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Entrevista do professor da PUC-SP Eugênio Trivinho concedida ao jornalista

Bruno de Pierro para o portal Brasilianas.org e o Blog do Luis Nassif (ano: 2012)

Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as redes sociais,

segundo a qual as regras da comunicação não são mais ditadas pelo jornalismo.

Além dos fatos que costuma abordar e perseguir, a prática jornalística está às

voltas com o “sobrefato”, ou seja, a movimentação da sociedade dentro do espaço

cibernético, da qual a produção simbólica do jornalismo é dependente. A avaliação

é de Eugênio Trivinho, professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em

Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-

SP) e assessor do CNPq, da CAPES e da FAPESP.

Considerado um dos principais nomes do estudo sobre a cibercultura, Trivinho

falou ao Brasilianas.org por duas horas sobre as transformações da comunicação

nas redes sociais e a defasagem do jornalismo para lidar com a nova ordem que

se impõe. Para o professor, o que acontece é um “destronamento do jornalismo

como instrumento de mediação simbólica da sociedade”, ao mesmo tempo que o

real é reportado sem a necessidade da edição, perdendo-se, assim, o monopólio

do jornalismo especializado.

Na conversa, Trivinho ainda explica o conceito de “glocalização”, em oposição à

globalização. Para ele, o termo “glocal” pode explicar melhor o cenário

estabelecido pela conexão da Internet, pois significa aquilo que une o global da

rede no local de acesso. Por fim, Trivinho fala sobre como o modo de produção do

saber na cibercultura tornou-se incompatível com os cânones da Ciência. Confira

abaixo as principais partes da entrevista. A íntegra está disponível,em PDF, abaixo

do post, ou pode ser acessada por aqui.

Brasilianas.org - Qual a concepção que o senhor tem pensado, nos últimos

anos, sobre as redes sociais na Internet? Eugênio Trivinho - Em primeiro lugar, a questão da categoria: redes sociais é um

truísmo, uma expressão conceitual que acabou tendo bastante aceitação no

campo jornalístico, no senso comum e também no campo acadêmico, por um

descuido do hábito. Na realidade, o conceito é bastante pleonástico, porque não

há rede que não seja social. O adjetivo entra aí quase como um qualificador em

relação às redes, para redundar no óbvio. Superada essa questão do pleonasmo

interno - e não deveria ser assim -, deveria ser o conceito de “rede sócio-

tecnológica”. Esse é o conceito diferencial. Mas supondo que redes sociais são

aquelas, e especificamente aquelas que se incubam no ciberespaço, e,

articulando-se nele, emergem, trazem alguma coisa que nos faz pensar.

Sobretudo porque essas redes sociais tem dimensões, que tem sempre

preocupado teóricos de diversos campos do saber. Elas tem uma dimensão

claramente além do societário, da sociabilidade; tem uma função claramente

política; econômica; cultural, evidentemente; e moral. No campo político, as redes

sociais são uma espécie de epicentro articulatório de indivíduos que, a priori, são

isolados, para fazer renascer alguma forma de movimentação na sociedade. E na

sociedade pode ser dentro ou fora da rede. Essa forma de fazer política pode ser,

muitas vezes, tão forte e envolvente que é capaz de se mobilizar e se fazer

projeção contra o próprio aparato repressivo (cavalos, gás lacrimogêneo etc.).

Essas redes sociais tem um clara função econômica, de duas formas. Elas são

articuladoras de novas formas de empreendedorismo. As formas de

empreendedorismo que nasceram no ciberespaço, sinceramente, não estão

vinculadas a certos padrões capitalistas; muitas vezes são projetos de pessoas

que não vivem no mesmo local, cumprem determinadas funções, prestam

serviços, a partir de lugares remotos, e são projetos que não implicam a

contratação de mão de obra assalariada. E o fato de não haver contratação de

mão de obra assalariada implica na recusa de certos pressupostos capitalistas,

porque onde há emprego de mão de obra assalariada, há, evidentemente,

produção de riqueza não repartida. Essa produção da mais-valia, que se reparte,

na maior grandeza, para aquele que detém as condições de contratação, e a

menor grandeza para aquele que apenas vende sua força de trabalho, sua

competência cognitiva, sua habilidade profissional, a recusa e a ausência não

configura, portanto, a existência daquele fio condutor que sempre animou o

capitalismo, que foi a exploração de um ser humano por outro.

