferenças, por meio de um consenso obtido por
justaposição (overlapping consensus); iii) a idéia política de pessoa(s) que
te(ê)m a ver com o estatuto destas enquanto cidadãos(ãs) livres e iguais.
Com o objetivo de evitar a proximidade da sua teoria com qualquer
concepção moral abrangente, a análise rawlsiana procede ainda “por
deslocamentos, aprofundamentos e reformulações da concepção de pessoa,
com vistas à elaboração de um conceito político da mesma, rejeitando
aquelas teorias que compreendem de forma exaustiva o valor moral da
pessoa e da sua liberdade, quer seja na visão do individualismo de Stuart
Mill, quer seja na perspectiva da autonomia da vontade de Kant” (Augusto
Ramos, s/d:71-72).
Rawls situa-se politicamente em um meio-termo entre o ultraliberal
Robert Nozick, que está à sua direita, e o comunitarista Michael Walzer, à
sua esquerda. Este último critica Rawls por seu universalismo quando parte, mas antes de uma reformulação e de uma reafirmação (“reestatement”, como afirma) de sua teoria original, de forma a torná-la mais defensável.
21
afirma que a justiça plena é local, só é possível em comunidades
determinadas4. Por outro lado, segundo Renteria, a teoria rawlsiana, por
algumas vezes, tem sido utilizada para legitimar um modelo próximo à
social-democracia pois, na sua percepção, Rawls insiste na compatibilidade
entre a prevalência do mecanismo do mercado e certas formas de
socialismo (socialismo liberal, por exemplo) (Renteria, s/d:3). Nesse
aspecto, Rawls distingue-se do enfoque libertarista de Nozick, que elege o
direito de propriedade como princípio fundamental e exclui qualquer
consideração sobre justiça distributiva.
I.2.2 Crítica ao utilitarismo
O utilitarismo, disseminado nos círculos intelectuais europeus na
segunda metade do século XVIII e primeira metade do século XIX, foi
paradigmático no campo da filosofia política até a socialização das idéias de
Rawls que rompeu com essa tradição.
“Meu objetivo é elaborar uma teoria da justiça que represente uma
alternativa ao pensamento utilitarista em geral e conseqüentemente
a todas as suas diferentes versões [uma vez que] cada pessoa possui
uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar
da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça
nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem
maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos
a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens
desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa, as
liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos
assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou
ao cálculo de interesses sociais” (Rawls, 1982).
De fato, Uma Teoria da Justiça constitui-se em uma das mais
importantes tentativas, no campo da filosofia política, de discutir uma
4 Também de uma perspectiva comunitarista, Michel Sandel no livro Liberalism and the Limits of Justice (1982) critica o individualismo de Rawls, utilizando como argumento que ele não leva em conta a importância da vida coletiva e do bem comum.
22
proposta de justiça de cunho liberal-democrático. Nesta obra, Rawls discute
o papel de diversos valores no mundo da política, que não só a utilidade ou
a felicidade, mas, sobretudo, a liberdade, a eqüidade, a solidariedade e o
auto-respeito, propondo a concepção de justiça como eqüidade como
alternativa5. No Prefácio à edição francesa de Uma Teoria da Justiça, o
autor declara a impossibilidade de a doutrina utilitarista “fornecer uma
análise satisfatória dos direitos e das liberdades de base dos cidadãos
enquanto pessoas livres e iguais o que, no entanto, é uma exigência
absolutamente prioritária para uma análise das instituições democráticas”
(Rawls,1982).
De acordo com Johnston, o utilitarismo é insatisfatório para Rawls
pelo menos por duas razões: primeiro, por não concordar com o fato de os
direitos individuais não estarem sujeitos ao cálculo dos interesses sociais.
“A proposição central do utilitarismo, pelo menos na sua forma clássica, é o
princípio da maior felicidade. [...] Todavia, em algumas circunstâncias
plausíveis, pode acontecer que a maneira de maximizar a felicidade
agregada signifique impor um sofrimento considerável a um ou a alguns
membros de uma sociedade” (1996:102). Rawls defende que resultados
desse tipo colidem com direitos dos indivíduos que não devem ser
sacrificados no cálculo dos interesses sociais. Segundo, “porque pressupõe
uma concepção monista do bem” (Johnston, 1996:103), ou seja, se todos
os indivíduos forem totalmente informados e racionais, concordarão que
existe apenas um bem.
“Na sua perspectiva [de Rawls] há uma concepção pluralista de
diferentes e até incomensuráveis concepções de bem e assim
continuaria a ser mesmo que todas as pessoas fossem muitíssimo
informadas e racionais. As pessoas possuem diferentes valores e
formulam diferentes projetos. Alguns destes [...] ultrapassam a sua
própria vida e experiência individual. Isto é, alguns indivíduos [...]
5 O livro A Teoria da Justiça divide-se em três partes, em um total de nove capítulos. A primeira tem como epígrafe Theory, a segunda Institutions e a terceira Ends. Na primeira parte, Rawls defende as idéias principais que desenvolve ao longo dessa obra; na segunda, a necessidade de uma democracia constitucional como pano de fundo para a aplicação das idéias referidas na primeira; e, na terceira, descreve o estabelecimento da relação entre a teoria da justiça e os valores da sociedade e o bem comum.
23
valorizam outras coisas para além de estados mentais ou estados de
bem-estar psicológico. Os utilitaristas podem tentar explicar estes
valores afirmando que devem estar baseados em inferências
desinformadas ou irracionais. No entanto, segundo Rawls, este
esforço será infrutífero. As pessoas formulam de fato diferentes
concepções de bem, em muitos casos irreconciliáveis. Uma teoria da
justiça satisfatória, pensa Rawls [...] deve ter em conta este fato”
(Johnston, 1996:103).
Em contrapartida ao utilitarismo e outros, por meio da formulação de
princípios de justiça, Rawls visa operacionalizar os valores da liberdade e da
igualdade. As instituições da sociedade regidas por tais princípios “teriam a
função de regular a competição por recursos escassos e, ao mesmo tempo,
retirar dessa competição aqueles direitos e liberdades fundamentais, que
não podem ser questionados”. Nesse sentido, essas instituições “levariam
os indivíduos a se perceberem como agentes morais que incorporam uma
concepção pública de justiça” (Peixoto Ramos, 2003:8).
I.2.3 A opção pelo contrato social e o liberalismo de Rawls
As teorias contratualistas têm como um de seus propósitos o
estabelecimento do consenso como fator legitimador do Estado. Como
explica Esteves:
“[...] os contratualistas pensavam que embora ninguém tivesse tido
a possibilidade de escolher a sociedade em que iria nascer e viver,
uma sociedade justa seria aquela em que cada qual, se tivesse tido
essa possibilidade, teria escolhido para nascer e viver. Para que
uma sociedade fosse justa nesse sentido [...] seria preciso que as
leis dessa sociedade emanassem de seus membros como se cada
qual tivesse sido legislador, como se tais leis tivessem brotado
autonomamente de cada vontade, expressando a vontade geral. A
teoria do contrato social seria então a simulação de uma situação
hipotética, na qual os indivíduos reunidos criariam uma legislação
24
fundamental, constitucional e justa de um Estado, na qual estaria
manifesta a vontade geral” (2002:94).
E Rawls não pensa diferente. De acordo com ele, uma das
características essenciais da concepção contratualista de justiça é que a
estrutura básica da sociedade é o seu primeiro objeto. Tal estrutura, por
sua vez, está relacionada com a maneira pela qual as principais
instituições sociais – a constituição política e os acordos fundamentais - se
arranjam em um sistema único, em função do qual consignam direitos e
deveres para os cidadãos e estruturam a distribuição de vantagens
resultantes da cooperação social. Dessa forma, para viabilizar a existência
de uma sociedade estável e justa, integrada por cidadãos livres e iguais,
embora com visões plurais, Rawls propõe uma concepção liberal de
justiça, estabelecida por meio de um contrato, própria para um regime
constitucional democrático.
O autor inicia seu constructo por um contrato social hipotético e a-
histórico, no qual as pessoas seriam reunidas em uma situação inicial –
por ele chamada de “posição original” – a fim de deliberar uma série de
princípios responsáveis por embasar as regras do “justo” (os “princípios da
justiça”). No entanto, segundo sua teoria, a única forma de as pessoas
nessa posição escolherem princípios justos – aqueles apresentados pela
“razão” de cada um – seria colocando sobre as mesmas um “véu de
ignorância”, em função do qual cada uma ignoraria todas as suas
circunstâncias pessoais e sociais anteriores e futuras com relação a essa
situação hipotética.
Assim, o contrato social, conforme pensado por Rawls (1) é um
acordo hipotético entre todos os membros de uma sociedade e não somente
entre alguns deles. É celebrado pelas pessoas (2) enquanto cidadãos e não
enquanto indivíduos que ocupam uma posição ou papel particular no seio da
sociedade; (3) os parceiros são considerados e se consideram eles próprios
pessoas morais livres e iguais: é isso que – em conjunto com (2) – vai
garantir que, sob o véu de ignorância, chegarão a um conceito de justiça
25
consensual e unânime e que, removido o véu, todos buscarão segui-lo em
suas práticas sociais. Por fim, resta o item (4) do contrato rawlsiano, ou
seja, o conteúdo do acordo, que trata dos princípios primeiros que vão
governar a estrutura básica (Martini, 2002:6).
No entanto, vale ressaltar que a idéia de “posição original” associada
ao “véu de ignorância” constitui para o autor um recurso, o mais razoável,
para se estabelecer os termos justos da cooperação social, dispondo as
pessoas em bases eqüitativas, não permitindo que obtenham vantagens na
negociação. Tal posição corresponde, na teoria contratualista de Rawls, ao
estado em que os indivíduos se encontram quando estão prestes a formular
o contrato; é status quo inicial apropriado para assegurar que os consensos
básicos nele estabelecidos sejam eqüitativos.
Dessa forma, na definição de Van Parijs (1997) do conceito de justiça
de Rawls, “uma instituição pode ser considerada justa quando não opera
nenhuma distinção arbitrária entre pessoas na atribuição dos direitos e dos
deveres e quando determina um equilíbrio adequado entre as reivindicações
conflitantes referidas às vantagens da vida social” (Peixoto Ramos, 2003:8
apud Van Parijs, 1997).
De fato, conforme Rawls não importa se os cidadãos(ãs) tenham
percentuais diversos de riqueza – importa que a estrutura básica na qual
eles estão inscritos seja justa e/ou moralmente igual. Nesse contexto, a
alocação dos itens produzidos ocorre de acordo com o sistema público de
regras gerais consensuadas. Basicamente, nisso consiste a teoria da
justiça rawlsiana – um modelo de justiça formulado no plano do mundo
ideal, a fim de poder ser utilizado para se pensar sociedades concretas,
marcadas por injustiças tanto no nível das instituições quanto dos
indivíduos. De acordo com Vita:
“A ‘moralidade política em sentido amplo’ contida na teoria de Rawls
requer que se concebam princípios de justiça e instituições políticas e
sociais deles derivados que sejam valorizados por si próprios e não
como meios para alcançar determinados fins. A existência dessas
26
instituições não deve ser vista como tendo simplesmente o propósito
de organizar um modus vivendi, mas deve ser justificada por
argumentos morais” (Vita, 1993:23 apud Peixoto Ramos, 2003:8).
As colocações acima expostas são mais facilmente entendidas quando
se considera que Rawls é um pensador liberal. No entanto, o liberalismo que
o autor defende é político e não econômico, não cabendo ao Estado
interferir em diferentes concepções culturais, religiosas, político-ideológicas
desde que estas sejam razoáveis. Segundo Rawls, é possível o convívio na
sociedade democrática moderna, caracterizada pelo pluralismo, na medida
em que se construa um consenso em torno dos princípios de justiça.
I.2.4 Os princípios de justiça
Em Uma Teoria da Justiça (1971), Rawls afirma que uma sociedade
liberal-democrática justa é aquela cujos arranjos institucionais básicos – a
"estrutura básica da sociedade" – dão existência aos seguintes princípios de
justiça:
i) cada pessoa tem direito igual a um sistema plenamente
adequado de liberdades e de direitos básicos iguais para todos,
compatíveis com um mesmo sistema para todos (princípio de
igual liberdade);
ii) as desigualdades sociais e econômicas devem preencher duas
condições: em primeiro lugar, estar ligadas a funções e a
posições abertas a todos em condições de justa igualdade de
oportunidades; e, em segundo lugar, proporcionar a maior
vantagem para os membros mais desfavorecidos da sociedade
(princípio de igual oportunidade e da diferença).
Quanto ao primeiro princípio, refere-se à exigência da aplicação das
liberdades básicas de forma equânime - a liberdade política (o direito de
votar e ocupar um cargo público), a liberdade de expressão e reunião, a
liberdade de consciência e de pensamento, as liberdades contra agressão
27
física e psicológica, o direito à propriedade privada e a proteção à prisão
arbitrária.
Já o segundo princípio se apóia na idéia de cada pessoa ter igual
acesso à cota de bens sociais (aqueles cuja distribuição é afetada pelos
arranjos institucionais), quais sejam: renda, riqueza, oportunidades
educacionais e ocupacionais. Além disso, este se pauta no princípio da
diferença que prevê que as desigualdades na distribuição desses bens só
sejam aceitas se estiverem a favor dos que estão em pior situação
socioeconômica.
Segundo Rawls, tais princípios deverão obedecer à prioridade da
liberdade e à prioridade da justiça sobre a eficiência e o bem-estar. Rouanet
lembra que o segundo princípio de justiça é lexicamente anterior ao
princípio de eficiência e ao de maximizar a soma de vantagens, e que a
oportunidade justa é anterior ao princípio de diferença. Segundo ele, há
dois casos: a) uma desigualdade de oportunidade deve aumentar as
oportunidades daqueles com menor oportunidade; b) uma taxa excessiva
de poupança deve mitigar a carga daqueles que vivem em condições mais
duras (1993:30).
Pode-se dizer, portanto, que a liberdade é a característica
fundamental da justiça na teoria rawlsiana. Não obstante, seu pleno
exercício requer que haja, previamente, uma distribuição minimamente
igualitária de bens sociais primários. Estes abrangem: direitos e liberdades
básicas do primeiro princípio; vantagens socioeconômicas, isto é, renda,
riqueza, poder e prerrogativas previstas na primeira parte do segundo
princípio; oportunidades de acesso a essas vantagens que estão previstas
na segunda parte do segundo princípio. A introdução do princípio da
diferença assegura a todas as pessoas bases sociais de auto-respeito, o que
Rawls entende ser o bem primário mais importante.
No entanto, é o princípio da diferença aquele que mais chama a
atenção no pensamento do autor, o qual é também o mais controvertido.
Conforme Renteria:
28
“[...] o esquema eqüitativo de liberdades não impede que certas
desigualdades relativas a outros bens primários se verifiquem,
especialmente as diferenças de riqueza, implicadas pelo jogo da livre
concorrência numa economia de mercado. Ora, o princípio da
diferença exige a minimização dessas desigualdades, isto é, a
maximização do bem-estar dos mais desfavorecidos, e qualquer
desigualdade deve ser especialmente justificada. A desigualdade só
pode existir quando servir aos mais desfavorecidos, por exemplo, em
certos casos, concentrações de riqueza permitem um
desenvolvimento dos meios de produção e a elevação do bem-estar
social de que todos gozam, inclusive os mais desfavorecidos, de
modo que uma tentativa de diminuir as desigualdades possa
provocar, ao contrário, uma acentuação destas. Assim, o princípio da
diferença que poderia ser considerado um compromisso entre a
ordem liberal e o igualitarismo representa, na verdade, o meio mais
eficaz e razoável de se ampliar a igualdade, pois, mesmo do ponto de
vista das possíveis vítimas que deliberam na posição original, não
seria razoável, segundo Rawls, ser igualitarista na distribuição desses
bens primários” (s/d:3).
Já, Vita pergunta:
“O que Rawls diria para os que se encontrassem na posição mais
desfavorável, em uma sociedade cujas instituições básicas
colocassem em prática a justiça maximin, é algo do seguinte teor: é
preferível um arranjo institucional que garanta um quinhão maior em
termos absolutos, ainda que não igual, de bens primários para todos,
do que um outro no qual uma igualdade de resultados é assegurada à
custa de reduzir as expectativas de todos” (Vita, 1998:9).
Esta consideração, segundo Vita, permite a Rawls passar da defesa
de uma igualdade estrita na distribuição de bens primários, para a defesa
do princípio da diferença.
29
I.2.5 A justiça como eqüidade
A teoria rawlsiana no seu conjunto e a idéia de justiça como
eqüidade, em particular, derivam do pensamento de Kant, embora Rawls
negue o valor da generalização e da universalidade kantianas ao defender
que os princípios com os quais trabalha não são inéditos na história da
filosofia e que a sua teoria é política e não metafísica.
A justiça como eqüidade foi concebida por esse autor como uma
doutrina contratualista, ainda que se distancie das demais doutrinas dessa
natureza. Esta pode ser desdobrada em duas partes: i) na interpretação
de uma situação inicial e do problema da escolha colocado naquele
momento; ii) na apresentação dos princípios de justiça, os quais são
aceitos (porque formulados) por todos. Quanto à primeira dessas,
comporta a posição original. Já a segunda, os princípios escolhidos
consensualmente sob o véu de ignorância. Nesse caso, são estabelecidos
dois contratos sociais: i) o da posição original, com a conseqüente escolha
dos princípios de justiça; ii) o do compromisso daqueles que escolheram
cumpri-los. Segundo Rawls, é desse segundo contrato que depende toda a
estabilidade do sistema. De todo modo, a idéia do contrato está
subjacente à definição de tais princípios.
“O mérito da terminologia do contrato é que ela transmite a idéia de
que princípios da justiça podem ser concebidos como princípios que
seriam escolhidos por pessoas racionais e que assim as concepções
de justiça podem ser explicadas e justificadas. [...] Mais ainda, os
princípios da justiça tratam de reivindicações conflitantes sobre os
benefícios conquistados através da colaboração social; aplicam-se
às relações entre várias pessoas ou grupos. A palavra ‘contrato’
sugere essa pluralidade, bem como a condição de que a divisão
apropriada de benefícios aconteça de acordo com princípios
aceitáveis por todas as partes” (Rawls, 1971).
30
Quanto à eqüidade, significa para Rawls a igualdade desinteressada
e hipotética da posição original, a qual permite às pessoas chegar a um
consenso sem barganhas e conchavos, e à igualdade de oportunidades
entre pessoas iguais com respeito ao princípio da diferença. Por
conseguinte, o que interessa para a teoria da justiça como eqüidade não é
propriamente a igualdade, mas a desigualdade justificada e aceita.
As considerações supracitadas têm sentido considerando que o autor
rivaliza com o utilitarismo, pelo respeito que impõe às liberdades individuais
e à igualdade de oportunidades. No entanto, é o princípio da diferença
aquele que oferece o melhor ponto de comparação entre a teoria rawlsiana
e o utilitarismo, já que em Rawls a repartição do bem-estar e a questão da
justiça distributiva desfrutam de um lugar essencial6.
No ano de 2001, por meio da publicação de Justice as Fairness: a
reestatement, Rawls tentou defender a unidade das suas formulações
teóricas, cujas bases estão relacionadas com fatos que marcaram as
sociedades ocidentais contemporâneas. Entre estes, o autor enumera: o
reconhecimento (1) da diversidade de doutrinas abrangentes coexistindo
sob certas condições políticas e sociais; (2) de que a adesão de todos a uma
doutrina abrangente particular só é alcançada através da opressão e do uso
do poder estatal; (3) de que um regime democrático só se sustenta com o
endosso de diferentes e inconciliáveis doutrinas abrangentes; (4) de que a
cultura política de uma sociedade democrática engendra idéias
fundamentais para a concepção política de justiça de um regime
constitucional; e, finalmente, (5) de que os mais importantes julgamentos
políticos são de tal ordem que pessoas razoáveis, após ponderações,
chegam às mesmas conclusões a seu respeito (Dias, 2004:2).
Rawls postula, assim, só haver uma forma plausível de justificação de
princípios de justiça nas sociedades bem ordenadas, uma justificação
pública que envolve o apelo a elementos compartilhados pelas diversas
doutrinas abrangentes que compõem a totalidade respectiva. Quanto a tais 6 Renteria considera também que tal princípio representa, para Rawls, o meio mais eficaz e razoável de se ampliar a igualdade, pois, mesmo do ponto de vista daqueles que deliberam na posição original, não seria razoável, ser igualitarista na distribuição dos bens primários (s/d:2).
31
princípios, são aqueles sobre os quais é estabelecido um consenso
sobreposto. Segundo o autor, indivíduos razoáveis são aqueles capazes de
reconhecer um núcleo compartilhado de idéias políticas, algo de sua própria
concepção abrangente. Desse modo, esses princípios de justiça não seriam
vistos como antagônicos às concepções abrangentes particulares, mas como
fundamentados pelas mesmas. Ou seja, o assentimento aferido às idéias
básicas da organização política é parte da própria concepção abrangente de
cada integrante da sociedade.
I.2.6 Implicações redistributivas
Como visto, a teoria da justiça como eqüidade está pautada em um
critério estabelecido mediante uma deliberação racional, o qual é passível
de ser aplicado a pessoas portadoras de uma cultura política democrática
em que existe consenso sobre as bases de uma justiça distributiva. Nesse
sentido, na teoria rawlsiana a realização do princípio da diferença exige que
as desigualdades arbitrárias ou imerecidas sejam compensadas, ou seja,
que a distribuição de talentos, oportunidades, recursos, preferências,
gostos, ambições, constitua uma dotação comum. Isso significa que as
instituições políticas, econômicas e sociais devem estar a serviço dessa
compensação, isto é, não devem discriminar favoravelmente aqueles que
possuem mais talentos ou mais recursos. Esse é o ponto que caracteriza o
princípio da igualdade democrática de Rawls.
O autor identifica três tipos diferentes de bens relevantes para a
justiça distributiva, quais sejam: i) bens passíveis de distribuição, como a
renda, a riqueza, o acesso a oportunidades educacionais e ocupacionais e a
provisão de serviços; ii) bens que não podem ser distribuídos diretamente,
mas que são afetados pela distribuição dos primeiros, como o conhecimento
e o auto-respeito; e iii) bens que não podem ser afetados pela distribuição
de outros bens, como as capacidades física e mental de cada pessoa. A
teoria rawlsiana “tem implicações claras para os dois primeiros tipos de
bens [a que Rawls se refere como os "bens primários"], que constituem o
distribuendum desse enfoque sobre a justiça” (Vita,1998:1).
32
Ainda assim, é o princípio da diferença aquele que opera sobre as
desigualdades sociais econômicas, que permaneceriam ainda que as
necessidades básicas fossem satisfeitas. Segundo Vita
“É importante ressaltar esse ponto porque a teoria de Rawls é muitas
vezes interpretada como uma justificativa moral para o tipo de
redistribuição praticada pelos welfare states que, essencialmente,
consiste em um sistema de taxação da renda dos mais abastados
para subsidiar direta ou indiretamente a renda dos mais pobres. Não
é isso que Rawls tem em mente como o modelo institucional mais
apropriado para colocar em prática sua concepção de justiça [...]. O
capitalismo de welfare state, [diz ele,] rejeita o valor eqüitativo das
liberdades políticas, e, apesar de nele haver uma certa preocupação
com a igualdade de oportunidade, as políticas necessárias para
garanti-la não são implementadas. Esse regime permite
desigualdades muito grandes de propriedade de bens não-pessoais
(meios de produção e recursos naturais), de modo que o controle da
economia e, em grande medida, também da vida política, permanece
em poucas mãos. E, embora os benefícios de bem-estar [...] possam
ser bastante generosos e garantir um mínimo social decente cobrindo
as necessidades básicas, um princípio de reciprocidade que regule as
desigualdades econômicas e sociais não é reconhecido." (1998:9-10).
I.2.7 A democracia em Rawls
Laisner ressalta que o aspecto fundamental da contribuição de Rawls
para o desenho de uma concepção alternativa de democracia diz respeito à
identificação de princípios de justiça
“[...] que ninguém poderia razoavelmente rejeitar em uma
deliberação ideal, [os quais] podem ser introduzidos no processo de
deliberação pública como alternativas a serem consideradas, a
despeito de ser improvável que venham a ser objeto de um acordo
unânime, mesmo entre pessoas razoáveis, em qualquer democracia
real” (Vita, 2000:19 apud Laisner, 2002:17).
33
A autora lembra que o tipo de democracia que a proposta de justiça
como eqüidade permite vislumbrar implica um acordo público entre os
indivíduos acerca de questões fundamentais da vida em sociedade, tal como
Rawls postula em O Liberalismo Político.
“Como ya he señalado, la democracia implica una relación política
entre los ciudadanos dentro de la estructura básica de la
sociedad, en el seno de la cual han nacido y en la que
normalmente transcurre toda su vida; implica, además una
participación igual en el poder político coercitivo que ejercen los
ciudadanos unos sobre otros al votar y por otros medios. Como
seres razonables y racionales, y sabiendo que profesan una
diversidad de doctrinas razonables, religiosas y filosóficas,
deberían ser capaces de explicarse unos a otros los fundamentos
de sus actos en términos que cada cual espere razonablemente
que los demás puedan suscribir, por ser congruentes con su
libertad y su igualdad ante la ley. Tratar de satisfacer esta
condición es una de las tareas que nos pide cumplir este ideal de
la política democrática. Entender cómo debemos conducirnos
como ciudadanos democráticos incluye la cabal comprensión de
un ideal de razón pública” (Rawls, 1993:208).
Já, segundo Álvaro de Vita, o arranjo institucional que mais se
aproxima da realização da justiça como eqüidade, tal como proposta por
Rawls, é o da democracia de cidadãos-proprietários formulado pelo
economista James Meade como uma alternativa ao capitalismo (1998:10).
Conforme Vita,
“[...] mais do que a igualização da renda, as instituições e políticas
igualitárias deveriam ter por objetivo uma distribuição igual da
propriedade entre todos os cidadãos com o mínimo de interferência
possível sobre os incentivos econômicos e sobre a iniciativa privada.
Meade (1989) pretende alcançar um estado no qual todos os
cidadãos, além da renda advinda da sua participação no mercado,
obtenham algum tipo de renda derivada da sua participação em
34
lucros, juros, aluguel ou dividendos. Em Agathotopia o autor afirma
que ainda faria parte do quinhão distributivo de cada um uma renda
básica paga incondicionalmente a todos de forma não condicionada, o
que obrigaria redirecionar o foco principal do sistema tributário da
taxação da renda para a taxação da riqueza excessiva e da
propriedade privada de capital” (1998:10)7.
Vita destaca dois tipos de problemas nas políticas dos welfare states
dirigidas para a igualização da renda real dos cidadãos apontados por
Meade:
“Um deles é o de que, dadas as tendências de mudança tecnológica (a
automação) e de emergência da meritocracia, a igualização da renda
real exigirá níveis excepcionalmente elevados de taxação da renda dos
mais abastados [...] o que afetará negativamente os incentivos para
trabalhar, poupar, inovar e assumir riscos. O segundo [...] decorre de
uma preocupação similar àquela que Rawls tem com o ‘valor
eqüitativo’ das liberdades fundamentais: um homem que possui muita
propriedade tem um grande poder de barganha e um forte sentido de
segurança, independência e liberdade; e ele usufrui desses benefícios
não somente vis-à-vis seus concidadãos destituídos de propriedade,
mas também vis-à-vis as autoridades públicas. [...] Uma distribuição
desigual de propriedade, ainda que se possa impedi-la de gerar uma
distribuição demasiado desigual da renda, significa um distribuição
desigual de poder e de status." (1998:11)
Segundo ele, Rawls considera o modelo da democracia de cidadãos
proprietários como mais apropriado para operacionalizar os princípios de
7 Segundo Vita, para tanto “Meade (e também Rawls) pensa em dois tipos de instituição de natureza fiscal: um imposto progressivo ‘moderado’ que incidiria anualmente sobre a propriedade total adquirida pelo contribuinte ou sobre o total de bens e serviços consumidos acima de um determinado limite; e uma pesada taxação sobre as transferências de riqueza, também acima de um certo limite, por herança ou por doação inter vivos. A progressividade desse segundo imposto seria aplicada do lado do recebedor, isto é, com base em quanta riqueza e propriedade tem o beneficiário da doação ou da herança e conforme o conjunto de doações e heranças recebidas ao longo de sua vida inteira. A taxação progressiva da renda só seria empregada de forma marginal, para evitar a concentração da riqueza. Para Meade, essas formas de tributação têm menos efeitos adversos sobre os incentivos para trabalhar, poupar e assumir riscos do que as formas usuais de tributação da renda empregadas pelos welfare states” (1998:10).
35
justiça de sua teoria do que o de um capitalismo de welfare state, porque o
primeiro garante
“[...] a difusão da propriedade de recursos produtivos e de capital
humano no início de cada período [...] contra o pano de fundo de
uma igualdade eqüitativa de oportunidade. A idéia não é
simplesmente a de dar assistência àqueles que levam a pior em razão
do acaso ou da má sorte e sim a de fazer com que todos os cidadãos
sejam capazes de conduzir seus próprios assuntos em um pé de
igualdade social e econômica apropriada" (iddem; ver Rawls,
1990:143).
Assim, segundo Vita
“O mais sério defeito do welfare state está em que seu sistema de
tributação e de transferências é organizado para corrigir ex-post – ‘ao
fim de cada período’, como diz Rawls – as desigualdades geradas por
uma economia capitalista de mercado (Van Parijs, 1997:74). Para
Rawls, “as compensações ex-post exigem precisamente aquilo que
deveria estar ausente de um arranjo institucional justo, isto é, “levar
em conta a infindável variedade de circunstâncias e as posições
relativas de pessoas específicas” (Rawls, 1971:87). [De acordo com
ele], “como observa Van Parijs, as diversas modalidades de renda
mínima garantida que vários países europeus introduziram em seus
welfare states após a Segunda Guerra Mundial são fortemente
condicionadas, implicando na necessidade maior de investigar a vida
privada do público-beneficiário desta, o que, está muito aquém da
forma de justiça procedimental pura que o ideal de democracia de
cidadãos-proprietários procura captar, o qual “supõe que seja
possível organizar as instituições de propriedade e tributação de tal
forma a que constituam, junto com as instituições necessárias para
garantir o maior grau possível de igualdade de oportunidade, uma
estrutura básica que é ex-ante justa” (ibidem)8.
8 Segundo Vita, Rawls parece relutante em admitir o grau de redistributivismo que está embutido no modelo da democracia de cidadãos-proprietários já que as mudanças institucionais defendidas por Meade para as economias industriais avançadas vão muito além daquelas que o autor explicitamente endossa (1998:11).
36
Assim, a proposta de Rawls refere-se a uma democracia de
“cidadãos-proprietários”, em que a distribuição eqüitativa seria instalada ex
ante Um dos passos para se chegar a esse modelo seria por meio da
taxação da riqueza e da propriedade privada de capital ao invés da renda.
I.2.8 Críticas à teoria rawlsiana
Após a publicação de Uma Teoria da Justiça abundaram as críticas de
que a obra não proporia mais do que a teorização de certas idéias intuitivas
de justiça que poderiam ser concretizadas somente em determinado tipo de
sociedade, tendo, portanto, limitado seu campo de abrangência (Alves,
2002). Rawls, todavia, não vê problemas nessa crítica ao concordar em O
Liberalismo Político que a sua teoria da justiça é uma concepção política
válida apenas para democracias representativas e liberais, sem ambições de
universalismo ou vinculação a qualquer fundo doutrinal.
De todo modo, Pogrebinschi acredita ser possível identificar três
momentos distintos na literatura crítica suscitada pela trajetória intelectual
rawlsiana, a saber: i) o momento imediatamente subseqüente à publicação
de Uma Teoria da Justiça, na década de 70, em que se destaca o libertarista
Nozick como um dos principais críticos do autor; ii) os anos 80, com a
crítica advinda de autores comunitaristas, quando os conceitos rawlsianos
de pessoa e de natureza humana passam a ocupar o centro do debate,
destacando-se os trabalhos de Sandel e Walzer nesse sentido; iii) os anos
90, cuja crítica se centra na noção de pluralismo e no conceito de
razoabilidade, em que se destaca Habermas como importante interlocutor
de Rawls (2001:28).
Já Lopes Alves considera que o mais produtivo no pensamento de
Rawls consiste, justamente, no seu tratamento do pluralismo conjuntivo das
sociedades liberais contemporâneas, o qual, segundo sua percepção,
relativizaria algumas das críticas de inspiração habermasiana, questionando
a compatibilidade da concepção política de Rawls com a democracia política,
37
acreditando que este partiria de uma concepção monológica de justiça
refletida nos dois princípios básicos de decisões justas “a qual colidiria com
a dialógica de consensos negociados própria da tradição democrática”
(2003:2).
Ainda segundo Lopes Alves, a restrição da concepção de justiça ao
contexto político do pluralismo ideológico que Rawls consagra em O
Liberalismo Político supera as aparências monológicas de Uma Teoria da
Justiça, debilitando tal criticismo.
“[...] numa versão minimalista de overlapping consensus, circunscrito
à aceitação das regras de jogo político para dirimir os dissensos
inerentes ao pluralismo ideológico, o ponto de vista de Rawls mostra-
se mais respeitoso da diversidade flexível do discurso democrático (a
dialógica dos dissensos a avaliar não como carência ou defeito, mas
como ingrediente constitutivo das sociedades modernas) do que a
procura do consenso linguístico-transcendental em que recai o
‘paradigma deliberativo’ habermasiano” (Lopes Alves, 2003:3).
Com relação à crítica dos comunitaristas a Rawls, apesar da aparente
correção dos elementos que sustentam o construtivismo rawlsiano em
bases políticas e justificam a sua teoria da justiça como um liberalismo
político, dúvidas e questões permanecem abertas como, por exemplo: até
que ponto a noção de pessoa e dos poderes morais a ela inerentes não se
constitui em uma idéia de fundo natural? Como conciliar a realização pública
da justiça como um valor comunitário com a perspectiva individualista
presente na concepção política de pessoa de Rawls? Tal concepção não
estaria supondo o uso de noções comunitaristas?
I.3 Amartya Sen
I.3.1 A teoria da capacidade
A teoria da capacidade elaborada por Amartya Sen como instrumento
para avaliar o grau de bem-estar de um indivíduo em uma estrutura social
38
constitui uma concepção particular da justiça social, além de uma crítica às
teorias econômicas avaliativas. Representa, igualmente, uma crítica àquelas
concepções teóricas centradas na preservação da liberdade negativa, como
a teoria dos bens primários formulada por John Rawls.
De fato, segundo Sen, uma teoria da justiça como eqüidade deveria
incorporar as liberdades concretas que podem ser desfrutadas por pessoas
diferentes, com objetivos possivelmente diversos - razão pela qual, na sua
percepção, é importante considerar o grau preciso das liberdades que estas
dispõem para se proporem a viver vidas diferentes. Paralelamente a tal
constatação, o autor acredita que uma visão da justiça derivada,
prioritariamente, do suprimento de bens primários está equivocada.
“[...] no es algo marginal observar cómo Sen critica cierto ‘fetichismo
de la mercancía’, que está presente en la propuesta de igualdad que
se apoya o que está sujeta a una visión derivada de los bienes
primarios cuya intercambiabilidad equipara el valor de los bienes para
todos. [...] Este problema es parecido al de la conversión de trabajo
heterogéneo en trabajo abstracto, una dificultad bien conocida en el
campo de la economía marxista, y que se repite aquí ante una
dificultad similar a la que surge cuando se intenta construir cualquier
índice unificador a partir de dotaciones heterogéneas. La tendencia a
calcular los valores en términos de una única medida, ya sea la
cantidad de trabajo abstracto o la búsqueda de un único referente en
términos de utilidad, se plantea casi siempre con los mismos
esquemas formales e ideológicos: la posibilidad de un único rasero.
Sin embargo, con frecuencia, lo importante es más bien el pluralismo
y la desigualdad [...] De aquí la importancia de encontrar
procedimientos de comparación interpersonal que puedan tener en
cuenta la diferencia, la pluralidad y la peculiaridad” (Alvarez,
2001:7).
De todo modo, a crítica de Sen a essas teorias avaliativas parte da
demanda por igualdade que todas elas possuem em comum. Afirma que a
pergunta “igualdade de quê?” importa mais do que a pergunta “por que a
39
igualdade?”. Para ele, deve-se privilegiar os espaços de igualdade mais
relevantes, e não fazer apenas uma apologia genérica da igualdade.
Criticando a falta de realismo de algumas dessas teorias, propõe o conceito
de capacidade, que mediria a possibilidade de um cidadão comum chegar à
suposta igualdade.
Nesse sentido, concentra-se em responder à pergunta: igualdade de
quê? considerando: i) que os indivíduos, seja por dotações naturais
singulares, seja por características externas, são intrinsecamente diferentes
entre si; e ii) que qualquer variável que sirva de base para mensurar a
igualdade entre eles pressupõe a existência de desigualdades periféricas, o
que deve ser apreendido e respeitado. Daí a pergunta: qual é o aspecto
mais idôneo para se avaliar a igualdade e a desigualdade dentro de uma
ordem social?
De acordo com Sen, esta questão pode ser respondida levando-se em
conta duas perspectivas: i) a do bem-estar, definido pelo “o que” uma
pessoa alcançou; e ii) a da liberdade, definida pelas oportunidades reais que
esta teve para atingir esse bem-estar. Ressalta que o argumento por ele
desenvolvido demonstra que a primeira dessas ficaria incompleta se
ignorada a segunda, dado que a liberdade é indispensável para se atingir o
bem-estar e qualquer qualidade de vida valorada positivamente. De
maneira similar, pondera que a perspectiva da liberdade não pode ser
considerada por si mesma, independentemente da avaliação das conquistas
(achievements), senão que necessita ser deduzida de premissas fundadas
sobre a primeira perspectiva (pois a liberdade só é importante quando se
refere às conquistas valoradas positivamente).
Assim, Sen desenvolve sua “teoria da capacidade” baseado em uma
preocupação substantiva com a liberdade. Sua resposta à pergunta
igualdade de quê? opta pelo critério da igualdade da liberdade individual.
Em conseqüência, visando acentuar a importância dessa liberdade, propõe
que o bem-estar atingido e a liberdade de fazê-lo sejam entendidos melhor
em termos de “funcionamentos“ e “capacidades” de cada indivíduo
considerado na sua singularidade.
40
Segundo Vethencourt, Sen está convencido de que o conceito de
“funcionamento” é o melhor para se entender o bem-estar conquistado já
que representa os estados de ser e de fazer, que constituem os elementos
que definem uma pessoa. Portanto, o que uma pessoa é pode ser avaliado
pelo conjunto de funcionamentos que atingiu, inclusive aqueles de maior
complexidade, como sua participação cívica etc. De modo similar,
“capacidade” é a melhor forma de entender a “liberdade” já que reflete a
liberdade de uma pessoa alcançar funcionamentos que valore positivamente
na medida em que compreende as distintas combinações de ser e fazer que
estão à sua disposição (s/d:3).
Sen define a “capacidade” como um conjunto de pontos e
“funcionamento” como um ponto dentro desse conjunto. O autor explica
que a liberdade (capacidade) constitui uma condição de bem-estar já que os
funcionamentos realizados representarão este na medida em que são
valiosos (elegíveis) para uma pessoa singular. Explica, ainda, que o bem-
estar alcançado por essa pessoa depende da sua capacidade de funcionar,
das oportunidades reais que lhes são disponibilizadas nesse sentido. Então,
atingir determinado bem-estar depende do processo em função do qual este
foi atingido, das variáveis envolvidas, que são diferentes de pessoa para
pessoa, contexto para contexto, conforme suas singularidades
(Vethencourt, s/d).
Dessa forma, o autor se propõe a julgar o bem-estar individual à luz
de uma nova métrica que admite comparações. De acordo com ele, a teoria
da capacidade em um arranjo social deve levar em conta, sobretudo, a
liberdade (capacidade) de funcionar além da base de informação dos
funcionamentos possíveis.
Particularmente no último aspecto acima citado, identifica-se o
avanço representado pela teoria de Sen na distinção que faz entre liberdade
para atingir o bem-estar e liberdade como importante em si mesma. Os
igualitários deveriam se preocupar, segundo o mesmo, com a capacidade
igual de funcionar de várias maneiras. Na sua percepção, o que realmente
41
importa são os estados e atividades valorados, os funcionamentos concretos
(formas de ser e agir variadas).
Assim, a teoria da capacidade de Sen pressupõe um sujeito
autônomo cuja ênfase está posta em um conjunto de capacidades
desenvolvidas, nas quais são enfatizadas as condições para projetar sua
própria vida e não um modelo de vida particular.
Dessa forma, a noção normativa mais abrangente, no enfoque do
autor, é a de capacidade. Os funcionamentos constituem os ingredientes do
bem-estar, e aqueles que uma pessoa consegue realizar definem o grau de
bem-estar efetivamente alcançado por ela na sua vida. Mas o bem-estar
alcançado não é, para Sen, uma medida suficiente da vantagem ou do
benefício individual. As comparações interpessoais da vantagem devem
basear-se, sobretudo, na liberdade de alcançar esse bem-estar, de poder
usufruí-lo uma vez acessado.
O grau da liberdade desfrutado por uma pessoa constitui o que o
autor denomina de sua capacidade. Em termos técnicos, a capacidade
representa para ele a liberdade efetiva que uma pessoa tem de escolher
entre diferentes combinações possíveis de funcionamentos valiosos ou de
atuações que valora positivamente.
“La ‘capacidad’ refleja la libertad de una persona para elegir entre
vidas alternativas, es decir, entre determinadas combinaciones de
‘funciones’ que representan las cosas que podemos hacer y las
diversas formas de ser. Al atender a la capacidad potencial es preciso
considerar la transformación que cada uno realiza de los bienes
primarios en logros concretos, pues hay condiciones diferentes entre
los individuos. La capacidad representa la libertad, mientras que los
bienes primarios nos hablan sólo de los medios para la libertad sin
atender a la variación interpersonal entre esos medios y las libertades
concretas conseguidas” (Alvarez, 2001:8).
Ou, nas palavras do próprio Sen:
42
"Somos diversos, pero lo somos de maneras diferentes. Un cierto tipo
de variación se relaciona con las diferencias que hay entre nuestros
fines y objetivos. Las implicaciones éticas y políticas de esta
diversidad las entendemos ahora mejor que antes como resultado de
los potentes trabajos de Rawls sobre la justicia como equidad. Pero
hay otra diversidad importante - las variaciones en nuestra aptitud
para convertir recursos en libertades concretas. Variaciones que
hacen referencia al sexo, a la edad, a la dotación genética a muchos
otros rasgos que nos dan potencia desigual para construir nuestra
libertad en nuestras vidas, aunque tengamos la misma dotación de
bienes primarios" (1980).
A capacidade de escolher entre diferentes "bem-estares" é
importante para Sen no sentido de: i) evitar apoiar sua visão normativa em
uma concepção do bem-estar humano "perfeccionista"; ii) afastar-se de
concepções welfaristas de bem-estar, pois em uma sociedade
comprometida com a igualdade de capacidade de funcionar, o nível de bem-
estar que cada um efetivamente alcança dependerá das preferências,
valores e escolhas individuais; iii) chegar a uma interpretação da idéia de
liberdade efetiva - como aquilo que uma pessoa é realmente capaz de fazer
com os próprios recursos, oportunidades e direitos. No entanto, na
percepção de Sen:
“[...] desejar algo [...] não é uma razão suficiente para julgar,
sobretudo da ótica de uma teoria da justiça social, que algo valioso
esteja em questão. Considerando que valorizar – conferir valor moral
a alguma coisa – é uma atividade reflexiva [...], o mais plausível,
sustenta Sen, é inverter a relação: porque algo tem valor, isto
constitui uma razão para o agente desejá-lo ou preferi-lo. Avaliar a
vantagem individual de pessoas submetidas à destituição e a
desigualdades profundas somente por seus desejos e preferências
efetivos significa corroborar a injustiça de que são vítimas. Essa
avaliação, para Sen, terá de recorrer a escolhas ou preferências
contrafatuais”. (1999:3).
43
Vita ressalta, ainda, que o autor encontra um fundamento normativo
para avaliar os níveis relativos de vantagem individual, que rechaça o
welfarismo e não cai em uma concepção perfeccionista de bem-estar, por
meio da seleção do "espaço avaliatório". Tal espaço é central porque não há
como tornar as pessoas iguais, simultaneamente, em todas as dimensões
consideradas importantes para a vantagem individual em função da
diversidade humana.
De fato, as pessoas diferem, em suas circunstâncias sociais, em
talentos e capacidades naturais, gostos e preferências e em valores.
Nenhuma concepção de igualdade distributiva, assim, pode torná-las iguais
em todas essas dimensões, ao mesmo tempo, conforme o autor.
Superando um enfoque que valoriza apenas o comportamento auto-
interessado, maximizador do lucro ou da própria utilidade, Sen postula a
necessidade de uma ética em que questões como as desigualdades sociais,
os problemas ambientais e os bens públicos tenham relevância. Na sua
visão, assim como na de Rawls, “é preciso ultrapassar a esfera da economia
de mercado para lidar com problemas dessa natureza e uma das maneiras
mais importantes de fazer isso consiste em promover o desenvolvimento de
valores mais sensíveis a tais problemas” (Peixoto Ramos, 2003:13). A
justiça das instituições é um desses valores, a qual deve ser mensurada
com relação à liberdade que os indivíduos têm para escolher seu estilo de
vida, intimamente relacionado com as capacidades de cada um e com o
critério subjetivo e pessoal daquilo que valoram e por que o fazem.
A proposta de Sen é avaliar as realizações alcançadas por indivíduos
em função do conjunto de oportunidades que lhes foram ofertadas, ao que
denomina medir "a liberdade do bem-estar". Postula, assim, que caso se
deseje impor um critério igualitário de justiça, este deve estar baseado na
igualdade de capacidades, uma vez que estas determinam a liberdade de
eleição do estilo de vida.
De acordo com Vita, na teoria de Rawls há uma preocupação similar à
de Sen com relação à liberdade efetiva.