Mas, na verdade, podemos dizer que a exploração continua, mas de forma

mais sutil. As pessoas se cadastram, fornecem seus dados e viram massa

para as grandes empresas do ciberespaço. Se se trata de um empreendimento vinculado à rede, em que o empreendedor

contratou a mão de obra de estagiários, por exemplo, e paga salário para cada

qual, com carteira assinada ou não, o lucro não é dividido entre pares e fica

concentrado para aplicação da reprodução do próprio negócio, para a contratação

de mais funcionários, para a ampliação de filiais. Se há esse esquema, há,

evidentemente, modus operandi capitalista no sentido mais clássico. Quando não

há, quando a prestação de serviço é feita por uma pessoa apenas, e ela não

emprega mão de obra assalariada, então não há, evidentemente, a configuração

da mais-valia. Porque tudo aquilo que é capital entrante é relacionado apenas à

posse de uma pessoa. Então não há mais-valia; o que há é o pró-labore.

É muito curioso que, em muitos modelos de empreendedorismo que nasceram

com o ciberespaço não há configuração clássica do capitalismo. Ao contrário, o

que existe são muitas práticas de empreendedorismo produtivistas, mas sob um

outro viés, que não implica necessariamente a contratação de funcionário que vão

ganhar menos devido ao salário, em prol de alguém que vai ganhar mais, porque é

o contratador. Na realidade, são formas compartilhadas de trabalho, cada qual

vivendo em bases remotas, nem sempre no mesmo país, e que acabam

perfazendo formas de prestação de serviços que implica, no final, a repartição

assemelhada dos lucros. Isso é uma realidade muito interessante, que só foi

possível com a emergência do ciberespaço.

A outra dimensão que as redes sociais trazem, essa sim mais sutíl e bastante

curiosa, é o fato de que diversas mega corporações, que portanto trabalham suas

marcas ao nível transnacional - e que muitas vezes são redes sociais, Facebook,

por exemplo - e que se valem do trabalho articulado de milhões, bilhões de

pessoas ao redor do mundo, consideradas como capital humano, e que aderem a

essa marca sem gastar um tostão. E justamente por isso valoram, semana a

semana, mês a mês, ano a ano, a marca.

Isso sim é a exploração de que falei. É a exploração que não passa como exploração. É a exploração flexivel, sutil,

imperceptível, obliterada de uma marca, que se gerencia como marca, que acolhe

os consumidores - eles não precisam comprar nada no mercado.

Não entra o simbólico do dinheiro, certo? Não entra, não há essa troca econômica, portanto parece que a troca não existe,

mas existe. Na realidade, esses que são acolhidos são justamente aqueles que

concordam em ter perfis, em ativar os nichos de rede para poder se relacionar com

pessoas etc. E o contexto dessas mega marcas, em termos da sua valoração no

mercado - o Facebook entrou recentemente no mercado de capitais -, com marcas

sendo vendidas por bilhões, por mais que haja sociabilidade livre, desinteressada

e distribuída, compartilhada, há negócio como qualquer outro, do ponto de vista da

economia de capitais. Então, a marca é acolhedora e aquele conjunto de milhões

de pessoas, que aderem a essa marca, e que agem sem pensar que estão no

terreno de um negócio, quanto mais pessoas houver para dar fomento e

sustentação à marca, mais investidores haverá e mais a marca será benquista

pelo capital de publicidade e que quer se vincular a ela. E, nesse caso, usuários de

redes, pela interatividade, são considerados como meros objetos sem que saibam.

O Flickr promove eventos em vários lugares para promover a sua marca e se vale,

evidentemente, da espontaneidade, da voluntariedade autonoma - pois ninguém é

coagido, todo mundo faz porque quer - das pessoas. O que se vê são pessoas que

fazem isso com prazer e com bastante consciência, pois sabem o que estão

fazendo, ninguém é manipulado. As pessoas vão até o evento, sabem que estão

num evento promocional e querem estar lá. São, portanto, corpos-propaganda,

corpos de indivíduos (sem questão de gênero, de credo, nem de faixa etária ou,

muitas vezes, salarial), que vão a esses eventos, tiram fotos, colocam nos seus

perfis, dizendo que estiveram lá. E não se incomodam por serem garotos e garotas

propaganda. Estamos vendo surgir uma nova modalidade de capitalismo com as

redes sociais, e que não deixa de ser perversa.