44
“Rawls distingue as liberdades fundamentais (os direitos civis e
políticos tradicionais) do "valor" dessas liberdades. Ainda que o
esquema institucional de liberdades fundamentais seja o mesmo para
todos, dada à existência da pobreza e de desigualdades profundas,
alguns têm mais meios do que outros para se valer dessas liberdades
para promover os fins que consideram valiosos. Para os primeiros, as
liberdades têm mais valor. [...] O raciocínio completa-se com o
argumento de que o valor das liberdades fundamentais para os
menos favorecidos é garantido mediante uma distribuição eqüitativa
de ‘bens primários’ [...]. Ainda que as concepções de igualdade
distributiva e de liberdade sejam relacionadas nesse argumento de
Rawls, elas são tratadas como conceitos normativos distintos. Sen,
em contraste, por vezes parece estar tentando acomodar as
exigências da igualdade e da liberdade (efetiva) sob uma única noção
normativa. Note-se que por functionings valiosas se deve entender
tanto certas formas de atividade (‘ser capaz de ler e escrever’, por
exemplo) quanto certas formas de existência da pessoa cujo bem-
estar se quer avaliar. Nessa avaliação, contam tanto as atividades
que a pessoa é capaz ela própria de realizar [...], quanto os estados
de existência que só lhe podem ser proporcionados pela ação de
outros (e que, portanto, não envolvem nenhum exercício de atividade
por parte do beneficiário dessa ação)” (Vita, 1999a:6).
I.3.2 O desenvolvimento como liberdade
Segundo Sen, o desafio da sociedade contemporânea é o de formular
políticas públicas que permitam o crescimento da economia e, sobretudo, a
distribuição mais eqüitativa da renda e de outras vantagens distributivas,
além do pleno funcionamento da democracia, para se chegar ao que o autor
entende por desenvolvimento.
De todo modo, não existe um consenso sobre o significado do termo
“desenvolvimento”, freqüentemente confundido com crescimento
econômico. Amartya Sen define-o como o processo de ampliação da
capacidade dos indivíduos de terem opções, fazerem escolhas. Relativizando
45
os fatores materiais e os indicadores estritamente econômicos, o autor
insiste na necessidade de ampliação do horizonte social e cultural da vida
das pessoas para pensar o desenvolvimento. Segundo ele, considerar a
base material de uma estrutura social nesse sentido é fundamental, mas
esta deve ser tomada apenas como um meio e não como um fim em si.
De fato, os índices de desenvolvimento humano formulados por Sen e
adotados pela ONU revelam aspectos da realidade de uma série de países,
para além da sua capacidade produtiva, ao mensurarem a melhoria/piora
da qualidade de vida em comum, a confiança/desconfiança das pessoas nos
outros e no futuro, as possibilidades de estas levarem adiante iniciativas e
inovações que lhes permitam concretizar seu potencial criativo e contribuir
efetivamente para a vida coletiva, entre outros indicadores de caráter
igualmente inovador.
Sen resume suas idéias sobre o desenvolvimento de uma forma
muito simples: ser desenvolvido é ter possibilidades de contar com a ajuda
dos amigos, ou seja, é atuar de forma cooperada e solidária. Em suas
palavras: “o desenvolvimento pode ser visto como um processo de
expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (Sen, 2000:17).
Assim, o elemento mais enfatizado nessa definição é a noção de liberdade
como fim e como principal meio do desenvolvimento.
O autor afirma, ainda, que uma sociedade deve ser avaliada de
acordo com as liberdades substantivas que proporciona aos seus membros.
Esta constitui a razão avaliatória pela qual a liberdade deve ser vista como
central para o desenvolvimento, ou seja, o progresso deve ser medido de
acordo com a quantidade de liberdades reais que proporciona para as
pessoas. Uma outra razão, nesse sentido, é a da eficácia, isto é, o
desenvolvimento depende da liberdade que estas têm “para cuidar de si
mesmas e para influenciar o mundo” (Sen, 2000:33), o que retoma a
temática das relações entre funcionamentos e capacidades.
Quanto aos direitos,
46
“[...] são tidos por Sen como ‘suplemento’ às liberdades; eles
possuem uma dimensão adicional, que é a da obrigação que eles
implicam. Para defender a universalidade dos direitos humanos a
partir de um ponto de vista totalmente contrário ao libertarista, Sen
defende que uma das questões mais importantes relativas à vigência
desses direitos diz respeito à possibilidade que o povo adquire de
exercer pressão sobre o governo para que este atenda às suas
necessidades” (Peixoto Ramos, 2003:16).
Peixoto Ramos destaca que Sen acredita em uma espécie de
democracia deliberativa “na qual os mecanismos de tomada de decisão não
se baseiam em preferências dadas, mas em como as preferências e as
normas são formadas por meio da discussão”. Sen preocupa-se, assim, com
a base normativa que sustenta o funcionamento das instituições sociais, a
qual advém de uma cultura política democrática. O que formula, no
entanto, é uma concepção de igualdade distributiva.
Para Sen toda ponderação acerca de um arranjo social deve levar em
conta a agência efetivada e a liberdade de agência. A primeira refere-se aos
resultados daqueles objetivos pretendidos além do bem-estar particular da
pessoa, como a prosperidade da comunidade etc.; já a liberdade de agência
se refere à liberdade de atingir esses valores e objetivos gerais. No entanto,
apesar de os indivíduos terem fins de agência ao lado de fins de bem-estar,
a avaliação do compromisso de uma sociedade e de suas políticas públicas
com respeito à igualdade destes, à justiça social e à superação da pobreza
deve concentrar-se no bem-estar alcançado e na liberdade de alcançá-lo.
Dessa forma, a teoria do desenvolvimento como liberdade, de Sen,
pretende oferecer uma base informacional mais ampla do que aquelas
próprias do utilitarismo, do libertarismo e da própria teoria rawlsiana. Cada
uma dessas abordagens possui uma determinada base informacional, ou
seja, um determinado conjunto de informações que funcionam como
parâmetros para avaliar as sociedades. Todavia, Sen critica tais teorias vis-
à-vis pouca relevância que elas atribuem às liberdades substantivas.
47
I.3.3 A crítica ao utilitarismo
Nos últimos anos, Sen centrou seus estudos em reflexões de natureza
ética no sentido de identificar um critério de justiça para as instituições
sociais que privilegiasse a liberdade que as pessoas têm para escolher seu
estilo de vida próprio. Corresponde a esse período uma forte crítica ao
utilitarismo, paradigma dominante no pensamento econômico ortodoxo no
que se refere às políticas públicas igualitárias.
De acordo com Peixoto Ramos, Sen faz críticas ao utilitarismo que
são comuns ao pensamento de autores neocontratualistas9. A primeira
destas diz respeito ao fato de o utilitarismo não se preocupar com a
distribuição das utilidades, o que caracteriza sua indiferença distributiva. A
autora destaca, ainda, outros dois aspectos dessa crítica, quais sejam: “o
descaso com os direitos, liberdades e outras considerações desvinculadas
da utilidade [e com] a adaptação e condicionamento mental [o qual] refere-
se ao fato de as pessoas pobres tenderem a ter preferências mais
modestas, compatíveis com seu estado geral de privação” que tampouco o
utilitarismo considera. Segundo Peixoto Ramos, é preciso mencionar
também
“[...] uma dificuldade relacionada às comparações interpessoais de
utilidade. Se a utilidade for definida simplesmente como a
representação das preferências individuais, não haverá, para Sen, a
menor possibilidade de que se façam comparações interpessoais
diretas de utilidades. Além disso, essa definição tem a falha de
considerar que escolhas iguais geram utilidades iguais, o que
freqüentemente se revela uma inverdade” (2003:14).
Já, segundo Kerstenetzky,
9 O neocontratualismo sustenta a idéia de que é preciso que a sociedade sistematize e preserve princípios
fundamentais de justiça de forma que seja assegurada uma distribuição eqüitativa dos recursos sociais
(Peixoto Ramos, 2003:14).
48
“[...] a objeção maior de Sen ao utilitarismo deve-se à ênfase deste
último no bem-estar ao que ele chama de aspecto welfarista do
utilitarismo, que padeceria de injustificado reducionismo de valor.
Adicionalmente, ao apoiar-se na utilidade e nas preferências dos
indivíduos, o utilitarismo não faria justiça às óbvias assimetrias de
informação e de condição existentes entre eles, as quais permitem
que alguns tenham preferências ‘caras’ enquanto outros formem,
resignadamente, preferências ‘baratas’” (2003:4).
Ainda conforme Kerstenetzky, Sen acredita que o utilitarismo distorce
a avaliação dos estados sociais possíveis, sobretudo ao sancionar, de um
lado, o conformismo daqueles que sofrem opressão e discriminação sociais
continuadas e que ajustam suas preferências às suas minguadas
possibilidades de realização e, de outro, os privilégios de elites que já estão
consolidados.
A crítica de Sen ao utilitarismo está centrada igualmente em seu
fundamento informacional. Segundo o autor, a questão não é se o bem-
estar é uma variável importante para a análise moral, senão se ela é a
única variável ou condição para avaliar um estado de coisas ou uma eleição,
como no utilitarismo. Sen destaca que, em suas escolhas, as pessoas têm
outras metas e valores para além do bem-estar. A estratégia do autor,
nesse sentido, é ampliar a base informacional que subsidia suas
formulações teóricas. Pode-se dizer que começa essa tarefa
redimensionando a noção mesma de bem-estar, adotando uma concepção
que considere as diferenças interpessoais na conversão dos bens em
liberdade para levar a vida que se deseja. Nesse ponto se distancia de
Rawls.
De fato, a base informacional de Sen se dá através da inclusão da
liberdade na dimensão do bem-estar e também por via de uma nova
dimensão, a de agência, que se refere à capacidade de cada pessoa para
levar efetivamente adiante a vida que considera valer a pena ser vivida
supondo que seja capaz de se propor objetivos, obrigações, fidelidades e
uma determinada concepção do bem.
49
I.3.4 A crítica a Rawls e a contribuição de Nussbaum
Sen reconhece o avanço substancial representado pela teoria da
justiça de Rawls ao incluir termos normativos na avaliação de uma estrutura
social bem-ordenada. Postula, no entanto, que os bens primários definidos
por Rawls são meios para se atingir liberdades substantivas sem garantir,
contudo, que estas serão de fato atingidas, o que lhe parece problemático
uma vez que a igualdade de meios nem sempre implica igualdade de
liberdade, ou igualdade na capacidade para conseguir diversas combinações
alternativas de funcionamentos.
Assim, diferentemente da teoria de Rawls, Sen postula que devem
ser as capacidades e não os meios a base informacional de uma teoria da
justiça10. O autor faz duas objeções aos bens primários, tais como definidos
por Rawls, a saber: a primeira é a de que a sua métrica é demasiado
inflexível porque ignora variações interindividuais significativas que fazem
com que seja mais difícil para uns do que para outros converter bens
primários em capacidades básicas11. Em vista disso – e esta é a segunda
objeção –, o equalisandum da teoria de Rawls localiza-se no "espaço
avaliatório" errado.
Sen acredita que Rawls desviou a atenção da avaliação de
desigualdades de resultados para a avaliação de desigualdades de
oportunidades em questões de justiça distributiva. Mas o foco na igualdade
de bens primários fez com que esse deslocamento permanecesse
incompleto. Afinal, argumenta Sen, não há uma preocupação com bens de
per se, mas sim com o que as pessoas, dadas certas variações
interindividuais significativas, são capazes de fazer com esses bens.
Assim, nas palavras de Sen, a teoria de Rawls se concentra nos
"meios para a liberdade", quando o que realmente importa é a "liberdade
10 A conversão dos bens primários em liberdade depende de cinco fatores que interferem na relação entre renda e bem-estar: “heterogeneidades pessoais, diversidades ambientais, variações no clima social, diferenças de perspectivas relativas, distribuição na família” (Sen, 1999:90-91). 11Trata-se, essencialmente, da mesma crítica que Sen dirige às comparações interpessoais de bem-estar que se baseiam, exclusivamente, na titularidade de renda ou de bens e mercadorias. Uma mesma disponibilidade de renda não garante que uma pessoa que necessite de cuidados médicos especiais e uma pessoa saudável terão uma capacidade igual de alcançar bem-estar. Da mesma forma, garantir um quinhão eqüitativo de bens primários para todos não significa que todos serão igualmente capazes de colocar esses recursos a serviço do tipo de vida e dos fins que valorizam.
50
em si mesma" (1992:86) – isto é, a liberdade efetiva de escolher entre os
diferentes tipos de vida que os indivíduos têm razões para valorizar.
Somente o foco nos funcionamentos e capacidades, conforme afirma Sen,
em lugar de bens primários, pode captar aquilo (a "liberdade em si
mesma") que os igualitários de fato prezam12.
Uma segunda crítica dirigida por Sen à teoria da justiça de Rawls
aponta para a debilidade de restringir a aplicabilidade desta ao contexto da
democracia constitucional. Sen deduz esse aspecto da afirmação de Rawls
de que sua teoria é uma concepção política e não uma teoria geral a
respeito do bem (como em O Liberalismo Político).
Posteriormente, Sen abriu a possibilidade de se construir um índice
de capacidades mínimas que superasse uma visão compreensiva e
perfeccionista. Segundo Fascioli (2002), uma das melhores tentativas de
construção desse índice foi realizada por sua colaboradora Martha
Nussbaum, que formulou uma teoria que serve de guia no desenho e
avaliação de políticas globais de desenvolvimento, constitui uma densa
teoria do “bem” e funciona como base para uma teoria da justiça social
universal.
Tais capacidades, segundo a autora, se estruturam em dois umbrais,
a saber: i) um primeiro, composto pelas funções humanas básicas; ii) um
segundo, sob concepções éticas.
Conforme Fascioli (2002), Nussbaum e Sen (1993) consideram que a
igualdade moral parte da satisfação de necessidades básicas, sem as quais
nem sequer a liberdade de eleição é possível.13 Consideram que se requer
meios ou condições para se ser livre e acreditam nos seguintes
compromissos com relação ao sentido público de justiça: a).um
12Tal crítica de Sen provocou uma importante réplica de Rawls, o qual acredita que tratar de capacidades como o faz Sen, “pressupõe a aceitação de alguma doutrina global ou concepção única do bem, contradizendo a concepção política da justiça como uma concepção razoável para a estrutura básica da sociedade, que não está formulada em termos de nenhuma doutrina compreensiva, senão em termos de certas idéias fundamentais, latentes na cultura política pública de uma sociedade democrática plural” (Rawls,2000). Sen e Rawls estão de acordo, todavia, que a liberdade efetiva é o que importa da perspectiva da justiça social. 13 Nussbaum, M., Sen, A. (1993), The Quality of Live, Clarendon Paperbacks.
51
compromisso substantivo com os fins da vida pessoal; b) um compromisso
processual de tratar eqüitativamente os outros, ou seja, reconhecer a
autonomia do outro, autonomia que já existe e que lhe permite construir
seu sentido de vida; c) um compromisso substantivo com certos fins
mínimos da vida humana, por exemplo, a autonomia, e, portanto, o
compromisso com sua promoção.
Assim, de acordo com esta, Nussbaum propõe a seguinte lista de
capacidades funcionais humanas básicas:
1. Ser capaz de viver até o fim uma vida humana completa, tanto
quanto seja possível, não morrer prematuramente, ou antes de que
esta esteja tão reduzida que não valha a pena vivê-la.
2. Ser capaz de ter boa saúde, estar adequadamente nutrido, ter a
proteção necessária, ter oportunidades para a satisfação sexual.
3. Ser capaz de evitar a dor desnecessária e ter experiências
prazenteiras.
4. Ser capaz de usar os cinco sentidos, de imaginar, pensar e
raciocinar.
5. Ser capaz de unir-se a coisas e outras pessoas, amar àqueles que
nos amam e cuidam, sofrer diante da sua ausência, sentir gratidão,
amor.
6. Ser capaz de formar uma concepção do bem e ter uma reflexão
crítica sobre o planejamento da própria vida.
7. Ser capaz de viver para e com os outros, reconhecer e mostrar
preocupação por outros seres humanos, envolver-se em interações
familiares e sociais.
8. Ser capaz de viver em relação com o resto do mundo natural.
9. Ser capaz de rir, jogar e desfrutar de atividades recreativas.
52
10. Ser capaz de viver a própria vida no próprio contexto.
I.4 A título de conclusão
Assim como Rawls, Sen esforça-se por identificar um espaço de
avaliação intermediário entre uma concepção objetiva de bem-estar e uma
outra subjetiva (que entende como "welfarista"). Nesse sentido, além de
realizar comparações interpessoais de utilidade que levem em conta a
intensidade dos desejos e preferências entre as pessoas, o autor acredita
que deve-se equacionar um problema anterior, o qual diz respeito à própria
consideração destes como a única fonte daquilo que tem valor no bem-estar
dessas pessoas, já que [tais desejos e preferências] podem significar
simplesmente adaptações a circunstâncias arbitrárias. Segundo ele, esse
problema se apresenta, sobretudo, nos contextos onde observa-se
desigualdades profundas e arraigadas que, a seu ver, tenderão a ser
naturalizadas pela métrica welfarista.
Sen acredita, no entanto, que mesmo que Rawls tenha sido sensível a
um trato igualitário de pessoas com diferentes concepções sobre os fins da
vida, não conseguiu expressar a liberdade real dessas ao não considerar as
variações interpessoais existentes para converter bens em liberdade, no
sentido de viabilizar esses fins vitais.
No entanto, ficou patente a aproximação de Sen a Rawls na noção de
sujeito. As reflexões éticas de Sen, sobretudo aquelas ancoradas na idéia de
capacidade, agência e compromisso referem-se, em última instância, ao
conceito moderno de autonomia pessoal que supõe, por um lado, a
autodeterminação do sujeito na construção e busca de um plano racional de
vida livremente elegido; por outro, o necessário reconhecimento dos outros
enquanto sujeitos e, portanto, a necessidade de uma igual consideração de
seus direitos. Nesse caso, prevalece a idéia dos sujeitos como pessoas
morais livres e iguais, paradigma que Rawls, na filosofia política
contemporânea, resume em duas capacidades básicas: albergar uma
concepção do bem e um sentido público de justiça. Esse ideal de
53
autonomia, todavia, encobre uma diferença significativa na forma em que é
apresentado por ambos os autores. Em Rawls, a autonomia dos sujeitos
está dada, supõe-se já presente como condição de uma sociedade
democrática plural; em Sen, essa mesma autonomia não é evidente, deve
ser construída e garantida pelo desenvolvimento de certas capacidades
mínimas.
Já o aporte de Nussbaum é fundamental para uma concepção das
capacidades básicas a igualar. Ainda que de uma perspectiva diferente de
Sen e Rawls, a autora adere à mesma noção de autonomia, que propõe
como metacritério para a construção de sua lista. Trata de mínimos que
garantem condições de autonomia e não de excelências, pelo que não se
correria o risco de perfeccionismo.
Com relação à justiça alocativa - preocupação comum dos autores
supracitados - segundo Medeiros (1999), o debate gira predominantemente
sobres os princípio da igualdade e da eqüidade. Pelo primeiro, todas as
pessoas devem receber o mesmo tratamento e os mesmos recursos por
serem iguais, uma vez que este [princípio da igualdade] está baseado em
uma moralidade de direitos adquiridos pela participação na coletividade, os
direitos de cidadania. Já o princípio da eqüidade reconhece a diferença
dessas entre si, as quais merecem tratamentos diferenciados que
minimizem desigualdades observadas (1999:6).
Medeiros chama atenção para Rawls que estabeleceu um critério para
a justiça na desigualdade, o qual é assumido pela eqüidade. Segundo ele
[Rawls], o tratamento desigual é justo quando é benéfico para os mais
necessitados, o que deve ser avaliado de forma comparativa de acordo com
sua disponibilidade em termos de “bens primários” (Rawls1981:278 apud
Medeiros, 1999:6). Segundo Medeiros
“Adaptações posteriores do maximin que consideram a hipótese dos
indivíduos ocuparem a mesma posição na hierarquia de utilidades
individuais resultaram no axioma de Leximin, de Sen (1981:278),
para o qual, no caso de haver dois indivíduos ocupando a pior posição
na hierarquia das utilidades individuais (dois “últimos”), esses
54
indivíduos podem ser classificados pelo nível de utilidade do indivíduo
seguinte (um “penúltimo”). Havendo empate, comparando-os aos
“antepenúltimos”, e assim sucessivamente, até o desempate.
Complementando a ênfase de Rawls nas condições diferenciadas, Sen
destaca a importância da consideração das necessidades
diferenciadas (no léxico de utilidades consideradas) em decisões
alocativas (1999:6).
Finalmente cabe enfatizar que, conforme Vita (1999b), Sen não
propôs uma teoria da justiça alternativa à de Rawls até porque seu
"enfoque da capacidade" é tributário em vários aspectos da teoria
rawlsiana. Mas também porque uma teoria da justiça é, em essência, uma
proposta de equilíbrio entre exigências de valores políticos que são
conflitantes. Rawls argumenta que sua proposta é aquela que melhor
acomoda os "julgamentos ponderados de justiça" que ocupam um lugar
central na tradição política democrática (Rawls, 1971:48-51 apud Vita,
1999b:1). Já o enfoque de Sen não tem essa abrangência (Vita, 1999b:1).
Segundo Vita (1999b), mesmo que se concordasse que a noção de
Sen de "igualdade de capacidades" traduz a melhor interpretação das
exigências da igualdade distributiva, ainda se ficaria sem saber como este
enfoque acomoda convicções sobre o valor das liberdades fundamentais ou
do império da lei. Neste sentido Vita afirma que aquilo que Sen propõe não
é propriamente uma teoria da justiça, mas sim, uma concepção de justiça
distributiva em sentido estrito, ressaltando o papel dos valores afins como
guia na formulação de políticas públicas. “Em primeiro lugar porque a
promoção da justiça deve ser a meta mais importante a ser alcançada pelas
políticas. Em segundo lugar porque não é possível a formulação de políticas
sem que se tenha em conta o comportamento dos indivíduos que serão por
elas atingidos e que determinará sua efetividade” (Peixoto Ramos,
2003:34).
55
II DA RENDA MÍNIMA À RENDA DE CIDADANIA
II.1 O Estado de Bem-Estar Social Revisto
II.1.1 Origem e Desenvolvimento
Nos países de capitalismo avançado, a intervenção do Estado por
meio da implantação de políticas sociais – o chamado Estado de Bem-Estar
Social (ou Welfare State) – se deu em função do reconhecimento das
limitações do mercado no atendimento às necessidades de reprodução da
força de trabalho e de melhoria das respectivas condições de vida.
Nesse contexto, o New Deal do presidente Roosevelt, que estabeleceu
um amplo programa de apoio para milhões de desempregados nos EUA, nos
anos 30, reorganizou a vida econômica deste país através do controle do
mercado financeiro e do estímulo ao aumento da produção e da renda,
entre outras medidas duramente criticadas por acadêmicos da Escola de
Chicago, como Milton Friedman, contrário a qualquer regulamementação
que inibisse a iniciativa privada e privilegiasse a atuação de sindicatos14.
De todo modo, depois da crise de 1929 e, com mais intensidade,
após a Segunda Guerra Mundial, o combate à pobreza nos países de
capitalismo avançado passou a ser atribuição do Estado, do Estado de Bem-
Estar, “capaz de redistribuir – fosse ele federal ou unitário e
independentemente do seu modelo de funcionamento [Esping-Andersen,
1990] – os frutos da prosperidade econômica, oferecendo proteção nos
momentos de crise e instabilidade que ocasionalmente ameaçavam a
integridade física, a segurança e o bem-estar dos indivíduos” (Lavinas,
2003:2).
Nesse contexto, nos Estados Unidos, programas assistenciais como o
Earned-Income Tax Credit foram criados justamente para complementar a
14 A essência da economia política do New Deal consistiu na mudança do eixo de acumulação capitalista do sistema financeiro especulativo, que prevalecia no liberalismo, para o sistema produtivo que veio a prevalecer sob o capitalismo regulado. Partia de uma constatação simples, mais tarde racionalizada por Keynes: se, de um lado, havia empresas com muitos recursos para investir na produção e, de outro, um número significativo de desempregados que não consumiam, era preciso criar poder de compra ou demanda efetiva nova na economia – e a única força autônoma capaz de realizar tal coisa seria o Estado, através de dispêndio público deficitário (Assis, 2003:3-4).
56
renda dos trabalhadores pobres, ao mesmo tempo que mantinham o
incentivo ao trabalho. Na Europa, os benefícios universais, de caráter
redistributivo, visando o apoio às famílias, às crianças, fomentando o bem-
estar em geral (subsídio à moradia, transporte, minima sociaux),
suplementavam, da mesma maneira, só que de forma legítima e regular,
sem descontinuidade, pisos salariais deficientes, combatendo a pobreza
(Lavinas, 2003).
Dessa forma, o Estado na maioria dos países europeus consolidou um
amplo sistema de proteção, apostando na compatibilidade entre
crescimento econômico e satisfação de necessidades sociais, tendo como
pressuposto a centralidade do trabalho ou do pleno emprego – origem da
integração e da coesão social e um dos pilares da política econômica que
garantia a viabilidade de políticas sociais correlatas. De fato, ao longo do
século XX, o trabalho consolidou-se como substrato da cidadania, principal
fonte de pertencimento social.
“No período do Welfare State, [...] não era mais necessário subverter
a sociedade pela revolução para promover a dignidade do trabalho,
mas o lugar dele tornou-se central como base de reconhecimento
social e como pedestal no qual se amarram as proteções contra a
insegurança e a desgraça. Mesmo se a ‘penibelité’ e a dependência do
trabalho assalariado não foram completamente abolidos, o
trabalhador se encontrou compensado, tornando-se um cidadão num
sistema de direitos sociais, um beneficiário de prestações distribuídas
pelas burocracias do Estado, e também um consumidor reconhecido
das mercadorias produzidas pelo mercado. Esse modo de
domesticação do capitalismo tinha assim reestruturado as formas
modernas da solidariedade e da troca em torno do trabalho, sob a
garantia do Estado” (Castel, 1995:399).
Todavia, o desenvolvimento do Estado de Bem-Estar além do acesso
a condições mínimas de reprodução da força de trabalho deveria
proporcionar também o acesso a direitos de cidadania (direitos políticos,
civis e sociais), o que fez com que a “cidadania social” passasse a se
57
constituir em sua idéia mestra (Lolis, 1999:2). Nesse sentido, “no pós-
guerra [...] emerge um novo compromisso político em torno do bem-estar e
o componente social da cidadania articula-se às dimensões civil e política,
produzindo um argumento a favor de sistemas de proteção social mais
abrangentes” (Magalhães, 2001:6).
Vale ressaltar, no entanto, que os direitos sociais e as medidas
jurídicas que consagraram as novas políticas sociais vinculavam-se
igualmente às alternativas encontradas pelo capital em face da crise de
acumulação. Na realidade, as explicações para a origem e a natureza do
Estado de Bem-Estar são variadas.
“Embora enfoques diversos (e até divergentes) tenham se sucedido
na interpretação da natureza e/ou finalidade do Welfare State no
mundo moderno, o fato é que com mudanças operadas no processo
de acumulação a partir dos anos 30, redefine-se o papel do Estado,
criando-se as bases econômicas, políticas e ideológicas para o
provimento público de bem-estar. O fortalecimento dos partidos
social-democratas, a difusão do fordismo como modelo de
reorganização industrial e a imensa aceitação de propostas
keynesianas foram elementos essenciais para o conceito de
Seguridade Social” (Werneck Vianna, 1998:17)15.
Segundo Coelho de Souza, as diversas teorias com relação à natureza
e/ou finalidade do Estado de Bem-Estar Social podem ser agrupadas em
função das similaridades nos conteúdos de seus argumentos. Nesse sentido,
o primeiro grande grupo identificado pelo autor é composto por aquelas
teorias que enfatizam o papel de regulação da sociedade exercido pelo
Welfare State como
15 A autora observa, ainda, que no pós-guerra o Estado de Bem-Estar Social se torna hegemônico como modelo da democracia social nas economias de capitalismo avançado, embora apresentando diferenças entre as trajetórias percorridas pelos países envolvidos. Segundo ela, seus traços característicos estavam “no papel desempenhado pelos fundos públicos no financiamento da reprodução da força de trabalho e do próprio capital, na emergência de sistemas nacionais públicos ou estatalmente regulados de políticas sociais (educação, saúde, previdência etc.) e na expansão do consumo de massa, padronizado, de bens e serviços coletivos” (Weneck Vianna, 1998).
58
“[...] as teorias cujo eixo principal é a organização da economia no
nível macro através de políticas de cunho keynesiano, as teorias de
organização do processo de produção por intermédio de
‘compromissos’ entre capital e trabalho e as teorias que interpretam
o Welfare State como um instrumento de controle político das classes
trabalhadoras pelas classes capitalistas” (Souza, 1999:17).
O segundo grande grupo identificado pelo autor é conformado por
teorias baseadas na correlação de forças entre atores que configuram o
Welfare State, como “representantes políticos, burocratas, entidades
representativas de classe e movimentos sociais, que expressam tanto a
lógica interna de funcionamento do Estado quanto sua relação com forças
políticas externas” (Coelho de Souza, 1999:17).
Ressaltando que esses grupos não são mutuamente excludentes,
Souza concentra sua análise em algumas questões-chave, comuns à boa
parte dessas teorias, quais sejam:
a) a necessidade de regulação da economia capitalista quando o
mercado se revela um mecanismo insuficiente para adequar oferta e
demanda, segundo os moldes do keynesianismo;
b) a relação entre o desenvolvimento do Welfare State e o controle
político das organizações de trabalhadores;
c) a relação do Welfare State com a mercantilização da força de
trabalho;
d) a politização de relações privadas como, por exemplo, a
transferência de parte dos custos de reprodução da força de trabalho
(delegados a empresas, famílias e instituições comunitárias fora do
Welfare State) ao Estado;
e) o papel da história política de uma nação na determinação de seus
padrões de Welfare State como, por exemplo, o momento de
implantação das políticas ou o poder dos movimentos de
trabalhadores;
59
f) a autonomia do Estado diante das imposições dos grupos
hegemônicos da sociedade, inclusive a autonomia da burocracia em
relação ao governo.
Ainda de acordo com Souza, alguns autores consideram que a
regulação política das atividades econômicas – atribuídas ao Welfare State –
atendeu aos interesses de trabalhadores e capitalistas a um só tempo,
permitindo que se estabelecesse um compromisso entre estes visando à
reprodução do capital, o qual tinha como base a doutrina keynesiana. Entre
tais autores, Souza destaca Przeworski & Wallerstein (1988) e Esping-
Andersen (1991) ao afirmarem que “o desenvolvimento do Welfare State foi
fundamentado em um compromisso de classe: em troca da legitimação da
propriedade privada dos meios de produção, os capitalistas concordam com
instituições políticas que permitem aos representantes dos trabalhadores a
administração de parte da economia” (Souza, 1999:7).
“Em todas as suas formas, o compromisso keynesiano consistiu em
um programa dual: ‘pleno emprego e igualdade’, onde o primeiro
termo significava regulação do nível de emprego pela administração
da demanda, particularmente dos gastos do governo, e o último
consistia na malha de serviços sociais que constituíam o ‘estado de
bem-estar’. O compromisso keynesiano, por isso, acabou sendo mais
do que uma função ativa do governo na gestão macroeconômica.
Como provedor de serviços sociais e regulador do mercado, o Estado
atuou em múltiplos domínios sociais. Os governos desenvolveram
programas de formação de mão-de-obra, políticas para a família,
planos habitacionais, redes de auxílio pecuniário, sistemas de saúde,
etc. Tentaram regular a força de trabalho misturando incentivos e
impedimentos à participação no mercado de trabalho. Procuraram
modificar padrões de disparidade racial e regional. O resultado é que
as relações sociais são mediadas pelas instituições políticas
democráticas, ao invés de permanecerem privadas” (Przeworski &
Wallerstein, 1988:34 apud Souza, 1999:7).
60
Já Flora & Heidenheimer, na sua teoria sobre a origem do Estado de
Bem-Estar, buscam agregar determinantes econômicos e políticos à
mesma, justificando o desenvolvimento desse Estado como resultado da
modernização em resposta à formação de Estados nacionais e sua
transformação em democracias de massa, e à expansão do modo de
produção capitalista que, além de trazer consigo conflitos de classes, passa
por crises cíclicas que devem ser solucionadas. Tais autores também
entendem que o Welfare State foi uma tentativa de construir “novas formas
de organização da sociedade, resultantes do aumento da divisão do
trabalho social, uma nova forma de solidariedade” (Flora & Heidenheimer,
1982:22 apud Souza, 1999: 7).
Offe & Lenhardt (1990) e Esping-Andersen (1990) acreditam
igualmente nessa nova forma de solidariedade postulada pelos autores
supracitados, fundamental, segundo eles, para se compreender o Welfare
State. Esping-Andersen ressalta, inclusive, que uma das formas mais
importantes de redistribuição do poder propiciadas por esse Estado é a
“desmercadorização” da força de trabalho, decorrente da mobilização da
classe trabalhadora e das respostas reformistas a essa mobilização dadas
pelas instituições políticas.
“[Para Esping-Andersen] o Estado de bem-estar consiste numa
articulação de conflitos distributivos na qual se relacionam o poder de
mobilização política e a democratização social do capitalismo [, sendo
que esta última] implica preencher uma agenda de quatro pontos:
‘desmercadorização’ do status da força de trabalho (alcançável na
medida em que se institui o ‘salário social’ e os direitos de cidadania
suplantam os mecanismos de distribuição do mercado)16; o reforço da
solidariedade, ou seja, a substituição dos esquemas de proteção
social competitivos, seletivos ou corporativos pelo princípio do
universalismo [...]; a redistribuição efetiva via tributação progressiva
e transferências sociais; e o pleno emprego como meta e como base
16 Segundo Esping-Andersen, “quando os direitos sociais adquirem status legal e prático de direitos de propriedade, quando são invioláveis, e quando são assegurados com base na cidadania em vez de terem base no desempenho, implicam uma ‘desmercadorização’ do status dos indivíduos vis-à-vis o mercado” (1991:101).
61
financeira para a consecução dos demais objetivos” (Werneck Vianna,
1998:25-26).
Assim, para Werneck Vianna, o Welfare State não pode ser
compreendido apenas em termos de direitos e garantias. Para entendê-lo,
faz-se necessário considerar igualmente de que forma as atividades estatais
se entrelaçam com o papel do mercado e da família em termos de provisão
social. Segundo Esping-Andersen, estes são os três princípios mais
importantes que precisam ser elaborados antes de qualquer especificação
teórica do Welfare State. Após examinar as variações internacionais dos
direitos sociais e de estratificação desse Estado, ele identificou combinações
qualitativamente diferentes de tais princípios, os quais agrupou segundo os
tipos de regime adotados, quais sejam:
“[...] o Welfare State ‘liberal’ em que predominam a assistência aos
comprovadamente pobres, são feitas transferências reduzidas, ou
planos modestos de previdência social. [...] A conseqüência é que
esse tipo de regime minimiza os efeitos da desmercadorização,
contém efetivamente o domínio dos direitos sociais e edifica uma
ordem de estratificação que é uma mistura de igualdade relativa da
pobreza entre os beneficiários do Estado, serviços diferenciados pelo
mercado entre as maiorias e um dualismo político de classe entre
ambas as camadas sociais;
[...] o Welfare State conservador e fortemente ‘corporativista’ no qual
predomina a preservação das diferenças de status e onde o
corporativismo está por baixo de um edifício estatal inteiramente
pronto a substituir o mercado enquanto provedor de benefícios
sociais;
[...] o Welfare State social-democrata, no qual os princípios de
universalismo e desmercadorização dos direitos sociais estendem-se
também às novas classes médias. [...] em vez de tolerar um
dualismo entre Estado e mercado, entre a classe trabalhadora e a
classe média, os sociais-democratas buscam um Welfare State que
promova a igualdade com os melhores padrões de qualidade, e não
62
uma igualdade das necessidades mínimas, como se procurou realizar
em toda a parte. [...] Está ao mesmo tempo genuinamente
comprometido com a garantia do pleno emprego e inteiramente
dependente de sua concretização. Por um lado, o direito ao trabalho
tem o mesmo status que o direito de proteção à renda. De outro, os
enormes custos de manutenção de um sistema de bem-estar
solidário, universalista e desmercadorizante indicam que é preciso
minimizar os problemas sociais e maximizar os rendimentos”
(Weneck Vianna, 1998:108-110).
A mesma autora identifica o modelo liberal - onde o mercado
funciona como o espaço privilegiado de distribuição - nos EUA, Austrália,
Canadá e, em parte, na Suíça. Quanto ao modelo corporativista,
hierarquizante e segmentador, relaciona à Alemanha, França, Áustria e
Itália. Finalmente, o modelo social-democrata, que abriga a modalidade
institucional-redistributiva de proteção social, associa à Inglaterra e países
nórdicos, como Suécia e Noruega.
Esping-Andersen, em um outro estudo (1997), ressalta a importância
da formação de classes na social-democracia como condição necessária
para a inclusão universal, na qual a mobilização pelo poder exige quatro
condições: i) a desmercadorização do trabalho; ii) a institucionalização da
solidariedade; iii) a inclusão na comunidade política dos aliados de classe;
iv) a coalisão política com outras classes sociais17.
“O ingresso à prestação universal de serviços sociais, ou seja, de
todos os cidadãos, [...] só pode ser amplamente instituído se tido de
forma justa, equitativa e eticamente aceitável. O componente ético
17 “Segundo ele, para a comunidade social-democrata a solidariedade tem, em termos abstratos, aspectos positivos e negativos porque exige uma série de deveres e responsabilidades em relação à comunidade como um todo e uma expectativa por parte da comunidade em relação a um conjunto de direitos. O consenso da ‘desmercadorização’ não se desenvolve pela ideologia e não pode esperar pela revolução, sendo necessário estabelecer serviços sociais e benefícios compensatórios pelas próprias organizações dos trabalhadores (através da adoção de um conjunto de direitos). Tal fato implica em desmercadorizar os assalariados e garantir o acesso a todos de forma que o mais fraco ou mais forte não possam romper com as regras da solidariedade. Não se poderá permitir a competição do mercado com o sistema público para não pôr em risco a destruição do sistema de solidariedade, mas o sistema público deve ser eficiente para que não haja descontentamento entre os que pagam e os que recebem” (Lolis, 1999:3).
63
deve estar implícito no Estado de Bem-Estar para que este seja
considerado legítimo e supere a noção estrita de contrato e de
solidariedade. Para esta análise o autor apresenta três modelos de
transferências sociais: o ‘Bismarckiano’, o ‘Beveridgeano’ e o
‘Paineano’. Argumenta que não existem sistemas que atendam em
estado puro qualquer um desses modelos e vai além daqueles
modelos apresentados por Esping-Andersen” (Van Parijs, 1996 apud
Lolis, 1999:4).
Com relação ao modelo bismarckiano, não implica nenhuma noção de
solidariedade já que as transferências de renda se baseiam em um sistema
de seguro individual para todos, em que os riscos são cotizados, como
aqueles derivados de situações de desemprego. Este modelo está
fundamentado em um contrato “que tem como componentes essenciais o
segurado e o segurador e regras que estabelecem o nível de risco subjetivo,
o pagamento antecipado e a indenização”. Quanto ao modelo beveridgiano,
visa resolver ou minimizar problemas decorrentes da redistribuição da
renda, implicando uma noção de solidariedade mais ampla do que o modelo
anterior. Este sugere um ingresso mínimo, de caráter não contributivo.
Finalmente, o modelo painiano apresenta-se “como um modelo ‘ideal’ de
solidariedade” já que pressupõe o acesso universal e incondicional a
benefícios monetários, baseado “numa construção ética socialmente aceita
por todos os indivíduos que compõem uma sociedade” (Van Parijs, 1996
apud Lolis, 1999:4).
II.1.2 A contribuição de Offe & Lenhardt
Claus Offe & Gero Lenhardt trazem uma interessante contribuição
para o debate acerca das origens e finalidades das políticas sociais no
âmbito do Estado capitalista contemporâneo. Para eles, este Estado atua
como regulador das relações sociais a serviço da manutenção das relações
capitalistas em seu conjunto, e não, especificamente, a serviço dos
interesses do capital, a despeito de reconhecerem a dominação do capital
nas relações de classe. O Estado capitalista cumpre esse papel por
intermédio da política social que, segundo os autores, atua como mediadora
de interesses conflitivos.
64
“Fatores relacionados ao desenvolvimento da economia capitalista,
como a difusão de relações de competição nos mercados nacionais e
internacionais, a introdução de tecnologias poupadoras de trabalho, a
destruição de modos de vida pré-capitalistas e o impacto de crises
cíclicas, dentre outros, destroem as condições para o uso não-
assalariado da força de trabalho. Entretanto, a mercantilização da
força de trabalho não é automaticamente realizada pela
desorganização das formas não-capitalistas de produção. Os
indivíduos afetados por esses fatores podem procurar ‘mecanismos
de escape’ como migração, pilhagem, mendicância, resistência
política e militar, formação de corporações e grupos de interesse etc.,
de modo a garantir sua subsistência. O mercado, por si só, não é
capaz de fazer com que a maioria dos trabalhadores aceite o
assalariamento como saída para o problema da desarticulação das
formas não-capitalistas de uso da força de trabalho. Por isso, a
transformação generalizada e completa de trabalhadores em
assalariados requer a participação ativa de instituições como o
Estado. Uma das formas dessa participação é a garantia de benefícios
sociais e de subsistência à força de trabalho” (Offe & Lenhardt,
1990:92 apud Souza, 1999:11).
Na realidade, analisando o conjunto da obra de Offe, constata-se que
sua principal contribuição teórica no que se refere à natureza do Estado
capitalista tem a ver com o desdobramento da idéia de “seletividade
estrutural”, de dependência estrutural desse Estado com relação à
acumulação capitalista, e de desequilíbrio tendencial das funções de
acumulação e legitimação do mesmo, no capitalismo tardio.
II.1.3 A crise do Welfare State
A partir de meados dos anos 70 faz-se evidente a chamada crise do
Welfare State, cujo sistema de proteção estava ancorado na crença na
compatibilidade entre crescimento econômico e satisfação das necessidades
sociais pelo Estado, tendo como pressuposto o pleno emprego - um dos
65
pilares da política econômica de corte keynesiano (Justo, 2004:5). A
ruptura com tal política ocorre, definitivamente, com a ascensão ao poder
de governos conservadores, como o de Margaret Thatcher, em 1979, na
Inglaterra, e o de Ronald Reagan, em 1980, nos Estados Unidos.
De todo modo, a partir dessa época, a sociedade salarial passou a
experimentar sinais evidentes de transformação em virtude da globalização
do capital - com a conseqüente transnacionalização das economias,
revolução tecnológica e crise no emprego - e das mudanças nos padrões de
sociabilidade, o que fez com que os diferentes Estados de Bem-Estar
passassem a enfrentar sérias críticas, além de problemas de legitimidade e
financiamento.
“[...] os processos de globalização econômica e de transformação do
mundo do trabalho, iniciados nos anos 70, e que culminam nos anos
80 e 90, provocam a necessidade de mudanças nas orientações
relativas aos padrões de financiamento e gestão do Estado. A ruptura
da estabilidade e da ‘soberania econômica’ de um número cada vez
maior de estados nacionais desdobra-se numa perda importante de
autonomia na condução das políticas sociais. [...] Em última análise,
o ideal do pleno emprego, o ‘paradigma previdenciário’ em que os
problemas sociais são remetidos à perspectiva controlável do risco, e
mesmo a idéia de direito social, perdem força frente aos impasses
vividos pelas sociedades industriais contemporâneas. Desse modo,
uma profunda crise social, política e econômica começa a abalar os
alicerces das ações públicas contra a pobreza construídos nos anos
50” (Magalhães, 2001:7).
Nesse contexto de enfrentamento da crise do Welfare State são
elaboradas as primeiras propostas de renda mínima. Milton Friedman com
seu “Imposto de Renda Negativo”18 e Keit Roberts com seu “Subsídio
Universal”, representando a corrente liberal, defendem a idéia de uma
18 Nos Estados Unidos, em 1975, instituiu-se uma forma de imposto de renda negativo, o Earned Income Tax Credit (EITC), o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida, o qual se transformou em um dos principais programas adotados nesse país, no sentido de diminuir as taxas de desemprego e de minimizar situações de pobreza.
66
renda mínima destinada aos mais pobres e desafortunados, em substituição
aos demais serviços e benefícios sociais fornecidos pelo Estado. Já Guy
Aznar com seu “Segundo Cheque”, Yoland Bresson com sua “Renda de
Existência” e André Gorz com sua “Renda Social”, representando a corrente
progressista, defendem a racionalização da distribuição de renda e a
socialização dos postos de trabalho com vistas ao combate à pobreza.
Assim, se até os anos 70, o Estado de Bem-Estar Social, nas
sociedades de capitalismo avançado, oferece uma resposta adequada às
questões da vulnerabilidade social, a partir dessa data, principalmente em
função de mudanças na esfera produtiva, este começa a ser questionado,
da mesma forma que começa a ser questionada a centralidade do trabalho
tanto como suporte da cidadania e de identidades pessoais e sociais, quanto
como instrumento privilegiado de integração e coesão social.
Claus Offe é um dos autores que sustenta a tese de que o trabalho
assalariado nas últimas décadas teria perdido a capacidade de determinar a
ação em variadas esferas (política, cultural etc.), em decorrência da
desagregação político-organizacional da classe trabalhadora, da
descentralização do trabalho como eixo estruturador das identidades
individuais e coletivas e da obsolescência do conflito capital-trabalho como
contradição fundamental das sociedades contemporâneas (Offe, 1989:16
apud Álvares e Sousa, 2003:5)19.