Estamos falando do âmbito individual, que se torna social. Mas falando do

jornalismo, vemos transformações interessantes na forma de produção da

notícia, colaboração etc. A cobertura jornalística tradicional tem sofrido

muito para acompanhar o que se difunde e divulga na rede. Dois casos mais

notórios dos últimos meses foram Pinheirinho, em São José dos Campos,

com vídeos, fotos e textos sendo gerado in loco por pessoas que não

praticam o jornalismo, e ainda assim foram fontes de notícia; e o outro, as

denúncias relacionadas a Carlos Cachoeira, com muitas informações

relevantes circulando apenas em blogs, e não na grande mídia. A operação das redes sociais foi uma enorme surpresa para os usuários e

estudiosos do ciberespaço, uma grande surpresa histórica em termos de

fenomenologia social. Nos últimos dez anos, é o fato mais significativo do ponto de

vista de agrupamentos sociais tendentes à realizar alguma atividade conjunta, não

digo para a superação das condições vigentes do capitalismo, mas para expressar

insatisfação e para poder dizer que existem novas formas de subjetivação de

mundo, com pessoas vendo o mundo de uma outra maneira, articuladas por redes,

ocupando ruas, praças, elaborando novas formas de empreendimento e de criação

de riqueza e assim por diante. O que você coloca a respeito da questão do

jornalismo entra na dimensão cultural, e como dimensão cultural não devemos

entender apenas a relação com a arte, mas àquilo que se refere à produção

simbólica. E o jornalismo é uma produção simbólica, especializada e com

linguagem específica e que, portanto, envolve uma técnica. E é uma produção

simbólica para um consumo abstrato.

O jornalismo se faz para a leitura, para a visualidade. E a leitura é um consumo

abstrato; alguém fala consumo alucinatório. Não é o consumo de materiais, como

comer uma fruta ou de roupas, que são para vestir, ou um apartamento no qual se

habite. O consumo abstrato está proliferado, e quem o satisfaz, nessa demanda,

ou seja, quem satisfaz uma sociedade midiática, fundada no consumo abstrato, é a

produção simbólica.

O que ocorre com o jornalismo quando emergem as redes sociais? De fato, essa

surpresa provoca desafios à produção simbólica, especificamente a jornalística. E

os desafios ficam por conta, primeiro, da abordagem em tempo real. O jornalismo

que mais perdeu com as redes sociais, e sempre é o que mais perde, foi o

jornalismo impresso diário. Porque o semanal e o mensal tem condições de

assimilar mais material e fazer o que o jornalismo diário não pode fazer, o que o

jornalismo televisivo não pode fazer e o que o jornalismo de Internet não pode

fazer, pois eles são vocacionados ao tempo curto. Somente com o distanciamento,

provido pela regra do jornalismo semanal e mensal, é que há a possibilidade de se

agrupar o maior conjunto de dados e fazer o monitoramento, descartando várias

coisas que realmente não interessam e só ficando com alguma estrutura

interessante de fatos. E você os reporta, e a partir do momento em que ele vão se

apresentando, você pode espalhar um pouco mais as pautas e descartar algumas.

Então, numa entrevista, no primeiro dia, ela pode ser descartada no seguinte [dia],

porque os fatos ultrapassaram a palpitação, a validade dessa entrevista prevista

antes. Uma vez que você não precisa traduzir num produto, numa reportagem,

numa notícia, naquele dia o que está acontecendo, você tem a possibilidade de

flexibilizar o modo de compreensão do que está acontecendo.

Isso não é possível para quem está na linha de frente do jornalismo diário. É

possível que o jornalismo televisivo também tenha sido, e é, evidentemente, bem

prejudicado, porque ele precisa se organizar em dependência de determinados

horários. E a unidade, que antes era o “dia”, do jornalismo diário - já foi semanal -,

passou a ser para um conjunto de horas, quando houve a emergência do rádio e

também da televisão. Mas a medida dos fatos de hoje não é mais a medida nem

pelo dia, nem pela hora; é pelo minuto. O tempo real é um tempo sem medida, ele

se constrangeu muito para o efeito de abordagem de fatos. E a abordagem de

fatos é a regra básica que sustenta a produção jornalística. Ora, como concorrer

com o jornalismo impresso e o radiofônico, que ainda vive de “entradas”, e o

televisivo, que tem uma flexibilidade, mas nem tanto, pois já uma programação que

precisa ser honrada?

As redes sociais podem não produzir jornalismo, ensaísmo acadêmico, mas elas

inventaram uma nova linguagem, ultra ágil, e, ao mesmo tempo, seu espelhamento

é em tempo real. E aí envolve não somente uma sociabilidade, mas uma coisa que

diz respeito ao confronto com as autoridades, com o aparato repressivo, e assim

por diante. São pessoas altamente ativas, que fazem parte de certos grupos,

nunca são isoladas, e que respondem a uma voz e a um lugar de fala, e que,

portanto, precisa fazê-lo para reproduzir esse lugar de fala. E o fazem não por

dinheiro, mas exclusivamente pela partilha, pelo potencial e pelo empoderamento

do âmbito civil.

O jornalismo está agora em outro contexto, cujas regras não foram dadas por ele,

e diante de um fato que se coloca bastante curioso: o jornalismo, além dos fatos

que ele aborda e que ele persegue, está às voltas com o “sobrefato”, que é agora

o caso das redes sociais. O jornalismo, que sempre dependeu de determinadas

movimentações maquinais, tecnocráticas, uma parafernalha de hardwares

(satélites, televisores), agora tem a Internet. Mas o jornalismo não depende só da

parte da parafernalha da Internet, ele depende de uma movimentação interessante

e que é da sociedade, dentro do ciberespaço e do qual o jornalismo e sua

produção simbólica depende.

Assim, o jornalismo está defasado em relação ao seu próprio contexto de inserção,

exclusivamente relacionado ao modo de produção em tempo real. Ele precisa se

adequar, espargindo as suas redes para fontes que agora não estão, senão, no

universo das redes sociais.

Há o exemplo interessante do Huffington Post, com um modelo próprio de

jornalismo colaborativo, logística de informação. Falaremos cada vez menos

do jornalismo como dono da informação, portanto? Na realidade, a questão é bastante complexa. Essa argumentação traz diversos

elementos para os quais a gente não tem uma resposta ainda. Os fatos não se

apresentaram de tal forma completos para nos dar uma interpretação com uma

resposta convincente a todos os elementos que você põe. Primeiro é preciso

considerar o que é jornalismo. Se jornalismo é o que determinadas empresas ou

projetos de empreendedorismo de produção simbólica fazem conforme o padrão

dominante, com uma linguagem aberta, universal e inteligível, e que possa,

portanto, ser útil como prestadora de serviço, possa elevar determinadas emoções,

possa até bancar determinados interesses da população, cobrar de autoridades,

fazer a mediação entre problemas sociais e a política etc. Se jornalismo é isso,

uma técnica profissional, dominada por profissionais, que são pagos para poder

exercer essa profissão, então nós estamos às voltas com a emergência de um

determinado fato, que é vultuoso, das redes sociais que operam em tempo real, e

operam produzindo, reportando-se ao real e fazendo chegar uma chuva de

informações diária para esse tipo de jornalismo que, em geral, tem quatro suportes

básicos: impresso, radiofônico, televisivo e o converso para a Internet,

aproveitando o potencial da interatividade.

Se jornalismo, grosso modo, tem a ver com o modo de produção simbólica de

domínio por parte de certos profissionais que, portanto, tem relação com uma

linguagem específica, e que com certeza não é a linguagem que estou

empregando agora, nem dos escritos acadêmicos ou do senso comum - é uma

linguagem elaborada, aprendida -; se jornalismo é isso, então temos que

circunscrever qual o impacto que se opera aí. Na realidade, esse jornalismo se

defasou. E mesmo o jornalismo de rede precisa descobrir novas formas de

articulação noticiosa, que necessariamente não se faz por contrato de trabalho, às

vezes se dá por voluntariedade.