19 Segundo Álvares e Sousa, “na perspectiva de Offe, o processo de expansão do trabalho assalariado teria acarretado uma aguda diferenciação no trabalho social, em termos de renda, qualificação, estabilidade, prestígio, carga de trabalho, possibilidades de ascensão e autonomia. Desse modo, o trabalho teria perdido sua capacidade de se constituir em ‘eixo estruturador da autoconsciência e organização sócio-política dos trabalhadores’, redundando no esvaziamento da classe trabalhadora enquanto sujeito político. As diferenças entre o trabalho industrial e o trabalho em serviços seriam sintomáticas dessa tendência. O trabalho industrial seria estruturado pelas racionalidades técnica e estratégica, organizando-se em torno do ‘regime da produtividade técnica e organizacional da valorização’ e da ‘decisiva rentabilidade de cada unidade econômica’. O trabalho em serviços, por sua vez, despido de critérios claros de controle da execução e de economicidade, seria regulado por uma ‘racionalidade material’ abolida do trabalho industrial, dotada de um caráter normatizador e voltada para a ‘garantia institucional do existente’. Esfacelar-se-ia, assim, a idéia de uma racionalidade finalística única regendo o trabalho social como um todo. Tal processo de diferenciação acarretaria uma fissão no interior da classe trabalhadora, gerando antagonismos entre os trabalhadores terciários e os trabalhadores industriais. A fragmentação do trabalho social geraria, pois, rupturas e conflitos profundos no interior da própria classe trabalhadora, ‘sistemas de restrições e aversões recíprocos, de cunho cultural e político’, opondo o serviço público aos ‘protagonistas do modelo da sociedade do trabalho, isto é, a antiga classe média e o operariado’, de modo a incapacitá-la a organizar-se coletivamente de maneira coesa e integrada” (Offe, 1998:19-25 apud Álvares e Sousa, 2003:39).
67
Segundo Offe, o esvaziamento do trabalho como eixo estruturador
das identidades foi causado por três fatores: i) pelas modalidades
tayloristas de organização do processo de trabalho, as quais contribuíram
para a descentralização subjetiva deste, posto que seu propósito era abolir
o "fator humano" e a autonomia operária sobre a produção; ii) pela
tendência ao reconhecimento, pelos trabalhadores, dos custos crescentes e
benefícios decrescentes associados ao trabalho e à renda; iii) pela
desagregação dos ambientes de vida estruturados em torno do trabalho,
em decorrência das descontinuidades freqüentes entre formação individual
e postos de trabalho ocupados, e do crescimento do tempo de desemprego
nas trajetórias profissionais, o que dificultava a construção de raízes
coletivas sob a forma de uma "cultura proletária comum". Nesse contexto,
se a classe trabalhadora se fragmentou internamente de forma tão aguda,
se não mais ocupava o centro de estruturação das identidades e se a luta
de classes cedeu lugar à emergência de novos conflitos e atores na arena
política contemporânea, está-se diante de uma sociedade não mais baseada
no trabalho (Offe, 1989 apud Álvares e Sousa, 2003)20.
Dessa forma, nas sociedades ocidentais, quando são rompidos os
mecanismos de integração social, próprios das sociedades centradas no
trabalho, verifica-se a profundidade da crise em que o Estado de Bem-Estar
está mergulhado, crise esta acompanhada, de forma continuada, por um
discurso acerca da ineficiência, ineficácia e precariedade dos serviços
públicos afins, tendendo a deslegitimar o papel deste Estado no social e a
justificar a sua retirada do econômico.
Nesse contexto, gradativamente, ganha importância em círculos
políticos e acadêmicos o enfoque neoliberal, segundo o qual as raízes da
crise do Welfare State estavam no gigantismo estatal. Para seus
defensores, os impostos elevados, os tributos excessivos e a
regulamentação das atividades econômicas eram responsáveis pela queda
da produção e pelas conseqüências advindas. Daí a necessidade de
20 Conseqüentemente, far-se-ia premente à sociologia reposicionar seus "conceitos estruturais" e "noções de conflitos sociologicamente aplicáveis", esforço que Offe identifica, por exemplo, em Jürgen Habermas e sua teoria da ação comunicativa – dada sua oposição ao "domínio epistemológico do trabalho no marxismo" (Offe, 1989 apud Álvares e Sousa, 2003:33-34).
68
reformar esse Estado, reduzindo o seu papel, e buscar a focalização das
políticas sociais nos “mais necessitados”, visando fundamentalmente
diminuir os gastos e o déficit público, além de garantir a primazia do
mercado na alocação de recursos escassos.
Outro argumento importante utilizado pelos neoliberais para a
reforma do Estado diz respeito à sua ineficiência econômica que, segundo
Draibe & Henrique, se devia ao fato: i) de o gasto deste ser maior do que
seus recursos financeiros, o que provocava pressão contra o equilíbrio
orçamentário; ii) de o financiamento de elevados gastos requerer uma
carga tributária elevada, o que diminuía os investimentos privados; iii) de
os rendimentos do Estado serem menos significativos do que os da iniciativa
privada, porque aquele não se movia em função da lógica do lucro e da
competitividade etc. (Draibe e Henrique, 1988 apud Bertazo, 1996:8).
Todavia, o enfoque neoliberal nunca foi totalmente absorvido pela
academia, por políticos e formadores de opinião, ainda que tenha
influenciado, e muito, políticas ditadas por organismos de cooperação
multilaterais. Da mesma forma, existe uma série de controvérsias sobre as
verdadeiras causas da “crise” do Estado de Bem-Estar Social, se é que esta
crise, sobretudo no caso europeu, não pode ser considerada simplesmente
como uma mudança nos seus arranjos institucionais.
Francisco de Oliveira, por exemplo, concebendo o Estado de Bem-
Estar como um espaço da luta de classes no qual ocorre a construção de
uma esfera pública caracterizada pelo “reconhecimento da alteridade
do outro, do terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se
estruturam as relações sociais”, afirma que o discurso da crise desse Estado
“associa-se mais à produção de bens sociais públicos e menos à presença
dos fundos públicos na estruturação da reprodução do capital”. Na sua
percepção: “o que é tentado é a manutenção do fundo público como
pressuposto apenas para o capital: não se trata, como o discurso da direita
pretende difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas
naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a uma progressão
do tipo ‘mal infinito’ do capital.” (Francisco de Oliveira, 1998:39-48, ênfases
do autor)
69
De todo modo, vários estudiosos têm debatido se a ênfase na origem
da “crise” ou das transformações do Welfare State deve ser atribuída às
forças externas ou às forças internas que colocam os Estados capitalistas
sob pressão. Conforme Mauriel, ainda que não se tenha chegado a um
consenso sobre o assunto (“globalização”, por um lado, “novo
institucionalismo”, por outro), tal debate necessariamente passa pela
relação entre Estado e economia, já que os Estados de Bem-Estar
enfrentam críticas vigorosas, tanto por conta das preocupações com a
competitividade, quanto por causa das mudanças que alteraram o equilíbrio
de poder político doméstico. A autora ressalta que, em muitos países, o
desemprego alto e persistente exacerbou a já pesada carga fiscal dos
mesmos, além das severas pressões demográficas nos sistemas de pensões
e de saúde, levantando questões fundamentais sobre a sustentabilidade dos
seus arranjos presentes. Ou seja, para ela, a “crise” do Welfare State tem
como fundamento a “crise” do Estado-nação (Mauriel, 2004:3).
Conforme Paul Pierson (2001), embora exista uma vasta produção
acadêmica sobre a origem e o desenvolvimento dos Welfare States (como
ele prefere considerar, já que não existe um modelo único de Welfare
State), o mesmo não pode ser dito com relação à crise desses Estados ou
ao grau de pressão que os argumentos supracitados exerceram sobre os
mesmos ou determinaram sua significância relativa. Ele ressalta que, por
diversas vezes, mudanças macroeconômicas conduzidas pela “globalização”
têm sido identificadas como determinantes da crise ou do desmantelamento
de Estados de Bem-Estar, o que ele contesta, já que a consolidação destes
Estados “gerou as condições para a sustentabilidade eleitoral de coalizões
social-democratas e socialistas, [as quais] enfrentaram, com sucesso, as
mudanças brutais na economia globalizada [...] neutralizando os ataques
conservadores às políticas públicas de natureza redistributiva e às funções
do Estado nacional” (Costa, 2002:2-3).
Segundo Costa, apesar de Pierson concordar com a tese de que no
contexto da globalização algumas políticas públicas estreitaram suas regras
de elegibilidade ou reduziram benefícios, “essas reformas foram mais de
ajuste dos programas existentes do que a introdução de novos formatos
70
pela focalização seletiva e pela mercantilização das condições de acesso”
(Costa, 2002:3).
Pierson, todavia, mais do que focar sua análise da crise dos Welfare
States no desmoronamento da sociedade assalariada está preocupado com
o deslocamento da força de trabalho para atividades em que os aumentos
de produtividade são restritos, resultando em um crescimento econômico
mais lento, o qual, por sua vez, gera contenção fiscal para Welfare States
“maduros”. O autor ainda assinala uma série de outras mudanças “pós-
industriais” que produzem severas pressões nesses Estados, como o
amadurecimento dos compromissos governamentais, as transformações na
estrutura das famílias, o envelhecimento da população. Segundo ele, essas
mudanças criam intensos problemas fiscais, pois ocorrem “num contexto
em que os programas são muitas vezes vagarosos para adaptarem-se aos
desentendimentos entre as capacidades inerentes dos Welfare States e as
demandas contemporâneas por provisão social”. Nesse sentido, para o
autor, “tem-se tornado comum argumentar que quaisquer que sejam os
efeitos que a globalização possa ter, eles são intensamente mediados por
arranjos domésticos, daí a convergência nas estruturas da política social
nacionais não ser esperada” (Pierson, 2001 apud Mauriel, 2004:6)21.
Como bem lembram Navarro et alii (2002), as ponderações feitas por
Pierson estão inseridas em um debate mais geral ocorrido principalmente
durante as décadas de 80 e 90 acerca das possíveis restrições que a
“globalização” estaria impondo aos Estados de Bem-Estar, sobretudo no
contexto europeu. Nesse debate, muitos autores têm argumentado que
uma série de países vêm sendo forçados a reduzir gastos públicos sociais e
a desregular mercados de trabalho visando aumentar sua competitividade,
o que tem reduzido sua capacidade para seguir políticas expansivas e
21 Segundo Mauriel, desde o início da década de 90, o debate sobre o futuro da proteção social tem gerado polêmica por toda a Europa. A reestruturação das políticas de bem-estar tem sido discutida em todos os países-membros e pelas instituições da União Européia, que tomou as rédeas para conduzir o debate entre os países, objetivando a instituição e/ou manutenção de um elevado nível de proteção social, em conformidade com o artigo 2º do Tratado da Comunidade Européia. Segundo relatórios da UE, os regimes de proteção social desses Estados confrontam-se com uma série de desafios sistemáticos – como a necessidade de se adaptarem às mudanças no mundo do trabalho, às novas estruturas familiares, às alterações demográficas. Por isso, todos os Estados-membros têm procedido a uma revisão ou reforma de seus regimes de proteção social (Mauriel, 2004).
71
redistributivas. No entanto, outros autores, como o próprio Pierson,
questionam essa tese, levando em conta, entre outros motivos, o alto
investimento que continua sendo feito nos sistemas de proteção social
desses países. Da mesma forma, Huber & Stephens (2001) têm
questionado a convergência das políticas públicas ali, ressaltando a
importância das variáveis políticas na compreensão do processo de
globalização econômica, assim como Scharpf & Schmidt, que têm insistido
na “diversidad de Estados del Bienestar, dentro de la cual los Estados del
Bienestar más extensos continúan siendo aquellos en los que el movimiento
socialdemócrata ha sido y continúa siendo más fuerte” (2002:2).
Segundo a pesquisa empírica realizada por Navarro et alii, nos anos
90, os países europeus - que na tipologia que construíram (a partir das
tipologias de Esping-Andersen e de Huber & Stephens) conformam o grupo
de tradição social-democrata - continuaram a contar com Estados de Bem-
Estar mais abrangentes do que os demais, pautados pelo princípio da
universalidade em que os benefícios sociais são percebidos enquanto
direitos de cidadania, resultantes da pressão dos grupos mais vulneráveis
da sociedade. O princípio da universalidade, por sua vez, ancora-se no
princípio da solidariedade e da igualdade de direitos entre classes sociais.
Nesse sentido, os países que os adotam realizam gastos públicos sociais
muito elevados, os quais aumentaram durante as décadas 80 e 90,
desmistificando uma série de teses contrárias (Scharpf & Schmidt, 2002).
Ainda de acordo com essa pesquisa, as variáveis políticas (dentro de
cada Estado), que refletem a correlação de forças existente entre os
distintos partidos e os interesses que representam no âmbito doméstico,
são mais importantes para configurar as políticas sociais do que as
conseqüências decorrentes da globalização econômica considerada per se.
Entre as variáveis dessa natureza, consideraram como a mais importante a
força do movimento social democrata, na sua versão sindical e partidária.
Cabe aqui explicitar a posição de Esping-Andersen acerca da
realidade dos Estados de Bem-Estar no capitalismo contemporâneo, menos
otimista do que a de Navarro et alii:
72
“Para Esping-Andersen, os sistemas de bem-estar social foram
construídos para atender uma economia dominada pela produção de
massa. Na era do consenso keynesiano, não havia a explicitação do
dilema entre seguridade social e crescimento econômico, entre
igualdade e eficiência. Nos tempos atuais, esse consenso subjacente
não mais existiria: o crescimento não inflacionário por indução da
demanda em um único país parece impossível; o pleno emprego teria
de ser buscado pelo setor de serviços e não no setor industrial; a
estrutura das famílias e o papel do provedor masculino mudaram; a
fecundidade declinou fortemente e os modos de vida tornaram-se
crescentemente não padronizados. Essas mudanças teriam afetado
de modo irremediável a inserção das economias nacionais no
contexto da globalização dos mercados e, por conseguinte, a
capacidade de responder ao problema da eqüidade por meio de
políticas públicas universalistas ou pela ampliação da provisão social”
(Costa, 2002:4).
Draibe & Henrique, embora concordem com a afirmação de que a
origem da crise do Estado de Bem-Estar e os desdobramentos daí
decorrentes sejam explicados pelos mais diferentes fatores (tal crise é de
caráter financeiro-fiscal; é produzida pela centralização e burocratização
excessivas; deve-se à sua perda de eficácia social; é uma crise de
legitimidade e de baixa capacidade de resistência da opinião pública; deve-
se ao colapso do pacto político do pós-guerra sobre o qual se erigiu; deve-
se à sua incapacidade de responder aos novos valores predominantes nas
“sociedades pós-industriais”), ressaltam que tal crise se origina e poderá ser
resolvida nos planos social e político de uma sociedade, por meio da adoção
de uma nova forma de solidariedade social no bojo da mesma (Draibe &
Henrique, 1998:55-66).
Rosanvallon, igualmente, propõe uma nova visão da proteção social
relacionada com uma versão ampliada do modo de produção da
solidariedade social que, na sua percepção, se constitui na saída para
enfrentar os problemas sociais contemporâneos. Assim, segundo ele, “o
engajamento pessoal dos beneficiários, a combinação entre indenização e
73
inserção social e a possibilidade de articular direito e contrato na condução
das políticas contra a pobreza - incorporando, assim, a idéia de
contrapartida - tornam-se exigências incontornáveis” (Rosanvallon apud
Magalhães, 2001:11).
Draibe & Henrique acreditam que talvez seja este autor, Rosanvallon,
aquele que melhor examinou a tese da nova solidariedade social, partindo
do diagnóstico que freqüentemente incide sobre o Estado-providência: o do
desequilíbrio crescente entre receitas e despesas.
“Rosanvallon rejeita a tese de que seja esta, a financeira, a
verdadeira crise até porque, segundo ele, teoricamente há soluções:
alterações na relação salários diretos/indiretos; diminuição da
elevação das cotizações sociais compensadas por crescimento da
carga fiscal etc. O problema, afirma, é que soluções financeiras desta
natureza implicam modificações do equilíbrio social existente entre
indivíduos, categorias sociais e agentes econômicos. Aí reside,
verdadeiramente, o bloqueio: o que se designa, geralmente, pela
expressão ‘impasse financeiro’ é, antes de tudo, o problema do grau
de socialização tolerável de um certo número de bens e serviços”
(Draibe & Henrique, 1988:66).
Por outro lado, Rosanvallon acredita que a crise do Welfare State é,
de fato, a crise de um modelo de desenvolvimento, e a crise de um dado
sistema de relações sociais, enraizada “nos desdobramentos perversos das
próprias contradições do Estado, seja aquela própria da relação Estado-
igualdade, no plano dos valores, seja a relacionada com a fragmentação
social”. Considera que a “fissura intelectual, cultural, que corrói o edifício da
cultura democrática e igualitária”, é o paradoxo identificado em sociedades
democráticas “na relação entre a vontade de redução da desigualdade e na
negativa de uma igualdade idêntica no plano econômico e social, isto é, no
reconhecimento das diferenças”, percebendo a falência do quadro de
compromissos keynesiano que regula as relações nessas sociedades - cujo
modelo está fundado no Estado-providência e em negociações coletivas -
74
como causa para a crise que está enfrentando (Draibe & Henrique,
1988:67)22.
Castel, igualmente, aponta para a desestruturação do sistema de
proteção e para uma desestabilização social, que estão repercutindo em
diferentes setores da vida societária e acabando por afetar a respectiva
coesão interna. Afirma que, diante da revolução tecnológica e das novas
filosofias políticas e econômicas, é inevitável que o modelo de sociedade
assalariada em vigor acabe sendo devastado. A desestabilização dos
“estáveis”, a instalação de alternativas precárias de trabalho, os salários
reduzidos e a descoberta de uma nova categoria de pessoas sub-
remuneradas comprovam sua tese, em sociedades onde se identifica “um
grande número de pessoas ‘desfiliadas’ social e economicamente”, as quais
ocupam, literalmente, um lugar de excedente porque não se encaixam nas
exigências do mercado, fazendo com que surja uma “nova questão social”
no bojo das mesmas.
“A ‘questão social’ é uma aporia fundamental sobre a qual uma
sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o
risco de sua fratura. É um desafio que interroga, põe em questão a
capacidade de uma sociedade (o que, em termos políticos se chama
uma nação) para existir como um conjunto ligado por relações de
interdependência. [...] O núcleo dessa questão é a existência de
‘inúteis para o mundo’, de supranumerários e, em torno deles, de
uma nebulosa de situações marcadas pela instabilidade e pela
incerteza do amanhã que atestam o crescimento de uma
vulnerabilidade em massa” (Castel, 1998:30, 593)23.
22 Rosanvallon propõe, em contrapartida, a criação de um espaço pós-social-democrata que repouse na redução do modelo keynesiano e na sua combinação com modos de regulação autogestionários e intra-sociais.
23 Nesse contexto, a idéia das “metamorfoses da questão social” à qual Castel se refere, para além de considerar aqueles que foram atingidos pelas novas formas de desemprego ou de precarização nas relações de trabalho, tem a ver com a própria natureza dos laços e vínculos que constituem o núcleo da sociedade salarial. Esta trata também do que acontece com aqueles que permanecem no interior das zonas de coesão social ou nas zonas de equilíbrio, constituído a partir do vínculo entre as relações de trabalho e as formas de sociabilidade (Antônia de Souza, s/d citando Risek ao prefaciar a obra de Castel).
75
Baltazar (1996) identifica seis características principais com relação a
essa nova questão social. São elas:
1) o crescimento do desemprego em massa e de longa duração
que provoca a perda de identidade social e de classe nos
indivíduos descartados da produção;
2) o aumento do dualismo social, ou seja, a constituição de
uma sociedade cada vez mais dividida entre empregados e
desempregados;
3) a precarização do trabalho, entendida como contratos de
trabalho por tempo determinado, jornadas parciais e a
conseqüente diminuição de renda e perda do direito às
prestações do seguro social;
4) a constituição de um modo de vida cada vez mais
individualista e a multiplicação de famílias monoparentais
relacionadas às mudanças culturais e à dissolução da base
familiar;
5) o aparecimento da “nova pobreza” de caráter
multidimensional, englobando não só excluídos sociais, mas
excluídos da economia;
6) a instabilidade que enfrentam não só os novos pobres, mas
toda a sociedade capitalista em face da desproteção do
Estado provedor.
Baltazar ressalta que, nesse contexto, além das transformações nas
relações de produção e de trabalho, aconteceram igualmente mudanças “no
convívio social traduzidas na formação de novas identidades sociais, na
progressão de um modo de vida cada vez mais individualista e na ruptura
da relação familiar” (1996:7).
Segundo Lavinas, Thomas (1999) elabora uma classificação das
categorias jurídico-políticas utilizadas na Europa no tratamento da pobreza
até chegar à categoria da exclusão, que dá origem à nova questão social à
76
qual Castel se refere, identificando três grandes correntes que
correspondem a diferentes momentos históricos, quais sejam:
“[...] na década de 60, predomina o conceito de necessidades
insatisfeitas que pressupõe a definição de um padrão mínimo de
condições de vida. Vivem na pobreza absoluta ou na indigência todos
aqueles cujo padrão de consumo situa-se abaixo do mínimo vital em
razão do seu déficit de renda. [...] Nos anos 70, o conceito de
pobreza relativa passa a figurar como medida para identificar a
‘posição social’ do pobre com relação ao padrão médio de consumo
da população como um todo. [...] A pobreza (a intensidade da
pobreza) passa a ser calculada com base numa medida de
desigualdade. Nos anos 80, surge uma nova categoria [...], a da
exclusão, a qual, ao contrário da pobreza absoluta que se sustenta
em critérios objetivos [...] implica considerar também aspectos
subjetivos, que mobilizam sentimentos de rejeição, perda de
identidade, falência dos laços comunitários e sociais, resultando numa
retração das redes de sociabilidade, com quebra dos mecanismos de
solidariedade e reciprocidade” (Lavinas, 2003:7-9).24
Nas palavras da autora:
“A exclusão, tal como a pobreza, nasce como uma categoria do
campo da ação, da intervenção, pois, sendo uma categoria
identitária, visa designar e caracterizar o status social dos indivíduos
que se situam na parte inferior da hierarquia social. Ela tem
conotação negativa, pois significa má integração, integração
deficiente, seja pelo lado do sistema produtivo, seja pelo lado do
padrão de consumo. A tônica da exclusão é dada pelo
24 Segundo Lavinas, Estivill aponta com pertinência o fato de a exclusão vir a ser um conceito regional, operacionalizado inicialmente na França, sendo, por extensão, adotado em toda a Europa Ocidental, mas sem propriedade. “[…] a exclusão social seria a nova face da questão social na França. A organização e gestão do mercado de trabalho na Alemanha, assentada no maior envolvimento dos empresários na formação e co-gestão tripartite, nos países escandinavos, através da concertação, ou na Inglaterra, onde a integração social e política é concebida partindo das distintas comunidades, a exclusão não é tratada de forma idêntica à exceção francesa ». « […] Para além do caso francês entretanto, a noção de exclusão foi infiltrada, penetrou e se populariza no Sul da Europa, no Norte e no Leste, e alcança a América Latina e Africa… » In Estivill J. (2003) « Panorama de la Lucha contra la Exclusión Social. Conceptos y Estrategias ». Mimeo. STEP/Potugal, OIT apud Lavinas, 2003:8).
77
empobrecimento das relações sociais e redes de solidariedade. Por
essa razão, a noção de exclusão também remete ao fracasso”
(Lavinas, 2003:9).
Já nas palavras de Magalhães:
“O sucesso da idéia de exclusão após os anos 80 está relacionado a
um quadro de ruptura dos laços sociais combinado com o
enfraquecimento das formas de coesão e solidariedade habituais. O
crescimento do isolamento social, a deterioração das formas de
convivência, o fracasso das iniciativas de participação coletiva e,
sobretudo, a incerteza generalizada frente aos rumos das políticas
sociais, constroem, desta forma, um terreno fértil para a emergência
de um verdadeiro ‘paradigma’ da exclusão” (2001:9).
Lavinas destaca ainda o Observatório Europeu das Políticas Nacionais
de Luta contra a Exclusão que, juntamente com algumas ONGs e a França,
interpreta a exclusão social como a negação dos direitos fundamentais.
Quanto ao Conselho da Europa, adotou em 1994 a definição de que são
excluídos os grupos de pessoas que se encontram parcialmente ou
integralmente fora do campo de aplicação efetiva dos direitos humanos.
Aqui, segundo Lavinas, exclusão é o avesso da cidadania. A autora destaca
ainda duas matrizes utilizadas no debate europeu sobre pobreza elaboradas
por Bill Jordan (1996), que subsidiam a formulação de políticas sociais: i) a
matriz liberal, baseada na tradição do individualismo econômico; e ii) a
matriz continental, baseada no corporativismo.
“A matriz liberal toma como pressuposto que todo indivíduo cuja
participação no mercado é cerceada pela falta de recursos materiais
[...] é tido como pobre e deve, conseqüentemente, obter algum tipo
de compensação que permita, através de medidas redistributivas,
suprir tal deficiência. Em consonância com tais princípios, a tradição
liberal recorrente na Inglaterra e nos Estados Unidos privilegia
intervenções voltadas para o desenvolvimento e multiplicação de
sistemas de manutenção de renda (safety nets, food stamps,
negative income tax credit etc.), que garantam o bom funcionamento
78
do mercado. [...] Já na ótica da Europa continental (enfoque
bismarckiano), o pertencimento a um grupo ou corpo social – ou
seja, a inclusão - garante o acesso a um conjunto de direitos, cuja
finalidade primordial consiste justamente em assegurar a coesão do
grupo através da manutenção dos vínculos de solidariedade. [...]
Cabe, assim, ao Estado, através das políticas sociais, configurar e
regular tais relações, evitando o afrouxamento dos vínculos sociais”
(Lavinas, 2003:10).
Tais matrizes têm sido importantes inclusive para a formulação de
propostas de transferência de renda no âmbito desses países.
II.2 Propostas de Transferências Diretas de Renda
II.2.1 Considerações iniciais
A partir de meados dos anos 70, nas sociedades ocidentais, observa-
se uma crescente incapacidade da economia em gerar novos postos de
trabalho, manter os existentes, e um acirramento de formas atípicas de
ocupação (relação assalariada não-formalizada, emprego temporário ou em
tempo parcial, atividades autônomas desenvolvidas de forma individual
e/ou associativa etc.), implicando desdobramentos tanto no âmbito do
financiamento das políticas sociais quanto no dos potenciais beneficiários. O
crescente déficit nos orçamentos da seguridade social e a extensão de
situações de pobreza testemunham essa inadequação entre a tradicional
proteção social - que teve seu ápice após a Segunda Guerra Mundial - e a
nova dinâmica econômica que se configurou nas últimas décadas.
Nesse contexto, propostas de transferência direta de renda passaram
a ser percebidas como alternativas viáveis em termos de política social. Isto
porque, ao longo do século XX, “o trabalho consolidou-se como substrato da
cidadania, fonte de pertencimento social”. Nesse sentido, quando o trabalho
falta, a própria cidadania fica abalada (Justo, 2004:10).
79
Visando reverter esse quadro, têm sido formuladas propostas de
transferência monetária direta do poder público para indivíduos e/ou
famílias. Entre estas se destaca a de renda mínima, cujo objetivo é conferir
às pessoas um benefício monetário que lhes possibilite sobreviver, ainda
que sem trabalho. No entanto, como bem pondera Justo, “pensar o
problema em termos de renda parece empobrecer a discussão: afinal, a
renda é suficiente para conferir cidadania?” Segundo ela, esta problemática
coloca um duplo dilema para a política social.
“[...] por um lado há, a partir da visão de que o crescimento do
desemprego estrutural é inevitável, a concepção mais conservadora
de renda mínima, de Friedman, que defende que ela seja destinada
apenas aos que não conseguem vencer no mercado competitivo (os
fracassados e incapazes), cabendo ao Estado atenuar, assim, a
miserabilidade, e conter a massa descontente [...]. Por outro lado,
autores como André Gorz [...], Guy Aznar [...], Bresson e
Rosanvallon, defendem que a renda mínima deva ser destinada não
aos pobres, mas aos trabalhadores, como uma compensação pela
redução de sua jornada de trabalho, de forma a impedir a
legitimação de uma sociedade dual, que passe muito bem sem os
‘inúteis’ da nação. Esta proposta mantém a percepção do trabalho
como pilar da cidadania e defende a redução da jornada sem prejuízo
da renda – daí o porquê da renda mínima, que seria complementar
ao salário, mas, diferentemente das proposições da direita, seria uma
forma de inverter o processo de transformações no sentido do
empoderamento e favorecimento dos trabalhadores” (Justo,
2004:11).
Também Marques já havia afirmado que a defesa de propostas de
renda mínima não se restringe a uma ou outra corrente de pensamento,
trata-se de uma proposta de caráter bem mais abrangente.
“Entre os neoliberais está associada à idéia de Estado mínimo e às
propostas de desregulamentação do trabalho e de redução ou
extinção dos encargos sociais, como condição para que as taxas de
80
desemprego recuem, e como requerimento da chamada globalização.
No campo progressista, está associada à construção de um novo
conceito de solidariedade, entendida como necessária para dar conta
da situação criada pelo novo nível de produtividade e do novo mundo
do trabalho” (Marques, 1997:89).
De todo modo, Silva e Silva (1996) agrupam as propostas/programas
de renda mínima em três vertentes básicas: i) como um substituto para os
diversos mecanismos de proteção social do Welfare State e estímulo à
desregulamentação da economia e à flexibilização das relações de trabalho;
ii) como um instrumento transitório destinado a viabilizar a (re)inserção
social e econômica dos sujeitos-beneficiários por intermédio da vinculação
do auxílio monetário a medidas sócio-educativas e de qualificação
profissional; iii) como um mecanismo capaz de assegurar uma distribuição
mais eqüitativa do produto social em um contexto em que a geração de
riqueza prescinde, cada vez mais, do trabalho humano.
Euzéby (1995) concorda com os argumentos de Gorz, Aznar, Bresson
e Rosanvallon postulando que o contexto de desemprego maciço, de
multiplicação de empregos precários, de agravamento das desigualdades e
de instabilidade crescente das famílias, observado nas últimas décadas, não
só ameaça a coesão social como também coloca em xeque os sistemas de
proteção construídos para o pleno emprego, o trabalho em tempo integral e
a família estável.
Para enfrentar esses desafios, segundo ele, de um lado, encontram-
se os representantes das correntes liberais que avançam o princípio "nada
de direitos sem obrigação de trabalho" e pretendem limitar a proteção
social às pessoas mais necessitadas; de outro, situam-se os partidários da
transferência de renda universal, sem precondições, chamada de "renda de
existência" por Yoland Bresson e René Passet, de “abono universal”, “renda
básica” ou “renda de cidadania” por Philippe Van Parijs, Guy Standing, Claus
Offe, André Gorz, Rubén Lo Vuolo, Jean-Marc Ferry, entre outros.
81
Quanto à renda básica ou renda básica de cidadania, relativamente
nova no discurso dos direitos humanos e na prática política dos Estados, é
compreendida como uma renda universal a ser paga a todos os
cidadãos(ãs) de uma determinada comunidade política independentemente
de sua origem social, sexo, idade etc. A proposta é instituí-la de forma
completamente incondicional desde o seu nascimento até a morte, sem
qualquer critério de seleção. Foi concebida não somente no sentido de
responder à “crise da sociedade do trabalho”, mas, sobretudo, levando em
conta determinados princípios éticos, como os da justiça social, da
dignidade e da liberdade humana, como formulados por John Rawls e
Amartya Sen (Zimmermann, 2004).
A proposta da renda de cidadania ocupa-se diretamente da dicotomia
inclusão/exclusão social, baseada em uma crítica aos pressupostos que
sustentam os arranjos institucionais próprios do Welfare State tradicional.
Nesse sentido, demanda uma engenharia institucional nova, que viabilize
uma transferência direta de renda para todas as pessoas residentes em um
determinado território político a cujo acesso não se requer nenhuma outra
condição a não ser a de ser cidadão ou cidadã (Lo Vuolo, 1995).
Lo Vuolo ressalta que o qualificativo de cidadão também ajuda a
enfatizar outro aspecto substantivo da proposta da renda de cidadania: sua
intenção de favorecer a integração como recurso para se contrapor às
forças sociais que impulsionam a dinâmica excludente. Segundo o autor, o
adjetivo cidadão igualmente ilustra um método de superar a exclusão:
resgatando os valores de cidadania na construção de políticas públicas.
De fato, a renda de cidadania é considerada como um direito de
cidadania. Um direito inalienável de todo cidadão ou cidadã participar da
riqueza produzida em um determinado território (que pode ser um país, um
estado, um município, uma região), de forma equânime e incondicional.
Nesse sentido, esta tem a ver com a universalização desse direito, com a
socialização da riqueza e da política, de tal forma que o desenvolvimento
garanta a plena realização das potencialidades de todos (Bava, 1998; ver,
também, Sen, 1993).
82
Embora não esteja implantada em nenhum país em particular, desde
1976 uma modalidade de renda de cidadania foi introduzida no Estado do
Alasca, nos Estados Unidos, quando o governo local conseguiu que fosse
aprovada, através de referendum popular, a transferência de 50% dos
royalties originários da venda do petróleo para um fundo de propriedade de
todos os residentes nesse estado. A partir dessa data, cada morador do
Alasca, registrado nesse fundo, passou a receber um dividendo social uma
vez por ano, o que tem contribuído para a redistribuição de renda no
estado.
A renda de cidadania tem sido objeto de muitos debates, inclusive na
África do Sul, onde as negociações para sua implementação estão bastante
avançadas. Neste país, pretende-se que esta contribua para a eqüidade e
promova a estabilidade da família e da comunidade, possibilitando a todas
as pessoas o atendimento de necessidades vitais e uma maior dignidade.
Propõe-se uma cobertura universal, desde o nascimento até a morte, sem
que seja necessária a comprovação de rendimentos.
No caso do Brasil, partiu do senador Eduardo Suplicy a iniciativa de
implantar uma política dessa natureza, já que foi autor do projeto original
que resultou na Lei nº 10.835, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, em janeiro de 2004, a qual institui o Programa de Renda Básica de
Cidadania no país, a partir de 2005, como direito universal e incondicional
de todos aqueles, brasileiros ou não, que vivem aqui legalmente.
Quanto à renda de existência, é proposta por autores que defendem
a partilha do patrimônio comum mediante argumentos um pouco diferentes
daqueles dos partidários da renda de cidadania. Para Yoland Bresson, por
exemplo, “o nível de produção de uma sociedade não depende somente dos
aportes de trabalho e de capital efetuados pelos agentes econômicos do
momento, mas, também, é resultado da contribuição de ancestrais. Sendo
assim, a simples existência justifica o recebimento de uma renda da
sociedade, que assume, nesse caso, caráter de legado” (apud Marques,
1997:123-124). A renda de existência, assim, tal como a renda de
cidadania, é atribuída a qualquer indivíduo, sem qualquer precondição de
83
estatuto familiar ou profissional. Todavia, parte do princípio de que “todos
têm direito a um mínimo de recursos pelo fato de existirem, e não para
existirem” (Euzéby, 1995:1).
De todo modo, dadas as características supracitadas, tanto a renda
de existência quanto a renda de cidadania diferem substancialmente
daquelas políticas de garantia de renda mínima implantadas em diversos
países, pois, na grande maioria destes, trata-se de rendas condicionadas ao
cumprimento de certos requisitos, como, por exemplo, de o beneficiário
provar a falta ou insuficiência de renda com relação a um determinado
patamar preestabelecido e/ou mostrar predisposição para aceitar qualquer
tipo de trabalho.
Nesses termos, conforme assinala Zimmermann (2004), o Programa
Bolsa Família instituído no Brasil pelo governo Lula é um programa de renda
mínima, pois possui uma série de condicionalidades. Todavia, pondera o
autor, sob a ótica dos direitos humanos, tanto o Bolsa Família como os
demais programas de renda mínima de natureza similar apresentam
problemas variados, quais sejam:
1. seleção: na grande maioria dos casos, tentativas de identificação
dos pobres por meio de critérios técnicos dificilmente são capazes
de diferenciar estes do restante da população de baixa renda.
Existem muitos entraves no processo de seleção e escolha das
famílias a serem incluídas em programas afins. Em muitos casos,
pessoas necessitadas são excluídas dos mesmos até por critérios
políticos (clientelismo etc.);
2. justiciabilidade: a grande maioria dos programas de renda mínima
não garante a justiciabilidade e exibilidade dos direitos ou, no pior
dos casos, quando existem, não têm tido condições de cumprir
este princípio. Diante do critério seletivo e condicionador, existem
muitos empecilhos na criação de mecanismos específicos para a
justiciabilidade e exibilidade dos programas afins;
3. custos operacionais: vários estudos têm demonstrado o alto custo
operacional de programas dessa natureza, principalmente devido
84
à burocracia necessária para se realizar o processo de seleção dos
beneficiários e o controle das condicionalidades, o que faz com
que muitos desses programas sejam estigmatizados, sendo por
vezes humilhantes para os que deles se beneficiam. Além disso, o
custo operacional da seleção e do controle é muito alto.
Ainda assim, o debate internacional sobre os programas de renda
mínima alcançou vigor principalmente nas duas últimas décadas. Tanto é
que, em junho de 1992, o Conselho das Comunidades Européias
recomendou aos Estados-membros que reconheçam o direito fundamental
dos indivíduos a recursos que lhes garantam uma vida em conformidade
com a “dignidade humana”, orientado pelos seguintes princípios:
“[...] a) pela afirmação de um direito baseado no respeito pela
dignidade da pessoa humana; (b) pela definição de um campo de
aplicação deste direito, relativamente à residência e à nacionalidade;
(c) pela abertura deste direito a todas as pessoas que não
disponham, nem por si próprias nem no seio do seu agregado
familiar, de recursos suficientes; (d) pelo exercício deste direito sem
limite de duração, desde que as condições de acesso continuem
preenchidas; (e) pelo seu caráter auxiliar (subsidiário) em relação
aos demais direitos; (f) pelo acompanhamento do mesmo pelas
políticas necessárias à integração econômica e social das pessoas
abrangidas” (Fonseca, 2001:113-114).
No entanto, há muita polêmica em torno do assunto, inclusive sobre
o direito subjetivo à renda por parte do pobre ou indigente na qualidade de
“credor” do Estado. O Conselho de Estado da Bélgica, por exemplo,
recusou-se a interpretar a ajuda social através da garantia de renda
mínima, instituída no país em 1974, como um direito subjetivo, enquanto o
governo belga aceitou uma emenda que o introduziu. De todo modo, o
debate teórico sobre o tema não foi regulado, daí a discussão: direito
subjetivo versus interesse; legalidade versus oportunidade; instituição
política fundamental versus serviço público. As dúvidas ainda permanecem
85
nesse nível, com conseqüências práticas que afetam profundamente uma
tomada de posição diante da proteção social (Baracho, 2002).
Na realidade, as modalidades de adoção de um programa de renda
mínima variam muito de país para país (grau de universalização, condições
de acesso ao benefício, montante deste, contrapartidas exigidas, formas de
financiamento etc.). No entanto, fatores em comum são identificados com
relação ao benefício auferido, em contextos variados. Nesses casos tal
benefício: i) destina-se a todos que estão em situação de necessidade,
decorrente de insuficiência de renda; ii) trata-se de um direito subjetivo,
isto é, atribuído com base em uma demanda feita pelo próprio interessado;
iii) trata-se de um direito condicional, pois implica o respeito a certas
prerrogativas e a contrapartidas; d) trata-se de um direito subsidiário, ou
seja, tem seu valor modulado pelo montante das demais prestações sociais
e pela renda, seja ela individual ou familiar (Lavinas & Varsano, 1997).
Vale ressaltar, nesse sentido, que a grande maioria dos países que
conformam a União Européia, além dos Estados Unidos, Canadá, China,
África do Sul, países latino-americanos e outros, contam com algum
programa de garantia de renda mínima ou com alguma proposta afim na
atualidade25. Dentre estes, destacam-se os que defendem a idéia da
incondicionalidade de uma renda garantida, que tanto pode estar
relacionada com programas de renda mínima quanto com programas de
renda de cidadania.
Segundo Lavinas & Varsano, a idéia da incondicionalidade possui uma
vertente intitulada “incondicionalidade forte”, propondo uma renda de
subsistência para todos, sem distinção nem condicionantes; e outra dita
“incondicionalidade débil”, que prevê um imposto negativo apenas para
25 Segundo Marques (1997:102), quanto aos programas de renda mínima, o mais antigo que se tem notícia é o da Inglaterra (income support – 1948). Nesse sentido, a autora destaca, ainda, o sociale bijstand holandês – 1963, o sozialhilfe alemão – 1961, o minimex belga – 1974 e a revenu minimum d’insertion francesa – RMI, de 1988, os quais, na percepção de Marques, à exceção do RMI, foram concebidos em bases assistencialistas, destinados a indivíduos ou famílias incapazes de garantir o mínimo necessário para sua subsistência.
86
aqueles que não dispõem do mínimo. No entanto, segundo esses autores,
ambas as vertentes procuram se contrapor à generalização do workfare em
substituição ao welfare.
“[...] a perda de centralidade do trabalho nas sociedades pós-
industriais leva a uma dissociação entre benefício e atividade, base
do sistema de proteção social implementado ao longo do século XX.
Aqueles que permanecem integrados, via trabalho, ao antigo sistema
de proteção beneficiam-se de direitos sociais negados àqueles que
foram destituídos da sua capacidade de trabalho, já não mais
adequada. É a ociosidade involuntária. Por questões éticas e de
justiça, cabe assegurar a todos os cidadãos ‘condições mínimas de
liberdade’, prevalecendo de um ponto de vista conceitual a idéia de
que a doação, gratuita e unilateral, deve ser um elemento fundador,
logo, estruturante das relações sociais” (Lavinas & Varsano, 1997: 5).
No entanto, no debate em torno das propostas de transferência direta
de renda alguns argumentam que tal transferência é perfeitamente
funcional ao capitalismo na sua fase atual, porque oferece uma solução
(ainda que paliativa) para os não-incluídos no mercado de trabalho, além de
torná-los consumidores potenciais, como no caso do imposto de renda
negativo proposto por Milton Friedman. Já outros defendem essa
transferência como necessária e complementar a demais iniciativas voltadas
para o bem-estar social (e não como substitutivo destas), enfatizando seu
caráter redistributivo e emancipatório, como a renda básica ou renda básica
de cidadania.
No caso desta última, não tem como objeto de preocupação a busca
de uma solução para a “crise do trabalho” ou da “sociedade salarial”,
conforme mencionado. De caráter fundamentalmente redistributivo, está
baseada nos ideais de justiça social de inspiração libertária (rawlsianos,
sobretudo). Universal e incondicional, a renda básica de cidadania deve ser
outorgada a todo cidadão(ã) por fazer parte de uma comunidade política,
visando que usufrua do patrimônio material comum. Ademais, deve ser
garantida de forma a não restringir seu uso pelas pessoas nem a conduta
87
das mesmas. Portanto, deve ser desvinculada de qualquer condicionante,
inclusive do trabalho, pois é conferida devido ao status de cidadania. Daí se
depreende que esta está fundamentada em uma noção inovadora de
cidadania – cujo núcleo, embora incerto, certamente aponta para uma
ultrapassagem da noção tradicional –, em que seria desvinculada do
trabalho como seu substrato (Pereira Silva, 1998 apud Justo, 2004).
II.2.2 As contribuições de Friedman, Aznar, Gorz e Rosanvallon
Conforme visto anteriormente, diferentes correntes político-ideológicas
perceberam no cenário de enfrentamento da crise do Welfare State a
necessidade da substituição deste sistema por uma nova política social, nos
moldes da renda mínima e outras, relacionadas com a adoção de uma ação
afirmativa em prol daqueles mais necessitados, seja porque perderam seus
postos de trabalho e seus vínculos sociais mais abrangentes, seja porque
estão em uma situação fragilizada pessoal e profissionalmente, seja, ainda,
porque nem sequer tiveram ou terão acesso ao mercado de trabalho.
De fato, correntes denominadas liberais, na sua crescente defesa da
soberania do consumidor, tendem a chamar a atenção para as vantagens
de uma transferência financeira direta do Estado no sentido de garantir às
pessoas necessitadas uma segurança material mínima, atenuando as
conseqüências do desemprego e do subemprego e contribuindo para a
estabilização da despesa social. Por sua vez, correntes mais progressistas
sustentam a necessidade de o Estado adotar uma compensação monetária
como uma política que complemente as históricas conquistas do trabalho e
estenda os direitos de cidadania para um conjunto maior de pessoas.
Representando a corrente liberal, destaca-se Milton Friedman (1962)
como um dos autores pioneiros a defender uma transferência direta de
renda, na forma de um imposto de renda negativo, como uma forma de
combater a pobreza e, ao mesmo tempo, preservar os incentivos ao
trabalho. Assim, todas as pessoas que auferissem uma renda inferior àquela
88
considerada mínima vital, passariam a receber uma ajuda do Estado, em
substituição aos demais serviços e benefícios sociais fornecidos por este26.
Segundo Van Parijs,
“[...] tendo como pano de fundo uma tabela de imposto explícito que
não tributa nenhuma renda em 100% e que pode, mas não precisa
ser por definição, linear, um imposto de renda negativo equivale a
uma redução do imposto de renda devido por cada família (de uma
determinada composição) no mesmo valor fixado, enquanto paga
como um benefício em dinheiro a diferença entre este valor e o
imposto devido sempre que esta diferença for positiva” (2000:9)27.
De acordo com Friedman, as vantagens da adoção de um imposto
dessa natureza são claras.
“O programa está especificamente dirigido para o problema da
pobreza. Fornece uma ajuda sob a forma mais útil para o indivíduo,
isto é, o dinheiro. É de ordem geral e pode substituir o grande
conjunto de medidas atualmente existentes. Explicita o custo que
impõe à sociedade. Opera fora do mercado. Como qualquer outra
medida para mitigar a pobreza, reduz o incentivo para que os
ajudados se ajudem a si próprios, mas não o elimina inteiramente,
como o faria um sistema de suplementação das rendas até o mínimo
estabelecido” (Friedman, 1977:162-163 apud Marques, 1997:119).
Vale considerar que, consistente com a idéia de que a intervenção do
Estado na economia deve ser a menor possível, Friedman postula que o
ideal para as políticas sociais é sua focalização em públicos restritos. Daí
também sua proposta de que a renda transferida às pessoas seja 26 O autor (Friedman apud Marques) “ao considerar que o mercado é o lócus privilegiado, onde são garantidas a liberdade de escolha dos indivíduos e a eficiência de alocação dos recursos, encaminha a retirada do Estado do mercado de trabalho e reduz a proteção social, garantida pelo Estado, ao segmento mais carente da população” (Marques, 1997). 27 Dessa forma, o valor a ser transferido em função de um imposto de renda negativo dependeria do montante de renda percebido por esforço próprio, conforme a seguinte fórmula: s = G – tg, onde s é a renda transferida; G, a renda mínima garantida; t, o imposto; e g equivale à renda pessoal (Marques, 1997:117).