Aí já estamos caindo na segunda forma de jornalismo, que é como nós podemos

considerar o jornalismo de um modo mais aberto, ou seja, lato sensu. Jornalismo

pode ser considerado, diferente do que acabo de dizer, como um modo de reportar

o real e o social, o modo de reportar a vida. Com uma linguagem específica? Sim,

mas não precisa ser única. E reportar falo em recriar, pois muitas vezes o fato nem

existe. Às vezes é um factóide, criado pela própria notícia, e a notícia passa a ser

o próprio fato. E as pessoas vão ler a notícia como sendo o próprio fato. É preciso

deslocar a definição. E se jornalismo for reportar o real para outrem - a literatura

faz isso, a poesia faz isso, o teatro faz isso -, então ele é uma modalidade de

recriação desse real, para outrem, a partir de uma linguagem muito específica.

O modo como de constrói o texto e como se faz reportagem televisiva varia, mas já

não estamos no universo do empreendedorismo, empresarial. Estamos fora da

organização do capitalista da notícia. Estamos já no modo mais aberto, que pode

ser feito por qualquer pessoa. O que aconteceu recentemente no Pinheirinho, que

foi reportado por inúmeros celulares, inúmeras câmeras fotográficas, que se

transformaram em produtos de uma determinada vocação de testemunho. E falo

de produto não assalariado, produto colaborativo, e que se acabaram indo para

redações de jornais e para a rede, e muitas vezes o jornalista tem que ir para a

rede, para ter acesso a alguma coisa que não veio até ele.

Mas esse conteúdo já foi direto para a sociedade. O jornalismo foi abolido como

mediação simbólica, como escritura e re-escritura; as redes sociais fazem isso. O

que ocorre é um destronamento do jornalismo como instrumento de mediação

simbólica da sociedade e, ao mesmo tempo, uma forma de reportar o real, que

tinha sua força, primeiro na inexistência de edição e, segundo, na colocação a

público, de forma para compartilhamento, no momento em que o fato estava

praticamente acontecendo.

O que vimos também na Primavera Árabe e no Occupy Wall Street. Na verdade, existe algo muito interessante, porque, se as redes sociais assim

compareceram, provocando um certo impacto, trazendo um certo desafio para o

jornalismo organizado, e ao mesmo tempo fora desse tipo de definição as redes

sociais também trouxeram algo muito interessante, que o fato de elas mesmas

serem a mediação simbólica para a sociedade, aí nós temos um fator muito

curioso, que entrelaça essas duas modalidades de definição. E são, grosso modo,

porque há várias formas definidas no jornalismo, a quebra do monopólio. Essa

negativa de partilhar, do jornalismo organizado, essa produção simbólica, é uma

forma de dizer “recusamos o monopólio da informação”, “recusamos a

possibilidade de edição, que já opera uma auto-censura, e faz os produtos irem à

população a partir de uma mediação reconstrutora, que pode ser uma maquiagem

a respeito do que, de fato, aconteceu”.

Então, o fato é bruto, sem mediação, exceto aquela das maquinárias e da vontade

típica das próprias redes sociais. Essa quebra de monopólio não pode ser

desconsiderada como um fato que já é conhecido, que vem acontecendo há pelo

menos desde a criação dos computadores pessoais, nos anos 1970, 1980. Essa

quebra de monopólio tem um fato novo: o fato agora é reportado por aqueles que o

fazem ou que estão muito próximos dele, e que, muitas vezes, não tem ligação

com as empresas jornalísticas mediadoras e simbólicas da sociedade. Se nós

considerarmos que jornalismo é produção simbólica de reportar o real, então

temos que considerar fora do cânone acadêmico, universitário, técnico, que o que

está acontecendo é um fato para o qual o jornalismo ainda não nasceu, ainda nem

se deu conta. E mostra o quanto ele está defasado; ele está vendo a proliferação

de fontes e não sabe o que faz com elas. O quanto ele está aturdido em relação a

isso que comparece como modo de produção simbólica espontânea, de redes

sociais comprometidas não somente politicamente, mas com o fato de que é

necessário produzir sobre o social, sobre a vida, algo que seja mais autêntico,

mais próximo do que são os fatos, do que o próprio jornalismo tem feito.

Esse é um fato muito interessante, porque envolve quebra de monopólio,

emergência de novos atores mediadores da sociedade, que estão trazendo uma

nova inflexão, fazendo-nos pensar de outra maneira sobre o que significa

autenticidade no reportar.

E também envolve a questão da auteridade, não? O índio reportando o índio;

o sindicato reportando o sindicato; o agricultor reportando o setor etc. Exatamente, tem o identitário. É um falando dele mesmo, quando ele fala sobre

seu próprio contexto, sem mediações. Não é o historiador, não é o etnólogo, o

jornalista que foi fazer. Ao contrário, o próprio lugar de fala se colocando.

Quebram-se as mediações. No caso da mediação do jornalismo, é exclusivamente

a questão do monopólio da notícia. Mas não é o monopólio por parte de uma

empresa; falo de um monopólio por parte de uma técnica de produção do saber. É

esse monopólio que se perde, o monopólio do cânone, do especializado - o

jornalista como um especializado. Mas eu não se tudo o que se faz, como

produção simbólica das redes sociais, pode ser considerado como modalidade de

jornalismo só porque é uma modalidade de reportar o social.

Se tomarmos a Internet como o estado máximo, pelo menos até agora, do

que é o paradoxo e do que é a contradição, poderiamos dizer que a

importância dela, para a filosofia da ciência, é de mostrar a questão do não-

lógico, do indizível nesse ambiente cibernético. O senhor concorda? Sem dúvida alguma. A Internet traz um modo de produção do saber que não é, de

alguma forma, compatível com aquele do cânone da ciência. O modo de produção

do saber das redes sociais, e mesmo antes da web, com os modens, é o fato de

que há quebra da linearidade, há uma emergência da aleatoriedade; o fato de você

ter, naquele site que você citou [o Huffington Post], de repetitividade de certas

expressões, e as pessoas não estão nem aí, esse é o modo aleatório de produção

do saber. Você pode encontrar isso em vários lugares a mesma matéria, ou em

meios diferentes, duplicadas em parte e continuadas a partir de um

desenvolvimento diferenciado do que foi feito no outro dia. E aí você tem acesso a

uma versão e depois você saber que existe uma outra versão mais desenvolvida, e

alguém pergunta: “mas você leu essa matéria?”, e você responde: “li, mas estava

relacionada à versão prévia”.

Esse tipo de produção do saber - e ao mesmo tempo comprometido com uma

visualidade, com apresentação despreocupada em relação à questão da

logicidade, em relação a não-repetitividade e aos cânones da lógica, da ontologia -

é o que acaba, no fundo, colocando para nós que estamos nos relacionando com

um fenômeno, cujos horizontes são tão abertos, e nós nem começamos a explorar,

e em relação ao qual nós sequer temos elementos epistemológicos herdados para

poder abordar. E eu falo de cátedra, pois eu pesquiso essas questões da

cibercultura, que é um nome que considero importante para ser cobertura para a

fase digital do capitalismo tardio. Quer dizer, eu tomo cibercultura como categoria

de época.

E quais as caracteristicas dessa categoria? Tudo o que vem à tona nessa fase interativa do capitalismo, financeirizado e

midiático, eu tomo como objeto de apoderação, porque nos faz pensar o modo

inclusive de nós conhecermos o próprio mundo. Por exemplo, eu estou com meu

grupo muito interessado em estudar o híbrido. O híbrido é uma categoria terceira,

que se opera a partir da junção irreversível entre duas constitutivas. E essa

terceira não se reduz nem a uma, nem a outra. Por exemplo, o glocal, que não é

nem global, nem local, é uma terceira coisa. Quando se diz aldeia global, em

McLuhan, é algo presencial e circunscrito, e, ao mesmo tempo, global. Existe aí

um paradoxo, uma anti-tese.

Então você não trabalha com a ideia de globalização? Trabalho com a glocalização. O glocal, para mim, é uma via de terceira grandeza,

é uma terceira fenomenologia, que já se realizou no planeta inteiro e que está para

além, e muito além, das localizações, das regionalidades e das globalizações e

globalidades. O glocal é aquilo que une o global da rede no local de acesso. Então,

quando você liga o seu celular, alguém liga e você atende, ou quando você abre

seu tablet e está conectado, e mesmo quando você liga a televisão, você está na

terceira grandeza, no contexto glocal. O que isso significa? Significa que você não

está nem no local, você está conectado em rede, e você não está nem na rede,

porque o seu corpo está no local. Você está no híbrido, no meio. E nós não

vivemos no meio.