89
substitutiva das demais políticas sociais, já que, na sua percepção, as forças
do mercado são capazes de promover a melhor alocação dos recursos e o
mais alto nível de bem-estar, de forma independente do Estado. O autor
visa à restauração da eficiência e da racionalidade econômica deste que,
segundo ele, foram perdidas no Welfare State, propondo a concessão de um
benefício monetário que não exceda determinado patamar mínimo, a fim de
não onerá-lo e não desestimular o trabalho.
De todo modo, ainda que o incentivo ao trabalho esteja presente na
proposta do imposto de renda negativo, nesta não é exigido que as famílias
ou que os indivíduos exerçam alguma atividade para receber o benefício daí
advindo, cujo valor depende de informações sobre todas as rendas
auferidas/não auferidas pelos beneficiários, o que faz com que esse imposto
funcione como uma medida de proteção social ex post.
“On paper, an individual negative income tax and a basic income can
yield exactly the same distribution of post-tax-and-transfer incomes.
In particular, in both cases, taxation can be – and usually is –
designed in such a way that net income rises as gross income rises at
all levels of income – that is, in such a way that the poverty trap is in
principal abolished. In both cases, however, it could be also designed
in such a way that net income would not rise as gross income
increases below some threshold level – that is, in such a way that the
negative income tax rate or the ‘clawback rate’ on the lowest
earnings is 100 per cent.
This potential identity […] exists only on paper, however, because in
the real world it does make a tremendous difference whether the
minimum income guarantee is given to all ex-ante, no questions
asked – as it is under a basic income scheme or whether it is given
only to those who turn out to have had, or provide adequate evidence
that they now have, an insufficient income” (Van Parijs, 1992:4-5
apud Marques, 1997:120).
Dessa forma, o imposto de renda negativo visa tornar socialmente
tolerável a exclusão do mercado de trabalho, assim como servir de base
90
para uma nova concepção de proteção social, fundada no indivíduo e no
mercado. Nesse sentido, não pode ser considerado similar a outras
propostas que buscam “encontrar alternativas ou adaptações para os
sistemas de proteção social, por acreditarem que suas bases de sustentação
foram definitivamente solapadas” (idem:122).
Entre essas propostas, destacam-se aquelas formuladas por autores
representantes de correntes político-ideológicas opostas à de Friedman,
como Guy Aznar e André Gorz, que defendem uma renda garantida de
inspiração distributivista para todos os cidadãos, combinada à redução da
jornada de trabalho. Com isso, pretendem racionalizar a distribuição de
renda e combater a pobreza relativa mediante a concessão de um benefício
monetário com vistas à constituição de uma sociedade de tempo livre, na
qual também o trabalho seja redistribuído entre todos os cidadãos. Aznar e
Gorz defendem que a renda garantida deve ser destinada não aos pobres,
mas aos trabalhadores em geral, como uma compensação pela redução de
sua jornada de trabalho, de forma a impedir a legitimação de uma
sociedade dual.
Assim, ambos os autores percebem o trabalho como pilar da
cidadania, sugerindo a redução de sua jornada como solução para o
problema do desemprego, sem prejuízo da renda auferida pelos
trabalhadores. Daí a razão da sua proposta de renda complementar ao
salário. O objetivo desta, na visão deles, é incluir todos no mercado de
trabalho com jornada reduzida e melhores condições de trabalho,
construindo, assim, uma sociedade de tempo livre em que os trabalhadores
possam se dedicar a outras atividades, de naturezas diversas.
Guy Aznar trata, especificamente, da possibilidade de redistribuir o
estoque de postos de trabalho por meio da fórmula “trabalhar menos para
trabalharem todos”, socializando o potencial de tempo livre gerado pelas
novas tecnologias.
“Comme il nést pas possible de percevoir lê même salaire en
travaillant moins, chacun touche um complemént de salaire, une
91
‘indemnité de partage du travail’, que j’appelle également ‘2 chèque’,
dont je rappelle le principe: lorsque le temps de travail diminue, le
salaire direct diminue (pás de problème pour l’entreprise) mais le
salaire reçoit une compensation, suivant dês modalités diverses. Je
pense que le 2 chèque nést pás une astuce, um gadget, une recette
provisoire et anecdotique, mais je considere que c’est um concept
économique fondamental qui s’énonce comme um thèoreme: ‘dans la
mesure où lês richesses ne sont plus constitué exclusivement par lê
salaire mais par um mécanisme redistributif dês richesses produites
sans travail’” (Aznar, 1994:67 apud Marques, 1997:136).
Dessa forma, Aznar (1995) sugere o benefício de um “segundo
cheque”, de cunho redistributivo, de modo a permitir a inserção de todos no
mercado de trabalho. Na sua proposta, os indivíduos teriam duas rendas,
uma pelo trabalho e outra pela partilha da riqueza coletiva e, nas horas
livres, teriam a “oportunidade de dedicar tempo à vida comunitária, de
inventar novas modalidades de democracia participativa, de se envolver na
vida política” (idem).
Ainda segundo Aznar, a redução da jornada de trabalho criará
emprego apenas se for franca e maciça, uma vez que as empresas somente
aceitarão a redução das horas de trabalho se não tiveram aumento nos
custos de produção, e os assalariados só a aceitarão se não houver queda
nos rendimentos do trabalho. Há três condições que o autor considera
necessárias e suficientes, e que devem ser preenchidas conjuntamente,
para se chegar ao seu ideal: i) as máquinas (o capital imobilizado) devem
render mais, desenvolvendo o trabalho em equipe; ii) a compensação
salarial deve ser assegurada em parte pela empresa, em parte por uma
receita financiada externamente à empresa (o que ele chama de “segundo
cheque”, que envolve a participação do Estado); iii) este processo deve ser
operacionalizado de forma conjunta em função de um acordo envolvendo
representantes sindicais e patronais28.
28 A proposta central de Aznar consiste em afirmar que: (a) sempre que uma empresa aumenta significativamente o tempo de utilização de seus equipamentos; (b) diminui também expressivamente a duração do trabalho (35 horas ou menos em seu estudo); (c) contratando uma segunda equipe; (d)
92
Já para André Gorz o momento atual - de crescentes taxas de
desemprego - não é de uma crise de curta, média ou longa duração; trata-
se, na verdade, de um novo sistema que se instaura e que abolirá
massivamente o trabalho, tal como concebido e valorado. Fazendo uma
distinção entre um tipo de trabalho que aliena (o atual) e outro que liberta,
o autor afirma que é necessário sair dessa sociedade do trabalho para
reencontrar o gosto e a possibilidade do trabalho “verdadeiro”, pois o
'trabalho' que o capitalismo na sua última fase abole massivamente é uma
construção social; e por isso pode ser abolido.
Gorz defende também que o conceito de trabalho, tal como
operacionalizado, é uma invenção da modernidade. Segundo ele, a
característica essencial do trabalho é ser uma atividade que se dá na esfera
pública definida e reconhecida como útil por outros e, nesse sentido,
remunerada por eles, reduzida ao emprego. Assim, no atual contexto o
trabalho cumpre uma função socialmente identificada na produção e
reprodução do todo social, transformando-se em um fator fundamental de
integração social e de identidade. O trabalho, na percepção do autor, define
se as pessoas são cidadãs, se têm direitos. No entanto, conforme Gorz, por
ironia da história, o século XX – o século do trabalho – terminou com uma
profunda crise nos postos de trabalho, o que resulta em uma sociedade
fragmentada, onde o próprio conceito de trabalho deverá ser revisto.
Seguindo seu raciocínio, Gorz afirma que trabalhar não é apenas a
produção alienada de riquezas, mas também uma maneira de se produzir, o
que traduz a dimensão antropológica do trabalho como elemento
constitutivo da condição humana. Nesse caso, se este deixa de ser um fator
de socialização, como acontece na atualidade, permanece como fator de
integração social. Quanto à crise do conceito de trabalho assalariado,
pagando uma compensação salarial de 50%; (e) com o Estado completando esta compensação de modo a manter o rendimento integral. A participação do Estado é justificada pela diminuição do orçamento desemprego. E isto traz múltiplas conseqüências: diminuindo a carga de compensação pela empresa, estende-se consideravelmente o campo das empresas dispostas a fazer a compensação; com uma compensação total por um tempo de trabalho reduzido, supõe-se que nascerá dentro das empresas uma pressão para desenvolver o processo. Nesse caso, ele pressupõe uma semana de quatro dias com duas equipes, com a duração de 34, 33 ou 32 horas, sem perda de rendimentos, de maneira realista, na medida dos ganhos de produtividade.
93
segundo o autor, ela é demonstrativa de que o formato que este assumiu é
uma construção sócio-histórica da modernidade industrial e não uma
categoria antropológica, pois durante milênios a humanidade viveu sem
trabalho assalariado. O desafio contemporâneo, enfatiza, é superar a
“sociedade salarial” por meio da reinvenção do trabalho, o que implica
repensar e ampliar o direito do trabalho, como uma dimensão fundamental
da cidadania.
André Gorz apresenta seu pensamento de forma sintética: privilegiar
a liberação do trabalho abandonando a liberação no trabalho. Para ele, a
transformação do trabalho deve ser no sentido de conquistar uma sociedade
de tempo livre, colocando a automatização a serviço da expansão das
atividades, sem necessidades nem fins econômicos, em substituição do
tempo de trabalho (Gorz, 2001 apud Gómez, 2002).
“Nem a re-apropriação do tempo nem a do trabalho se desenvolverão
espontaneamente a menos que se vinculem a um projeto coletivo,
político e se expressem na transformação e re-apropriação de um
território ou de um espaço urbano, na proliferação de lugares dotados
94
de equipamentos avançados tecnicamente para a auto-atividade, o
auto-aprendizado, a auto-produção cooperativa de produtos
imateriais e materiais, a auto-organização de redes de intercâmbio,
etc., em resumo, através do desenvolvimento de uma ‘economia
popular’ que ilustre as formas possíveis que pode tomar a alternativa
do sistema salarial, às relações mercantis, à economia e às empresas
capitalistas” (idem).
Nesse sentido, calcadas em um projeto muito mais ambicioso de
sociedade futura, as propostas de Guy Aznar e André Gorz opõem-se
drasticamente àquela de inspiração neoliberal representada por Friedman,
devido ao fundamento redistributivo das primeiras no que diz respeito à
renda, ao trabalho e ao tempo livre. Por outro lado, percebe-se a
permanência subjacente a essas propostas da vinculação entre trabalho e
cidadania.
De fato, para Gorz é inaceitável que o trabalho, que aliena o
trabalhador, se perpetue como norma, obrigação e fundamento dos direitos
e da dignidade de todos. Propõe que este retorne ao que, em determinado
momento da relação do homem com a natureza, já representou: o
desenvolvimento das forças criadoras. Ao voltar a experimentar o trabalho
como uma realização íntima, a classe trabalhadora, segundo o autor, se
abriria a novos laços de solidariedade, buscando soluções coletivas para
problemas coletivos; haveria um alargamento do espaço público e poderia
surgir uma nova civilização, uma sociedade e uma economia diferentes,
colocando fim ao poder do capital sobre o trabalho. Para tanto, Gorz apóia a
idéia de garantir para
“[...] todo cidadão uma renda de existência suficiente que
asseguraria a passagem de uma sociedade de pleno emprego para
uma sociedade de plena atividade, no seio da qual as atividades que
criam sentido, convivência, vínculos sociais e que contribuem ao
enriquecimento, ao desabrochar da vida, ver-se-iam reconhecidas de
importância e de dignidade social. Este deveria ser o modo de
integração privilegiado numa sociedade” (ibidem).
95
Em Metamorfose do Trabalho, André Gorz questiona se é mesmo
necessário dissociar o direito à renda do direito ao trabalho. Ele sustenta a
tese de que cada cidadão tem o direito a uma vida normal, mas também
deve ter o direito e o dever de fornecer à sociedade o equivalente-trabalho
daquilo que consome. Sendo assim, na sua percepção, o mínimo garantido
funciona como o salário da marginalidade, da exclusão. No entanto, revê
esta posição nos seus trabalhos posteriores. De fato, no seu último livro,
Misères du Présent, Richesse du Possible, publicado em 1997, muda
radicalmente de opinião, passando a defender a renda básica universal e
incondicional suficiente (da ordem de 650 a 800 euros por mês e por
pessoa, sem suprimir a segurança social), considerando a dificuldade de se
alcançar o pleno emprego, por meio da diminuição do tempo de trabalho
(Coutrot & Husson, 2004).
Finalmente vale considerar a posição de Rosanvallon, que igualmente
acredita na importância do trabalho como instrumento de coesão social.
“Em um contexto de desemprego crescente e intensa diferenciação
das trajetórias sociais, a perspectiva de intervenção do Estado
através da distribuição mecânica de benefícios aos portadores de
‘direito’ ou, ainda, de indenização nos casos de ‘disfunções
passageiras’ [...] perde eficácia. Desta forma, uma nova visão da
proteção social, [...] ligada a uma versão ampliada do modo de
produção da solidariedade social, constitui-se a saída para enfrentar
os problemas sociais contemporâneos” (Rosanvallon, 1995:60 apud
Magalhães, 2001:11).
II.3 A renda básica ou a renda básica de cidadania
Dêem a todos os cidadãos uma renda modesta, porém incondicional, e deixem-nos completá-la à vontade com renda proveniente de outras fontes.
Philippe Van Parijs
Segundo Van Parijs,
96
“[...] esta idéia extremamente simples, tem uma origem
surpreendentemente variada. Ao longo dos dois últimos séculos, ela
tem sido concebida de maneira independente sob uma variedade de
nomes - ‘dividendo territorial’ e ‘bônus estatal’, por exemplo,
‘demogrant’ e ‘salário do cidadão’, ‘benefício universal’ e ‘renda
básica’ -, na maioria dos casos sem muito sucesso. Porém, nas duas
últimas décadas, ela aos poucos se tornou o assunto de uma
discussão pública nunca vista e que se expande rapidamente”
(2000:1).
Muito da explicação para a disseminação dessa idéia está no enorme
fosso que cada vez mais tem separado ricos e pobres nas sociedades
ocidentais, colocando a discussão acerca da pobreza e da desigualdade na
ordem do dia, juntamente com reflexões de natureza moral e ética. Tal
idéia tem sido exposta, ainda, em contraposição às propostas neoliberais
que só fizeram aprofundar a crise social que assola a maioria dessas
sociedades, as quais estão revendo seus sistemas de proteção social e
arranjos institucionais vis-à-vis os desafios colocados pela globalização e
pelas mudanças no setor produtivo.29
A idéia da renda básica ou renda de cidadania, como aqui está sendo
chamada, é que esta seja transferida por uma comunidade política a todos
os seus membros, de forma individual e incondicional, em espécie, em
intervalos regulares, não envolvendo nenhuma restrição quanto à natureza
ou ao ritmo do consumo ou investimento que ajuda a financiar. A
expectativa é que complemente, em vez de substituir, as demais
transferências do poder público, na forma de bens e serviços universais,
como ensino gratuito e seguro de saúde básico (Van Parijs, 2000:2-4).
29 Conforme ressalta Cohn (2004), vários estudiosos da questão da pobreza vêm demonstrando que a universalização das políticas de transferência de renda em bases territoriais apresenta um potencial redistributivo muito maior do que aquelas focalizadas em grupos de renda que tem a ver com o receituário neoliberal. Ver a respeito Boltivinik, J. e Laos, E. H. (2001) Pobreza y Distribuición del Ingreso em México, Siglo Veintiuno Editores, México.
97
Tal renda pode ser financiada de forma específica e vinculada, mas se
não o for, deverá ser financiada, juntamente com todos os demais gastos
governamentais, a partir de um conjunto de receitas de diversas fontes. A
tributação redistributiva, entretanto, não precisa ser a única fonte de
financiamento. Pode-se fazer uso, por exemplo, de um sistema de
dividendos, como no caso do Estado do Alasca, que conta com a única
experiência no mundo de implementação dessa idéia (da renda de
cidadania) na forma de uma política pública (Van Parijs, 2000:5-6).
Comparada com programas de renda mínima, já implantados, um
aspecto diferenciado da renda básica de cidadania é o fato de que ela é
transferida de forma equânime a todos, sem levar em consideração o nível
de renda dos beneficiários.
“De acordo com a variante mais simples dos sistemas existentes,
especifica-se um nível mínimo de renda para cada tipo de família [o
que fica a critério de cada comunidade política], calcula-se a renda
total [desta] proveniente de outras fontes e a diferença entre esta
renda e o mínimo estipulado é paga a cada família na forma de um
benefício em dinheiro. Nesse sentido, os sistemas existentes operam
ex post, com base em uma avaliação prévia, provisional, da renda do
beneficiário. Um sistema de renda básica, ao contrário, opera ex
ante, independentemente de qualquer verificação de renda” (Van
Parijs, 2000: 5).
Pelas suas características e finalidades, a renda básica, em seus
diferentes matizes, tem sido defendida por importantes autores, além de
Philippe Van Parijs, como Guy Standing, Claus Offe, André Gorz, Rubén Lo
Vuolo, Chantal Euzéby, Eduardo Suplicy, que a percebem como uma política
potente do ponto de vista redistributivo, além de inovadora e
emancipatória, já que, no entendimento de vários deles, está pautada nos
princípios da justiça social, da dignidade humana e da liberdade, tal como
formulados por John Rawls em Uma Teoria da Justiça (1971) e por Amartya
98
Sen no conjunto da sua obra, particularmente em Desenvolvimento como
Liberdade (2000)30.
Philippe Van Parijs, um dos fundadores da Basic Income European
Network (BIEN) ou Rede Européia da Renda Básica, tem sido um dos
maiores defensores da idéia31. Em seus livros – O que É uma Sociedade
Justa?; Real Freedom for all; What (if anything) can justify capitalism;
Arguing for basic income; Ethical fundations for a radical reform -
argumenta que essa é a maneira de assegurar a todos os cidadãos(ãs) de
uma determinada comunidade política o direito de partilhar a riqueza e,
mais que isso, assegurar-lhes maior grau de liberdade e justiça, de acordo
com os princípios de justiça formulados por Rawls (Suplicy, 1999:3).
Nesse sentido, Van Parijs considera a redistribuição de recursos como
condição imprescindível para uma sociedade se tornar mais justa e
solidária, sobretudo em função de estes serem escassos e de esta sociedade
não contar com princípios altruístas que orientem o comportamento de seus
membros (Lavinas, 1999).
Quanto a Rubén Lo Vuolo (2002) propõe que as instituições públicas
estejam orientadas por um “universalismo seletivo”. Segundo ele, a
seletividade se faz necessária para a identificação de grupos com
características diferentes e não para limitar o gasto público. O autor postula
que um sistema alternativo de políticas sociais deveria estar baseado em
três pilares universais: i) renda garantida para toda a população; ii) saúde;
iii) educação. De forma complementar estariam situados os programas
seletivos, voltados para questões excepcionais. Conforme ele, “si algo
distingue a esta propuesta de política es cierta forma de “incondicionalidad”
y un alto grado de universalidad en el acceso a la prestación en dinero,
30 A idéia do direito a uma renda básica independente do trabalho foi proposta no fim do século XVIII por Thomas Paine (1796), o qual considerava que a apropriação da terra por alguns justificava a concessão aos outros de meios de subsistência. Desde então essa idéia foi retomada principalmente por Jacques Duboin, nos anos 30, na França, e pelo Círculo Charles Fourier, no início dos anos 80, na Bélgica. Hoje é defendida pela corrente dos "distributivistas", pela Associação pela Instauração da Renda de Existência, filiada à rede européia do Basic Income European Network (BIEN), bem como por partidos políticos, acadêmicos, grupos e indivíduos em diversos países. 31 Em 2004, em Barcelona, decidiu-se pela transformação da Rede Européia da Renda Básica em Rede da Renda Básica na Terra, por ocasião do X Congresso Internacional da BIEN.
99
como garantía de cobertura preventiva de la aparición de carencias
irreparables” (2002:50).
De acordo com Lo Vuolo (1998), em sua versão mais extrema, a
renda de cidadania independe das seguintes condições: a) trabalho
(desempenho atual, desejo de trabalhar, desempenho passado); b) renda
de outras fontes (não há necessidade de comprovar insuficiência de renda
por parte do indivíduo e este pode aceitar trabalhar em qualquer atividade
que aumente o nível total de renda sobre o da renda de cidadania, evitando
a armadilha da pobreza); c) necessidades (arranjo familiar, idade,
incapacidade física); d) outras características pessoais (sexo, raça,
cidadania). A partir deste esquema universal, segundo ele, podem ser
discutidas variações parciais que correspondem por situações particulares à
cada realidade social.
Já segundo Van Parijs, enquanto refletia sobre o problema da política
econômica e social no hemisfério Norte e sobre o problema da construção
de um projeto de sociedade que contemplasse os ideais da esquerda -
capaz de entender os mecanismos da economia e as lições da história -, há
vinte anos atrás, ele se sentiu duplamente inspirado a pensar na renda de
cidadania. Quanto à primeira inspiração, relacionada com o primeiro
problema, tinha a ver com a resposta a questões por ele formuladas, tais
como:
“Como lutar contra o desemprego nos países ricos, sem contar com
um crescimento econômico muito acelerado? [...] Por que não pensar
numa desconexão parcial, mas sistemática entre a contribuição para
o crescimento e o benefício que deriva do mesmo, de tal modo que as
pessoas que trabalham escolham entre reduzir o seu tempo de
trabalho ou interrompê-lo, enquanto que outras pessoas que estão
desempregadas ou trabalham como voluntárias possam ocupar os
postos de trabalho liberados por uma parte dos trabalhadores?” (Van
Parijs, 2002:75)
100
A resposta a tais questões, segundo o autor, seria a instituição de um
dividendo social, uma renda distribuída de maneira incondicional a todos os
membros da sociedade, percebida como um “método brando” de redistribuir
o emprego disponível e aumentar a liberdade dos indivíduos.
Quanto à segunda inspiração, associada com o segundo problema,
tinha igualmente a ver com a resposta a questões formuladas pelo autor,
quais sejam:
“Como se pode formular um projeto mobilizador para a esquerda
preservando os grandes ideais de emancipação e justiça social que
motivaram desde seu início os movimentos socialistas e as esquerdas
do mundo? Por que não imaginar uma transição para o socialismo
dentro do capitalismo? Ou seja, [...] como concretizar esta
expectativa de usar o capitalismo como instrumento para realizar o
comunismo, no sentido estrito de seu ideal de distribuição segundo as
necessidades e de liberar as pessoas da obrigação de trabalhar, de
realizar um trabalho alienado? Principalmente com uma renda básica
incondicional, em parte sob a forma de serviços educativos ou de
saúde gratuitos. Outra parte desta renda incondicional poderia ser
dada em espécie. Mas também poderia tomar a forma de uma renda
monetária concedida a todos incondicionalmente, e ser completada
com os diversos tipos de rendimentos que existem na sociedade de
mercado” (Van Parijs, 2002:77-78).
Conforme este autor, a proposta de renda de cidadania é muito
diferente, muito mais radical do que a do Estado de Bem-Estar, uma vez
que neste Estado as transferências se concentram nas pessoas excluídas do
mercado, o que implica a estigmatização das mesmas. Van Parijs acredita
também que um sistema de transferências de tipo tradicional contribui para
a exclusão, porque a saída da situação de exclusão implica a perda do
benefício o que, a seu ver, cria uma armadilha, na qual muitas pessoas sem
qualificação profissional permanecem presas. Em contraste, uma renda
universal não cria estigmas nem armadilhas pelo fato de ser um direito
comum que não se perde quando se insere no mercado, “porque esta renda
101
básica é uma base, não uma rede de seguridade” (Van Parijs, 2002:79).
Enfim, como postula André Gorz, esse abono universal seria a melhor
alavanca para redistribuir, o mais amplamente possível, tanto o trabalho
remunerado, quanto as atividades não-remuneradas.
Claus Offe afirma que as propostas de renda básica enfatizam os
valores da seguridade e da autonomia, e concebem a possibilidade de
reconciliar o alegado antagonismo que prevalece entre ambos, apoiando-se
na idéia de cidadania. Identifica igualmente as diferenças entre o direito a
uma renda básica, levando em conta a noção de cidadania, e outras opções
de transferências monetárias diretas, baseadas em critérios diversos.
Dentre estas diferenças, destaca:
“a) la base del derecho a recibir transferencias y servicios es la
ciudadanía y no la clase, el status ocupacional, los ingresos, o el
empleo;
b) la justificación moral de las demandas de beneficios, para cuyo
acceso no se adosan precondiciones de comportamiento, no la
constituye el ingreso pagado sino las ‘actividades útiles, incluyendo
actividades realizadas fuera del mercado de trabajo y que, por lo
tanto, escapan a las mediciones formales y a la contabilidad;
c) el criterio de justicia no es la protección del status (relativo) ni el
premio a un determinado mérito, sino la cobertura de necesidades
básicas;
d) el valor clave no es la seguridad (absoluta), sino un nivel
sustentable de riesgo y el mantenimiento de opciones autónomas con
respecto a la conducta responsable de los ciudadanos sobre sus
vidas” (Offe, 1996:97).
Segundo Fonseca, na construção do argumento de Van Parijs
favorável à renda básica (ou renda de cidadania), “o autor procura
estabelecer uma correspondência entre os temas seguro, solidariedade e
equidade e três modelos ideais do Estado de Bem-Estar Social. Cada um
dos temas designaria o fundamento ético de um dos modelos:
bismarckiano, beveridgiano e painiano, respectivamente” (2001:107).
102
“En el modelo que llamo ‘bismarckiano’ (bismarckien), los
trabajadores renuncían, obligatoriamente, a una parte de sus
remuneraciones presentes, para construir un fondo que se utilizará
para cubrir – cuando tengan necesidad - los gastos de la atención de
su salud [...]. Por su parte, en el modelo que llamo ‘beveridgiano’
(beveridgéen), todos los titulares de ingresos primarios (del trabajo o
del capital) renuncían, obligatoriamente, a una parte de sus ingresos
para constituir un fondo que suministrará a todos los miembros de la
sociedad un nivel mínimo de recursos [...]. Finalmente, en el modelo
que llamo ‘paineano’ (painéen), todos los titulares de ingresos
renuncían, obligatoriamente, a una parte de ellos, para constituir un
fondo que sirva para pagar incondicionalmente un ingreso uniforme a
todos los miembros de la sociedad” (Van Parijs, 1994:56).
Van Parijs chama a atenção para a analogia que existe entre os
nomes que atribuiu a esses diferentes modelos e suas características
peculiares: o bismarckiano, conservador, tem a ver com o sistema de
seguros sociais, o qual foi implantado por Bismarck na Prússia, e tende a
limitar a cobertura do benefício à população assalariada, sendo financiado
principalmente por impostos sobre o salário e outorgando benefícios
vinculados com o nível de impostos pagos (princípio do seguro); o
beveridgiano, liberal, está relacionado com o sistema de seguridade social,
implantado na Grã-Bretanha depois da Segunda Guerra Mundial como
conseqüência de um estudo coordenado por Lorde Beveridge, no qual se
pretende dar cobertura a toda a população contra as contingências sociais,
independentemente de sua capacidade de contribuição ao sistema (princípio
da solidariedade); já o painiano, eqüitativo, tem a ver com o livro de
Thomas Paine, A Justiça Agrária, e diz respeito ao abono universal (ou
renda de cidadania), o qual, nas palavras do autor:
“[...] tiene en común con el segundo modelo (beveridgeano) el no
exigir del beneficiario transferencias que haya (suficientemente)
cotizado, pero que difiere radicalmente tanto del primero
(bismarckiano) como del segundo, en que no restringe las
103
transferencias a los que están necesitados y no llegan a arreglarse
por sus propios medios” (idem:69).
Daí a proposta dos defensores da renda de cidadania para que se
façam arranjos institucionais que garantam o maior grau possível de
igualdade de oportunidades para todos os cidadãos de uma determinada
comunidade política. Segundo estes, uma sociedade que é ex ante justa
oferece oportunidades iguais a seus membros e respeita as liberdades
individuais. A renda de cidadania atenderia a esse propósito, pois, se o
arranjo institucional básico (a Constituição, as instituições fundamentais
dessa sociedade) satisfaz as exigências da justiça, quaisquer resultados,
estado de coisas e perfis distributivos que sob ele se produzam deverão
também ser considerados justos, seguindo a teoria da justiça como
eqüidade formulada por John Rawls.
Vale considerar, finalmente, a observação de Lo Vuolo de que a
garantia de acesso a uma renda dessa natureza é chave para a construção
de um novo consenso social. Segundo este autor, não se trata de resolver a
complexidade dos problemas da ordem social mediante uma política, mas,
sim, de discutir princípios de organização alternativos que dêem conta
dessa complexidade. Para Lo Vuolo “la política específica puede desecharse
por causas operativas. Pero la complejidad de las formas en que presenta la
cuestión social en nuestro tiempos seguirá reclamando la necesidad de
reflexionar por fuera del pensamiento hoy hegemónico que, lejos de ofrecer
soluciones, ya se ha incorporado como un elemento sustancial y distintivo
de propio problema” (1998:15).
Finalmente vale observar que Van Parijs afirma que a renda básica
universal, tal como a concebe, tende a beneficiar os pobres por três razões,
quais sejam: i) a probabilidade de estes receberem o benefício é maior se
não houver uma verificação da situação financeira, por conta de problemas
de focalização; ii) esta elimina o estigma associado à assistência social que
leva estes a se sentirem constrangidos ao pedir determinados benefícios;
iii) a mesma não é removida quando estes aceitam um emprego removendo
a ‘armadilha do desemprego’. Essa especificidade da renda básica provê aos
104
pobres maior poder de barganha, visto que os torna mais livres para aceitar
o trabalho que julgarem digno, além de contribuir para sua emancipação.
Outra vantagem dessa proposta é a redução dos custos administrativos
(Peixoto Ramos, 2003:22).
II.3.1 Propostas concretas
Na atualidade, uma política de transferência de renda universal e
incondicional somente existe implantada no Estado do Alasca, nos Estados
Unidos32 tendo em vista as controvérsias que existem com relação a esta
relacionadas com a ‘ética do trabalho’, o aumento do gasto público, entre
outras. Ainda assim as discussões acerca da importância e viabilidade de tal
implantação têm sido bastante acirradas. Todavia, apesar de a União
Européia fortemente recomendar a adoção de políticas de transferência
direta de renda em todos os seus países-membros, nenhum país europeu
acolheu o princípio da renda básica universal incondicional. Já o Brasil
aprovou em lei esse princípio, a ser implementado gradativamente, na
forma de uma política universal, a partir de 2005, o que, para Lavinas, se
constitui em um verdadeiro paradoxo. Conforme afirma:
“O paradoxo consiste justamente no fato de não existir hoje no Brasil
nenhuma política universal que garanta a todos os indivíduos, em
algum momento do ciclo de vida, os mesmos direitos de cidadania,
provendo a todos os mesmos serviços ou equivalente monetário. Já
na União Européia, o paradigma universalista da welfare society
continua prevalecendo, a despeito das pressões por mais focalização
e responsabilização individual. Os programas de transferência direta
de renda no Brasil mesclam propostas contraditórias, nem sempre
complementares. Têm perfil residual, e fazem do combate à pobreza
e da promoção da inclusão, meta de curto prazo, dissociada de uma
32 Segundo Suplicy, o importante a notar acerca dessa experiência é que o fato de o Alasca estar distribuindo, há mais de duas décadas, 6% do seu PIB para todos os seus residentes, tornou este estado aquele de maior igualdade de renda dentre todos dos EUA, o que fez crescer a renda das suas 20% famílias mais pobres, nos últimos dez anos, em 28%, ao passo que a renda das 20% mais ricas cresceu apenas 7%. Em contrapartida, para todos os EUA, o crescimento da renda das famílias 20% mais pobres, nesse mesmo período, foi de 12%, enquanto das famílias 20% mais ricas foi de 26%. Daí o potencial redistributivo de uma política de transferência de renda da natureza proposta (2002).
105
política de garantia de renda efetiva, de efeito anti-cíclico e
redistributivo, elemento constitutivo, porém nem de longe exclusivo,
de um sistema de proteção social universal” (Lavinas, 2004:1).
De todo modo, não só no Brasil como na Europa existe um forte
apoio a essa idéia, principalmente nos partidos verdes na Alemanha, na
Holanda e, mais recentemente, na Espanha, onde os militantes das
províncias de Castela e De Leon redigiram uma proposta de lei contra a
exclusão social, incorporando uma “renda-cidadania”. Na Irlanda, a
Comissão para a Justiça, da Conferência Episcopal, também difundiu um
documento, Surfing the Income Net, propondo uma renda básica sem
precondições, de caráter universal (Euzéby, 2002).
Na Universidade de Barcelona, onde Daniel Raventós fundou a Red
Renta Básica, desenvolveu-se um movimento importante para instituir um
sistema dessa natureza na Catalunha. Redes semelhantes existem hoje em
dia nos EUA, Dinamarca, Holanda, Bélgica, França, Reino Unido, Irlanda,
Canadá, Austrália, Alemanha, entre outros países.
Um movimento importante, nesse sentido, também se faz presente
atualmente na África do Sul, que inclui a Confederação Sindical e a Igreja
Católica, reivindicando a introdução de uma renda de cidadania no país.
Pretende-se que esta contribua para a eqüidade e promova a estabilidade
da família e da comunidade, possibilitando às pessoas o atendimento de
necessidades vitais e uma maior dignidade. Propõe-se uma cobertura
universal, desde o nascimento até a morte, sem que seja necessária a
comprovação de rendimentos.
No entanto, as restrições para a execução de políticas dessa natureza
são diversas, destacando-se, particularmente, aquelas de cunho moral,
ideológico e financeiro, conforme salientado.
“Um conjunto de artigos escritos em 2002 por acadêmicos acerca da
probabilidade de ser adotada a renda básica ou renda de cidadania
em alguns países europeus revela restrições importantes e de várias
106
ordens a esse princípio de justiça social, muito embora trate-se, na
sua maioria, de países onde domina a tradição universalista do
Estado do Bem-Estar, e onde os programas means-test focalizados
têm peso marginal [...]. Tampouco a experiência consolidada dos
últimos vinte anos com programas de garantia de renda mínima [...]
parece ser suficiente para garantir a transição quase obrigatória na
direção de uma renda universal incondicional” (Lavinas, 2004:6-7).
Segundo Van Parijs, a Holanda é um exemplo concreto do acima
exposto. Este país já dispõe de sistemas universais de benefícios infantis,
bolsas de estudo e pensões básicas não-contributivas, além de um dos
sistemas de renda mínima - condicionada à verificação da situação
financeira dos beneficiários - mais generosos e abrangentes do mundo; em
2000, o governo aprovou a implantação de um crédito de imposto individual
e restituível para todas as famílias com pelo menos um trabalhador, o qual,
aumentado gradualmente e tornado individualmente reembolsável,
forneceria o último elemento que faltava para o pagamento de uma renda
básica universal. No entanto, isto implicaria o reconhecimento formal por
parte do governo holandês de que existe o direito a um rendimento que não
está vinculado ao trabalho, o que não é bem visto por diversos setores da
sociedade. (Van Parijs, 2000:15).
Vanderbroght (2002) considera pouco provável a adoção da renda
básica na Holanda, apesar de reconhecer que o assunto integra a pauta da
agenda social deste país há mais de vinte e cinco anos. O autor identifica
algumas barreiras à implantação da renda universal incondicional na
Holanda, e também na Bélgica, onde o debate está igualmente avançado,
sendo o maior desses obstáculos aquele de ordem moral, ideológica,
relacionado com “a recusa das sociedades em romper com a ética do
trabalho e dissociar renda e atividade econômica”. Segundo ele “a objeção
moral à renda básica tem origem em uma visão amplamente compartilhada
de justiça, que estabelece que todo indivíduo apto ao trabalho deve
trabalhar para assumir suas necessidades básicas”. Vanderbroght, todavia,
reconhece que os aspectos fiscais e financeiros não são os elementos
centrais na contra-argumentação, já que, do ponto de vista das contas
107
públicas, haveria como financiar tal direito (Vanderbroght, 2002:30 apud
Lavinas, 2004:7).
Serge Paugam (2002) também descarta a possibilidade de ser
adotada a renda incondicional na França, no contexto atual de recuperação
econômica e prioridade à redução do desemprego - apesar dos quinze anos
de bons resultados do Programa de Renda Mínima de Inserção – RMI
(Revenu Minimum d’Insertion), aprovado por lei nesse país em dezembro de
1988, condicionado ao reconhecimento da existência de uma nova questão
social, à proposta de construção de uma nova cidadania social, à redefinição
do papel do Estado, que deveria estar mais ativo e com maior poder de
coordenação33. Todavia – pondera o autor - o par assistência-inserção, que
fazia sentido no momento da criação do RMI, não o faz mais em um
contexto em que a oferta de empregos está muito limitada e outras
alternativas não relacionadas com a inserção devem ser buscadas. De todo
modo isto explica o porquê do RMI ter sido revisto nos últimos anos para se
adaptar à sociedade “pós-industrial” (Euzéby, 2002).
Nesse contexto, Alain Caillé (1997) tem proposto uma segunda RMI
na França, sem contrato de inserção, automaticamente concedida às
pessoas que não disponham do equivalente a meio salário mínimo e
compatível plenamente com outras fontes de renda, todas elas submetidas
a uma definição sobre a renda total.
Lavinas cita o exemplo da Irlanda, onde o sistema de proteção social
prevê uma renda universal para crianças e idosos acima de 65 anos, além
da garantia de renda para desempregados e outros grupos desfavorecidos.
Segundo a autora, Healey e Reynolds (2002) reproduzem a polarização que
surgiu nesse país “entre a renda básica e o sistema convencional de tributos
e impostos e a política de proteção social, num trade-off entre mais
eqüidade com risco de reduzir o crescimento econômico ou menos eqüidade
33 A inserção, como finalidade, nos termos do artigo 30 da lei que instituiu o RMI na França, apresenta três formas: inserção social (pretende encontrar uma autonomia social); inserção profissional (estágio de formação do desenvolvimento); inserção econômica (atividades de interesse geral no setor público ou associativo), estabelecida por meio de um contrato.
108
com mais chances de assegurar índices elevados de crescimento
econômico”, em função da qual, em 2001, “a escolha feita privilegiou o
modelo do imposto de renda negativo” (Lavinas, 2004:8). Assim, conclui a
autora
“[...] nos países onde haveria condições para a ampliação do quadro
de direitos derivados de princípios de justiça social, cujo efeito seria
aprimorar os sistemas de proteção social, reduzindo vulnerabilidades
e a insegurança sócio-econômica, graças à garantia de uma renda
universal para todos, parece difícil, pelo menos na presente
conjuntura, construir um consenso na sociedade e criar uma coalizão
político-partidária capaz de instaurar o direito a uma renda básica
universal. A regra continua sendo assegurar programas de garantia
de renda mínima – renda de subsistência na Alemanha, reddito
minimo de inserimento na Itália, rendimento mínimo garantido em
Portugal, entre outros - voltados para a manutenção de um padrão
básico de acesso à economia de mercado por parte daqueles grupos
mais vulneráveis e em situação de risco, que necessitam de uma rede
de proteção suplementar, tais como as famílias ou indivíduos vivendo
persistentemente em situação de pobreza, os desempregados de
longo prazo, etc.” (Lavinas, 2004:8).
Rubén Lo Vuolo e Alberto Barbeito vêm propondo desde os anos 90
para a Argentina uma renda de cidadania para todas as crianças e jovens
até 16 anos, cuja racionalidade está no fato de que, proporcionalmente, o
número de pobres é maior nessa faixa etária da população desse país.
Segundo os autores, à medida que fossem efetivadas as mudanças fiscais
necessárias para o funcionamento desse esquema e se consolidasse sua
expansão, o benefício poderia ser estendido a pessoas maiores de idade,
até chegar-se à sua universalização. Para tanto
“[...] o primero es garantizar una jubilación “ciudadana”, uniforme
para toda la población. No se trata de un pilar asistencial para
aquellos que no tienen acceso a la jubilación y que deben “probar” su
situación de pobreza. Es una garantía universal, preventiva, igual
109
para todos e independiente de la situación laboral de las personas a
lo largo de su vida y de los niveles de aporte individual” (2002:51).34
Alinhadas com essa estratégia são identificadas propostas discutidas
na Argentina, como o “Projeto de Renda de Cidadania para a
Infância”, que postula a adoção de uma renda incondicional a todos
os menores de 18 anos, garantindo seu financiamento sustentável
com uma reforma tributária profunda (Lo Vuolo e Barbeito, 2002).
Ainda segundo Lo Vuolo, também a Frente Nacional contra a Pobreza,
movimento que agrupa diversas organizações sociais, sindicais e de direitos
humanos na Argentina, impulsionou a apresentação de um projeto de Lei de
Seguro de Emprego e Formação, Salário por Dependente e Pensão por
Viuvez, que tem por base dois eixos: a) a transferência de um subsídio
mensal a todos os desempregados condicionado à sua participação em
trabalhos comunitários; b) a transferência de uma renda por dependente,
independente do status de trabalho dos pais, e de uma pensão similar a
todas as pessoas maiores de idade sem cobertura previdenciária (idem).
Pelo exposto, no que diz respeito à América Latina, além do Brasil
que já aprovou a instituição da renda de cidadania (o que será visto no
próximo capítulo), a Argentina também conta com uma proposta concreta
nesse sentido. Quais seriam, então, os novos conceitos que pretendem
incorporar a partir dessa proposta? Sinteticamente, seriam os seguintes, na
percepção de Lo Vuolo:
1º) o sistema fiscal integrado, em lugar de um sistema fiscal
desintegrado, de forma a explicitar a situação de cada cidadão diante
do fisco. Aqui o novo conceito pretende eliminar a distinção marcante
entre renda, gastos fiscais e, paralelamente, entre contribuintes e
beneficiários das políticas fiscais;
34 Segundo os autores, a construção de um sistema de instituições de proteção social alternativo ao que vigora na atualidade deveria articular, entre outros, os seguintes valores-objetivos:
“i) libertad para que los ciudadanos puedan elegir el uso de los recursos que poseen, especialmente la posibilidad de escoger el mejor empleo para su capacidad de trabajo; ii) igualdad en la distribución de los recursos sociales necesarios que permita el acceso de todos a las condiciones básicas para ejercer esa libertad, sin menoscabo de su autonomía personal y de su integración social” (Lo Vuolo e Barbieto, 2002:50).
110
2º) a universalização do sistema fiscal de tributos e subsídios, em
lugar de programas de gastos focalizados, de forma a explicitar que
todos os cidadãos são afetados pelo sistema fiscal, embora esse
impacto não seja sempre visível. Aqui o novo conceito pretende
trocar a idéia de crédito fiscal dedutível por crédito fiscal efetivo;
3º) a prevenção da pobreza, em lugar da compensação de seus
efeitos. Assim, os gastos com programas de prevenção da pobreza
são dispêndios cujos efeitos não podem ser avaliados no curto prazo.
As perguntas referidas ao histórico de cada pessoa, quando ou como
se gerou a situação de carência, quanto tempo está desempregado
ou nessa situação de carência, podem ser importantes para outros
fins, mas não para se decidir se devem estar incluídas nessa rede de
prevenção. Caso o objetivo seja prevenir, o que importa é o risco de
cair na situação de pobreza. No esquema dos benefícios sociais,
supõe-se que quanto maior esse risco, maior o benefício; naquele da
renda de cidadania, supõe-se que quanto maior o risco menor a carga
tributária; em um sistema universal, todos deveriam estar
interessados em baixar os riscos de todos, porque assim baixariam os
tributos necessários para cobrir essa situação de carência;
4º) colocar a cidadania no lugar histórico das contribuições, de forma
a explicitar que o problema da seguridade social não se resolve
excluindo os que não fazem parte da lógica do seguro social (porque
não podem pagar as contribuições), pois tal procedimento só faz com
que o problema mude de lugar, permanecendo sem solução;
5º) a situação de necessidade em lugar do estar empregado, de
modo a explicitar que não importa a origem do problema, mas sim o
problema em si. Aqui o novo conceito é de zona de vulnerabilidade e
provável estado de necessidade de tal forma a envolver trabalhadores
e desempregados, ativos e inativos, quem recebe salário e quem não
recebe. Em um sistema em que o trabalho é escasso, instável, volátil
e não padronizado, não deve ser o trabalho, e muito menos o salário,
a garantia da cobertura de necessidades básicas;
111
6º) as pessoas em vez do chefe de família, de forma a clarificar as
relações de dominação e de dependência na família; as decisões em
matéria de arranjos familiares não devem ser condicionantes da
cobertura social. Aqui o novo conceito é o das pessoas decidindo
livremente sua forma de vida sem que isto condicione seu acesso aos
benefícios. Tal opção ilustra os problemas que emergem quando os
lares unipessoais têm maiores possibilidades de receber benefícios,
por exemplo, por assistência às mães solteiras ou crianças de rua.
Isto pode terminar em um fomento não desejado para essas
situações.
Na atualidade Van Parijs (2003) identifica quatro tipos de políticas de
transferência de renda, adotadas em países de capitalismo avançado e
outros, as quais variam desde a renda mínima até a renda de cidadania:
1. Renda básica no sentido estrito: identificada no Estado do Alasca,
onde desde o início da década de 80 existe uma renda incondicional
transferida para todos, desde o nascimento até a morte, em um nível
igual, sem nenhuma condicionalidade que não seja a residência legal.
A origem de tal dividendo está na decisão de transferir 50% dos
royalties originários da venda do petróleo para a criação de um fundo
de propriedade de todos os residentes no estado: o Fundo
Permanente do Alasca - Alaska Dividend Found - aprovado por meio
de um referendo popular há mais de vinte anos, que faz com que
cada morador desse estado, registrado no mesmo, receba um
dividendo, uma vez por ano, transferido incondicional e
individualmente.
2. Renda mínima condicional: trata-se de um mínimo garantido para
todos que supera o sistema de seguro social já que não está
condicionado à contribuição para o sistema de proteção social. É
condicional no sentido de que o direito a essa renda é determinado
pela situação familiar e aplicado a uma certa faixa de rendimentos.