É um paradoxo. É um paradoxo, é a união entre uma coisa e a outra, sem que haja contradição. E

mesmo que sejam contraditórias, elas se mesclam. Só que o paradoxo ainda não é

o híbrido. O paradoxo ainda é a justaposição de coisas: é uma coisa e outra, e não

ou outra. O Ocidente não formulou episteme típica para compreender o híbrido,

nós não sabemos do que se trata.

Quando o senhor fala em Ocidente, é porque no Oriente há esse

conhecimento? A microfísica ocidental, tipicamente acadêmica, que tem pelo menos 2600 anos.

Mas não sei outra cultura que pense no híbrido, por isso que falo apenas da

ocidental. Meu grupo também não sabe, e estamos preocupados com isso. Mas

então existem inúmeros fenômenos híbridos, e o glocal se manifesta como a rede

no local. Ela é pervasiva no sentido da mistura, de modo tal irreversível, mas de

modo tal que você não tem nem mídia locativa, nem mídia global. O que você tem

é uma mídia que glocaliza.

Ela une a dimensão do global, com notícia que vem de todos os lugares, que

perpassa o seu ponto de rede, e que chega no seu tablet, no seu rádio, televisão;

mas que uma vez que chega até você, porque somos mercado, chega se

entrelaçando com o local, e dele não se separa. De modo tal que o que vem da

China, do cinturão Norte da África, de Wall Street, nos Estados Unidos, é mais

íntimo para nós, quando chega em nossa tela, do que o que acontece na esquina.

Então, há um fenômeno muito curioso, que é o de distanciamento do que é

próximo e uma aproximação com o que é distante.

Isso funciona fora da cibercultura, isto é, quando vou a uma cidade pequena,

distante, e lá encontro uma lanchonete de rede de fast food famosa, o

logotipo de um posto de gasolina que também tem na minha cidade? Esse é o glocal lato sensu, aberto. O glocal stricto sensu envolve a necessidade de

tecnologias digitais.

Mas há cem anos, quando alguém abria um jornal em New York e lia sobre a

China, isso já era glocal? Não, porque o glocal envolve tempo real. E o jornalismo não é capaz de rede em

tempo real; o teatro não é capaz de rede em tempo real, assim como o cinema.

Você tem que ir lá e assistir a peça ou o filme. A indústria fonográfica não é capaz

de tempo real, ela produz o disco para você ouvir offline. Agora, a televisão é

capaz de tempo real, o rádio, o telégrafo, no final do século XIX (a primeira

máquina glocal), ou seja, a produção é em tempo real. Você produz

automaticamente e, em centésimos de segundos, o outro lado ouve. E isso agora

está proliferado; é quase como se a rede rara do telégrafo elétrico é hoje a regra

proliferada, desde o rádio amador até as redes sociais.

A Física também se interessa pelo estudo do imediato. Há alguma relação de

seu estudo com as abordagens da Física? Não, com essa área não. Mas o fato é que o glocal stricto sensu é o que determina

o que é, hoje, a fase civilização midiática. Essa civilização não é uma sociedade,

mas sim um processo civilizatório que se dá com o uso de equipamentos

especificamente capazes de rede em tempo real. Quando nós falamos do celular,

dos tablets etc., nós falamos de máquinas capazes de perfazer um campo, que é o

campo de acesso, de retransmissão, de recebimento, campo marcado por fatos

comunicacionais, de interesse do nosso desejo (como consumidor, cidadão etc.),

campo este que eu chamo de contexto glocal. A proliferação no mundo inteiro de

contextos glocais articula a nossa história numa única categoria: a condição glocal

da existência, aquela na qual estamos, articulando, no dia-a-dia, o nosso fazer,

num processo civilizatório irreversível. Amanhã podem mudar as máquinas - a

televisão pode desaparecer e a Internet também -, mas o glocal, como invenção

técnica tende a perdurar.

Mesmo sem aparato técnico? O aparato pode mudar. Ninguém sabia que podia haver o tablet e que o celular

podia congregar várias coisas. Mas o glocal, como lógica, como esquema

operativo de união entre o global da rede e o local veio para ficar.