Tal benefício é vinculado à obrigatoriedade de se aceitar um emprego
ou outra forma de integração social. Van Parijs identifica esse tipo de
112
política em mais de uma dezena de países da União Européia, os
quais, no entanto, apresentam diferenças importantes quanto à sua
operacionalização e ao seu montante. Portugal é um exemplo35.
3. Renda incondicional: dirige-se a duas faixas de idade. Existem
países europeus, como por exemplo, a Holanda e a Suécia, onde há
uma pensão básica para todas as pessoas com mais de 65 anos,
independente da ocupação anterior, da situação familiar e do
rendimento que recebam no momento. Também na África do Sul,
desde o fim do apartheid, é transferida uma pensão mínima a todas
as mulheres com mais de 60 anos e a todos os homens com mais de
65, que não recebam pensão do setor formal36. Outro grupo de países
estabeleceu uma renda incondicional para todos os jovens e para os
menores de idade sob a forma de um rendimento familiar,
independente da situação social e do rendimento dos pais e/ou
responsáveis.
4. Crédito de imposto restituível: consiste em uma redução uniforme,
individual, do imposto, usufruída por aqueles que não pagam
impostos ou que pagam uma pequena importância. Também
beneficia os que deveriam pagar um imposto inferior, porque esse
mecanismo pode assumir a forma de uma transferência positiva para
as pessoas que trabalham, mas que têm salários muito baixos para
35 Em anos recentes, Portugal tem incrementado seu esforço em termos de políticas sociais de combate à exclusão. O Rendimento Mínimo Garantido (RMG) é a mais conhecida dessas políticas, tendo sido generalizado no país em 1997, visando “o combate à pobreza e exclusão nas suas formas mais degradantes e nas categorias sociais mais vulneráveis” (Martins, 2000:1). O RMG, segundo o autor, tem um carácter dualista: obriga os beneficiários a celebrarem um contrato que pode passar por diferentes áreas. No entanto, crianças que freqüentem obrigatoriamente a escola; beneficiários que se encontrem ativos, idosos; pessoas portadoras de deficiências podem ficar isentos desse contrato. O RMG tem como montante de referência a prestação mínima do regime não contributivo (pensão social) e é voltado para pessoas ou agregados familiares vivendo abaixo do referido montante. Subjacente a essa medida se percebe uma tentativa de aproximação de Portugal com o “modelo social europeu” e a importância crescente alcançada por medidas sociais ativas que visam a autonomia dos indivíduos, diferenciadas do from-welfare-to-workfare na sua tradição americana - baseado em um controle estreito da despesa pública com a proteção social e disciplina dos beneficiários, fundado na conceitualização de underclasses e no aumento de uma cultura de dependência própria dos sistemas de proteção social (Martins, 2000). 36 Este é o sistema de rendimentos mais redistributivo que existe em toda a África Subsaariana, particularmente interessante porque não cria uma relação de dependência como a que existe em outros mecanismos do Estado de Bem-Estar. Nesse caso, mais de 90% dos domicílios de população negra conservam esse direito, mesmo quando os membros mais jovens da família começam a trabalhar. Van Parijs acredita que o mesmo pode ser extrapolado para outros países do hemisfério Sul, com a dificuldade de que criaria um tipo de armadilha contra o trabalho formal. No entanto, segundo o autor, é importante dar passos também na direção de criar rendimentos familiares incondicionais, pensões básicas incondicionais, defendidas em termos de solidariedade, de justiça social, as quais devem ser pensadas de forma que traduzam igualmente um efeito positivo sobre a eficiência da economia e um impacto significativo sobre o desenvolvimento (Van Parijs, 2002:18).
113
poder aproveitar um crédito de imposto no sentido tradicional. Este é
o tipo de renda que se concede atualmente em vários países, como o
Reino Unido, a França, a Bélgica e, de maneira mais sistemática, na
Holanda, onde existem créditos de impostos restituíveis para todos os
trabalhadores.
Van Parijs observa que o tipo de renda condicionada à verificação da
situação financeira e da estrutura familiar dos beneficiários e a um teste de
disposição para o trabalho (tipo 2, na sua classificação), aplicado
atualmente sob diversas variantes na maioria dos países da União Européia
e também na América Latina, é um passo fundamental na direção certa. No
entanto, pondera:
“[...] quaisquer que sejam as bem-intencionadas condições de
‘inserção’ ou ‘integração’, elas não podem evitar a criação de
armadilhas cuja profundidade aumenta quanto maior a generosidade
do sistema e cuja ameaça aumenta à medida que a chamada
‘globalização’ intensifica as desigualdades na rentabilidade de
mercado. Em países onde sistemas de renda mínima garantida estão
sendo aplicados há algum tempo, essas armadilhas e a cultura da
dependência que se diz estar associada a elas ameaçam desencadear
um retrocesso político e o desmantelamento daquilo que foi
alcançado. Mas elas também têm provocado movimentos
progressivos na forma de propostas de renda básica e afins” (Van
Parijs, 2000:17).
Van Parijs acredita, ainda, que sem nem mesmo chegar a uma renda
básica parcial, as três propostas por ele apresentadas a seguir são opções
aceitáveis nesse sentido, como um próximo passo mais promissor do que os
anteriores - mais ou menos plausíveis, dependendo das instituições de cada
país, e em especial do seu contexto tributário e de seguridade social -,
quais sejam: i) um crédito fiscal individual, o qual eventualmente poderia
ser incorporado a uma renda básica de valor baixo, mas estritamente
individual, universal e incondicional; ii) um imposto de renda negativo
regressivo com base na estrutura familiar, fazendo uso da adequação da
114
renda mínima garantida atual à estrutura familiar e, em vez de retirar
100% do benefício à medida que os rendimentos aumentam, retirá-lo em
um percentual um pouco mais baixo, na ordem de 70% ou até mesmo
50%, de modo a criar incentivos materiais para o trabalho para qualquer
família, por mais baixa que seja sua rentabilidade; iii) uma renda de
participação modesta, tomando como base sistemas existentes de licença
maternidade/paternidade, para estudo ou tratamento, e integrá-los,
juntamente com créditos fiscais para pessoas que estão empregadas, em
uma renda básica universal sujeita a uma condição muito geral de
contribuição social, como a “renda de participação” - um subsídio não
sujeito à verificação da situação financeira dos beneficiários, pago a toda
pessoa que participe ativamente de uma atividade econômica, remunerada
ou não. Comparada às abordagens da reforma tributária e da reforma da
assistência social, esta terceira abordagem, para Van Parijs, seria
particularmente adequada se algum financiamento específico fosse
reservado para a mesma (Van Parijs, 2000).
De todo modo, com relação à renda de cidadania, sua implementação
deve se dar a partir da construção de um consenso social igualitário e
socialmente eficiente que busque equilibrar a capacidade das pessoas de se
relacionar nas sociedades modernas e recompor, a partir daí, as
fragmentações sociais. A segurança de uma renda universal e garantida por
fora da relação de trabalho é ainda a chave para a construção de tal
consenso, visando estabelecer a harmonia entre eficiência econômica e
eqüidade social.
No plano da eficiência redistributiva, essa renda tornaria o sistema
social mais simples, menos custoso para gerir, menos estigmatizante para
as pessoas que recebem auxílio e mais eficaz para lutar contra a pobreza. A
fórmula seria, por outro lado, mais adaptada à instabilidade familiar, já que
se trataria de um direito próprio, ligado à pessoa, e não ao lar fiscal, como
nos casos de imposto negativo ou do RMI. Quanto ao mercado de trabalho,
uma vez que essa renda oferecesse aos indivíduos a possibilidade de não
trabalhar, de trabalhar menos ou de se retirar temporária ou
115
permanentemente de seus empregos, essa fórmula reduziria a oferta de
mão-de-obra e tornaria as atividades remuneradas intermitentes mais
sedutoras. O Estado poderia igualmente utilizar esse abono como
instrumento de compensação salarial no estabelecimento do sistema de
redução da jornada de trabalho. Também comportamentos e valores seriam
alterados, deixando o emprego de ser o único fator de integração. Estaria
aberto assim o caminho para uma sociedade de atividade plena ou de
multiatividade (Euzéby, 2002).
Quanto às principais críticas e interrogações feitas à renda de
cidadania, segundo Euzéby, estas dizem respeito ao nível de renda a ser
oferecido. Se for baixo, com a finalidade de limitar o custo financeiro, os
efeitos positivos esperados podem não ser significativos. Neste caso, as
pessoas pouco ou não-qualificadas seriam obrigadas a aceitar empregos
desvalorizados ou a contentar-se com um pequeno abono, daí os riscos de
dualização da sociedade. Tais críticas se referem ainda ao caráter injusto da
ausência de precondições para se ter acesso ao benefício. No entanto,
pondera o autor, se a progressividade do imposto de renda fosse realmente
aplicada, poderia ter como efeito retomar dos privilegiados uma grande
parte ou a totalidade de seu abono. Por isso, para Euzéby, o verdadeiro
problema é exatamente o da reformulação desse imposto e seu vínculo com
outras receitas fiscais (Euzéby, 2002).
116
III RENDA MÍNIMA E RENDA DE CIDADANIA NO BRASIL
III.1 A questão social na América Latina
A transposição de teorias explicativas da conformação de Welfare
States em países da Europa Ocidental para países latino-americanos deve
ser feita levando em conta as diferenças no contexto histórico e na
velocidade de institucionalização das políticas de bem-estar entre estes (os
países da Europa Ocidental foram bem mais precoces na implementação de
tais políticas), além de suas peculiaridades sociais, econômicas, políticas e
culturais, já que Estados de Bem-Estar Social se baseiam em um espaço
constituído pelo nível de carência das populações envolvidas e pela
respectiva estrutura de representação política e capacidade de organização,
entre outros fatores (Coelho de Souza, 1999).
Nesse sentido, segundo Coelho de Souza (1999:18-19), para explicar
o surgimento e desenvolvimento do Welfare State em países da América
Latina e outros é necessário redefinir conceitos, como o de industrialização;
incluir novos elementos explicativos, como o papel do setor externo; e
realizar adaptações nas teorias supracitadas de modo que estas possam
lidar com a realidade de sociedades duais (segmentadas em setores
modernos e tradicionais) e com as diferenças na cultura política, no nível de
influência das organizações trabalhistas e na capacidade de governo da
burocracia. Segundo ele, em países de capitalismo periférico
“[...] devido à dualidade no desenvolvimento, um welfare state
limitado à elite, em vez de generalizar benefícios, drena recursos
potenciais para a redistribuição e aumenta a desigualdade e a
segmentação da sociedade, trazendo uma série de implicações
políticas desfavoráveis, dentre elas uma resistência à constituição de
um ‘compromisso’ entre capital e trabalho que está na base do
welfare state de muitos países desenvolvidos” (Coelho de Souza,
1999:15-16).
117
Coelho de Souza (1999) chama a atenção para um último obstáculo à
transposição imediata das teorias explicativas da origem e desenvolvimento
do Estado de Bem-Estar Social para países latino-americanos: praticamente
nenhuma destas teorias se refere explicitamente às influências externas na
construção do Estado, apoiando-se na idéia de um Estado-Nação
independente o que, no caso dos países “periféricos” (usando sua
terminologia), é inviável já que o setor externo ali, muitas vezes, é uma
peça fundamental para a compreensão do desenvolvimento de seus
incipientes Welfare States.
Nesse sentido, diferentemente do caso europeu, as políticas sociais
na América Latina caracterizam-se: i) pelo reconhecimento de direitos
sociais em função de lutas protagonizadas por movimentos sociais e não
sindicais; ii) pela diluição de tais direitos em lutas locais dando caráter
difuso à sua efetivação para todos; iii) pela fragilidade da permanência na
agenda pública da questão dos direitos sociais, já que estes são
dependentes da “sensibilidade política” do grupo no governo e não
resultado de conquistas reclamáveis nos tribunais, como direitos não
efetivados pelo Estado (Sposati, 2002:35).
Na realidade, os países latino-americanos não vivenciaram o pacto do
Welfare State (entre capital e trabalho) próprio dos países de capitalismo
avançado, inspirado no keynesianismo (de tipo beveridgiano ou social-
democrata) que, em geral, viabilizou a universalização e, mais do que isto,
a internalização de direitos de cidadania. Vale ressaltar, todavia, que os
países latino-americanos apresentam diferenças significativas entre si no
que se refere aos seus modelos de Estados de Bem-Estar Social. No
entanto, estes podem ser caracterizados como países de “regulação social
tardia”37, apresentando três grandes determinantes, a saber:
37 A autora caracteriza os países de regulação social tardia como aqueles onde os direitos sociais foram legalmente reconhecidos no último quartil do século XX, cujo reconhecimento legal não significa que estejam sendo efetivados, isto é, podem continuar a ser direitos de papel que não passam nem pelas institucionalidades, nem pelos orçamentos públicos (Sposati, 2002:34).
118
“a) os condicionamentos do processo histórico-político que fundam o
modelo de contrato social e o alcance do reconhecimento da
cidadania e da garantia de mínimos sociais;
b) a forma de combinação da responsabilidade pública e social entre
Estado-Sociedade-Mercado e o modo de gestão dos múltiplos atores,
a hegemonia democrática no processo de gestão do país;
c) suas relações de submissão aos agentes financiadores externos e
de externalidade com relação aos movimentos e lutas mundiais, no
cumprimento das agendas internacionais” (Sposati, 2002:37-38).
Sabe-se, contudo, que os sistemas de proteção social na América
Latina jamais se constituíram verdadeiramente em Welfare States nos
moldes europeus. Esta é a interpretação de Draibe (1997), que reconhece
que a matriz desses Estados sempre funcionou de modo imperfeito e
deformado em países latino-americanos (quase que permanentemente em
crise), o que tem exigido a constante reestruturação dos mesmos. Na
realidade, tais países conformaram Welfare States corporativistas, do tipo
bismarckiano, voltados para segmentos formais da economia,
freqüentemente, excluindo os mais pobres da população, como resultado
dos vínculos instáveis e precários destes com o mercado de trabalho.
Nesse sentido, como lembra Lavinas, a trajetória latino-americana é
distinta da européia, pois o Estado de Bem-Estar Social na América Latina
nunca foi concluído e “amputado da sua vocação universalista, deixou nas
mãos dos pobres por muito tempo o enfrentamento da pobreza per se. [...]
Também na América Latina distintos modelos de Welfare inacabados
convivem, e muitas vezes tal convivência se dá dentro das fronteiras de um
mesmo país” (Lavinas, 2003:2; ver, também, Pochmann, 2002:74).
Por esse motivo, Lavinas afirma que Ziccardi (2001) tem razão ao
afirmar que na América Latina a exclusão social não é um fenômeno das
últimas décadas, mas uma situação imposta historicamente à grande maioria
da população, que só fez ampliar-se e agravar-se nos anos 90 com a primazia
119
das políticas de corte neoliberal. Nesse contexto, a dimensão compensatória
da proteção social ganhou autonomia, desarticulada do sistema de seguridade
social como um todo, e limitada às ações particularistas.
“[...] na crise dos 90, reconhece Mesa-Lago [2000], as políticas
assistenciais tradicionais, já limitadas a poucos países da região,
dispondo de recursos ínfimos [em termos de percentual do PIB,
sempre inferior a 1%], são ainda mais penalizadas e passam a se
restringir à implementação de uma rede mínima de proteção social
cujo objetivo é assegurar um patamar mínimo de reprodução social
que atenue os efeitos devastadores das políticas de ajuste estrutural.
Seguindo a filosofia dos programas de safety nets implementados em
todo o mundo em desenvolvimento pelo Banco Mundial, com o apoio
de outras instituições internacionais, a grande maioria dos países do
continente se alinha a esse tipo de intervenção focalizada e de
caráter temporário, cujos benefícios são condicionados à
comprovação de renda” (Lavinas, 2004:67).
Constata-se, assim, que enquanto nos países de capitalismo
avançado o conceito de exclusão social surge em decorrência da crise do
Estado de Bem-Estar Social (com o desemprego de longo prazo, as formas
precárias de inserção, a perda de vínculos laborais e sociais, a elevação das
taxas de imigração) que implica o crescimento da categoria dos “novos
pobres”; na América Latina, o padrão excludente é constitutivo do modelo
histórico de acumulação capitalista, estando evidente que pobreza e
exclusão se constituem como categorias intimamente associadas e
recorrentemente presentes, embora distintas. Nesse contexto, exclusão
passa a exprimir não o estar fora, mas o não estar legítima e plenamente
integrado. A exclusão é o oposto da integração social, ela mesma dada por
dois eixos: inserção no mundo do trabalho e inserção nas redes de
sociabilidade e reciprocidade.
Em face do quadro exposto, e na medida em que prevalecem as
tendências excludentes dos sistemas de proteção social latino-americanos,
percebe-se claramente sua fragilidade, o qual apresenta uma crise crônica
120
com duas dimensões fundamentais: uma pública, que se refere ao
desmantelamento do Estado, de sua – já precária - estrutura de bens e
serviços sociais; e outra privada, que se refere à anomia social, aos efeitos
psicológicos da mesma sobre o conjunto da população, sobretudo daquele
segmento mais pobre.
De fato, no início dos anos 90, com o advento do neoliberalismo e das
políticas de ajuste estrutural, o sistema de proteção social na maioria dos
países da região sofreu transformações significativas devido, sobretudo, às
mudanças no Estado e à reestruturação da economia.
“[…] el contraste de las llamadas políticas sociales de hoy con
respecto a las del pasado, no podía ser más marcado: tenemos hoy
privatización donde antes hubo intervención y regulación estatal;
focalización en lugar de universalidad; compensación en vez de
promoción; individualismo y particularismo clientelista como sustituto
del ejercicio colectivo de derechos; combate a la pobreza extrema en
lugar de desarrollo social” (Vilas, 1995 apud Lacabana & Maingnon,
s/d).
Nesse contexto, a maioria dos governos latino-americanos passou a
privilegiar a adoção de políticas sociais compensatórias, restritas a um
elenco de programas e ações – geralmente sem vínculo entre si - orientado
para mitigar e/ou compensar o impacto das mudanças que ocorreram no
âmbito da economia e da política (do Estado), que provocaram o
acirramento de situações de pobreza e desigualdade.38
Tais políticas, por sua vez, têm que ser eficientes e eficazes. Para
tanto, devem focalizar determinados segmentos populacionais no sentido de
racionalizar o uso de recursos escassos. Assim, nos países latino-
38 Segundo Lavinas (2003), seguindo a filosofia dos programas de safety nets [bolsas] implementados em todo o mundo em desenvolvimento, atendendo recomendações de agências de cooperação internacional, como o Banco Mundial e outras, Argentina, México, Bolívia, Chile, Costa Rica, Uruguai, Colombia, El Salvador, Peru se alinham a esse tipo de intervenção focalizada e de caráter temporário, cujos benefícios são condicionados à renda. Embora tal intervenção tenha apresentado resultados diversos com relação aos países considerados, estas redes mínimas de proteção social, como a autora prefere chamar, “seguem apresentando problemas de focalização e avaliação, não são sustentáveis e, sobretudo, não tiveram o impacto esperado na reforma da seguridade social, notadamente na sua dimensão assistencial” (2003:18).
121
americanos, em geral, têm se difundido uma prática que simplifica o
problema dos objetivos e da avaliação das políticas públicas sociais na
seguinte pergunta: como se concentram os dispêndios destas naqueles
grupos/pessoas considerados os mais pobres dentre os pobres?
A concentração do dispêndio social em grupos focalizados é
percebida, assim, como um caminho para: i) ajudar a resolver a crise fiscal
desses países atribuída, em grande parte, ao gasto desproporcional
efetuado em nome das políticas sociais; ii) segmentar o mercado entre o
que se considera "bens públicos" (supostamente básicos, voltados aos
pobres) e "bens privados" (supostamente mais sofisticados, para aqueles
que têm maior poder aquisitivo); iii) privatizar o segmento rentável dos
bens privados com o argumento da necessidade de se flexibilizar o sistema
de políticas sociais, a fim de adequá-lo ao poder de compra de cada
beneficiário; iv) dar, assim, um conteúdo mais eqüitativo ao gasto social,
liberando (ou mantendo liberada) a política tributária da carga
redistributiva.
“La concepción de justicia social que privaba en el diseño de la
política social en la mayoría de los países latinoamericanos antes de
la crisis de los ochenta, se encontraba unida a la visión en la que el
Estado se auto-reconocía como el responsable de la protección social,
función que estaba sancionada en las diferentes Constituciones
Nacionales, y los gobiernos tenían un papel tutelar en favor de los
sectores sociales más vulnerables. El Estado funcionaba como
compensador de las desigualdades que produce el mercado.
Actualmente, en las políticas sociales se privilegia la concepción de
justicia social que nace con el cambio del modelo económico y con las
transformaciones habidas en las funciones del Estado, es decir, que
los llamados criterios de equidad que le corresponde impartir al
Estado están asociados con la responsabilidad de proporcionar a los
individuos las capacidades básicas para que puedan competir en el
mercado. Las diferentes acciones desarrolladas para compensar las
desigualdades que producen los procesos de ajuste o el mercado, y
los diferentes criterios de equidad puestos en práctica, no son de la
122
exclusiva responsabilidad del Estado sino que éstos también son
responsabilidad de las acciones que tienden a igualar las capacidades
básicas para la competencia. El mejoramiento de la calidad de vida
sería, por tanto, resultado de la productividad y creatividad de cada
individuo” (Lacabana & Maingnon, s/d:2).
Conforme a percepção de Lo Vuolo et alii (1999), a política
compensatória adotada em países latino-americanos pode ser denominada
de “assistencialista focalizada”, que diz respeito a novas modalidades de
proteção social especificadas segundo o tipo e o grau de vulnerabilidade do
público-alvo, em oposição a princípios universalistas. Na percepção destes
autores, “todos esses fatores contribuem para consolidar um modo de
regulação estática da pobreza, que se preocupa mais em preservar a
situação da população beneficiada, do que propriamente em tirar os pobres
dessa situação” (Lo Vuolo et alii., 1999 apud Lavinas, 2003:18)39.
Igualmente, no Brasil, têm sido adotadas políticas sociais
compensatórias e focalizadas, atendendo, sobretudo, a determinações de
organismos internacionais nesse sentido40. Como corolário, tem-se uma
universalização que, na prática, é excludente. Em outras palavras, a política
social brasileira além de ser insuficiente para cobrir as necessidades da
população de mais baixa renda, quantitativa e qualitativamente, exclui
segmentos significativos do acesso à mesma pelo seu caráter seletivo.
Voltando ao caso da América Latina, percebe-se que não existem
propostas consensuais entre os diferentes países da região visando à
superação da pobreza, no contexto de reforma dos seus sistemas de proteção
social. No entanto, conforme ressalta Lavinas, programas de transferências
monetárias condicionados – focalizados em populações de baixa renda – têm
sido adotados em muitos dos países da região como alternativa de solução
39 Ver a este respeito CEPIA (1999) Cadernos Fórum Civil Ano 1, n.1., Políticas Compensatórias no Mercosul. Forum da Sociedade Civil nas Américas. 40 Em 2004, na nota oficial ao governo brasileiro enviada pelo Banco Mundial, confirmando financiar parte dos recursos do Programa Bolsa Família, o BIRD chamou a atenção para a importância da focalização dos programas sociais do Estado. Daí, segundo o Banco, a importância de identificar corretamente os alvos das políticas sociais e evitar falhas e duplicidade de informações.
123
para essa problemática (de combater e não de superar a pobreza). Segundo a
autora, “sua cobertura mantém-se, todavia, muito aquém do universo
potencial de beneficiados, aguçando as iniqüidades entre as camadas
socialmente desfavorecidas e promovendo práticas excludentes do ponto de
vista da institucionalização das políticas públicas” (Lavinas, 2003:20).
“Ficou patente, entretanto, que, apesar da relativa simetria dos
determinantes da pobreza [...], persiste um diferencial muito grande entre
as experiências dos países-membros da União Européia e os do Cone Sul.
Esse diferencial é dado pela dimensão redistributiva do sistema de
proteção social europeu, pelo seu escopo, sua abrangência e cobertura. Na
União Européia, a assistência é um direito assegurado a todo indivíduo em
situação de risco social ou pobreza. A assistência é um direito universal.
As falhas e inadequações dos regimes de proteção social não colocam em
questão a matriz de solidariedade e coesão social, mas impõem aumentar
a eficácia do sistema. Na América Latina, pelo contrário, o direito à
proteção social ainda não foi efetivamente conquistado. Ser assistido é
algo que ocorre assistematicamente, implica pertencimento a um certo
tipo de clientela ou público-alvo e carece de institucionalidade. A
magnitude e a intensidade da pobreza parecem condenar a assistência
como direito universal” (Lavinas, 2003:35).
A tabela apresentada a seguir é ilustrativa das considerações
supracitadas.
124
Principais Programas de Transferências Monetárias (tipo bolsa) em países da América Latina País Nome do
Programa Início Objetivos Componentes
Argentina Chefes-de-Família Desempregados
2002 Aliviar os impactos do desemprego
Transferências monetárias
Brasil Bolsa Família 2003 Combater a fome, a pobreza e as desigualdades
Transferências monetárias. Programas complementares.
Chile Programa Ponte 2002 Oferecer atendimento psico-social integral às famílias em situação de extrema pobreza no país.
Atendimento psico-social. Transferências monetárias.
Colômbia Famílias em ação 2000 Aumentar o atendimento em saúde de crianças menores de 7 anos. Reduzir a evasão escolar de alunos de educação primária e secundária.
Saúde e educação: subsídio em espécie.
Equador Programa de Proteção Social
2000 Reduzir a pobreza; favorecer o acesso da população mais necessitada a serviços de educação e saúde.
Bônus de desenvolvimento humano: subsídio monetário direto.
Honduras Projeto PRAF BID fase II
1999 Fortalecer o capital humano das comunidades mais pobres do país, capacitando às mães em melhores práticas alimentares e de higiene e assegurando uma transferência monetária.
Educação e saúde: transferências monetárias, materiais de capacitação.
Jamaica Programa de Avanços através da Saúde e Educação (PATH)
2002 Garantir que os grupos pobres e vulneráveis da sociedade sejam assistidos pelo Estado.
Nutrição: almoços gratuitos a todos os estudantes em escolas primárias e secundárias. Bônus em educação e saúde.
México Programa Oportunidades de Desenvolvimento Humano
1997 Apoiar as famílias que vivem em condição de pobreza extrema com a finalidade de potencializar as capacidades de seus membros e ampliar suas alternativas para alcançar maiores níveis de bem-estar.
Educação e saúde: subsídio e material escolar. Nutrição: transferências monetárias.
Peru Transferências Condicionais de Renda
2005 (previsto)
Potencializar os impactos dos atuais recursos investidos na luta contra a pobreza, permitindo o desenvolvimento de capital humano
Educação, saúde e nutrição: subsídio e capacitação.
República Dominicana
Cartão de Assistência Escolar (CAE)
2001 Reduzir a evasão escolar, vincular os padres na educação dos filhos e garantir o acesso e permanência das crianças na escola.
Educação: subsídio em espécie, capacitação.
Fonte: Banco Mundial, 2004. Disponível em: www.worldbank.org/sp/safetynets/training-events
125
III. 2 A dissociação entre pobreza e desigualdade – A relação
entre pobreza e exclusão
A compreensão de que a cidadania não pode conviver com a pobreza e
a exclusão e de que para isso é indispensável retomar a solidariedade como
princípio fundamental de coesão social tem permeado o debate político
contemporâneo nas democracias ocidentais, premidas pelo aumento do
desemprego, pela precariedade do mercado e pela inadequação dos sistemas
de proteção social para garantir uma cobertura equânime e de qualidade a
todos os cidadãos(ãs). Nelas, o combate à exclusão ganha centralidade, pois,
apesar do aumento do gasto social, esta persiste e se alastra.
Quanto à sociedade brasileira, no final dos anos 80, passa por uma
transição em direção à redemocratização política, a qual se fez notar,
inclusive, na produção acadêmica que trata dos fenômenos da pobreza e da
desigualdade. Nesse contexto, diversos autores dão destaque em sua análise o
fato de que as dimensões alcançadas por ambos os fenômenos são, antes de
tudo, incompatíveis com a ordem democrática e com os princípios de justiça
social. Em contrapartida, e de forma paradoxal, nessa mesma época, em
sintonia com o receituário neoliberal, a representação da pobreza sofre uma
dupla redução, passando a ser associada predominantemente à pobreza
absoluta e à insuficiência de renda, o que resultou na focalização em
“clientelas específicas”.
Diante desse quadro, enfoques operativos com relação à temática
ganham importância no país, visando construir indicadores para mensurar a
pobreza, definindo esta tão-somente como um estado de insuficiência
permanente de renda resultante da não satisfação de necessidades básicas,
cuja solução está na utilização eficiente de recursos por meio de uma
intervenção emergencial seletiva em favor da clientela mais afetada. Nesse
contexto, a política contra a pobreza está voltada para atacar seus sintomas
e não suas causas, o que explica a omissão que se faz com relação à
questão da desigualdade social. Mais recentemente, no entanto, essa
questão é retomada no Brasil, partindo do argumento que a desigualdade
consiste no determinante principal da pobreza.
126
De fato, um dos aspectos mais marcantes da sociedade brasileira é a
combinação de elevados níveis de pobreza com uma altíssima desigualdade
social. Estudiosos como Barros et alii têm associado a pobreza à
desigualdade, identificando a má distribuição de renda, que responde
sozinha por quase dois terços dos 53 milhões de pobres do país, como a
principal causa desta, ressaltando que os 1% mais ricos da população
brasileira concentram exatamente a mesma renda que é dividida entre os
50% mais pobres (Barros et alii, 2000:28)41.
De todo modo, é interessante observar que a renda per capita não
permite colocar o país entre os mais pobres do mundo. Ao contrário, o Brasil
está no terço mais rico dentre estes. Ou seja, dois terços dos países do mundo
apresentam renda per capita inferior à brasileira, que é seis vezes maior do
que o montante requerido para a satisfação das necessidades nutricionais de
uma pessoa, e três vezes maior do que o requerido para a satisfação de todas
as suas necessidades básicas. A despeito disso, 34% da população brasileira
vive em situação de pobreza e cerca de 15%, em situação de extrema
pobreza. No entanto, enquanto nos países com renda per capita similar à
brasileira apenas 10% da população está abaixo da linha de pobreza, no Brasil
o percentual sobe para 30%. A diferença se deve à desigualdade, e nesse
quesito o país lidera (Barros et alii, 2002)42.
De acordo com Urani (2002), se o país crescesse a uma taxa anual de
3%, seriam necessários dezenove anos para reduzir a pobreza à metade. “As
políticas de crescimento são concentradoras de renda” no Brasil, reforça Neri.
Segundo ele, “um crescimento acumulado de 21% reduziria a pobreza em
18%. Já uma queda de apenas 8,5% na desigualdade, tornaria a pobreza 28%
menor, o que fornece uma pista de que ao adotar políticas focalizadas, não-
redistributivas, [o país] está na direção errada” (Néri, 2004: 1).43
41 Segundo Lavinas, “Para o Banco Mundial, a pobreza não seria um problema redistributivo – cuja solução passa pelo sucesso das políticas macro-econômicas –, mas principalmente uma utilização ineficiente dos recursos produtivos. Tais ‘visões’ do problema levam a uma decomposição da categoria dos pobres ou excluídos, por grupos, e conseqüentemente, à sua hierarquização, a pobreza deixando de ser um estado de carência para se tornar um estado agudo de carência, o que implica uma intervenção emergencial seletiva, em favor dos que requerem urgência” (2003). 42 O excesso de desigualdade de renda brasileiro tem, efetivamente, conseqüências muito graves sobre o seu grau de pobreza. Por exemplo, se o Brasil distribuísse a renda gerada no país de forma similar como faz o Uruguai, a pobreza no país seria apenas 1/3 da que é hoje. 43 Ver “Bolsa-Família seria melhor”. In: JORNAL DO BRASIL, Caderno O País, Rio de Janeiro 23/04/2004
127
Na realidade, o que faz a diferença no Brasil está no fato de este ser um
país atravessado por hierarquias generalizadas que se construíram
historicamente contrárias a ideais igualitários. Assim, nem mesmo chegou a
garantir, no momento devido, o princípio básico da equivalência jurídica que a
noção da igualdade supõe, acabando por conformar um verdadeiro apartheid
no seu tecido social, traduzido no enorme hiato que separa ricos e pobres no
bojo do mesmo. A denúncia dessa situação e a via igualitarista para a
superação da pobreza no país já haviam sido destacadas no início da década
de 80 por Celso Furtado, quando afirmou “o Brasil não é a rigor um país
pobre, vale dizer, impossibilitado de solucionar esse tipo de problema pelos
seus próprios meios. [...] Para eliminar o problema da miséria no Brasil,
bastaria reduzir a participação na renda nacional dos 10% mais ricos da
população a um nível similar ao que se observa em certos países que têm uma
renda per capita comparável à nossa” (1981:61)44.
Existem alguns consensos no país a respeito do problema da pobreza
e da desigualdade social, dentre estes, ressalta-se: i) o diagnóstico de que
a pobreza está associada à precariedade e à baixa qualidade dos empregos
disponíveis para a população mais pobre e menos escolarizada; ii) a
convicção de que a desigualdade não desaparecerá por si mesma com o
crescimento econômico, requerendo políticas públicas específicas para a sua
redução; iii) o entendimento de que os gastos sociais no Brasil são
regressivos e pouco eficientes, devendo ser possível fazer mais em termos
de redução da desigualdade com os recursos existentes; iv) a certeza de
que a superação da pobreza e a redução da desigualdade não devem ser
vistas como custos que colocam limites ao desenvolvimento da economia,
mas, ao contrário, como investimentos importantes para que a economia
atinja um novo patamar.
Sabe-se, também, que além de raça, a pobreza no Brasil tem faixa
etária, gênero e escolaridade bastante definidos. De fato, de acordo com
relatório elaborado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (2004), com base nas informações das mais de 8,2 milhões de 44 Mais do que identificar que o país dispõe dos recursos necessários para erradicar completamente a pobreza por meio da redução das desigualdades, Furtado propõe uma regra distributiva que consiste em realizar transferências monetárias dos segmentos populacionais mais ricos aos mais pobres.
128
famílias inscritas no Cadastro Único dos programas sociais, até fevereiro de
2004, de cada quatro pobres, um tem entre 7 e 14 anos; mais da metade
(52%) são mulheres; 56% são analfabetos ou sequer completaram a quarta
série do ensino fundamental45.
Os dados supracitados corroboram com aqueles do Banco Mundial
(2004), que revelam que a incidência de pobreza entre os jovens aumentou
no país entre de 1998 a 2001. Nesse mesmo período, a relação entre a
pobreza e a educação apresentou uma pequena redução (a pobreza
diminuiu entre pessoas com baixa ou nenhuma escolaridade, mas aumentou
em todos os outros grupos escolarizados), e o vínculo entre desemprego e
pobreza tornou-se mais forte. Além disso, conforme dados do Banco
Mundial, as taxas de pobreza continuaram a ser especialmente altas entre
os indivíduos com baixo nível educacional e entre as populações indígena e
negra.
Considerando o exposto, os problemas da pobreza e da desigualdade
não podem ser dissociados. E isto é válido não só para o Brasil, mas
também para os países com características de desenvolvimento econômico
similares à brasileira.
“A igualdade é uma relação que somente adquire sentido se associada a
um princípio de justiça. Considerando esse conceito, observa-se no
Brasil a implementação de políticas sem a explicação prévia do princípio
que as orienta, do critério de justiça adotado. Embora obscurecido, esse
critério poderia ser caracterizado como uma ‘igualdade de oportunidades
anacrônicas’. Processa-se uma redução da regra de justiça, por
intermédio de políticas sociais que tendem a se configurar e legitimar
como políticas seletivas, focalizadas em populações-alvo [...]” (Cohn,
2000, 2002).
45 Os dados deste relatório revelam, ainda, que 54% dos chefes das famílias cadastradas não trabalham; apenas 4% têm carteira assinada; 65% têm rendimento familiar per capita de até meio salário mínimo. Dos domicílios listados, 5% têm acesso à energia elétrica “sem medição por relógio”. Outros 7% não têm eletricidade e usam velas ou lampião como fonte de iluminação. Dos pobres identificados pelo governo, 63% têm água encanada. Metade não dispõe de saneamento básico adequado (rede coletora ou fossa séptica).
129
E a se sobrepor a políticas estruturadas a partir dos princípios dos
direitos sociais universais e igualitários. Constrói-se uma noção de “direitos
sociais básicos da cidadania que, na verdade, a nada mais remete senão a
um assistencialismo disfarçado. Sob a égide da justiça e dos direitos,
políticas focalizadas e compensatórias traduzem as regras de aplicação dos
direitos sociais básicos da cidadania” (Cohn, 2000).
De acordo com a autora, a realidade brasileira retrata dessa forma a
urgência de se efetuar mudanças no desenho das políticas sociais de modo
que estas ajudem na redefinição da justiça social e dos fundamentos dos
direitos, os quais somente serão alcançados se as forças políticas do país
forem capazes de romper com a hegemonia dos discursos contrários das
elites e passarem a disseminar uma nova compreensão dos direitos da
cidadania, capaz de impulsionar e defender grupos organizados e
movimentos sociais para conquistas nesse sentido.
Seguindo essa linha de raciocínio, Grzybowski (1998) destaca a
limitada democracia como a principal causa da persistente desigualdade,
pobreza e exclusão social na América Latina e também no Brasil. Segundo o
autor, é nos avanços ocorridos na democratização do país que residem as
reais possibilidades de superação da insustentabilidade dos atuais modelos
de desenvolvimento.
Dessa forma, é no fortalecimento do político e do espaço público –
arena de explicitação dos conflitos em torno dos direitos – que se colocam
as possibilidades de construção de uma sociedade mais justa e igualitária, o
que faz com que a solução da problemática social no bojo do mesmo
extrapole o seu campo de atuação propriamente dito e também o da
economia, chegando ao campo do político – esfera privilegiada das
decisões.
Nesse mesmo sentido, Francisco de Oliveira (2001) chama a atenção
de que é a falta de cidadania, de empoderamento das classes populares
para fazer valer seus direitos, muito mais do que o mercado, que gera a
130
exclusão social no país, percebida como uma manifestação da injustiça
(distributiva) que se revela quando pessoas são sistematicamente excluídas
dos serviços, benesses e garantias oferecidos ou assegurados pelo Estado,
pensados, em geral, como direitos de cidadania. Por esse motivo, o autor
acredita que para intervir socialmente é preciso primeiro conhecer melhor
os processos que levam à exclusão e o conteúdo particular das diversas
exclusões existentes, inferindo, assim, que a pobreza associada à
desigualdade implica a exclusão.
Amartya Sen (2000), igualmente, está preocupado em saber se o
conceito de exclusão social ajuda na identificação da natureza e das causas
da pobreza, se contribui para a elaboração de políticas destinadas a superá-
la. Segundo ele, está claro que a idéia de exclusão social tem conexões
conceituais com as noções de pobreza relacionada com privação. O autor
resgata idéias do economista Adam Smith, ressaltando que o foco na
categoria da exclusão envolve “ser capaz de aparecer em público sem sentir
vergonha”, o que já dá uma idéia da dimensão que o conceito assume para
o autor, que vai muito além da satisfação de necessidades básicas e/ou
primárias por parte de segmentos populacionais determinados.
De fato, para Sen, estar excluído das relações sociais pode levar a
outras privações que poderão afetar, ou melhor, limitar as oportunidades na
vida das pessoas. O autor acredita igualmente que a real importância do
conceito de exclusão social reside no fato de ele enfatizar o papel dessas
relações na privação de capacidades e, assim, na vivência da pobreza.
Segundo Sen, ainda que a fome causada por um estado de desemprego
possa ser analisada em termos da exclusão social, esta dependerá da
natureza do processo causal envolvido. O autor trata da relevância
constitucional e da importância instrumental do conceito de exclusão social
e estabelece uma distinção entre exclusão passiva e exclusão ativa, em
função de diferentes comportamentos evidenciados46.
46 Talvez inspirado nas idéias desse autor, Francisco de Oliveira tenha definido a cidadania, de uma forma sintética, como “o estado pleno de autonomia”, em que os sujeitos sabem escolher, podem escolher e efetivar as escolhas realizadas (2001).
131
De todo modo, faz-se relevante buscar diferenciar o conceito de
pobreza do de exclusão social já que estas situações estão presentes em
realidades como a brasileira e tendem muitas vezes a se sobrepor. Quando
se trata de pobreza, associa-se este fenômeno, em geral, à mensuração da
renda auferida/não auferida por determinados segmentos populacionais,
partindo-se do pressuposto de que há uma população que tem dificuldade
de sobreviver porque não tem ou tem uma baixa e/ou insuficiente renda. Já
quando se trata da exclusão leva-se em consideração um processo
cumulativo gerado por fatores multicausais, geralmente associados entre si.
Assim, no caso desta última, não se trata somente de uma questão de
desigualdade de renda ou da falta de acesso aos direitos de cidadania, mas
do resultado de mudanças profundas que se processam ao longo do tempo,
e que vão significando um acréscimo progressivo de dificuldades na vida
das pessoas.
“A pobreza enquanto questão social se constrói, progressivamente,
em torno à definição do que são ‘necessidades’. Como interpretar
‘necessidades’, interroga Gough (2000) tomando-a como uma
categoria que se refere a objetivos universais, em oposição a
vontades ou desejos, estes entendidos como objetivos enunciados
com base em preferências individuais e culturais? Na tentativa de re-
elaborar a definição tradicional de ‘necessidades básicas’, tal como
veiculada na década de 7047, notadamente pelas grandes
organizações internacionais engajadas no combate à pobreza, Gough
aponta que a universalidade e a objetividade do conceito residem na
compreensão de que se não forem satisfeitas, as carências podem
causar sérios danos ao ser humano, comprometendo sua trajetória de
vida. Daí caracterizar ‘necessidades básicas’ como todo pré-requisito
de cunho universalista indispensável à participação dos indivíduos no
desenrolar da sua própria existência” (Lavinas, 2003:5).
47 Segundo Townsend (1976) apud OIT (1993), “necessidades básicas incluem um requerimento mínimo por família no plano do consumo privado: alimentação adequada, vestuário, bem como alguns móveis e equipamentos para o domicílio. Em segundo lugar, inclui serviços essenciais ofertados para e pela comunidade num sentido amplo, tais como água potável, saneamento, transporte público, saúde, educação e serviços culturais. O conceito de necessidades básicas deve se inscrever no contexto do grau de desenvolvimento econômico e social da nação como um todo”.
132
Lavinas igualmente chama a atenção para a visão de Amartya Sen
(1992) sobre esse tema, segundo a qual as pessoas precisam dispor de
condições e de habilidades para usufruir das oportunidades que lhes são
oferecidas, com o intuito de satisfazer suas necessidades a partir de
escolhas e preferências próprias. Nesse sentido, segundo o autor, “um
patamar de renda pode revelar-se inadequado [para identificar os pobres]
não porque se situa abaixo de uma linha de pobreza, fixada com base em
parâmetros exógenos, mas porque está abaixo do que é adequado para
mobilizar um conjunto específico de habilidades (capabilities) compatíveis
com as necessidades da uma determinada pessoa” (Sen, 1992:111). Assim,
para o autor, pobreza significa destituição de habilidades e meios de agir de
modo a alcançar um determinado estado de bem-estar de sua preferência.
Segundo Lo Vuolo, ainda que a pobreza se expresse de maneira
diversa em cada caso particular, faz parte de uma problemática comum que
só pode ser compreendida por meio de uma abordagem mais ampla. O
autor destaca vários elementos comprobatórios nesse sentido, quais sejam:
i) que esta se vincula a condições objetivas externas às pessoas e às
preferências sociais traduzidas nos arranjos institucionais específicos de
cada modo de organização social; ii) que está fortemente correlacionada
com a carência daquelas necessidades e capacidades consideradas básicas e
cujas privações ameaçam a própria condição humana; iii) que a situação
que a caracteriza não se refere a uma posição, senão ao efetivo estado de
funcionamento dessas pessoas.
Sobre este último aspecto, citando Sen (da mesma forma que
Lavinas), Lo Vuolo afirma que o bem-estar social e a pobreza não podem
ser avaliados considerando-se apenas o que se tem (ou o que se recebe)
em relação a um determinado padrão, senão se levando em conta a
capacidade efetiva de se decidir acerca de diferentes formas de agir a partir
do que se tem. A pobreza está relacionada, assim, com a carência de
possibilidades de se eleger livremente entre distintos modos de vida
disponíveis na sociedade.
133
Lo Vuolo ressalta, ainda, que o problema distributivo não implica uma
visão relativa da pobreza. Segundo ele, Amartya Sen ilustra bem as
inconsistências de se considerar a pobreza somente como um fenômeno
relativo. O relativo, para Sen, não define a situação de pobreza, senão a
posição dos que estão nessa situação em relação aos que não estão. O
autor destaca que a pobreza é uma das formas de expressão da
desigualdade social, mas não é o mesmo que desigualdade social. Desse
modo, eliminando a pobreza pode-se não acabar com a desigualdade social,
mas a diminuição da desigualdade social trata-se de uma condição
necessária para se extinguir a pobreza (Lo Vuolo, 1999).
A partir daí, Lo Vuolo critica a adoção de políticas sociais focalizadas
que dividem a população em segmentos-alvo, buscando atender os “mais
pobres entre os pobres”. Pelo contrário, ele sustenta que, se a pobreza é
uma das formas por meio da qual se expressam os processos próprios do
modo de organização social em que funcionam as pessoas, somente se
poderá revertê-la modificando os princípios da organização social que lhe dá
substrato, chamando a atenção para a necessidade de se estudar neste os
pontos de contato entre a pobreza e a riqueza, o emprego e o desemprego,
a opulência e a privação. Nesse sentido, considera que a forma de atuar
sobre tais pontos de contato é instituindo uma política redistributiva que vá
além dos limites das políticas compensatórias, restritas ao âmbito da
proteção social. Ou seja, colocando-se o econômico a serviço do social, a
serviço do desenvolvimento humano.
“Um conceito de pobreza relevante para a formulação de políticas
públicas deveria centrar sua atenção na identificação de elementos de
cunho econômico, comuns e generalizáveis (de modo a serem
normatizados). Além disso, não se trata de identificar somente
elementos comuns senão relações hierárquicas entre tais elementos
para elucidar a importância de cada um. Nesse sentido, não há
dúvida de que um dos elementos comuns a todas as situações de
pobreza – e que, por sua vez, ocupa um lugar hierarquicamente
superior – é a insuficiência de renda [...] a qual está fortemente
134
associada à dinâmica macro-econômica e ao regime de proteção
social existente, ele mesmo derivado dos princípios de solidariedade e
convenções eleitos por cada sociedade” (Lo Vuolo, 1999:129 apud
Lavinas, 2003).
Lo Vuolo e Barbeito postulam que a primeira política social a ser
adotada deve ser a política econômica Segundo eles, não existe espaço para
uma política social efetiva enquanto persista o atual modelo de acumulação
que reproduz a pobreza e a exclusão. Assim, uma proposta alternativa ao
sistema de proteção social atual passa pela adoção de uma política
econômica baseada em paradigmas que privilegiem: 1) uma mudança
progressiva no padrão de distribuição da riqueza e da renda; 2) uma nova
estratégia de geração de emprego; 3) relações de emprego que favoreçam
uma cooperação estável entre capital e trabalho (Lo Vuolo e Barbeito,
2002:51).
Já Zaluar aponta para a condição de desfiliação (ou de exclusão)
como uma situação mais patética do que a da pobreza stricto sensu
(“pobreza tradicional”). Segundo ela, se a pobreza pode ser pensada como
um estado onde se inventariam carências ou faltas (de ganhos, de
alojamento, de cuidados, de instrução, de poder etc.), as situações de
exclusão podem ser pensadas como um “efeito, na conjunção de dois
vetores: um eixo de integração/não-integração pelo trabalho; um eixo de
inserção/não inserção em uma sociedade sócio-familiar” (1997:29-45).
Considerando o exposto, Zaluar afirma que as populações
beneficiadas por políticas de intervenção social enfrentam um duplo
processo: o de pauperização e o de desfiliação, que implicam a ruptura dos
seus vínculos com a sociedade mais ampla. Ressalta, assim, que o desafio
contemporâneo de superação da pobreza somente será alcançado, por um
lado, distribuindo-se seguros sociais; por outro, esforçando-se para
preencher o vazio social decorrente desse processo de desfiliação. Daí o
135
apelo feito por muitos estudiosos para a realização de políticas de
integração que contribuam para a coesão social (Zaluar, 1997).
Zaluar postula, finalmente, a necessidade de conceber-se/executar-se
uma dupla política social: a primeira, predominantemente preventiva,
consistiria em controlar a zona de vulnerabilidade em que se encontram
determinados segmentos sociais – via a adoção de medidas gerais; a
segunda, predominantemente reparadora, se proporia a reduzir a zona de
desfiliação através de medidas concretas voltadas para a inserção/re-
inserção social, sendo que ambas seriam complementares entre si (Zaluar,
1997).
III.3 O sistema de proteção social brasileiro
III.3.1 Considerações iniciais
Fazendo uma retrospectiva histórica das políticas sociais no Brasil,
Peixoto sinaliza que, a partir de 1930, a cada trinta anos (1930, 1960-64 e
1990-1995) têm sido implantadas medidas no sentido da sua
modernização. Segundo ele, embora estas sejam diferentes entre si, têm
como traço único a ideologia modernizante. Nas suas palavras:
“Dos três ciclos, os dois primeiros aconteceram durante regimes
autoritários. O terceiro (1990-95), deu-se sob o manto democrático.
As reformas de 30 e 60-64 tiveram como resultado o fortalecimento
do Estado, principalmente em suas atribuições desenvolvimentistas.
Já as reformas da era FHC, incluindo as políticas de modernização
econômica do presidente Collor, voltaram-se para a contenção do
intervencionismo estatal na esfera econômica e no desmantelamento
do Estado empresário, visando abrir espaço para a iniciativa privada
nacional e estrangeira, na expectativa do fortalecimento da economia
de mercado. Ou seja, houve uma alteração do eixo da ideologia
nacional-desenvolvimentista, guia dos outros dois modelos, para o
pragmatismo econômico de mercado, de inspiração neoliberal. Tanto
136
em 1930 como em 1960-64 buscou-se modernizar a administração
pública por meio do modelo burocrático, decorrente das idéias
weberianas. Em 1995, no entanto, a proposta de reforma do aparato
do Estado promoveu a transição e voltou-se para a mudança do
modelo burocrático para o gerencial, do estado provedor para o
Estado regulador” (Peixoto, 2003:2).
Quanto à questão social no país, ainda que na Constituição brasileira
de 1988 esta tenha assumido uma importância ímpar em função da
garantia de direitos básicos e universais de cidadania, “estabelecendo o
direito à saúde pública, definindo o campo da assistência social,
regulamentando o seguro-desemprego e avançando na cobertura da
previdência social” (Marques & Mendes, 2003:3), o modelo de proteção
social brasileiro vem se tornando, na prática, cada vez mais
“americanizado”, nas palavras de Werneck Vianna, pois, “ainda que
formalmente universais e imaginadas como indutoras de cidadania, as
provisões públicas se resumem a parcos benefícios para os pobres,
enquanto ao mercado cabe a oferta de proteção àqueles cuja situação
permite a obtenção de planos ou seguros privados” (Werneck Vianna,
1998:130). Nas palavras de Médici:
“A Constituição de 1988 consagrou o ideário da universalização das
políticas sociais no Brasil, numa fase aonde as condições econômicas
para chegar a um universalismo de fato se tornavam cada vez mais
precárias. Sendo assim, crise econômica, crise nas finanças públicas e
direitos constitucionais adquiridos passam a ser, desde meados dos
anos 90, um dos conflitos a serem enfrentados numa eventual
reforma do Estado. A crise do Welfare State no Brasil chegou antes
que ele pudesse ser, de fato, implantado em sua plenitude” (Médici,
s/d:1).
Acrescente-se a isto o fato de o país apresentar uma das estruturas
sociais mais desiguais do mundo. Segundo Lavinas, estudos diversos
realizados por Barros e sua equipe reiteram que o Brasil não é pobre, mas
137
extremamente injusto e desigual, com muitos pobres. “A desigualdade
encontra-se na origem da pobreza e combatê-la torna-se um imperativo”
(Barros & Mendonça, 2000). Conforme a autora, “essa desigualdade não se
manifesta, no entanto, tão-somente através do acesso diferenciado ao
mercado de trabalho – no dizer de Ramos e Vieira (2000) ‘o mercado de
trabalho funciona tanto como gerador quanto como revelador de
desigualdades’ –, mas, sobretudo, através do perfil regressivo e do escopo
inacabado da política social no Brasil, fragmentada, ineficiente e ineficaz”
(Lavinas, 2004).
De fato, tomando como exemplo alguns indicadores sociais acerca da
situação social do Brasil, verifica-se que apenas 0,03% da população
brasileira se encontra no topo da pirâmide da distribuição de renda. A
desigualdade de renda, por sua vez, além de extremamente elevada, tem
se mantido completamente estável nas últimas décadas. Quanto ao índice
de Gini, permaneceu em torno de 0,60 nos últimos quarenta anos. Com
isso, 10% da população do país apropria-se de quase a metade da renda
aqui gerada, enquanto os 50% mais pobres ficam com 12%, o que dá uma
idéia da gravidade da situação que o Brasil enfrenta nos termos
considerados (Medeiros,2004)48. Nas palavras de Pochmann:
“No caso brasileiro, teorias e modelos muitas vezes fracassam na
tentativa de abarcar como e por que se reproduz no Brasil uma das
mais perversas estruturas de repartição de renda do planeta. A bem
da verdade, deve-se dizer que o Brasil nunca precisou do gasto social
para magnificar a concentração da renda e da riqueza. Ninguém
questiona também o fato de que as elites – econômicas, políticas e
profissionais – sempre usaram o Estado como espaço de
intermediação dos seus interesses. E apesar de o Brasil não ter
construído um Estado de Bem-Estar Social com características
universais, não se pode descartar o papel fundamental do gasto
social para reduzir, em alguma medida, a desigualdade de renda.
Ainda que se trate de um sistema segmentado, especialmente a
partir da Constituição de 1988, houve um claro progresso no sentido
48 Ver “Renda para poucos”. In: FOLHA DE SÃO PAULO. Opinião. 1 de março de 2004
138
de sua universalização. Ultimamente verifica-se uma estranha
inversão nos termos do debate. O gasto social transformou-se no
culpado da desigualdade no Brasil. A herança escravista, a oferta
estruturalmente exorbitante de mão-de-obra, a estrutura tributária
regressiva, os juros altos, a ausência de crescimento econômico e o
enfraquecimento do movimento sindical – é como se todos estes
fatores cumprissem um papel menor para a conformação de uma
sociedade profundamente injusta” (2003:2).
Constata-se, assim, que a política social no país tende a reforçar os
parâmetros históricos da acentuada desigualdade vigente. A dimensão
assistencial da seguridade social, por exemplo, jamais deu lugar no Brasil à
formulação de uma política social de combate à pobreza que garantisse,
como princípio elementar de cidadania, a cobertura integral da população
por tempo indeterminado, assegurando transferências de bens e serviços
adequados ao grau de privação e destituição daqueles segmentos de mais
baixa renda. Ainda assim, vale ressaltar que a previdência social brasileira,
mesmo considerando todas as suas limitações, é a mais organizada da
América Latina. Pois, conforme Marques & Mendes,
“O Brasil foi o único entre todos os países latino-americanos que
conseguiu criar um sistema único para todos os trabalhadores do
setor formal da economia, unificando os vários institutos
anteriormente existentes e assim garantindo níveis de cobertura
iguais para todos, independentemente do ramo onde a atividade
fosse exercida. [...] Esse processo, ainda incompleto, avançou
significativamente com a Constituição de 1988 quando, entre outros
dispositivos, os benefícios foram estendidos aos trabalhadores rurais
e o piso correspondente a um salário mínimo foi introduzido [...].
Apesar desses avanços, a previdência social brasileira não conseguiu,
ao longo de sua construção, atingir o conjunto dos ocupados. Mas
isso não se deveu a alguma ‘deficiência’ do desenho da cobertura e
sim ao processo econômico vivenciado pelo país nas últimas décadas,
com seus inevitáveis reflexos sobre o mercado de trabalho”
(2003:13).
139
III.3.2 1930-1995
O sistema de proteção social brasileiro foi criado nos anos 30, no
primeiro governo Vargas, e expandiu-se de forma fragmentada durante as
décadas subsequentes. As características que este assumiu estão
relacionadas com o fato de ter sido implantado e expandido em períodos de
autoritarismo político: durante o Estado Novo e durante a ditadura militar,
onde – em ambas as situações - “o direito social foi concebido como
privilégio” (Bittar, 2002:13).
Em 1934 foi promulgada uma Carta Constitucional no país na qual se
reconheceu, pela primeira vez na história do Brasil, a existência de direitos
sociais a serem preservados pelo poder público. Nesse momento o Estado
assumiu igualmente a tarefa de intervir e regular contratos estabelecidos na
esfera produtiva, cumprindo sua tarefa de acumulação (Bittar, 2002:14).
Em 1943 foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT no
país. Nos anos 40, foram fundados os primeiros Institutos de
Aposentadorias e Pensões (IAPs) como entidades autárquicas, vinculadas ao
governo, que tinham a missão de filiar, de forma compulsória, todos os
trabalhadores do mercado formal urbano, recolher contribuições e ofertar
benefícios afins (Bittar, 2002:15).
Cohn (2004) ressalta que, a partir da existência de tais Institutos, foi
introduzido no país um sistema de proteção social, o qual estava
estreitamente articulado com a legislação trabalhista e sindical vigente e
permitia incorporar determinados interesses das classes trabalhadoras no
seu interior, os quais eram filtrados em função da construção do projeto
nacional-desenvolvimentista.
Nesse momento, observou-se uma estreita vinculação da política
social à política de acumulação (Bittar, 2002). De fato, de acordo com
Werneck Vianna (1998), a previdência social no Brasil consagrou a
“vinculação entre acumulação (a cota de contribuição de cada categoria
140
profissional estava subordinada ao processo de crescimento econômico e
sinalizada pelo diferencial de salário) e eqüidade (a distribuição de
benefícios era proporcional à contribuição pretérita)” (:132).
Werneck Vianna (1998) chama atenção ainda para o fato da
previdência social no país ter-se tornado “um instrumento de incorporação
controlada, definindo que direitos integravam o pacote de cidadania e quem
a eles tinha acesso” (:132). Tal fato, segundo ela, induziu Santos à criação
do conceito de cidadania regulada, cujas raízes, segundo o autor, se
encontram em um sistema de estratificação ocupacional definido por uma
norma legal. Nas palavras do autor:
“[...] o instrumento jurídico comprovante do contrato entre o Estado
e a cidadania regulada é a carteira profissional que se torna, mais
que uma evidência trabalhista, uma certidão de nascimento cívico”
(Santos, 1979:76).
Assim nas quatro décadas do período desenvolvimentista [iniciado
nos anos 30, esgotado no final dos anos 70], a carteira de trabalho
assinada significava o passaporte para o acesso ao sistema de proteção
social brasileiro, cuja expansão estava relacionada com o poder econômico
de determinadas categorias profissionais ou com a ameaça política que elas
representavam49.
Segundo Draibe (1994), tal sistema se expandiu entre os anos 40 e
60 atendendo a um padrão “seletivo (no plano dos beneficiários),
heterogêneo (no plano dos benefícios) e fragmentado (nos planos
institucional e financeiro) de intervenção social do Estado” (Draibe,
1994:275 apud Bittar, 2002:17).
49 Segundo Costa (2002), na margem de tal sistema, na esfera da “pré-cidadania”, por meio de atividades filantrópicas e outras, as políticas assistenciais vão se desenvolver no país visando o atendimento de grupos mais frágeis – trabalhadores informais, domésticos, rurais e população indigente –, “fora do núcleo duro do sistema de bem-estar, esse destinado àqueles devidamente reconhecidos e aceitos na esfera da cidadania regulada” (:34). Tais políticas, no entanto, caracterizavam-se pelo aspecto pontual paliativo, assistemático, de baixa cobertura e descontínuo das respectivas intervenções (Rosemberg, 1996; Sposati, 1995 apud Costa, 2002).
141
Para Bittar, os treze anos iniciais da ditadura militar (de 1964 a
1977), são caracterizados pela transformação radical da estrutura
institucional e financeira da política social no país (2002:17). Em 1971, por
exemplo, a introdução da previdência rural, isentando os segurados em
regime de economia familiar da contribuição financeira e do Fundo de
Assistência e Previdência do Trabalhador Rural (Funrural) para administrá-la
representou um grande avanço em termos de progressividade do sistema
(Peixoto Ramos, 2003:17).
Segundo Peixoto Ramos, a criação de tal Fundo “representou uma
ruptura completa com o princípio contributivo corporativista ou
bismarckiano, inovando ao estabelecer que os benefícios por idade
(concedidos aos 65 anos), invalidez ou viuvez não estariam relacionados
com a renda anterior dos segurados ou com seu esforço contributivo”
(idem)50.
Werneck Vianna ressalta, no entanto, que a maior repercussão nos
rumos do sistema de proteção social brasileiro, durante a ditadura militar,
se deu pelo fato de este ter sido atrelado a uma lógica privatizante, tendo
em vista: i) a adoção de critérios do mercado na gestão dos organismos
públicos; ii) a terceirização; iii) a criação de fundos para financiá-lo [que
acabaram sendo desviados]; iv) a particularização dos programas correlatos
e; sobretudo, v) a insuficiência do atendimento prestado (1998:136).
A autora destaca finalmente o ano de 1974 como um novo marco na
trajetória de tal sistema quando o “milagre econômico” dos anos anteriores
foi interrompido, o contexto político começou a apresentar mudanças e as
questões sociais ressurgiram. Nesse momento, as políticas sociais foram
50 Segundo Peixoto Ramos, alguns fatores ajudam a explicar tal paradoxo (Malloy, 1979; Delgado & Cardoso Jr., 2000; Schwarzer, 2000): em primeiro lugar, no tocante à expansão da Previdência Social aos agricultores, o setor rural ganhou força política no fim dos anos 50 e início dos 60; em segundo lugar, o regime militar era baseado em uma aliança política que incluía técnicos da Previdência Social, que simpatizavam com o paradigma de universalizar a cobertura da seguridade social. Igualmente importante para o sucesso dessa implementação gradual, conforme a autora, foi o interesse dos membros do partido da Aliança Renovadora Nacional (Arena), o suporte civil do regime militar, em aumentar o controle sobre um grande segmento da população, por meio de um novo sistema de distribuição de benefícios. Em terceiro lugar, a doutrina militar de segurança nacional considerava a estabilidade social precondição importante para o desenvolvimento econômico e para a desejada transformação do Brasil em uma nação poderosa. Dessa forma, os militares estavam propensos a acolher as propostas de política social que poderiam potencialmente contribuir para aumentar a “grandeza nacional” (2003:5).
142
revistas, sendo acelerado seu processo de “universalização excludente”
segundo o qual “cada movimento de expansão universalizante do sistema
[de proteção social] é acompanhado de mecanismos de racionamento que
expulsam daquele diversos segmentos sociais” (Faveret & Oliveira, 1990
apud Werneck Vianna,1998:159).
De todo modo, o sistema de políticas sociais do país que chegou aos
anos 80 já se constituía em uma decisiva intervenção do Estado nessa área,
por várias razões e dimensões (Draibe, 2002:5). Entre estas Draibe cita:
§ a presença, no núcleo do sistema, de programas de transferência
monetária e de prestação universal de serviços básicos;
· um razoável esforço financeiro do Estado traduzido em um gasto
social público da ordem de 15% a 18% do PIB;
§ as enormes clientelas já cobertas pelos programas sociais;
§ os graus de diferenciação e complexidade institucional;
§ a integração dinâmica desse sistema no jogo político, por se
constituir em amplo espaço do exercício corporativista e da barganha
clientelística.
Ainda assim, foi medíocre o desempenho das políticas sociais no país
nesse período, aquém das necessidades da população (Draibe, 2002). Entre
as mais adversas características de tal desempenho, Draibe destaca:
· a fraca capacidade de incorporação social, deixando à margem do
progresso social um vasto contingente de excluídos de todo tipo, em
especial os trabalhadores rurais e grupos urbanos pobres;
· seus programas pouco contribuíram para a redução das acentuadas
desigualdades sociais, do mesmo modo que foram praticamente
nulos os seus efeitos sobre os resistentes bolsões de pobreza;
· no plano dos benefícios dispensados, estes abrigaram e reforçaram
privilégios;
· a sua dinâmica de crescimento tendeu a pautar-se por forte
dissociação entre os processos de expansão quantitativa e a melhoria
da qualidade dos bens e serviços sociais prestados.
143
Draibe (2002) ressalta ainda que o incipiente sistema de proteção
social brasileiro, criado nos períodos de autoritarismo político, foi
sistematicamente pressionado pelos baixos salários, pela elevadíssima
concentração da renda e pelas enormes dimensões de sua clientela.
Segundo a autora, no final dos anos 70 e início dos 80, chamavam a
atenção as seguintes características relativas ao mesmo: i) a combinação
da concentração de poder e recursos no executivo, com uma elevada
fragmentação institucional, permeável a clientelismos; ii) elevados
desperdícios e ineficiências na utilização de recursos; iii) densas redes de
estímulos ao setor privado, “projetando um alto grau de privatização, tanto
pela crescente presença do setor privado produtor de serviços sociais
quanto pela introdução da lógica e dos interesses privados e particularistas
nas arenas decisórias” (Draibe, 2002:7).
Da mesma forma que Draibe, Abranches enfatizou “a peculiar
associação entre estatismo e privatização” observada com relação ao
sistema de proteção social brasileiro no período ditatorial. Segundo o autor,
a privatização de tal sistema se deu em função: i) da opção pelos
indicadores econômicos em detrimento dos objetivos finais da política
social; ii) da transferência da provisão de bens e serviços ao setor privado;
iii) da reciclagem do recurso dos programas sociais ser feita no sistema
financeiro; iv) da captura dos programas sociais por interesses particulares
de grupos específicos, tornando-os privilégios corporativos ou ocupacionais
(Abranches, 1985:54-55 apud Bittar, 2002:22).
Entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80, o processo de
transição política no país rumo à redemocratização impôs reformas no seu
sistema de proteção social, as quais deveriam contemplar, entre outros
aspectos, uma mudança no respectivo padrão de financiamento visando
torná-lo menos susceptível às oscilações econômicas (Bittar, 2002).
Todavia, se até os anos 70 o Brasil alcançou altas taxas de
crescimento econômico e conviveu com taxas relativamente baixas de
inflação, no início dos anos 80 foram registrados os primeiros sinais do
144
impacto da crise do petróleo e do endividamento externo (Draibe, 2002).
Assim, a década de 80 caracterizou-se pela forte oscilação das taxas de
crescimento econômico do país, sendo marcada também pela crescente
pressão do endividamento, pelas altas taxas de inflação e pela sucessão de
fracassados planos de estabilização monetária implementados durante o
governo Sarney (1985-1989) - primeiro governo civil que sucedeu ao
regime militar (Draibe, 2002).
Nesse contexto de instabilidade econômica, mas também de
democratização, o Brasil realizou o que Draibe (2002) classificou como o
primeiro ciclo de reformas das políticas sociais no país, que tinham a ver,
entre outros fatores, com o advento da Nova República e com a pressão de
movimentos sociais (Soares, 1994 apud Bittar, 2002:24). Um segundo ciclo
de reformas, segundo Draibe, seria realizado no Brasil em meados dos anos
90, no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob a égide do neoliberalismo.
Na percepção de Rosário da Costa, as reformas do primeiro ciclo que
Draibe faz referência só se fizeram possíveis porque as decisões da política
econômica, nesse momento, ainda respondiam com elevado grau de
autonomia às condicionalidades definidas pela comunidade financeira
internacional (2002:4-5). De todo modo, no primeiro governo da Nova
República, a prioridade do social permaneceu apenas no nível do discurso
(Souza, 1987 apud Bittar, 2002:26)51. Nesse contexto
“[...] fatores conjunturais – a ruptura da coalizão que viabilizou a
transição e a demora na convocação da Assembléia Constituinte – e
estruturais – partidos políticos não cumprem seu papel como veículo de
intermediação de interesses e regras institucionais que conduzem à
super-representação de regiões atrasadas – produzem fragmentação
institucional e paralisia decisória. O projeto de ampla reestruturação das
políticas sociais dá lugar a um conjunto de ações pontuais, muitas das
quais de caráter assistencial” (Melo, 1990 e 1993 apud Bittar, 2002:26).
51 Ainda assim, os primeiros programas de combate à pobreza elaborados no país surgem nesse período (Bittar, 2002:25). Todavia, conforme a autora, estes se ressentem da falta de um planejamento de longo prazo e de um projeto que os distancie da prática assistencialista (idem).
145
De todo modo, no final dos anos 80, o gasto público havia sido
expandido assim como adotados critérios universalistas para a definição de
direitos sociais, formalizados na Constituição Federal de 1988 (Rosário da
Costa, 2002), a qual pode ser percebida como o ápice de um processo da luta
democrática, iniciado na década anterior (Marques & Mendes, 2003:4).
De fato, a promulgação da Constituição de 1988 tinha a clara
intenção de responder críticas de diversos atores, sobretudo dos
movimentos sociais, quanto às características das políticas sociais
implantadas no país, a seu ver, seletivas, fragmentadas, excludentes e
setorializadas. Em contrapartida, “a universalização de direitos e a
participação da comunidade na definição das políticas sociais tinham como
princípio fundador a superação do caráter meritocrático e a adoção da
cidadania como critério de acesso” (Marques & Mendes, 2003:4)52.
Tal Constituição apontou para uma mudança no caráter do padrão
brasileiro de proteção social, o qual se tornou mais igualitário e
universalista. Percebe-se no texto dessa Carta o aprofundamento da
vertente redistributiva das políticas sociais; o maior controle público e
social de sua execução e regulação; a expansão da cobertura e atenuação
do vínculo contributivo como estruturador do sistema (Draibe, 1989 apud
Costa, 2002).
A Constituição de 1988 prestou especial atenção ainda à questão da
cidadania, contemplando direitos civis, políticos e sociais. Por esse motivo,
ficou conhecida como Constituição Cidadã (Benevides, 2001). Introduziu
igualmente um conceito mais amplo de seguridade social, baseado no tripé
previdência, saúde e assistência social53. Assim, de acordo com a tipologia
52 De acordo com esses autores, a cidadania é facilmente reconhecível na área da saúde, pois “de uma situação onde o serviço público era voltado apenas aos trabalhadores do mercado formal, passou-se à garantia do direito para todos” (Marques & Mendes, 2003:5). 53 Segundo Werneck Vianna, a Assembléia Nacional Constituinte gravou na Carta, “os traços de um sistema digno do conceito de Seguridade Social: universalidade da cobertura e do atendimento; uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; irredutibilidade do valor dos benefícios; eqüidade na forma de participação no custeio; diversidade da base de financiamento; e caráter democrático e descentralizado da gestão administrativa com participação da comunidade, em especial de trabalhadores, empresários e aposentados” (1998:163).
146
de Esping-Andersen, ao invés de assumir como pressuposto o modelo
“bismarckiano” de Welfare State, passou a adotar o “social democrata”
(Costa, 2002).
A área da seguridade social, na qual os princípios da universalização da
cobertura e do atendimento mais avançaram, foi a da saúde. Conforme
ressalta Burlandy, “a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) foi
expressão de um dos mais importantes projetos de reforma na área social,
norteado pelos princípios da unicidade de comando no Ministério da Saúde,
acesso universal e igualitário, equidade, controle social, descentralização,
integração e hierarquização do cuidado à saúde” (2003:58).
Com a promulgação da Constituição de 1988 avançou também a
assistência social no país, a partir de então instituída enquanto uma política
social não contributiva, pautada sob os princípios da universalidade do
atendimento, seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e
serviços (Draibe, 1998). A assistência social, assim, foi percebida como um
direito da população (Bittar, 2002). Nesse contexto, no âmbito da mesma, a
renda mensal vitalícia é assegurada para o idoso e o deficiente que não
dispunham de meios para sua sustentação. Quanto à previdência social, sua
realização mais importante, segundo Draibe, foi “a equalização dos benefícios
dos trabalhadores urbanos e rurais” (Draibe, 1993 apud Bittar, 2002:28).
Todavia, conforme ressaltam Marques & Mendes (2003), uma série de
fatores são demonstrativos da forma como o conceito de “seguridade social”
foi sendo minado ao longo dos governos que se seguiram à promulgação da
Constituição de 1988 como, por exemplo, a utilização em outros propósitos de
parte dos recursos destinados para atividades afins.
De forma similar, Azeredo (1993) destaca que no período subsequente à
promulgação dessa Constituição foram evidenciados vários problemas que
impediam a execução dos respectivos preceitos, como o agravamento do
processo recessivo e a crise fiscal da União (Azeredo, 1993:33 apud Werneck
Vianna, 1998:167).
147
Segundo Draibe, nos dois últimos anos do governo Sarney a política
social perdeu a centralidade: “Há um adensamento das ações federais
assistencialistas com objetivos eleitorais. Já as outras áreas de política social
seguem um movimento que espelha o econômico: cortes e reduções nos anos
piores, pequenas recuperações nos melhores” (Draibe,1993 apud Bittar,
2002:31).
No início dos anos 90, a orientação neoliberal do governo Collor e o
desmantelamento da máquina pública agravaram a situação do sistema de
proteção social brasileiro, tornando mais difícil a tarefa de realizar as
mudanças previstas constitucionalmente. Um exemplo neste sentido foi o veto
imposto por este presidente à nova Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS),
a qual foi finalmente aprovada em 1993 depois do impeachment de Collor, no
final de 1992 (Peixoto, 2003) 54.
O governo Collor, na realidade, representou um ponto de inflexão na
política econômica do país por meio da implantação de “um liberalismo de
orientação mercadológica, politicamente temperado por preceitos social-
democratas, em que pese a contradição entre o discurso de posse, lançando o
liberalismo social, e o elevado intervencionismo econômico contido no
subseqüente Plano Collor” (Peixoto, 2003:6) .
Dessa forma, em tal governo, o conceito de “cidadania regulada” de
Santos é substituído pelo de “ausência de cidadania” devido à falta de serviços
adequados que pudessem suprir as necessidades sociais da população (Bittar,
2002). Para Soares (1995), nem o assistencialismo, nem o clientelismo foram
capazes de compensar a brutal redução de serviços públicos essenciais que se
assistiu nesse período (Soares, 1995:257 apud Bittar, 2002:32). Já o governo
Itamar Franco, que sucedeu o de Collor, restringiu sua atuação à tentativa
inócua de controle do surto inflacionário vivenciado pelo país (Tavares de
Almeida, s/d).
54 A LOAS veio a ser plenamente implementada somente em 1995 na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso (Schwarzer & Querino, 2002:15).
148
III.3.3 1995 até a atualidade
Conforme Draibe (2002), em meados dos anos 90 o país ingressou
em um segundo ciclo de reformas no seu sistema de proteção social, depois
daquele realizado no final dos anos 80, que culminou com a promulgação da
Constituição de 1988.
Na percepção da autora, essas reformas podiam ser percebidas como
um desafio para o governo Fernando Henrique Cardoso, o qual deveria
respeitar o compromisso social-democrata por um lado; e as condições
internacionais da globalização por outro, cujas evidências, segundo Draibe,
retrataram “um movimento de inflexão gradual do padrão pretérito de
proteção social, [...] através da introdução ou reforço de pelo menos três
características: a descentralização; os novos parâmetros para a alocação de
recursos; e a redefinição das relações público-privado no financiamento e
na provisão de bens e serviços sociais” (2002:7). Tal movimento levou à
focalização e ao constrangimento do financiamento social (Rosário da Costa,
2002).
De todo modo, ainda no primeiro governo de Fernando Henrique
Cardoso foram tomando corpo as diretrizes em termos das politicas sociais
definidas na Constituição de 1988 “com a lenta descentralização de
responsabilidades e recursos e a extensão da prestação de benefícios e
serviços sociais especialmente nas áreas da saúde, educação básica e
assistência social” (Tavares de Almeida,s/d: 3)55. Também nesse governo
começaram, de forma gradual, a ser corrigidas algumas das distorções do
sistema previdenciário do país, caracterizado pela regressividade na
distribuição de benefícios.
No entanto, o governo de Fernando Henrique Cardoso ficou longe de
progredir em outros aspectos fundamentais, como na superação da pobreza e
na redução da desigualdade social (Cohn, 1999, 2002; Bittar, 2002; Draibe,
2002).
55 Segundo a autora, dois fatores foram decisivos nesse processo, quais sejam: i) a estabilidade monetária, resultante da adoção do Plano Real; e ii) o longo aprendizado institucional que viabilizou a descentralização de responsabilidades e um maior entrosamento entre as três esferas de governo.
149
De fato, durante os oito anos desse governo optou-se por políticas
focalizadas com vistas a aumentar a efetividade do sistema de proteção
social brasileiro, partindo-se do diagnóstico de que este não fazia jus ao
respectivo custo56. Adotou-se, assim, uma concepção de política social na
qual se acreditava que a pobreza era inevitável e que “o significativo
desperdício de recursos na área deveria ser eliminado por uma política de
“racionalização” dos gastos”, em encontro às recomendações de
organizações internacionais (Bittar, 2002: 74).
Segundo Cohn , a partir de 1994, a tendência foi a de se conformar
no país um sistema dual de proteção social, submetido a lógicas distintas na
sua articulação com a dinâmica macroeconômica: de um lado, aos
benefícios sociais assistenciais de caráter não contributivo, financiados com
recursos orçamentários da União, destinados àqueles segmentos que não
têm acesso ou têm acesso limitado ao mercado de trabalho; de outro, aos
benefícios sociais securitários de caráter contributivo financiados com
recursos privados em geral subsidiados pelo Estado, destinados aos
segmentos sociais com capacidade de acesso a este mercado (2002:186).
Dessa forma, na percepção da autora, “transpõe-se para a esfera da
responsabilidade privada a garantia da satisfação de determinadas
necessidades sociais básicas” (idem), ao mesmo tempo em que se faz a
defesa da flexibilização e da focalização das políticas sociais tendo em vista
a necessidade de ajustá-las aos gastos públicos, como critério de eficácia da
ação governamental.
Quanto à problemática social, nesse contexto, continuou reduzida a
um somatório de “problemas sociais” enfrentados pontual e isoladamente
(idem). Reproduziu-se, assim, uma concepção segmentada da questão
social e, junto com esta, assistiu-se à formulação e implementação de
políticas sociais fragmentadas e setorializadas, sem um projeto integrado 56 Conforme ressalta Ivo (2001) a reconversão da questão social para o âmbito exclusivo da assistência subordinada à tese da eficiência dos gastos sociais, tende a despolitizar e tecnificar a questão social, transformando direitos sociais (universais) em programas e medidas técnicas ou estratégicas de distinguir, contar e atribuir benefícios a um conjunto de indivíduos selecionados pelos inúmeros programas sociais focalizados, sem se constituir em direitos. Ademais, além de alterar a perspectiva política constitucional dilui o princípio do direito à racionalidade técnica do gasto público. Opera-se, portanto, uma ruptura estrutural entre os planos social, econômico e político, através de um processo de transição que prioriza o tratamento da questão social com base em um novo modelo de assistência focalizado (Ivo, 2001).
150
que as articulasse e imprimisse um sentido orgânico ao seu conjunto (Cohn,
2002).
De fato, o governo Fernando Henrique Cardoso não conseguiu contar
com uma política social no sentido de uma atuação organizada
intersetorialmente, com propósitos e objetivos bem definidos na oferta de
bens e serviços de qualidade e com responsabilidades e ações explícitas
entre esferas de governo hierarquicamente distintas. Um exemplo claro
nesse sentido foi o Sistema Único de Saúde (SUS) que, como demonstrou
Gerschman (2002), durante esse governo, não rompeu com práticas
clientelísticas associadas ao tráfico de influências no exercício da política
pública, profundamente arraigadas na cultura política e institucional do país.
Gerschman ressalta ainda que o modelo político-econômico adotado
no Brasil na década de 90 significou para o SUS uma trajetória não-linear,
se considerados os preceitos constitucionais nos quais estava embasado. A
autora destaca, contudo, a instituição das Normas Operacionais Básicas
(NOBs) que passaram a regular o setor e trouxeram alterações relacionadas
ao modelo de assistência à saúde, como a maneira encontrada de cobrir
assistencialmente grupos da população que tinham maior dificuldade de
acesso à saúde e que viviam em situação de pobreza absoluta, o que, por
outro lado, levantou a polêmica da focalização versus a universalização dos
serviços afins (Gerschman, 2002).57
Bittar destaca como “uma das grandes novidades da década de 90”,
no âmbito do governo Fernando Henrique Cardoso, o lançamento do
Comunidade Solidária (2002:74), o qual, segundo Burlandy (2003) não era
“um programa governamental stricto sensu, mas uma proposta estratégica
de combate à pobreza, um condomínio de múltiplos objetivos onde co-
habitavam programas emergenciais e estruturais, inseridos na política
57 A autora enfatiza que o SUS gerou uma arena política extensa já que o seu processo decisório passou a envolver instituições e atores sociais das esferas federal, estadual e municipal, tornando complexo o policy-making no setor, ainda que as representações setoriais revelem um perfil mais corporativo, menos pluralista, conforme salienta.
151
social, sem, no entanto, esgotá-la” (Peliano, 1995; Resende, 2000 apud
Burlandy, 2003:124).
Quatro princípios nortearam a concepção de tal estratégia: i) a
parceria, ii) a solidariedade, iii) a descentralização das ações sociais do
governo, iv) a integração e a convergência destas para os municípios e
grupos populacionais considerados mais pobres (Burlandy, 2003:125).
Os objetivos gerais do Comunidade Solidária eram: i) otimizar a
gestão de programas federais que trouxessem benefícios imediatos aos
grupos mais vulneráveis, promovendo a participação da sociedade no
controle da sua execução; ii) apoiar, no limite dos recursos disponíveis,
programas, experiências, projetos e iniciativas do governo e da sociedade
em áreas de concentração de pobreza que permitissem o desenvolvimento
de novos mecanismos de implementação de ações; iii) identificar novas
prioridades e elaborar propostas de ação para o governo e a sociedade em
relação a temas emergenciais e grupos particularmente vulneráveis, como
crianças, jovens e desempregados, cujas necessidades e direitos não
estavam contemplados de forma adequada nos programas em curso
(Resende, 2000).
A integração das ações propostas por via desse programa buscava
responder a diagnósticos de ineficiência de 16 programas setoriais
prioritários, que compunham a “cesta básica de ofertas” dessa estratégia, a
qual priorizava intervenções nas seguintes áreas: alimentação e nutrição;
redução da mortalidade infantil; apoio ao ensino fundamental; apoio à
agricultura familiar desenvolvimento urbano; geração de ocupação e renda
e qualificação profissional, postos em prática pelos diferentes ministérios e
secretarias da área social (Burlandy, 2003:126).
A idéia-força que orientava o Comunidade Solidária era a de
maximizar resultados pela implementação de ações simultâneas,
complementares e focalizadas em municípios selecionados [com maior
proporção de população indigente] e de seus limites em termos de
organização social, capacidade técnico-institucional, disponibilidade de
152
serviços públicos, geração de receitas próprias e canais de participação e
controle social (idem).
Tal programa enfrentou sérios problemas desde sua implantação,
derivados, sobretudo, das restrições orçamentárias; da falta de agilidade da
burocracia governamental e; de definição do seu próprio papel de
coordenação do conjunto das políticas sociais do governo, o que foi difícil
concretizar em função de disputas inter e intraministeriais, e no interior do
próprio Programa, como entre a sua Secretaria Executiva e o respectivo
Conselho Consultivo (Cohn, 1995; Resende, 2000; Burlandy, 2003)
Apesar de considerar a proposta do Comunidade Solidária como
“inovadora e ousada”, Bittar (2002) aponta para as dificuldades na
operacionalização desta, cujas ações, segundo ela, parafraseando Costa
(1997),
“[...] acabaram repetindo práticas conservadoras e assistencialistas,
com caráter meramente compensatório. Além de ter havido um
desmantelamento do Programa quando repassado para as regiões. A
descentralização e a parceria não ocorreram, já que estados e
municípios se limitaram a executar as determinações do governo
federal” (Costa, 1997:88-89 apud Bittar, 2002:75).
Burlandy (2003) destaca igualmente os desafios relativos à
implementação da estratégia do Comunidade Solidária, como a
regularização da transferência de recursos, o fortalecimento da participação
social, o reforço à convergência e integração das ações, a realização de
diagnósticos e a adequação dos programas às realidades locais. Baseada
em estudos de Vellozo (2000) e Santos (2001), a autora afirma que o
Comunidade Solidária parece ter tido pouco sucesso em investir em
programas sociais de uma nova racionalidade em função: de práticas
clientelísticas; da distância dos grupos mais pobres das arenas políticas; da
autonomia reduzida, em termos decisórios, das instâncias locais com as
quais interagia (idem).
153
O Comunidade Solidária esteve em vigor até 1999, quando o governo
Fernando Henrique Cardoso instituiu o Programa Comunidade Ativa, visando
potencializar os recursos das próprias comunidades no combate à pobreza
além de buscar tornar os municípios auto-sustentáveis.
A concepção do Comunidade Ativa era consistente com a discussão
sobre a pobreza que, segundo Bittar (2002), contaminou os mais diversos
setores do Congresso Nacional em 1999, resultando na criação de uma
comissão para estudar as causas da desigualdade social no país e apontar
para alternativas para reduzi-la, dando origem ao Fundo de Combate e
Erradicação da Pobreza, regulamentado em 2001.
Tal comissão chegou a conclusões que serviram igualmente como
embasamento para a elaboração do Plano Plurianual (PPA) do governo de
Fernando Henrique Cardoso, intitulado “Avança Brasil” (Presidência da
República, 2001)58. Dentre estas, vale destacar a importância salientada de
combinar o crescimento econômico com políticas voltadas diretamente para
o combate à pobreza por meio da associação entre ações emergenciais e
estruturais. (Congresso Nacional, 1999 apud Bittar, 2002:76).
Em 2000 o Avança Brasil entrou em vigor, com vigência até 2003.
Em sua “Orientação Estratégica” dizia ter como objetivo mudanças
estruturais no modelo de desenvolvimento do país, e como desafio (entre
outros) abrir o campo de oportunidades para os excluídos. Este se
desdobrava em quatro grandes diretrizes: i) consolidar a estabilidade
econômica com crescimento sustentado; ii) promover o desenvolvimento
sustentável voltado para a geração de emprego e oportunidades de renda;
iii) combater a pobreza e promover a cidadania e a inclusão social; e iv)
consolidar a democracia e a defesa dos direitos humanos (Presidência da
República, 2001).
58 A estratégia de desenvolvimento do Brasil está definida no Plano Plurianual (PPA) do governo federal. Instituído na Constituição brasileira de 1988, o PPA é um instrumento de orientação estratégica para o desenvolvimento econômico e de alocação de recursos a médio prazo. Organiza todas as despesas do governo federal com cada um dos programas durante um período de quatro anos (sendo preparado no primeiro ano de cada novo governo). Fazem parte integral da estrutura do PPA um plano orçamentário trienal atualizado periodicamente e os orçamentos individuais anuais (Banco Mundial, 2004).
154
O Avança Brasil visava, sobretudo, trabalhar as diversas demandas
sociais de forma integrada (Bittar, 2002:78). Nesse sentido contemplava
duas iniciativas voltadas para tal fim: o Programa Comunidade Ativa, que
havia substituído o Comunidade Solidária em 1999 e; o Projeto Alvorada,
criado pelo governo Fernando Henrique Cardoso em 2000 no sentido de
apoiar prioritariamente municípios brasileiros com menores Índices de
Desenvolvimento Humano (IDH).
O Projeto Alvorada, tal como o Comunidade Ativa, não chegou a
apresentar os resultados esperados frente à lentidão de sua implementação
e execução orçamentária e à falta de um sistema de informações que
subsidiasse o respectivo processo de estruturação e funcionamento (Bittar,
2002).59
Quanto ao Avança Brasil, foi organizado em 28 macroobjetivos, aos
quais estavam dirigidos programas finalísticos congregando ações
específicas (projetos e atividades orçamentárias e ações não exigentes em
recursos financeiros). Dos 28 macroobjetivos, 15 destinavam-se a atacar
manifestações da pobreza extrema e pelo menos outros sete programas, de
natureza mais econômica, teriam forte impacto sobre a geração de trabalho
e renda (Presidência da República, 2001).
Dentre os programas contemplados pelo Plano Plurianual, se destaca
aqueles voltados para transferências monetárias que, no final do governo
Fernando Henrique Cardoso, em dezembro de 2002, estavam dispersos em
pelo menos seis iniciativas, a cargo de diferentes ministérios, sem uma ação
coordenada, o que impedia sua otimização e efetividade. Muitas vezes,
estes chegavam a concorrer entre si com relação à disponibilidade e/ou
liberação de recursos (Zimmermann, 2004). Tais programas estavam
divididos em:
1. Programa para Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) ou
Programa Bolsa-Criança-Cidadã - instituído em 1996, voltado para famílias
59 Segundo Bittar (2002), até novembro de 2001, o Comunidade Ativa só havia realizado 12% dos R$ 17,9 milhões previstos para o mesmo no orçamento da União, no ano em questão.
155
com renda per capita de até meio salário mínimo e com filhos na faixa
etária entre 7 e 14 anos que exerciam alguma atividade laboral 60.
De acordo com Silveira & Ramos, a estratégia de ação do PETI
envolvia, como elemento central, a concessão de uma transferência
monetária às famílias, condicionada à matrícula e frequência regular à
escola de seus filhos e/ou dependentes e à observância da proibição de
trabalho infantil. O valor do montante transferido variava de acordo com a
região, podendo corresponder no máximo a R$ 50,00 por criança e R$
150,00 por família. O programa concedia ainda um subsídio aos municípios
participantes (no valor de R$ 25,00 por criança) para financiar atividades
em uma jornada suplementar. Este implicou no estabelecimento de várias
parcerias envolvendo a participação de organizações governamentais, não-
governamentais e agências internacionais, como a OIT e o UNICEF
(1999:12).
O PETI foi iniciado em 1996 na região das carvoarias do Mato Grosso
do Sul, sendo expandido para outras áreas a partir de 1997, como a zona
canavieira de Pernambuco e a zona do sisal na Bahia. No final de 1998,
estava implantado em sete estados e 140 municípios, atendendo a 117.200
crianças e adolescentes (Silveira & Ramos, 1999:13). Em 2002, contava
com 810 mil beneficiários cadastrados, estando sob a responsabilidade do
Ministério da Previdência e Assistência Social (Suplicy, 2002c).
2. Programa de Renda Mínima vinculado à Educação ou Bolsa Escola -
instituído inicialmente em 1997, através da Lei nº 9.533/97, entrou em
operação em 1999 e foi reformulado em 2001, com a Lei nº 10.219/01. Era
voltado para famílias com crianças de 6 a 15 anos, com renda mensal
abaixo de R$ 90 ou meio salário per capita (em valores de abril de 2001),
com direito a receber R$ 15, R$ 30 ou R$ 45 por mês, dependendo de a
família ter uma, duas ou três crianças freqüentando a escola. Havia cerca
de 5,7 milhões de famílias cadastradas no mesmo no final de 2002, que
60 Conforme pesquisa da Fundação de Ciências Aplicadas (2001), na faixa da população com renda familiar per capita de até meio salário mínimo, 27% dos brasileiros com 10 a 14 anos de idade, trabalhavam. Já para famílias com renda superior a dois salários mínimos, este índice caía para 6,3%.
156
estava sob a responsabilidade do Ministério da Educação 61 (Splicy, 2002c).
Tal programa será analisado com maior detalhamento no item subseqüente
deste trabalho.
3. Programa Agente Jovem - instituído em 2001, voltado para jovens
de 15 a 17 anos em situação de risco social, cujas famílias tinham uma
renda mensal abaixo de meio salário mínimo per capita, com direito a
receber R$ 65 por mês desde que freqüentassem a escola e realizassem
serviços comunitários. Havia 105 mil jovens cadastrados no mesmo em
outubro de 2002, que estava sob a responsabilidade do Ministério da
Previdência e Assistência Social (idem).
4. Bolsa Alimentação ou Programa de Renda Mínima vinculado à
Saúde - instituído em 2001, voltado para gestantes ou crianças em situação
de risco nutricional na faixa de zero a 6 anos, com direito a receber R$ 15
por beneficiário, com um limite de R$ 45 por família, por mês. Havia
1.403.010 gestantes e mães cadastradas no programa em outubro de 2002,
que estava sob a responsabilidade do Ministério da Saúde (idem).
5. Programa de Auxílio-Gás - instituído em 2002, voltado para
famílias com renda per capita mensal abaixo de meio salário mínimo
cadastradas no Programa Bolsa-Escola ou no Cadastro Único dos Programas
Sociais, que começou a ser implantado no governo FHC em 2001. Tais
famílias tinham o direito de receber R$ 15 a cada dois meses para a compra
de gás. Havia 8,5 milhões de famílias cadastradas no mesmo em novembro
de 2002, que estava sob a responsabilidade do Ministério de Minas e
Energia (idem).
6. Bolsa Renda - instituído em 2002, voltado para famílias moradoras
em áreas rurais vítimas da seca no Nordeste, com direito a receber R$ 30
mensais enquanto perdurassem as condições adversas desde que
mantivessem as crianças nas escolas. Havia 1,6 milhão de famílias
61 Em 2002, dos 5.561 municípios brasileiros, 5.536 já tinham firmado convênios com a União para a implantação de programas de renda mínima, sendo que o Orçamento Geral da União de 2002 alocou R$ 2 bilhões para cobrir os custos dos programas relacionados com o Bolsa-Escola, segundo dados do Ministério da Educação, responsável pela gestão do mesmo.
157
cadastradas no mesmo em dezembro de 2002, que estava sob a
responsabilidade do Ministério de Integração Nacional.
Em 2002, o Ministério da Previdência Social controlava, ainda, o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), transferindo mensalmente, sob a
forma de salário mínimo, o valor de R$ 200 para idosos e portadores de
deficiência com renda familiar per capita de um quarto de salário mínimo62.
Cabia também a esse Ministério administrar a Previdência Rural; ou seja, a
transferência mensal de um salário mínimo aos idosos, viúvas, segurados
em licença de saúde ou que estavam em regime de seguridade social
especial, desde que tivessem trabalhado em atividades rurais familiares.
Segundo Zimmermann (2004), frente ao quadro exposto, muitas das
iniciativas do governo Fernando Henrique Cardoso na área social
caracterizaram-se pelo elevado custo das operações administrativas
envolvidas e pela setorialização, conforme observado com relação aos
programas de transferência monetária. De fato, ainda que por meio do
Plano Avança Brasil o governo desse presidente tenha formatado uma
densa rede de proteção social, contemplando políticas compensatórias e
ações mais estruturais (Tavares de Almeida, 2004), não conseguiu diminuir
a exclusão e a desigualdade social, que tem se mantido estável no país, nas
últimas décadas (Barros et alli., 2000).
Da mesma forma, muitos dos programas sociais no Brasil, no final do
governo Fernando Henrique Cardoso, continuavam distantes na prática do
seu discurso; fragmentados institucionalmente; segmentados entre o setor
público e o privado e entre os diferentes públicos; revelando incapacidades
técnicas e administrativas e insuficiência de recursos das mais variadas
naturezas. Finalmente, tais programas continuavam à mercê da política
econômica, seus recursos sendo utilizados como mecanismo de ajuste fiscal
(Cohn, 2002, 2003; Bittar, 2002).
62
Graças ao Estatuto do Idoso, promulgado em outubro de 2003, já no governo Lula, houve um aumento
significativo da população atendida pelo BPC, uma vez que o Estatuto reduziu a idade mínima para a
concessão do benefício de 67 para 65 anos de idade, desde que o beneficiário tenha uma renda mensal per
capita inferior a 25% do salário mínimo, além de permitir que mais de um idoso na mesma família receba
o benefício (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005).
158
O primeiro ano do governo Lula, 2003, caracterizou-se pela
continuidade da política econômica do governo anterior, comprometido com
a austeridade fiscal, o estabelecimento de metas de inflação e com o
cumprimento dos contratos da dívida 63. As tensões iniciais com relação às
reformas previdenciária e tributária, iniciadas nesse mesmo ano, se fizeram
sentir no interior do próprio partido dos trabalhadores (PT), junto aos seus
parlamentares, ao terem que apoiar medidas que, na sua percepção,
entravam em franca contradição com todo o ideário político do partido,
causando constrangimentos e a perda de quadros.
Intelectuais, como Francisco de Oliveira, fundador do PT e um de
seus principais representantes no mundo acadêmico em entrevista
concedida ao Jornal da Unicamp questionou a reforma da Previdência
realizada pelo governo Lula afirmando que esta era de caráter fiscalista e
que restringia os marcos da seguridade social. A seu ver, tal tato traduzia
uma contradição já que um partido de trabalhadores - coluna vertebral do
governo - deveria ampliar e não restringir a previdência por “razões de
justiça social, de cidadania e até econômicas, porque a seguridade social
constitui um poderoso regulador dos movimentos erráticos da economia”.
Francisco de Oliveira (2003) questionou igualmente a posição dos
deputados do PT nessa questão. Nas suas palavras:
“[...] os deputados estão falando em nome de quem? Deveriam estar
falando pela força eleitoral que a institucionalidade do sistema
partidário lhes confere. Nesse ponto há um corte [e] a instituição
política do partido ganha uma economia em relação à chamada base
social. [...] O mandato representativo é ao mesmo tempo delegativo.
Uma vez com o mandato, ele [deputado] age de maneira autônoma.
Isso é fatal para a relação com a base. Exemplo disso é que os
destaques propostos para alterar o texto da reforma foram retirados.
Isso demonstra que não há muita diferença hoje, no Brasil, entre
situação e oposição. Há uma mistura de interesses” (Jornal da
Unicamp, 29/8/2003).
63 A austeridade na política fiscal foi formalizada no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) apresentado ao Congresso em abril de 2003, estabelecendo a meta de 4,25% para o superávit primário no período de 2003-2006 (Banco Mundial, 2004).
159
O governo Lula adotou uma estratégia de concertação social quanto
aos mecanismos institucionais de negociação e argumentação com a
sociedade civil. Foi nesse sentido que constituiu o Fórum do Trabalho e o
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social enquanto espaços
privilegiados de interlocução e diálogo com a sociedade.
Tal governo realizou também uma discussão pública do seu Plano
Plurianual (PPA) para 2004-2007, intitulado “Um Brasil para Todos”, em
todos os 27 estados brasileiros, contando com representantes de diversos
segmentos sociais64 . Segundo a organização não-governamental (ONG)
Inter-redes (2004), o que estava em questão nesse momento “era a
possibilidade de construção participativa de um projeto nacional de
desenvolvimento sustentável com justiça social, que também possibilitasse
aprofundar as estruturas democráticas de controle social sobre o PPA e
sobre os recursos públicos”.
A sociedade civil, por sua vez, demonstrou vontade política de
interagir com o governo quando aceitou participar desses espaços,
estimulou a criação de outros similares e tem sido crítica e propositiva com
relação aos rumos que este está tomando, principalmente no que diz
respeito às expectativas e frustrações, sobretudo no que se refere à
prevalência da ortodoxia da política econômica. A iniciativa da Associação
Brasileira de Organizações Não-Governamentais (ABONG) de realizar um
seminário, depois de 15 meses de governo Lula, foi um exemplo concreto.
Segundo o artigo “Lula e o Desgaste da Confiança Política”, do presidente
dessa Organização, Jorge Eduardo Durão, “uma questão central na
avaliação desses primeiros meses do governo Lula é a da falta de um
projeto nacional, de uma visão de futuro clara, que possa mobilizar as
energias da sociedade. O governo Lula aparece para a sociedade como um
mosaico de projetos que não formam um todo coerente” (ABONG,
28/3/2004).
64 No contexto de discussão do PPA, entre outros aspectos, as ONGs e as organizações da sociedade civil (OSCs) chamaram a atenção para os possíveis impactos negativos de determinados investimentos em infra-estrutura (como barragens, hidrovias e rodovias) incluídos nesse Plano (Banco Mundial, 2004).
160
O Conselho Diretor da ABONG sintetiza a crítica que representantes
da sociedade civil organizada fazem do governo Lula quando afirma que
neste tem acontecido uma significativa ampliação dos espaços de
participação, ao mesmo tempo em que persistem um conjunto de restrições
para o alcance desta, reduzindo-a, por vezes, a simples consultas ou a
meros processos de escuta, sem uma perspectiva mais ampla de
fortalecimento da democracia participativa (Rede de Informações do
Terceiro Setor, 15/04/2004).
Uma série de tensões, como as mencionadas anteriormente, têm
provocado um certo congelamento da gestão pública no governo Lula em
áreas prioritárias, como a social, onde está se seguindo a perspectiva de
“refilantropização da política” em função da qual são privilegiadas ações
focalizadas e seletivas, portanto, à margem da institucionalidade das
políticas universalistas propostas pela Constituição Federal de 1988
(Marques & Mendes, 2003, 2003a).
De todo modo, o Plano Plurianual “Um Brasil para Todos”, formulado
por esse governo, apresenta três macro objetivos centrais: i) maior
equidade e inserção social; ii) crescimento econômico ambientalmente
sustentável e que reduza as desigualdades regionais; iii) uma melhor
atribuição de poder e participação à sociedade 65. Segundo o Banco Mundial
(2004), o Plano “Um Brasil para Todos” evidencia a alta prioridade dada
pelo governo Lula à agenda de inclusão social, já que os programas sociais
predominam no planejamento dos gastos sociais (57%), seguidos pelos
programas voltados para o crescimento (33%) e a participação da
sociedade (10%).
Tavares de Almeida (2003) destaca dois documentos sobre políticas
sociais dados a conhecer antes e depois das últimas eleições para a
presidência no país: o Fome Zero – uma proposta de política de segurança
alimentar para o Brasil, de 2001, elaborado por 45 pesquisadores petistas
65 Cada um desses macro objetivos apresenta 10 ou mais “desafios”, e cada um dos 30 destes desafios está relacionado com indicadores a serem alcançados em 2007. Cada um dos 374 programas que integram este Plano destina-se a responder um ou mais dos 30 desafios (Banco Mundial, 2004).
161
vinculados ao Instituto de Cidadania; e Política econômica e reformas
estruturais, elaborado pela equipe do Ministério da Fazenda, integrada por
economistas, de orientação liberal, não pertencentes ao PT.
O primeiro desses documentos consistia em uma combinação de
políticas assistenciais com ações mais abrangentes de incentivo à
agricultura familiar, com ênfase, entre outros aspectos, em transferências
monetárias para famílias em situação de extrema pobreza, as quais
poderiam ser utilizadas somente na compra de produtos alimentícios,
visando combater a fome no país (Tavares de Almeida, 2003).
Quanto ao segundo, era um documento mais extenso sobre os rumos
do governo Lula focalizado na sua política econômica. Mesmo assim, incluía
um capítulo de propostas de política social analisadas sob o ângulo da
redução de seus efeitos regressivos, pelo aumento da eficácia do gasto
público social e da efetividade dos programas e ações, a serem obtidos com
uma melhor focalização nos segmentos populacionais de menor renda66
(idem), vindo de encontro a recomendações de organismos internacionais.
O Banco Mundial, por exemplo, embora reconheça que muitos programas
de proteção social implementados no país sejam promissores, acredita que
o sistema em geral poderia ser melhorado se estes fossem melhor
direcionados o que, a seu ver, “aumentaria a equidade, reduziria os desvios
de benefícios para pessoas que não são pobres e promoveria uma maior
inclusão dos pobres” (2004:33).
Em dezembro de 2003, o Ministério da Fazenda disponibilizou em seu
site o documento Gasto Social do Governo Federal: 2001 e 2002, que tinha
como objetivo “mostrar os efeitos da incidência de impostos e da
apropriação dos gastos sociais do governo federal na distribuição de renda
no país”.
66 Diz o documento: “A pouca capacidade dos gastos sociais da União em reduzir a desigualdade de renda decorre do fato de que boa parte dos recursos é destinada aos não-pobres, assim como da gestão ineficiente dos recursos destinados aos programas sociais. A falta de avaliação específica dos impactos destes recursos sobre a população beneficiada contribui de forma decisiva para este problema. […] Além disso, é necessário reformular o desenho das políticas de arrecadação e transferência do Estado de modo a reduzir a desigualdade da renda. […] O desenho dessas políticas poderá ser bastante efetivo em redistribuir renda, conforme verificado em outros países” (Ministério da Fazenda, 2003:15).
162
Márcio Pochmann, no artigo “Desigualdade de Renda e Gastos Sociais
no Brasil: algumas evidências para o debate”, fez uma crítica a este,
apontando para o que ele considera uma “inversão dos termos do debate ao
atribuir um papel central ao gasto social na determinação da complexa
causalidade da desigualdade social brasileira” (Pochmann, 2003). Conforme
o autor, o documento atribui ao gasto social direto, a maior rubrica das
despesas da União, esquecendo as despesas financeiras. Por outro lado,
agrupa gastos sociais contributivos e não-contributivos, os quais
apresentam natureza diversa67 para chegar à conclusão de que se gasta
muito e os recursos dirigem-se prioritariamente para os mais ricos.
Segundo ele, “a realidade, entretanto, parece ser bastante diferente”
(idem).
Pochmann (2003) observa ainda que, entre 2001 e 2002, o serviço
da dívida pública no país elevou-se em 32%, contra um aumento de cerca
de 13% do gasto social direto. Segundo ele,
“no caso das políticas sociais de transferência de renda ou de
pagamentos de benefícios constitucionais [...] a sua participação no
PIB manteve-se praticamente estável, de 6,2% para 6,4%. Ou seja,
quando se considera os gastos sociais não-contributivos, estes não
foram elevados em termos relativos”. Além disso, continua autor, no
período considerado, “verifica-se que a relação entre os gastos sociais
não-contributivos do governo federal e o total do serviço da dívida
vem caindo de forma substancial, passando de 86% para 74%”
(Pochmann, 2003:4).
Pochmann (2003) aponta para exemplos que contradizem a
informação contida no documento em questão de que os destinatários dos
gastos sociais no país são os segmentos mais ricos da população. Dentre
67 Segundo Pochmann, “o gasto social contributivo são os benefícios previdenciários urbanos (aposentadorias e pensões) e as despesas com o pessoal inativo da União. Já os demais gastos componentes do gasto social direto, o autor classifica enquanto não-contributivos inclusive o INSS para o setor rural. Assim, na sua percepção, o gasto social contributivo reflete o comportamento próximo ao de um seguro para atender situações específicas de risco [...]. No caso do gasto social não-contributivo, o seu financiamento depende da arrecadação tributária geral do setor público” (2003:3).
163
estes exemplos, o do seguro-desemprego, que, em cerca de 80% dos
casos, concedeu benefícios a trabalhadores que recebiam remuneração
inferior a três salários mínimos, entre 2001 e 2002. Cita ainda o exemplo da
previdência social, em que o benefício médio do INSS, mal superava a casa
dos dois salários mínimos, sendo que na área rural se situava próximo de
um salário mínimo, no período considerado. Segundo o autor,
“a renda obtida via transferências eleva a renda inicial numa
proporção muito maior nos decis inferiores [...], o que comprova o
caráter distributivo do gasto social no Brasil. Neste sentido, fica claro
que o gasto social no Brasil pode e deve aumentar em quantidade, a
partir da expansão do acesso às políticas universais, como educação
e saúde – financiadas em grande medida pelos governos estaduais e
municipais -, e do maior alcance dos programas de transferência de
renda” (Pochmann, 2003:10).
No entanto, conforme Ivo pondera, a solução de focalizar os
programas sociais e ‘racionalizar’ o gasto na área social “encontra seus
limites na sua própria causa, ou seja, na instabilidade dos mercados e da
economia que comprometem a continuidade dos programas e têm efeitos
paradoxais sobre a dimensão da cidadania e a natureza da democracia”
(2004:1).
Considerando a discussão sobre o gasto social, além da opção por
políticas focalizadas, durante seus vários anos na oposição o PT parece não
ter formulado um diagnóstico mais denso dos problemas e desafios na área
social no Brasil, capaz de obter consenso entre seus próprios quadros e de
fundamentar prioridades claras de ação. Mesmo que o tivesse feito, não
realizou um debate amplo acerca do mesmo, no sentido de evitar que
posições divergentes da oficial, no interior do partido, se tornassem
públicas, como a de Francisco de Oliveira (2003, 2004) e de Márcio
Pochmann (2003).
Diante desse quadro, um tanto quanto contraditório, os passos
iniciais do novo governo na área social foram na direção de realizar uma
164
iniciativa emblemática, de forte impacto simbólico, tanto no plano nacional
quanto internacional, por meio do lançamento do Programa Fome Zero e da
criação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA)68.
Simultaneamente, o governo lançou uma proposta de reforma da
Previdência Social, que partia do ponto em que a deixara o governo
anterior, duramente criticada pelo PT quando na oposição: ficando restrita à
reforma do sistema previdenciário dos servidores públicos, estabelecendo o
mesmo teto para as aposentadorias dos empregados deste setor e do setor
privado.
O Programa Fome Zero, além de ter sido lançado sem uma discussão
mais profunda junto ao PT e aos seus aliados, carecia de uma melhor
definição e de uma avaliação mais precisa da situação da população do país
nos termos considerados (seria a segurança alimentar realmente o principal
problema social a ser enfrentado?) e do elenco de programas que
conformavam o sistema de proteção social instituído no governo de
Fernando Henrique Cardoso, incluindo o impacto dos programas de
transferência monetária direta, de caráter não-contributivo que, no ano de
2002, já tinham alcançado uma abrangência significativa69 .
O Fome Zero contemplava três grandes conjuntos de iniciativas. O
primeiro incluiria políticas estruturais: geração de emprego e renda,
previdência social universal, incentivo à agricultura familiar, intensificação
da reforma agrária, bolsa-escola e renda mínima. O segundo seria o das
políticas específicas: programa de cupom alimentação (depois substituído
por uma transferência direta de R$ 50 a cada beneficiário, por meio do
cartão-alimentação), doações de cestas básicas emergenciais, manutenção
de estoques de segurança, quantidade e qualidade de alimentos, ampliação
do Programa de Alimentação do Trabalhador, combate à desnutrição infantil 68 Segundo Marques (2003), a ONU mencionou, inclusive, a possibilidade de projetar o programa em nível mundial. 69 Para além do Fome Zero, no sentido de cumprir com a promessa feita em campanha de gerar 10 milhões novos postos de trabalho e de oferecer uma alternativa para a inclusão social para jovens de baixa renda, o presidente Lula lançou o programa Primeiro Emprego, por meio da oferta de incentivos às empresas para que contratem pessoas jovens e do estímulo a empreendimentos e emprego autônomo; do treinamento para o trabalho; da participação social, envolvendo as parcerias entre o governo, a iniciativa privada e a sociedade civil. Tal programa, no entanto, da mesma forma que o Fome Zero, tem sido objeto de críticas as quais têm a ver, entre outros motivos, com a pouca atração que exerce sobre o empresariado.
165
e materna, ampliação da merenda escolar, educação para o consumo e
educação alimentar. Finalmente, entrariam as políticas para áreas rurais,
pequenas e médias cidades, e metrópoles, com uma série de medidas que
incluíam, nos dois últimos casos, bancos de alimentos formados por
doações (Tavares de Almeida, 2003).
No entanto, a dimensão emergencial desse programa foi aquela que
mais apareceu nos meios de comunicação, conforme Burlandy (2003:276).
De fato, quando lançado o Programa Fome Zero, começaram discussões
sobre o rumo que se pretendia dar à política social no país, tendo em vista
o conteúdo assistencialista que este revelara.
Ignorando a tradicional fragmentação e sobreposição da área social,
por meio do Fome Zero se preconizava que as ações de vários ministérios
fossem coordenadas pelo recém-criado Ministério Extraordinário de
Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), sempre de difícil
realização. Operacionalmente, o programa revelou-se extremamente
problemático não conseguindo sequer realizar o orçamento previsto
(Zimmermann, 2004).
Em face da situação exposta, no início de 2004, o governo Lula
substituiu o MESA pelo Ministério do Desenvolvimento Social e do Combate
à Fome. Foram transferidas para este novo Ministério, além das
competências do MESA, aquelas do Ministério da Assistência Social e da
Secretaria-Executiva do Programa Bolsa Família, o qual foi criado pelo
governo Lula, por meio da Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de
2003 e até então vinculado à Presidência da República. Nessa oportunidade,
o Cartão-Alimentação foi incorporado ao Bolsa Família, que unificou
também três dos programas de transferência monetária criados na
administração de Fernando Henrique Cardoso: o Bolsa Escola, o Bolsa
Alimentação e o Auxílio-Gás.
Conforme visto, esses programas, até então, eram vinculados a
diferentes ministérios, trabalhavam com regras distintas, ofereciam
transferências monetárias com valores muito baixos – média de R$ 22 -,
166
impunham cotas restritas de atendimento aos municípios e não estavam
articulados com programas de natureza similar, realizados por iniciativa de
estados e municípios. Nesse contexto, tinha-se a pulverização de recursos,
a fragmentação da gestão pública e elevados custos de administração.
“Além disso, os cadastros de tais programas, por serem separados,
apresentavam grandes distorções” (Governo Federal, 2004).
A integração de tais programas se deu, assim, em função da
necessidade de corrigir as falhas na cobertura dos programas de transferência
monetária envolvidos; as duplicações e as desigualdades existentes; aumentar
a transparência e uniformidade na seleção dos beneficiários; criar uma maior
flexibilidade institucional; e reduzir as deficiências administrativas (Banco
Mundial, 2004). Em 2003, tal unificação permitiu um aumento superior a
300% no valor do benefício concedido (média de R$ 73 mensais)70.
As seguintes premissas orientaram a concepção do Bolsa Família: i) a
transferência de renda não era um fim em si mesmo, na medida em que
permitia o acesso a direitos universais de educação, saúde e alimentação; ii)
era fundamental combinar tal transferência com outras políticas de caráter
estrutural; iii) era necessária articular esforços com estados e municípios71 .
Em 9 de janeiro de 2004 foi promulgada a Lei nº 10.836 que criou
esse programa, o qual passou a ser regido pelo Decreto nº 5.209, de 17 de
setembro desse mesmo ano. Segundo este, o Bolsa Família tem por
finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações
de transferência de renda do governo federal e do Cadastramento Único
(artigo 3º). Quanto a seus objetivos básicos, são eles: i) promover o acesso
à rede de serviços públicos, em especial, de saúde, educação e assistência
70 Após a unificação desses quatro programas de transferência de renda, o valor médio do benefício por família triplicou (cresceu de R$ 24,00 em 2002 para R$ 72,80 em 2003) e o montante de recursos orçamentários investido em programas dessa natureza aumentou de R$ 2,3 bilhões em 2002 para R$ 3,4 bilhões em 2003 e R$ 5,7 bilhões em 2004 (Governo Federal, 2004).
71 O primeiro esforço para a unificação de programas de transferência monetária no país surgiu no governo anterior, na implantação do Projeto Alvorada quando foi feita uma primeira tentativa de criar um Cadastro Único reunindo dados dos beneficiários destes em uma única fonte. Mas tal Cadastro se tornou vital quando o governo Lula decidiu unificar tais programas. Foi já nesse sentido que, no capítulo Inclusão Social do Plano de Governo, se estabeleceu que o Programa Bolsa Escola, assim como os demais programas de complementação de renda “voltados para o mesmo público-alvo e com o mesmo critério de seleção, seriam revistos com o objetivo de evitar superposição, a disputa entre gestores e a pulverização dos recursos públicos” (Plano do Governo Lula, 2002, item 16).
167
social; ii) combater a fome e promover a segurança alimentar e nutricional;
iii) estimular a emancipação sustentada das famílias que vivem em situação
de pobreza e extrema pobreza; iv) combater a pobreza; e v) promover a
intersetorialidade, a complementaridade e a sinergia das ações sociais do
Poder Público (artigo 4º).
Quanto aos benefícios financeiros desse programa, de acordo com o
artigo 2º da Lei nº 10.836, constituem-se em básico - destinado a unidades
familiares que se encontrem em situação de extrema pobreza; e variável -
destinado àquelas unidades que se encontrem em situação de pobreza e
extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes,
crianças entre zero e 12 anos ou adolescentes até 15 anos. Com relação ao
valor mensal desse benefício, é de R$ 50, destinado a famílias com renda
per capita de até R$ 50 (benefício básico), e de R$ 15 por beneficiário, até o
limite de R$ 45 por família beneficiada, destinado a todas aquelas famílias
com renda per capita de até R$ 100 (benefício variável), conforme os
parágrafos 2º e 3º do artigo em questão. Tal benefício é pago,
preferencialmente, à mãe, por meio de cartão magnético fornecido pela
Caixa Econômica Federal, com a respectiva identificação do responsável
mediante o Número de Identificação Social (NIS), de uso exclusivo do
governo federal (parágrafo 11 do artigo 2º da Lei nº 10.836)72 .
Para participar do Bolsa Família, além de estar cadastradas no
Cadúnico (Cadastramento Único), as unidades familiares beneficiadas
devem obedecer condicionalidades relativas à sua participação no processo
educacional e em programas de saúde73. Assim, quando couber, devem
manter os filhos em estabelecimento de ensino regular e garantir uma
freqüência de 85% das aulas, ter as cadernetas de vacinação em dia,
freqüentar postos de saúde da rede pública e participar de atividades de
72
Os beneficiários do Programa Bolsa Família também são o público-alvo prioritário de outras iniciativas
sociais nos três níveis de governo. 73O Decreto nº 5.209 atribuiu ainda aos ministérios da Educação e da Saúde a competência para o acompanhamento das condicionalidades do programa, e ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome a supervisão do processo. Neste contexto, destacam-se a publicação da Portaria Interministerial nº 3.789, de 18 de novembro de 2004, regulamentando a freqüência escolar no âmbito do Bolsa Família, e da Portaria Interministerial nº 2.509, de 22 de novembro de 2004, regulamentando a oferta e o monitoramento das ações de saúde para as famílias beneficiárias.
168
orientação alimentar e nutricional. Quanto à sua gestão e execução, são
públicas e governamentais, requerendo o esforço dos três níveis de
governo, observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o
controle social, realizados por um Conselho instalado pelo poder público
municipal ou pelo Distrito Federal, respeitada a paridade entre governo e
sociedade (Lei nº 10.836).
Os municípios são responsáveis pela inscrição das famílias no
Cadúnico, o que tem sido objeto de questionamentos variados em função da
possibilidade de prevalecerem critérios clientelísticos, o que já foi objeto de
denúncias nos meios de comunicação. No entanto, conforme ressalta a
pesquisadora Laura Tavares (2004), a eficiência desse programa não reside
no aumento do "controle" sobre os pobres para uma "perfeita focalização".
Segundo ela, o risco a ser evitado não é o de "errar no alvo", ao incluir
algumas famílias que não precisaram dessa parcela de renda a mais, e sim
“deixar de fora os que precisam dessa renda”. Para evitá-lo, Tavares sugere
que o Bolsa Família continue ampliando sua abrangência74.
Cohn (2004) acredita que esse programa seja passível de
contradições e ambigüidades. Dentre estas, destaca a conjuntura
econômica atual que não favorece a inclusão social. Destaca, ainda, a
necessidade de se reverter a lógica dual de articulação das diferentes
políticas de seguridade social (uma para incluídos, outra para excluídos), o
que tem reforçado direitos individuais em vez de direitos sociais. Acredita
que enfrentar tais contradições e ambigüidades é um desafio que vai muito
além do fato de estas políticas serem contributivas ou não (Cohn, 2004).
Quanto à iniciativa da implementação do Bolsa Escola, em entrevista
ao Jornal do Brasil, em 23/4/2004, o economista da Fundação Getulio
74 Ao se falar de um programa como o Bolsa-Família, é bom ter em mente que se refere, em primeiro lugar, a uma transferência de renda para os que menos têm neste país. Em segundo lugar, trata-se do repasse de R$ 5 bilhões para mais de 5 milhões de famílias espalhadas por mais de 5 mil municípios. A magnitude desses números, por si só, imprime a ótica de que denúncias e falhas não devem se sobrepor ao valor do programa, tamanha é a sua complexidade e importância em um país onde quase um terço da população está abaixo da linha da miséria.
169
Vargas, Marcelo Néri, afirmou que a pobreza diminuiria no país se fossem
aumentados o valor e a abrangência geográfica desse programa já que
“atinge as camadas mais pobres da população pobre”.
Já Mendes & Áquila (2004), afirmam que a importância do Bolsa
Família “é função direta das condições econômicas e sociais dos municípios:
quanto menor a receita disponível e o Índice de Desenvolvimento Humano
(IDH) do município, maior é o peso das transferências na movimentação da
economia local” (2004:10). Os autores sustentam seu argumento com o
exemplo da pesquisa que realizaram no município de Viçosa, no Estado do
Ceará, onde “os recursos recebidos pelas 4.293 famílias representam 44%
da Receita Disponível75. Já comparados às transferências federais do
Sistema Único de Saúde, os recursos do Bolsa Família são 50% maiores.
Em relação ao recebido pelo Fundo de Participação dos Municípios, o Bolsa
Família equivale a 58% de seu total e é 215% maior do que a arrecadação
do ICMS” (idem).
De acordo com Mendes & Áquila, mesmo em Caxias do Sul, o
segundo maior município do Estado do Rio Grande do Sul, é significativo o
montante dos recursos do Bolsa Família: comparados à magnitude das
transferências federais recebidas através do Fundo de Participação dos
Municípios (FPM), representam pouco mais de 11%. Desse modo, os
autores concluem:
“Não há dúvida de que os programas compensatórios, dos quais
destacamos o Bolsa Família [...] constituem um esforço sem paralelo
de transferência de renda para as famílias mais pobres na história do
país. Os programas sociais realizados pelos governos militares
através da Legião Brasileira de Assistência (LBA) e mesmo os
iniciados durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso não se
comparam, em valor e quantidade de beneficiados, aos
implementados durante esses 18 meses de governo Lula. As recentes 75 Segundo os autores, o conceito de Receita Disponível refere-se, no caso dos municípios, à totalidade de impostos municipais, nela compreendidas as transferências constitucionais, tanto federais (FPM etc.) como estaduais (ICMS, IPVA etc.)
170
denúncias com relação à falta de fiscalização do cumprimento da
freqüência escolar da criança não invalidam essa conclusão” (Mendes
& Áquila, 2003a:10).
Também o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(2005) ressalta a importância desse programa a nível municipal,
principalmente nas localidades onde os recursos são escassos. Segundo
esse Ministério, em algumas cidades, o Bolsa Família chega a representar
mais de 40% do total da renda municipal, considerando impostos e
transferências constitucionais, como repasses federais ao Sistema de Saúde
Único e ao Fundo de Participação de Municípios (FPM), e estaduais como o
Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços, conforme tabela baixo
apresentada.
Comparativo: Transferências Constitucionais para os Municípios e Transferência de Renda do MDS – Setembro (2004)
REGIÃO FPM (a)
Total das Transferências Constitucionais
(b)
Programas de
Transferências de Renda
(Bolsa Família e remanescentes)
(c)
PTR /
FPM (c/a)
PTR / Tranf. Const. (c/b)
CENTRO OESTE
116.493.578,86 204.241.254,23 23.472.740,00 20,1 11,5
NORDESTE 568.035.493,74 958.741.523,38 292.393.310,00 51,5 30,5
NORTE 142.519.058,33 255.986.493,29 47.870.970,00 33,6 18,7
SUDESTE 503.181.634,40 1.008.135.611,76 126.356.220,00 25,1 12,5
SUL 279.539.040,69 478.692.083,50 51.096.375,00 18,3 10,7
Total Geral
1.609.768.806,02 2.905.796.966,16 541.189.615,00 33,6 18,6
Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005
Finalmente, vale observar que o Programa Bolsa Família está se
ampliando de modo significativo. Em 2003, este beneficiava 3,6 milhões
famílias inseridas nas regiões mais pobres do país, no semi-árido do
Nordeste brasileiro. Já em 2004, tinha-se mais de 6,5 milhões de famílias
atendidas; estimando-se que em 2005 chegue-se a 8,7 milhões de famílias.
No entanto, sua meta é chegar, a atender, até o final de 2006, 11,2 milhões
de famílias, ou seja, o universo daquelas que se encontram em situação de
171
extrema pobreza e/ou indigência no país (Ministério de Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, 2005).
Na tabela apresentada a seguir se observa como o Bolsa Família,
paulatinamente, por meio do Cadúnico, vem absorvendo as pessoas
inscritas nos programas remanescentes (Bolsa Escola, Bolsa Alimantação,
Cartão-Alimentação e Auxílio Gás). Nesta se observa também o crescimento
do número de idosos e deficientes beneficiados entre 2003 e 2005,
sobretudo destes últimos. Finalmente a tabela revela o aumento do gasto
com programas de transferências monetárias no país em mais de 20%
entre os anos de 2003 e 2005 (estimado).
ORÇAMENTO MDS - 2003, 2004, 2005 - PRINCIPAIS PROGRAMAS E AÇÕES
Programa/Ação
2003 2004 2005 Variação 2004/ 2005
Executado Em R$
Físico nº
famílias/ pessoas
Orçado em R$
Físico nº
famílias/ pessoas
Projeto em R$
Físico nº
famílias/ pessoas
1.Transferências Monetárias
3,36 bi 5,72 bi 6,54 bi + 14%
� Bolsa Família 570 mi 3,6 mi 3,22 bi 6,5 mi famílias
5,44 bi 8,7 mi famílias
+ 34%
� Programas remanescentes1
2,43 bi 11,4 mi 1,70 bi 8,4 mi famílias
� Ministério da Saúde
360 mi 80 mi 1,10 bi
2. BPC2 6,79 bi 1,7 mi pessoas
7,33 bi 2 mi pessoas
8,54 bi 2,7 mi pessoas
+ 17%
� Portadores de Deficiência
4,35 bi 4,54 bi 1,1 mi
pessoas 5 bi 1,5 mi
pessoas + 36%
� Idosos 2,44 bi 2,79 bi 905 mil idosos
3,54 bi 1,15 mi idosos
+ 27%
Total 10,15 bi 13,5 bi 15,08 bi Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2005 1 Bolsa-Escola + cartão-alimentação + auxílio-gás + bolsa-alimentação 2 Inclui RMV – Renda Mensal Vitalícia
III.4 Renda mínima e renda de cidadania
III.4.1 Renda mínima
A partir de meados dos anos 90, transferências monetárias do poder
público para segmentos populacionais em situação de maior risco pessoal e
social (com déficit de renda agudo e dificuldade de acesso a bens e serviços
172
sociais), condicionadas à comprovação de insuficiência de renda e
realizadas de forma direta, tornaram-se a grande novidade do sistema de
proteção social brasileiro (Lavinas, 2004; Silva e Silva, 2002).
Tal novidade foi facilitada pelas mudanças no escopo da política social
do país, decorrentes da promulgação da Constituição brasileira de 1988
que, entre outros aspectos, por meio da Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS), assegurou transferências monetárias, no valor de um salário
mínimo, a todos os idosos (com 65 anos ou mais) e pessoas portadoras de
deficiência, com renda familiar per capita igual ou inferior a um quarto do
salário mínimo (Lavinas, 2004:10).
Para além da LOAS, Lavinas chama a atenção para demais programas
de transferência monetária vigentes até o final do governo de Fernando
Henrique Cardoso. Segundo ela, em geral, estes se tratavam de benefícios
temporários, no formato de bolsas, voltados para públicos específicos,
sujeitos à comprovação de insuficiência de renda, condicionados ao
cumprimento de exigências específicas (2004:11).
Quanto ao governo Lula, não só unificou três dos programas de
transferência monetária criados no governo anterior (o Bolsa Escola, o Bolsa
Alimentação e o Auxílio-Gás), como também o Cartão-Alimentação, criado
na sua gestão. Todos estes passaram a constituir o Programa Bolsa Família,
que ampliou o respectivo escopo, área de abrangência e valor do benefício
concedido (Governo Federal, 2004).
No Brasil, todavia, propostas de transferências monetárias remontam
à década 70 (Burlandy,2003), mas só ganharam notoriedade a partir 1991
quando foi aprovado pelo Senado Federal o projeto do senador Eduardo
Suplicy instituindo o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) no
país, na forma de um imposto de renda negativo. Este está voltado para
todas as pessoas aqui residentes, maiores de 25 anos, que auferem
rendimentos brutos mensais inferiores a 2,6 salários mínimos (Suplicy,
1999), as quais passam a ter o direito de receber um complemento
equivalente a 30% da diferença entre aquela quantia e a renda respectiva.
173
Conforme proposto, tal programa será implantado gradativamente,
atingindo, inicialmente, indivíduos com mais de 60 anos, sendo
progressivamente estendido para as faixas etárias mais jovens. Seu
financiamento será assumido pelo governo federal, que despenderá
recursos equivalentes a até 3,5% do PIB, obtidos com a desativação
gradual de programas sociais compensatórios (idem).
O PGRM do senador Suplicy, depois de enviado para a Câmara dos
Deputados, recebeu parecer favorável do relator, deputado Germano
Rigotto, mas não foi votado na Comissão de Finanças e Tributação, o que é
necessário para sua aprovação. Ainda assim, na época em que foi
concebido, foi objeto de uma série de discussões que resultaram em
propostas de alteração no seu formato original. Dentre estas, destaca-se a
do economista José Márcio Camargo que, embora concordando com a
essência da formulação inicial, sugeriu que o PGRM brasileiro fosse definido
por famílias que tivessem crianças em idade escolar, o que foi adotado76.
Os primeiros programas de transferências monetárias no Brasil, na
forma de bolsas, coincidiram com o enfoque centrado na família e no
condicionamento desta transferência à educação básica de crianças e
adolescentes, conforme sugerido por Camargo. A experiência pioneira foi a
do município de Campinas, no Estado de São Paulo seguida, dois meses
mais tarde, pela do Distrito Federal.
O governador Cristóvam Buarque deu início ao Programa Bolsa Escola
no Distrito Federal em 1995. Segundo este programa, toda família que não
auferisse até meio salário mínimo mensal per capita, que tivesse filhos e/ou
dependentes de 7 a 14 anos de idade, que estivesse residindo no Distrito
Federal há pelo menos cinco anos, teria o direito de receber um salário
mínimo por mês, desde que as crianças e adolescentes sob sua
76 Segundo Amaral, Camargo baseia sua proposta na associação entre as desigualdades sociais no país e o acesso diferenciado ao sistema educacional. Para as famílias de menor renda, o custo de oportunidade de enviar filhos à escola seria muito elevado, entre outros motivos, devido à perda ou diminuição dos rendimentos obtidos com o trabalho dos mesmos. “A deficiência na formação educacional impediria, por sua vez, um incremento na renda das novas gerações. Dessa forma seria criado um círculo vicioso, no qual a pobreza de ontem determina a pobreza de hoje. Para rompê-lo seria necessário oferecer uma compensação monetária às famílias, para que estas pudessem prescindir dos rendimentos do trabalho infantil e manter os seus filhos na escola” (Amaral, 1997).
174
responsabilidade comprovassem 90% de freqüência escolar (Suplicy,
2002b).
Em 1994, o então candidato a prefeito do município de Campinas,
José Roberto Magalhães Teixeira, apresentou à Câmara Municipal um
projeto de lei que instituía o Programa de Garantia de Renda Familiar
Mínima (PGRFM). Este era voltado para todas as famílias residentes nesse
município, que auferissem renda inferior a meio salário mínimo mensal, que
tivessem filhos e/ou dependentes de zero até 14 anos de idade, que
freqüentassem regularmente a escola. O complemento de renda transferido
às famílias era o suficiente para completar meio salário mínimo per capita.
Essa Lei foi aprovada em janeiro de 1995 e o PGRFM de Campinas
implantado a partir daí, dois meses antes do programa do Distrito Federal
(idem)77.
Ambos os programas, o do Distrito Federal e o de Campinas,
apresentavam um caráter fortemente intersetorial requerendo um
envolvimento amplo e articulado entre diferentes instituições e atores, além
da construção de instâncias de organização no âmbito microrregional e/ou
comunitário (Amaral, 1997). Havia, no entanto, particularidades com
vantagens e desvantagens diferenciadas entre os mesmos.
Amaral (1997) identifica a maior extensão da cobertura, e a
possibilidade de articulação do complemento da renda com uma política
mais ampla de atendimento à família, como os principais aspectos positivos
do programa de Campinas com relação ao do Distrito Federal. Por outro
lado, como principal aspecto negativo desse programa, identifica a
necessidade de contar com estruturas gerenciais complexas, que elevavam
os custos administrativos e reduziam suas possibilidades de universalização.
77 Em abril de 1994, no Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em Brasília, foi aprovado que o programa de governo de Lula como candidato à Presidência da República incluiria uma renda mínima no Brasil com o objetivo de erradicar a pobreza no país e promover a presença de todas as crianças na escola. Em 1995, a Proposta de Emenda à Constituição relativa à Reforma Tributária apresentada pela bancada desse partido no Congresso Nacional incluiu um artigo segundo o qual, “com a finalidade de promover a cidadania, combater a fome e a miséria, será instituído um Programa de Garantia de Renda Mínima, definido em lei, compatível com o grau de desenvolvimento do País.”
175
No que se refere ao programa do Distrito Federal, Amaral (1997)
destaca como principal ponto positivo o fato de este ter sido centrado no
atendimento a famílias com filhos em idade escolar, o que, a seu ver,
assegurava um vínculo mais direto com o ensino fundamental e permitia
uma redução substantiva de custos pela utilização de recursos do sistema
educacional. No entanto, segundo ele, a exclusão de famílias com filhos em
idade pré-escolar trazia sérios problemas na respectiva focalização,
podendo vir a comprometer o alcance das suas metas educacionais.
Resultados da avaliação do Programa Bolsa Escola do Distrito Federal,
realizada pela UNESCO em parceria com o UNICEF, em 1998, revelaram
que este permitiu uma redução de 1% na taxa de evasão escolar, o que,
por sua vez, permitiria uma redução de 4,75% na taxa de reprovação do
sistema educacional como um todo (Waiselfisz,1998:50).
Tais dados revelaram ainda que esse programa incrementou as
aspirações educacionais dos bolsistas; combateu o trabalho infantil; elevou
a auto-estima das famílias beneficiadas. Tais dados revelaram, finalmente,
o impacto que o benefício concedido exerceu na receita familiar,
reconhecendo uma melhoria do consumo em itens essenciais como
alimentação e vestuário (Waiselfisz,1998:50).
A avaliação do Bolsa Escola realizada pela Fundação Esquel, em
1997, relativa a dois anos de implementação do Programa Bolsa Escola,
chegou a conclusões semelhantes à pesquisa das Nações Unidas. Ressaltou
que os resultados mais importantes deste programa estavam traduzidos nos
indicadores de desempenho escolar, os quais foram analisados comparando
dados dosa alunos bolsistas com os do conjunto de alunos da rede pública
do ensino fundamental do Distrito Federal. Dentre estes, destacou-se a taxa
de aprovação na qual ficou bem evidenciada o melhor desempenho escolar
dos bolsistas. Assim, enquanto esta taxa cresceu 1,5% no período 94/96
para os não-bolsistas, para os bolsistas ela foi de 9,5%. Tal dado, assim
como os demais apurados, foram comprobatórios da eficiência do Bolsa
Escola (Unicef, 1997).
176
Entre 1995 e 1996, vários novos projetos de lei foram apresentados à
Câmara dos Deputados e ao Senado Federal, propondo que fossem
instituídos no país, de forma centralizada, programas de transferências
monetárias (do tipo bolsa), associados à educação (Suplicy, 2003:103).
Como desdobramento dessas iniciativas, em 1997 foi sancionada pelo
presidente Fernando Henrique Cardoso a Lei nº 9.533 que autorizava o
governo federal a conceder apoio financeiro - 50% dos gastos - aos
municípios que instituíssem programas de renda mínima associados a ações
sócio-educativas. Dizia essa Lei que os municípios agraciados nos cinco
primeiros anos seriam aqueles que possuíssem receita tributária por
habitante inferior à média estadual e com renda familiar por habitante
inferior à média familiar por habitante do Estado.
A Lei nº 9.533 foi objeto de uma série de críticas: inicialmente com
relação à concessão de valores “muito abaixo do necessário à superação da
pobreza absoluta, além de descaracterizar o próprio conceito de renda
mínima” (Amaral & Ramos,1999:16). Depois, pelo fato de esta
desconsiderar as disparidades na capacidade financeira e na situação sócio-
econômica dos municípios ao determinar um percentual fixo (50%) para a
contrapartida e também para a contribuição financeira da União (idem).
Tais críticas diziam respeito finalmente à estratégia de sua implantação que
levava a uma excessiva dispersão geográfica da sua área de abrangência,
“dificultando (ou inviabilizando) a criação de sinergias locais, através da
cooperação entre municípios de uma mesma microrregião” (Amaral &
Ramos,1999:16).
Tendo em vista as críticas que a Lei nº 9.533 sofreu, em 2001 foi
sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso uma nova Lei, a Lei
nº 10.219, que substituía a anterior, e autorizava o governo federal a
realizar convênios com todos os municípios brasileiros para a adoção de
programas de transferências monetárias, na forma de bolsas, associados à
educação.
177
A Lei nº 10.219 responsabilizava os municípios pela administração
dos programas afins e o governo federal pelas transferências monetárias
para as famílias beneficiárias destes, por meio de um cartão magnético.
Tinham prioridade os municípios com os quais a União havia celebrado
convênios para programas de renda mínima em 2000; pertencentes a 14
estados brasileiros de menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH);
integrantes de micro-regiões com IDH igual ou inferior a 0,500; em situação
de emergência devido à seca; que fizessem parte do Plano de Segurança
Pública por causa de altos índices de violência; que adotassem uma
metodologia de cadastramento e focalização que beneficiasse, em primeiro
lugar, as famílias mais pobres (Secretaria do Programa Nacional de Bolsa-
Escola, 2001).
Com relação ao benefício transferido, em função da Lei nº 10.219,
tinham direito a este aquelas famílias que comprovassem residência no
município; apresentassem renda familiar mensal per capita de até meio
salário mínimo ou R$ 90 (em valores de novembro de 2001) e que tivessem
filhos e/ou dependentes com idade entre 6 a 15 anos, matriculados e
freqüentando o ensino fundamental. Quanto ao valor do benefício, variava
entre R$ 15, R$ 30 e R$ 45, dependendo se a família tinha um, dois, três
ou mais dependentes. Seu recebimento estava condicionado à freqüência
mínima dos filhos e/ou dependentes às aulas (85%), reavaliada a cada três
meses. O recurso era entregue preferencialmente às mães, que recebiam
um cartão magnético da Caixa Econômica Federal. Aos municípios cabia a
responsabilidade de selecionar as famílias e fiscalizar a execução dos
programas, além de desenvolver ações sócio-educativas complementares
aos mesmos (Secretaria do Programa Nacional de Bolsa-Escola, 2001).
No entanto, ainda que a Lei nº 10.219 tenha possibilitado a
realização de convênios entre a União e todos os municípios brasileiros, esta
apresentava limitações referentes ao baixo valor do montante transferido e
à pouca disposição do governo federal em realizar convênios com governos
municipais e estaduais que contavam com programas afins que transferiam
montantes financeiros, em geral, de valor superior (Suplicy, 2002b).
178
Antes que a Lei nº 10.219 entrasse em vigor, todavia, programas de
transferências monetárias, do tipo bolsa, já existiam em todas as regiões
brasileiras, por iniciativa de governos municipais, estaduais e, a partir de
1999, do governo federal. Em geral, estes estavam inspirados no modelo
bolsa escola do Distrito Federal - apoiados pelas Secretarias de Educação -
ou no modelo de garantia de renda mínima de Campinas - vinculados às
Secretarias de Ação Social ou similares78 (Amaral & Ramos, 1998, Silva e
Silva, 2002, Suplicy, 2002).
Em 1998, Amaral & Ramos realizaram uma pesquisa, de abrangência
nacional, acerca dos programas de renda mínima e bolsa escola no país
junto a diversos governos municipais e estaduais. Como desdobramento
desta foram identificados 24 programas distribuídos em 13 unidades da
federação e por todas as regiões brasileiras, sendo que os municípios de
São Paulo respondiam por 11 destes programas. Destes, três foram
iniciados em 1995, seis em 1996, oito em 1997 e sete em 1998, cuja
respectiva gestão administrativa-financeira era realizada, majoritariamente,
pelos governos locais (1999:2). Os resultados principais da pesquisa em
questão são apresentados a seguir:
- Quanto aos critérios de seleção dos beneficiários: a maioria adotava
um critério de renda familiar per capita de meio ou um terço do salário
mínimo. Outros critérios eram: a exigência de um tempo mínimo de
residência e a existência de filhos e/ou dependentes menores de idade
(normalmente de zero a 14 ou 7 a 14 anos). Com relação à avaliação das
condições sócio-econômicas dos beneficiários utilizava-se, na maioria dos
casos, o “sistema de pontuação” desenvolvido inicialmente pelo programa
de Brasília, onde eram contabilizados, entre outros, dados sobre condições
de moradia, bens de consumo duráveis, bens patrimoniais, instrução e
inserção profissional dos requerentes.
78 Segundo Lavinas & Varsano (1997) esses visavam, em geral, os seguintes objetivos: fortalecer a cidadania; proporcionar condições dignas de vida à população carente; dotar esta de melhores condições de obtenção autônoma de renda; possibilitar a dispensa do trabalho infantil, visando eliminar a transmissão da pobreza entre gerações.
179
- Quanto ao valor e duração do benefício: o valor respeitava um dos
seguintes modelos: i) fixo, igual para todas as famílias independente da
renda e do número de filhos e/ou dependentes ii) variável, complementar à
renda familiar total ou à familiar per capita. Nesse caso, este poderia
corresponder à diferença integral entre a renda existente e o limite para
participar no programa ou corresponder a uma parte da diferença. Quanto à
sua duração, em geral, era por 12 meses podendo ser renovado por mais
um ano.
- Quanto às contrapartidas dos beneficiários: a ênfase no
atendimento à infância estava evidenciada pela contrapartida comum a
todos os programas - a exigência de matrícula e freqüência à escola dos
filhos e/ou dependentes em idade de escolarização obrigatória.
- Quanto aos serviços complementares: estavam divididos em
assistência familiar, atendimento à infância, incremento de renda e
encaminhamento a outros serviços públicos.
- Quanto ao número de beneficiários: apresentavam variações
significativas, decorrentes da dimensão diferenciada dos beneficiários
potenciais e do estágio de desenvolvimento que cada programa se
encontrava.
- Quanto à gestão e financiamento: observou-se uma tendência de
equipes de programas do tipo bolsa escola serem menores do que as do
tipo renda mínima, já que os primeiros valiam-se de recursos da rede de
ensino. A quase totalidade dos programas tinha como única fonte de
financiamento os recursos advindos do orçamento (municipal ou estadual).
- Quanto às relações institucionais: no âmbito das relações
interprogramas, observou-se o papel de destaque assumido pelas
experiências do Distrito Federal e de Campinas.
Amaral & Ramos afirmam que “apesar da vasta gama de serviços
mobilizada pelos programas de renda mínima e bolsa-escola em todo o
país, na maioria ainda predominava a ausência de articulação ordenada de
ofertas” (1999:7)79. Tal fato merece destaque visto que estudos acerca
79Segundo os autores, tais programas são prejudicados igualmente pela falta da participação das organizações da sociedade civil nas parcerias que são firmadas em torno dos mesmos para a realização
180
desses programas têm mostrado que os resultados afins são mais
relevantes quanto maior sua articulação e associação com outras ações de
cunho social. Um exemplo nesse sentido encontra-se no artigo que Márcio
Pochmann, ex-secretário municipal do desenvolvimento, trabalho e
solidariedade, na gestão da prefeita Marta Suplicy em São Paulo, publicou
no jornal Folha de S. Paulo:
“A implantação de um novo formato administrativo na área social foi
condição necessária para a implantação da estratégia paulistana de
inclusão social, capaz de permitir a adoção de políticas redistributivas
aliadas à emancipação social, política e econômica. [...] Por conta disso,
os programas redistributivos foram articulados e integrados aos
programas de natureza emancipatória e aos de apoio ao
desenvolvimento local. Tudo isso foi associado matricialmente às
políticas de saúde, educação, transporte, assistência, segurança,
cultura, esporte e lazer, entre outras dos governos federal e estadual”
(Folha Opinião, 14/9/2004).
De todo modo, segundo Amaral & Silveira (2001), pelo fato dos
programas de transferências monetárias em geral articularem suas ações
com outros serviços, como assistência materno-infantil, alfabetização de
adultos, capacitação profissional, estes contribuem para a concepção de um
novo modelo de política social no país, que pressupõe a integração e a
intersetorialidade, diferente da tradicional fragmentação característica dos
programas sociais aqui implantados.
Na percepção desses autores, tais programas contam com dois
elementos inovadores: i) a concessão do benefício em espécie, o que traz
implícita a idéia de que os beneficiários são capazes de gerir suas
necessidades e recursos da forma que lhes parece mais adequada, evitando
sua tutela; ii) o incentivo à escolaridade de crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade pessoal e social (Amaral & Silveira, 2001), o
que, em tese, pode contribuir para romper com o ciclo da pobreza. de serviços complementares, como no acompanhamento e intermediação para a obtenção de documentação básica (carteira de identidade e de trabalho).
181
Silva e Silva (2002), por sua vez, acredita que “programas de
transferências monetárias voltados para famílias como incentivo ao
encaminhamento e manutenção de crianças nas escolas, constituem, no
presente, a dimensão mais ampla do sistema de proteção brasileiro, pela
extensão geográfica alcançada, pelo volume de recursos aplicados e pelo
número de famílias atendidas”.
Em 2002 essa autora participou de uma parceria entre três
universidades (PUC/SP, UNICAMP e Federal do Maranhão) para a realização
de uma pesquisa visando traçar o perfil dos programas de renda mínima e
bolsa escola, implementados no Brasil por governos estaduais e municipais.
Esta, entre outros, revelou os seguintes problemas com relação aos
mesmos: dualidade e paralelismo entre os programas de diferentes níveis
de governo, com uma forte tendência de o programa federal se sobrepor
aos demais80; insuficiência de recursos para o funcionamento adequado
destes; existência de critérios altamente restritivos para o respectivo
acesso; limites severos para a autonomização de seus beneficiários
tornando crítico o momento de desligamento dos mesmos (Silva e Silva,
1999).
Assim, se os programas de transferência monetária revelam uma
série de potenciais podendo vir a funcionar como catalizadores de ações
sociais variadas, estes têm sido também objeto de críticas e ponderações,
inclusive no que diz respeito às suas limitações enquanto instrumentos para
a erradicação da pobreza e diminuição da desigualdade, já que sua
estratégia não está suficientemente explicitada nesse sentido. Tal estratégia
também não está clara no sentido de revidar argumentos contrários a esses
que se referem, basicamente, ao risco da aceitação dócil da exclusão de
trabalhadores desqualificados para o mundo do trabalho; à dependência do
beneficiário e a decorrente falta de estímulo por parte do mesmo para
80 Em 2002 em diversos municípios e estados brasileiros havia programas de renda mínima, bolsa-escola e similares que não dialogavam entre si, que foram instituídos em anos anteriores, independentemente do programa do governo federal. Este foi o caso, por exemplo, do estado e do município de São Paulo que, até bem pouco tempo, tinham programas diferentes entre si e daquele do governo federal, e que além de tudo não interagiam.
182
buscar trabalho; ao seu caráter eminentemente compensatório (UNICEF,
1997:1).
Para além da chamada armadilha do desemprego, as principais
críticas que tais programas têm enfrentado dizem respeito ainda: i) à
dificuldade de focalizar as populações beneficiárias e de criar mecanismos
justos que evitem o clientelismo e o apadrinhamento político na sua
seleção; ii) à desvinculação entre o valor dos benefícios auferidos e os
mínimos sociais necessários à subsistência familiar; iii) à dificuldade de
definir e implementar critérios para o desligamento dessas populações, uma
vez que a duração do subsídio e dos meios de sua autonomização não está
devidamente equacionada (Amaral & Silveira, 2001, Silva e Silva, 2002).
Os fatos acima citados traduzem-se na falta de mecanismos que
assegurem a continuidade da formação educacional das crianças e
adolescentes envolvidos com programas de transferências monetárias após
o término do recebimento do benefício; e na ausência ou insuficiência de
estratégias voltadas para a inserção econômica do público beneficiário
nessa mesma ocasião; ou seja, as os respectivos familiares ou
responsáveis. Outro ponto crítico apontado com relação a tais programas
tem a ver com o seu monitoramento e avaliação, cuja complexidade é
atribuída à dificuldade de realização de um trabalho integrado por parte das
instituições responsáveis que, muitas vezes, envolvem os três níveis da
federação, além da existência de poucos profissionais preparados para tal
fim nas instâncias locais (idem).
Frente ao quadro acima exposto, com base nas experiências regionais
do Programa Bolsa Escola, a UNESCO (2002) fez recomendações com
relação às propostas de transferências monetárias, do tipo bolsa, similares
aquelas realizadas por outros organismos internacionais, os quais postulam
a necessidade de melhor focalizar os programas sociais no sentido de
aumentar a eficiência do gasto correlato (Barros et alli., 2000; Banco
Mundial, 2004). Dentre estas recomendações, se destaca:
183
- A reestruturação dos critérios de acesso e permanência. A seleção
das famílias deve levar em conta para além da renda per capita, as
respectivas condições de vida;
- O estudo do tempo de duração do benefício, definindo um período
para que essas possam sair das linhas de pobreza;
- A realização de um trabalho de capacitação profissional e
alfabetização dos seus membros adultos para que não se dependa do
benefício eternamente;
- A ampliação do atendimento às mesmas, atendendo às carências
em outras áreas além da educação, como saúde e segurança
alimentar.
Para além das críticas que têm sofrido os programas de
transferências monetárias do tipo bolsa, implantados no Brasil,
pesquisadores do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS),
como André Urani, Ricardo Paes e Barros e outros são entusiastas dos
mesmos considerando-os uma alternativa válida para erradicar a pobreza e
reduzir a desigualdade no país. No entanto, acreditam que, assim como os
demais programas sociais no Brasil, estão mal focalizados desperdiçando
recursos escassos. Neste sentido sugerem que seu desenho seja revisto
para melhor atenderem os mais pobres visando garantir sua eficiência e
evitar tal desperdício (IETS, 2003).
Já Camargo & Ferreira (2001), identificando os limites do Programa
Bolsa-Escola (hoje integrado ao Bolsa-Família), por este não atender a
famílias com crianças na faixa de zero a 6 anos e não incluir gestantes
entre seus beneficiários, e inspirados na experiência do PROGRESA
(Programa de Educação, Saúde e Alimentação implementado no México
desde 1995, denominado Oportunidades, na atualidade), sugerem que
famílias brasileiras com renda mensal abaixo de R$ 75 tenham direito a um
benefício monetário desde que ofereçam algum tipo de contrapartida. Tal
sugestão foi elaborada por eles na forma do Benefício Social Único, um
programa de renda mínima, de natureza focalizada e condicional, ao qual
toda família vivendo em condições de pobreza teria direito, desde que
enquadrada no critério seletivo. A estas transferências monetárias os
184
autores agregaram intervenções em políticas setoriais visando aumentar a
qualidade dos serviços afins, como de educação e saúde, o que aproxima
ainda mais o Bolsa Família de sua proposta 81.
Quanto ao professor da Fundação Getulio Vargas, Marcelo Néri, no
artigo “A Alvorada da Fome Zero”, publicado na Revista Agroanalysis,
ressalta que políticas de transferência monetária por si só não resolvem os
fundamentos da eqüidade. Segundo ele, mudanças sustentáveis da
distribuição de renda exigem alterações na própria distribuição de renda. O
autor traça um paralelo entre um programa de renda mínima (o Bolsa-
Escola) e a Renda de Cidadania ou a Universalidade Incondicional, como
prefere chamar. As principais diferenças entre ambos estariam no foco e
nos condicionantes, ressaltando que uma das vantagens da renda
incondicional seria a de eliminar efeitos colaterais sobre a disposição ao
trabalho e à informalidade, o que faz esta menos sujeita a vieses e mais
simples, ainda que mais custosa (dezembro/janeiro de 2003).
Outros autores, como Amélia Cohn (2002) e Francisco de Oliveira
(2003) destacam que iniciativas voltadas para a superação da pobreza e
diminuição da desigualdade deveriam politizar o social e alcançar a
universalização de direitos (como o direito à renda) e não buscar uma
melhor focalização de programas e maior controle ou restrição no gasto
social.
Segundo Francisco de Oliveira, é chegado o momento de “radicalizar
a questão social no país” e elevar o investimento na área por meio da
implementação da renda básica de cidadania, em lugar de dar
prosseguimento aos programas de renda mínima de cunho liberal. Em um
artigo publicado na Folha de S. Paulo, o autor afirma que os custos sociais
no Brasil devem ser aumentados, “para que eles se transformem em um
obstáculo de fato, para poder a pobreza ser transformada em classe - em
classe quer dizer, em interesses”. Francisco de Oliveira chama a atenção
para o papel estratégico que o Estado poderia cumprir nesse sentido, 81 A idéia do Benefício Social Único foi incluída no documento “Agenda Perdida: Diagnósticos e Propostas para a Retomada do Crescimento com Maior Justiça Social”, elaborado pelo IETS em 2002.
185
universalizando os direitos de cidadania o que, segundo ele, se daria pela
elevação do gasto público (Folha de S. Paulo, 29/12/2002).
Francisco de Oliveira (2003, 2004) postula ainda que programas de
renda mínima são instrumentos de “funcionalização da miséria” por serem
extremamente focalizados em uma parcela da população específica e se
constituírem em uma espécie de "ajuda humanitária" para garantir a
sobrevivência dos mais pobres, sem alterar a condição social destes; ou
seja, por não alterarem a estrutura de distribuição de riquezas do país.
Nesse sentido, a avaliação positiva que faz da proposta de uma renda
básica de cidadania se baseia justamente no fato de esta ser universal e
incondicional, embora o autor apresente ressalvas com relação a esta. Nas
suas palavras:
"A renda básica só se converterá em um instrumento efetivo de
distribuição de renda na medida em que atender amplamente à
população com benefícios razoavelmente elevados" (Francisco de
Oliveira, 2004 apud Fiúza, 2004).
Amélia Cohn (2002) manifesta uma preocupação de que programas
de renda mínima se tornem mais um paliativo num contexto como o
brasileiro, onde se mascara a questão do social e se faz com que a pobreza
perca sua dimensão fundamentalmente política passando a ser percebida –
equivocadamente - como um fenômeno “natural”. Segundo ela, se faz crer
que não só esta
“é inevitável, como combatê-la eficazmente significa enfatizar a
manutenção de políticas econômicas de estabilização fiscal (o social
se transmudando assim em econômico). Em decorrência, os parcos
recursos que o modelo econômico vigente permite disponibilizar para
a área social devem ser dirigidos para os segmentos mais pobres da
população, ou no jargão das agências multilaterais, para os ‘grupos
socialmente mais vulneráveis’” (Cohn, 2002).
186
Cohn (2000) percebe uma distância cada vez maior no país entre o
social e o político, o que faz com que a questão social seja resolvida
tecnicamente, de acordo com os limites econômico-financeiros do Estado;
além de acontecer uma maior segmentação na própria área social.
No sentido de reverter o quadro acima exposto, a autora propõe que
se coloque o “social no lugar”. Acredita que “o principal desafio que se
impõe para quem defende uma sociedade justa e democrática é, diante do
“governo do mercado”, preservar e fortalecer o Estado e, sobretudo, a
democracia”. Para tanto, Cohn sugere combinar políticas de transferências
monetárias com a universalização do acesso aos direitos sociais básicos; e
com políticas econômicas que gerem empregos, criem novos postos de
trabalho e desconcentrem a atividade econômica dos núcleos dinâmicos da
economia (idem).
Pelo exposto, observa-se que os programas de transferências
monetárias no Brasil circunscrevem um terreno polêmico, um campo de
disputa sobre os significados de direitos e cidadania. Disputa esta que,
segundo Telles (1998), tem a ver com as dimensões pragmáticas da vida
política e os modos como os programas sociais são concebidos e
implementados no Brasil. Para esta autora, a questão dos programas de
renda mínima é política, “inteiramente política”. Assim, pergunta:
“Até que ponto estes se mantém no terreno de políticas residuais e
apenas compensatórias, ou conseguem se realizar como instrumentos
de políticas sociais pautadas por critérios universais de cidadania? Até
que ponto reafirmam o pressuposto miserabilista dos “mínimos de
pobreza” [...] ou são pautados por padrões de civilidade, “os mínimos
sociais”, a serem conquistados e negociados como um conjunto de
direitos a serem garantidos a todos? Até que ponto a autonomia que
se pretende promover com a transferência de renda para indivíduos
ou famílias, se reduz ao pressuposto possessivo liberal (a liberdade
entendida estritamente como a posse de bens e renda), ou consegue
se efetivar como capacidade (e liberdade) para escolher e realizar
formas de vida consideradas valiosas e válidas de serem vividas? E
187
até que ponto essa suposta autonomia [...] se reduz ao pressuposto
de que os destinos das vidas desses indivíduos e famílias é algo que
diz respeito apenas às circunstâncias de suas vidas privadas, ou essa
promoção interpela um sentido de responsabilidade pública capaz de
garantir o conjunto de condições (econômicas, institucionais,
políticas) sem as quais essa liberdade de escolha não é mais do que
uma ficção?” (Telles, 1998).
A proposta de renda básica de cidadania vem de encontro com as
questões colocadas por Vera Telles (1998), Francisco de Oliveira (2004),
Amélia Cohn (2002,2004) já que, diferentemente daquelas de renda
mínima, pretende a universalização do direito ao benefício monetário, de
forma equânime e incondicional, colocando especial ênfase no papel do
Estado neste sentido, além da perspectiva de emancipação por parte de
seus beneficiários. Além de superar a focalização no âmbito dos programas
sociais, esta modalidade de renda pode evitar a fragmentação de tais
programas estimulando a intersetorialidade e a atenção integral, uma vez
que pressupõe a inauguração de um novo marco para a política social.
III.4.2 Renda de cidadania
De cada um de acordo com sua capacidade; a cada um de acordo com a sua necessidade
Karl Marx
Partiu do senador Eduardo Suplicy a iniciativa de implantar uma
política no país que contribuísse para a melhoria da distribuição de renda.
Para tanto, apresentou no Senado Federal, em dezembro de 2001, o Projeto
de Lei nº 266 visando instituir a Renda Básica de Cidadania no Brasil.
Segundo seu artigo 1º, “é instituída, a partir de 2005, a renda básica de
cidadania, que se constituirá no direito de todos os brasileiros residentes no
país, e estrangeiros residentes há pelo menos cinco anos no Brasil, não
188
importando sua condição sócio-econômica, receberem, anualmente, um
benefício monetário”82.
Tal projeto recebeu parecer favorável do senador Francelino Pereira,
relator da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, o qual, apresentou
um substitutivo ao mesmo que manteve a universalidade do original
estabelecendo, no entanto, que sua execução se desse por etapas, “a
critério do Poder Executivo, dando-se prioridade às camadas mais
necessitadas da população, aos indivíduos à margem do mercado, que se
situam abaixo da linha da pobreza, ou seja, aos excluídos” (Senado Federal,
2003).
Outra alteração importante que o senador Francelino Pereira fez com
relação ao projeto original da renda básica de cidadania foi retirar o
referendo popular previsto para outubro de 2004 a fim de que os eleitores
pudessem decidir sobre a mesma (idem).
Todavia, preocupado com as restrições orçamentárias para a
implantação imediata da renda de cidadania no país, o senador Francelino
Pereira propôs o substitutivo supracitado em uma tentativa de conciliar o
que o Brasil já estava fazendo em termos de transferências monetárias com
a perspectiva futura de sua ampliação até alcançar a universalidade,
cabendo ao Poder Executivo definir o valor do benefício “em estrita
observância ao disposto nos artigos 16 e 17 da Lei Complementar número
101, de 2001 (Lei de Responsabilidade Fiscal)”, o que acrescentou ao
82Vale ressaltar que, em 1999, o senador Suplicy já havia apresentado ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 82 visando instituir o “Fundo Brasil de Cidadania”, cujo recurso inicial seria constituído por 10% da participação acionária da União no capital das empresas públicas, sociedades de economia mista, incluindo as instituições financeiras. Os recursos deste Fundo seriam formados ao final por dotações consignadas no Orçamento Geral da União, 50% dos recursos provenientes das concessões de obras e serviços públicos, 50% dos aluguéis de imóveis pertencentes à União, outros ativos e doações. Tal projeto recebeu parecer favorável do senador Álvaro Dias na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. No entanto, seu parecer veio acompanhado de um substitutivo que alterou o artigo 1º do mesmo, definindo que a denominação cidadania “se destina ao financiamento de programa de renda mínima [Lei nº 9.533 de 10 de dezembro de 1997] e retirando a explicação de que a renda mínima é garantida como um direito à cidadania” (ver voto do relator senador Álvaro Dias, 2000). Evidentemente, tal substitutivo alterou o próprio conceito do Fundo. De todo modo, o projeto em questão aguarda para ser votado, em caráter terminativo, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal.
189
projeto original (Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado nº 266, de
2001)83.
O senador Suplicy concordou com as alterações realizadas no Projeto
nº 266, afirmando:
“A renda de cidadania pode ser vista como um objetivo a ser atingido
quando racionalizarmos todos os programas de transferência de
renda que existem hoje no Brasil. Também pode ser vista como um
patamar importante e básico tanto do sistema tributário quanto do
sistema previdenciário nacional” (Senado Federal, 2003:3).
Tal projeto, com as alterações feitas pelo senador Francelino Pereira,
foi aprovado por voto nominal e unânime de todos os partidos na Comissão
83 Cabe destacar que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) constitui-se em uma lei eminentemente instrumental, visando impedir o descontrole dos gastos públicos, a fim de garantir o equilíbrio fiscal, a não ocorrência de déficits orçamentários e, portanto, a estabilidade macroeconômica. Assim, nenhum programa a priori é vetado pela supracitada lei em função da natureza da finalidade da despesa. Ou seja, a LRF não restringe ideologicamente nenhuma despesa, mas visa compatibilizar a mesma com a capacidade de arrecadação do governo (André Fernandes, Consultoria Legislativa, 4 de setembro de 2002). Já os artigos 16 e 17 estabelecem, in verbis: Art 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da
despesa será acompanhado de:
I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva entrar em vigor e
nos dois subseqüentes;
II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e com a lei de diretrizes orçamentárias.
Art 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
§ 1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio. § 2º Para efeito do atendimento do § 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1º do art. 4º, devido seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa. § 3º Para efeito do § 2º, considera-se aumento permanente de receita o proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição. § 4º A comprovação referida no § 2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias. § 5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar. § 6º O disposto no § 1º não se aplica às despesas destinadas ao serviço da dívida nem ao reajustamento de remuneração de pessoal de que trata o inciso X do art. 37 da Constituição. § 7º Considera-se aumento de despesa a prorrogação daquela criada por prazo determinado.
190
de Assuntos Econômicos do Senado Federal em dezembro de 2002. A partir
daí foi encaminhado para a Comissão de Finanças e Tributação da Câmara
dos Deputados. Em dezembro de 2003, recebeu parecer favorável do
deputado Paulo Bernardo, relator dessa Comissão.
No dia 8 de janeiro de 2004, finalmente, o presidente Lula sancionou
a Lei nº 10.835, que institui a Renda Básica de Cidadania, a qual deverá ser
implementada gradualmente no Brasil, a partir de 2005, priorizando os
segmentos mais necessitados da população, até atingir todos os brasileiros
residentes no país e os estrangeiros aqui residentes há cinco anos ou mais.
Assim, pela lei sancionada, a renda básica – uma vez implantada –
não será concedida inicialmente a todos no Brasil. Sua universalidade será
alcançada gradualmente, de acordo com as determinações do Poder
Executivo. Quanto ao valor do benefício a ser transferido, será definido
levando-se em consideração o grau de desenvolvimento do país e as
possibilidades orçamentárias respectivas84.
De todo modo, conforme afirma o senador Suplicy “é importante
notar que o Plano de Governo do Lula, aprovado pelo Congresso Nacional
do PT em 2001, enfatizou que a renda mínima e outras formas de
transferência de renda deveriam ser vistas como passos em direção à renda
básica de cidadania” (2003). Segundo ele, tal decisão foi reforçada em
março de 2003 pelo Diretório Nacional do partido, cuja resolução nesse
sentido é apresentada a seguir:
“[...] as propostas de reforma tributária, previdenciária e trabalhista
devem levar em consideração a instituição de uma Renda Básica de
Cidadania como a base de rendimento a que todo(a) brasileiro(a)
84Suplicy faz uma simulação do montante de recursos necessários para a implantação da renda de cidadania no país. Segundo ele, “se o Brasil pagar R$ 40,00 por mês, ou R$ 480,00 por ano, por pessoa, para todos os seus 179 milhões de habitantes, isto dará um dispêndio total de R$ 85,9 bilhões anualmente, o equivalente a 5% do PIB de cerca de R$ 1,8 trilhão (estimado para 2004), [o que, reconhece, é uma quantia muito significativa], mas bem inferior aos R$ 145 bilhões que o setor público do Brasil [...] pagou sob a forma de juros aos detentores da dívida interna e externa no ano de 2003” (2004).
191
deve ter acesso como direito de participar da riqueza da nação.
Conforme consta no programa do Presidente Lula, os diversos
programas de transferência de renda [...] devem ser vistos como
passos na direção de uma Renda Básica de Cidadania. A Bancada do
PT na Câmara dos Deputados, em harmonia com o Poder Executivo,
deverá acompanhar com atenção a tramitação do Projeto de Lei do
Senado 266/2001 ou o Projeto de Lei da Câmara 254/2003 que cria a
Renda Complementar de Cidadania, de maneira compatível com as
reformas tributária, previdenciária e trabalhista” (Resolução sobre as
Reformas do Diretório Nacional do PT, item 23).
Em mensagem enviada por Phillipe Van Parijs ao presidente Lula por
ocasião da aprovação da lei que instituiu a renda de cidadania no Brasil, o
autor pondera que esta deve ser implantada no país de forma “ousada,
mas responsável”. Segundo ele, até completá-la, a concessão do benefício
monetário deverá ser condicionada à condição de renda, por meio de
regras simples e de procedimentos transparentes, visando evitar o
clientelismo. Van Parijs alerta igualmente para que desde o início da sua
implantação se preste especial atenção à “harmoniosa articulação com os
sistemas de seguridade social relacionados com o emprego formal e com os
sistemas de isenção incorporados ao mecanismo de imposto de renda”.
Segundo ele,
“Quanto mais cedo, mais aprofundado e de maneira inteligente os
vários esquemas forem integrados, menor será o risco de a renda de
cidadania ficar para sempre presa a um vasto programa direcionado
aos pobres, com todos os riscos de dependência e, finalmente, de
reações políticas que isso implica” (Van Parijs, 2004).
A economista Lena Lavinas acredita que a novidade do projeto que
institui a renda de cidadania no Brasil consiste em tentar estabelecer uma
regra de transição dos programas de transferências monetárias hoje em
execução em direção à renda universal e incondicional. Contudo, a autora
demonstra preocupação a respeito:
192
“[...] num país onde a universalização está hoje sob custódia por
imperativos macroeconômicos, onde a sobre-focalização do gasto
social é tida como o único meio de reduzir a desigualdade e ampliar a
cidadania, onde 80% das transferências diretas de renda são de
cunho contributivo (aposentadorias e pensões), e alvo de propaladas
críticas por espelharem uma estrutura regressiva, e somente 2,2%
delas são de natureza compensatória, sujeita a diversas
condicionalidades, destinada a um percentual pequeno das dezenas
de milhões de pobres que conta o país, não deixa de surpreender que
a partir de 2005 estejamos adotando a renda básica de cidadania
como direito universal e incondicional de todos aqueles, brasileiros ou
não, que vivem legalmente no país” (Lavinas, 2004:4).
No artigo “Universalizando Direitos”, publicado na edição de 2004 do
Observatório da Cidadania/Social Watch, divulgado anualmente por
organizações não-governamentais, Lena Lavinas afirma que em vez de o
governo brasileiro gastar recursos e esforços para tentar atingir apenas os
segmentos mais pobres da população por meio de programas de transferência
de renda, como o Bolsa Família, deveria universalizar um benefício a todas as
crianças e adolescentes de zero a 16 anos de idade, residentes no país, no
sentido de obter um impacto de maior magnitude na superação da pobreza.
Fazendo simulações do impacto de um programa de transferência de
renda do tipo universal junto a vários segmentos populacionais, a autora
conclui que a melhor relação entre o respectivo custo e benefício se daria com
um benefício individual, no valor de R$ 80, a todas as crianças e adolescentes.
Daí o porquê da sua proposta. Segundo ela, este reduziria a pobreza no país
em um terço e levaria a uma queda expressiva do GINI, uma vez que
permitiria que a renda dos 20% mais pobres dobrasse vis-à-vis a dos 20%
mais ricos85.
85Segundo Lavinas, como há 56,7 milhões de crianças de zero a 16 anos no país, o custo desse benefício alcançaria R$ 54,6 bilhões o que, perto do que o governo gasta com programas como o Bolsa-Família (cerca de R$ 11,5 bilhões em 2004), pode parecer alto. Cita como possível fonte de financiamento a suspensão da desvinculação da receita da União no orçamento da Seguridade Social, prevista para este ano em R$ 46,5 bilhões. Ao defender a proposta, ela diz também que teria impacto na geração de emprego e renda, criando 2,3 milhões de novos postos de trabalho remunerados. "Se o gasto for considerado alto demais, é possível começar o programa com um valor por criança inferior a R$ 80 e ir aumentando em uma progressão a ser definida” (2004:4).
193
Dessa forma, Lavinas defende que as políticas universais podem
impactar positivamente a redistribuição de renda. Nesse sentido, propõe o
modelo supracitado, o qual, para a autora, pode ser percebido como uma
transição dos programas de renda mínima em direção a uma política de
renda básica universal, conforme aquela prevista na Lei nº 10.835,
sancionada pelo presidente Lula em janeiro de 2004 (IBASE, 2004)86.
Pochmann (2003) ressalta a necessidade de se expandir os gastos
sociais no Brasil com vistas à universalização das políticas sociais e ao
aumento do seu impacto distributivo. Sobre este último aspecto vale
considerar os desafios para os quais Paulo Henrique Martins (2004) aponta
no sentido de discriminar um programa emancipatório (distributivo) de um
assistencialista (compensatório). Nas suas palavras:
“[...] o primeiro deles refere-se justamente à diferenciação entre
renda mínima e renda básica, pois se [este programa] for pensado
como um montante irrisório, mal suficiente para a sobrevivência,
dificilmente será percebido senão como assistencialista. O segundo
desafio relaciona-se à burocracia de Estado: ela deve ser competente
e legalista, mas para que o programa seja apreendido como
emancipatório, um elemento além é fundamental – o vínculo
simbólico entre técnicos e beneficiários deve ser marcado pela
confiança mútua. Por fim, o último desafio corresponde à capacidade
do programa de gerar redes sociais [...], o que significa uma
mudança do paradigma individualista para o coletivista, mais capaz
86 Nesse sentido vale considerar que para além do significado da focalização enquanto uma política seletiva, tal focalização por vezes assume o significado de uma ação reparatória visando restituir o acesso a direitos universais “formalmente” iguais por determinados grupos sociais mais vulneráveis que têm dificuldade em efetivá-los. Segundo Kerstenetzky, essa ação focalizada, caso implementada, complementaria “as políticas públicas universais, justificadas por uma noção de direitos universais, afeiçoando-se à sua lógica, uma vez que diminuiria as distâncias que normalmente tornam irrealizável a noção de igualdade de oportunidades embutida nesses direitos” (2003:84). Sobre este aspecto, portanto, a focalização faria parte de uma concepção universalista de direitos de cidadania. Seria a “discriminação positiva”, compatível com o princípio da retificação ou da reparação, nas palavras da autora (idem).Tal focalização, na percepção de Kerstenetzky (2003), seria compatível ainda com a concepção de justiça social ralwsiana, em função da qual as liberdades formais para se converterem em liberdades reais requerem a distribuição reparatória de oportunidades. Essa reparação, entretanto, conforme postula Rawls, deve se dar ex ante.
194
de proporcionar uma percepção emancipatória e não assistencialista
do benefício” (in Justo, 2004:16).
Neste caso, o que dizer de programas que:
“possuem um valor irrisório?; estimulam a qualificação profissional e
a recolocação dos desempregados no mercado de trabalho?; tão
somente entregam o benefício como direito do cidadão, sem fazer
nenhuma exigência, porém sem também oferecer qualquer incentivo
para a inserção dos desempregados no mercado de trabalho? [...]
que aspectos da cidadania são enfatizados e/ou negligenciados por
eles? Mais pontualmente, programas que visem a solucionar,
paralelamente, ao problema patente do desemprego, estariam
fundados numa concepção ultrapassada de cidadania, que não se
adequa mais aos novos tempos?” (Justo, 2004:14).
De todo modo, na discussão acerca da progressividade da renda
mínima em direção à renda básica de cidadania parece fundamental
recuperar a participação da sociedade na definição dessa política, o que
poderia se dar por meio dos conselhos setoriais os quais vêm sendo
considerados, na literatura especializada, como um importante mecanismo
da chamada democracia deliberativa, que permite “uma ampliação do
espaço público, com a possibilidade de discussão aberta e deliberação
acerca de políticas públicas e a democratização do processo decisório, além
da possibilidade do controle social” (Schattan et alli., 2001; Gerschman,
2004).
Nesse mesmo sentido, Paulo Henrique Martins (2003) referindo-se à
discussão brasileira com relação aos programas de transferências
monetárias, afirma que a introdução de uma renda básica no país deve ser
acompanhada de uma discussão ético-moral da reforma do Estado no
sentido de sua relação com a sociedade civil, a qual, a seu ver, deveria ser
mais democrática. De fato, segundo ele, esta deveria contemplar o
protagonismo dos diversos atores sociais e a cidadania ativa como dois
195
componentes importantes que dão o tom de uma sociedade madura e
emancipada.
Sobre esse último aspecto, Cohn (2004), ressalta a importância da
idéia de construção da cidadania como um processo de habilitação para o
desenvolvimento das capacidades dos indivíduos para que possam defender
e representar coletivamente seus interesses e participar, de forma efetiva,
da esfera produtiva e societária. Dessa forma, uma política de renda de
cidadania requer que se traga à cena instâncias representativas da
sociedade civil para participar da formulação e gestão respectiva.
Daí a pergunta: como serão definidas as necessidades que deverão
ser contempladas por meio da renda básica de cidadania? Conforme
ressalta Medeiros (2003), Sen (1995) mostrou que a questão central nas
considerações sobre igualdade (ou desigualdade), que está por trás da
proposta dessa modalidade de renda, é responder à pergunta: “igualdade
de quê?”, o que mostra que a valoração de uma alocação depende do que
se venha a definir como necessidade. Mas a quem caberá essa definição?
196
IV CONCLUSÃO
A renda básica de cidadania tem potencial de contribuir para a
promoção de uma distribuição menos desigual de bens primários, vindo de
encontro ao principio de igual liberdade formulado por John Rawls, na sua
teoria de justiça. A eficiência de tal modalidade de renda está na
transferência de um beneficio monetário que permitirá aos cidadãos (ãs) o
exercício de suas liberdades fundamentais, uma vez que estes terão suas
necessidades básicas satisfeitas. Nesse sentido, passarão do universo das
carências para aquele dos direitos socais em função do qual poderão
reinscrever seu lugar no espaço público e terão condições de atuar como
sujeitos ativos, capazes de reivindicar e criar direitos novos.
Essa renda vem de encontro também com o princípio de igual
oportunidade e com o da diferença formulado por Rawls, segundo o qual as
desigualdades sociais e econômicas deverão ser ajustadas visando
proporcionar maior vantagem para as pessoas mais desfavorecidas da
sociedade. De fato, já que a renda básica de cidadania será transferida de
forma equânime e incondicional, individualmente, faz com que o sistema de
proteção social passe a beneficiar tais membros de forma privilegiada.
Dessa maneira, uma das mais importantes características dessa modalidade
de renda refere-se ao fato da não-exigência de contribuição.
A renda básica de cidadania, no entanto, está situada para além dos
‘mínimos sociais’ representando, igualmente, um meio eficaz de promover
as liberdades propostas por Amatya Sen, na sua teoria do desenvolvimento
como liberdade. Conforme previsto, por meio desta, as pessoas poderão
utilizar o benefício monetário livremente, da forma que lhes parecer mais
adequada, segundo suas próprias escolhas e preferências, o que contribuirá
para a respectiva emancipação. Conclui-se, portanto, que a existência de
benefícios não contributivos, como a renda básica de cidadania concedida a
toda a população, poderá vir a representar um dos trunfos imprescindíveis
do sistema de seguridade social, capaz de minimizar a desigualdade
distributiva e promover a solidariedade. A partir daí, enfatiza-se, o eixo da
197
equidade e da cidadania, por um lado e se critica o eixo da estigmatização
de setores populacionais de mais baixa renda, por outro, o que com uma
política de renda básica de cidadania, será ultrapassado.
No contexto europeu, a adoção de tal modalidade de renda vem
sendo discutida de forma amadurecida tendo em vista o respeito às
características peculiares que os sistemas de Welfare State assumiram, nos
diferentes países do continente. Estes permitiram que benefícios sociais
fossem incorporados à estrutura da sociedade sob a forma de direitos
sociais, de modo que tal sistema não sofresse um desmantelamento. Muito
pelo contrário, nesses países, em geral, cada vez mais políticas universais
vêm sendo propaladas como solução para a problemática social. Nesses
casos, os programas de transferência direta de renda têm funcionado como
complementares ao sistema de proteção social como um todo, em fase de
aperfeiçoamento.
Já no contexto latino-americano e, mais especificamente, brasileiro,
tais programas são de natureza residual e compensatória não estando claro
o seu papel enquanto instrumento para uma política social pautada em
critérios universais de cidadania.
Frente ao quadro acima exposto, parece pertinente a colocação de
Lavinas (2004) acerca do paradoxo que significa a aprovação recente da lei
que institui a renda básica de cidadania no país, no momento em que o
sistema de proteção social brasileiro “se configura como residual, num
misto de condicionalidades e acesso fortemente restritivo, na direção oposta
ao espírito universalista redistributivo da reforma social que levou à
constituição da seguridade social”.
De fato, embora no Plano do Governo Lula (2001) e na Resolução do
Partido dos Trabalhadores sobre as Reformas (2003) se aponte para o
conjunto de iniciativas de transferência monetária em curso no país (hoje
reunidas em parte no Programa Bolsa-Família), como uma etapa inicial de
implantação da renda básica de cidadania, ainda não se observa um
movimento mais consistente por parte desse governo no sentido de discutir
198
esta proposta de forma ampliada e planejar os passos subseqüentes para
sua implementação. Também ainda não se observou uma atitude que
subsidiasse sua implantação no tempo previsto como, por exemplo, a
dotação orçamentária necessária para o ano de 2005, quando formalmente
seria iniciada. O que se tem por enquanto são vozes isoladas, como a do
próprio autor da proposta, o senador Eduardo Suplicy, de intelectuais, como
Francisco de Oliveira (USP) e outros que estão à espera dos ecos das suas
falas.
Na realidade, o Bolsa-Família, pela sua natureza extremamente
seletiva, está tentando sair das armadilhas que colocou para si, ajustando
seu foco no sentido de garantir que a complementaridade da sua ação
aconteça por meio da intersetorialidade sem a qual assumiria um caráter
puramente assistencialista e nada emancipatório.
Nesse contexto, o governo brasileiro continua a prescindir de políticas
socioecoômicas que resultem em mudanças estruturais visando à superação
da pobreza, à redução das desigualdades e à desconcentração da renda. De
fato, isto não está explícito em uma política integrada, onde o social assume
simultaneamente sua dimensão econômica e política, o que é demonstrativo
de que a cidadania ainda espera por avanços mais significativos no país.
De todo modo, já que a renda básica de cidadania está fundamentada
em um paradigma diferente daquele adotado pelos programas de
transferências monetárias vigentes, é fundamental precisar em que
momento ou através de quais pressupostos e condicionantes o governo
brasileiro terá condições de efetuar a mudança paradigmática proposta; ou
seja, a transição de programas compensatórios e focalizados para uma
política redistributiva e universal, que implica numa alteração profunda na
área social [no que se refere à estrutura de distribuição de renda e
riquezas] e econômica [no que se refere à revisão de prioridades e ao
aumento do gasto social], se é que existe vontade política para tanto.
Caso essa transição não se esclareça, o sistema de proteção social do
país provavelmente continuará preso a políticas que se identificam com
199
modelo de Walfare State residual, como os programas de transferência
monetária hoje implantados no Brasil que atuam, em geral, ex post na
medida em que, para a concessão do benefício, sujeitam as pessoas ao
teste de renda. Estes são, na sua grande maioria, de caráter temporário e
segmentam a sociedade entre dois grupos – excluídos e incluídos –, não
contando, portanto, com a dimensão integradora dada pela condição
universal de cidadania.
Assim, com a adoção de programas compensatórios a dimensão da
cidadania fica restrita “a uma dimensão parcial do atendimento e do
consumo, assegurado pelo estatuto de uma cidadania cívica e segmentando
a condição de inserção e a relação dos cidadãos com o Estado: aqueles
parcialmente assistidos, os protegidos e a grande maioria dos desassistidos,
conforme destaca Cohn(2002).
Frente ao exposto, o desafio maior agora no Brasil está em
internalizar e fazer cumprir a lei supracitada, além de preceitos
constitucionais que levaram à universalização de direitos de cidadania no
Brasil, o que significou uma vitória da mobilização e da organização popular.
Mas como universalizar no país, da forma mais eficaz possível, os novos
instrumentos de cidadania introduzidos por uma política que, de fato,
represente um avanço com relação a tudo que já foi feito antes? Até que
ponto o governo e a sociedade estão preparados para abraçá-la? Quais os
principais fatores político-institucionais que viabilizarão sua efetividade? Ou,
perguntado de outra forma: em que medida o governo brasileiro está
respondendo a contento demandas sociais por meio das suas políticas e
programas? Logo, em que medida está exercendo seu papel de
representação ao definir as diretrizes e propósitos com relação a estas? Ou
mais especificamente, em que medida os programas de transferência
monetária são expressão de demandas sociais, que conseguiram se fazer
representar a ponto de adquirir expressão política o suficiente para serem
objeto de políticas públicas?
200
No sentido de responder a tais questões vale considerar que só se
pode determinar a eficiência de programas de transferência monetária uma
vez que se tenha determinado quais os propósitos a realizar por meio das
políticas públicas. Pois, a decisão quanto a estes [propósitos] é crucial para
conduzir o debate da focalização versus a universalização considerando as
implicações diretas daí decorrentes [na estrutura de desigualdades, nos
gastos e nas dimensões da máquina administrativa para operacionalizar
políticas e/ou programas correlatos] e aquelas indiretas, sobretudo as que
se referem ao processo político que decide a pertinência de sua
manutenção.
Finalmente, do ponto de vista teórico, vale considerar que se acredita
na pertinência da adoção de uma renda básica de cidadania com vistas a
promover a justiça social. De fato, se o problema da desigualdade é aquele
que se faz mais premente na realidade brasileira, de cuja solução
dependem diversos outros problemas, o mais eficaz, desse ponto de vista, é
distribuir melhor o já que se tem, ou seja, priorizar a justiça social. Já, do
ponto de vista prático, se acredita que é o momento de abrir a discussão
em torno desse tema para que este seja amadurecido junto aos principais
beneficiários da política em questão; qual sejam: os diversos segmentos
que integram a sociedade brasileira.
201
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