Isso é uma evolução da ideia de espaço público também? O espaço público, na história, por exemplo no século XVIII, com a emergência da

burguesia, já disse Habermas sobre isso, acabou ganhando uma nova dimensão,

foi reconfigurado com a emergência de tecnologias glocais. Ele se transformou e

se perdeu. Eu tenho um texto no qual eu divido a esfera pública do século XVIII em

três modalidades públicas. Não vou me lembrar mais, mas de toda forma existem

a esfera pública de sociabilidade e trocas; a esfera pública de venda, de troca

econômica; e a cena pública, que é a produção midiática no geral. Na esfera

pública de sociabilidade, das redes sociais, com compartilhamento de vídeos etc.,

não dá para fazer discussão alguma em 140 caracteres, ou seja, uma discussão

profunda.

A discussão é feita, como Habermas pensou, de forma presencial, que permite ao

outro intervir, permite ao outro ouvir, e ser ouvido. Em algumas listas de discussão,

é possível. O Skype, com aquelas possibilidades de abrir várias janelas, com

discussão em tempo real, com fusos horários diferentes, com um código válido

para todos, é possível, desde que não se esteja sob o tacape do tempo, e que os

interlocutores tenham tempo para ouvir. E nesse texto eu também testemunhei o

ocaso da esfera pública de discussão. A esfera pública é interessante, ela existe

em certos contextos, mas na rede eu sou cético. Nas condições glocais, a esfera

pública de discussão se perdeu.

O glocal foi apenas um exemplo [de hibridismo]. Dependendo do sentido é que se

dá o híbrido; o glocal é uma palavra que, no significante, é mais adequado, como

episteme, para abranger aquilo de que se trata. No Ocidente - estamos às voltas

com neologismos - você tem que produzir neologismos que captem o híbrido no

significante, e nem sempre é possível fazer isso, senão fica piegas. Por exemplo,

[a relação] público-privado. Você tem público no privado, privado no público - um

talk show é um exemplo, porque alguém que vai entrevistar um político, ele, a

figura pública, adentra ao estúdio, que é de uma empresa particular, mas que tem

platéia, e portanto é público; e tem câmeras, que já é a representação do público

externo, que pode ser ao vivo, ou não. Então, na realidade, é o produto de uma

empresa, que está concorrendo por audiência, como outra qualquer. Esse produto

vem como privado, mas num sinal que é público - pois se trata de concessão do

Estado -, e que vem para a casa dos particulares, um terreno privado. Então,

público no privado e privado no público, nós não temos uma palavra específica

para poder apreender isto.

Mas por que é necessário ter uma palavra, se já entendemos o significado

desse fenômeno?

[Dessa forma], nós vamos operar por categorias cartesianas, analíticas, ou seja,

separadas. Por isso que o Ocidente não está preparado para o híbrido, pois ele

não sabe, não tem palavras. Ele tem que operar com palavras ainda separadas.

Precisamos de novas palavras sintéticas, portanto. A síntese, o sincretismo, a mestiçagem, a hibridação.

Ou seja, a palavra, por si só, dizendo o que ela é. Exatamente. Por exemplo, eu vou tratar da junção do imaginário entre público e

privado, mas vou abordar a partir das categorias separadas, binárias, ainda. O

híbrido é, assim, a união do binário, de um modo tal que se perdem as partes, para

produzir uma terceira coisa. Mas eu não tenho uma palavra para dar conta disso;

então, eu preciso criar. Na China, há mais de 40 palavras para “neve”, de acordo

com a textura, com a cor. Na realidade, eu não posso falar “pubrivado”, fica piegas.

Não posso [simplesmente] pegar metade da palavra e juntar com outra. Mas glocal

pegou. Veio do espaço corporativo, depois foi incorporado pelas ciências

humanas.

Esse novo espaço está exigindo da própria ciência. Estamos às voltas com uma fenomenologia diferenciada. A fenomenologia do

ciberespaço, das redes, e também rádio, televisão, enfim tudo o que se refere ao

glocal traz consigo uma série de desafios que são inexplicados. E o horizonte é

profundo, inesgotável, não vai terminar tão cedo. E nós precisamos dar conta, de

alguma forma, disso. E a área de comunicação é uma área privilegiada, porque é

com os fenômenos da comunicação que tudo isso tem mudado no social, mas, ao

mesmo tempo, a comunicação tem instrumentos que herdou (metodológicos e

epistemológicos) da sociologia, da antropologia, da ciência política, da história, da

filosofia, e, ainda assim, não está preparada para poder abarcar, com profundidade

e maior extensão, o fenômeno.

Será que não é porque a área da comunicação sempre se voltou para si

mesma? Na realidade, a comunicação é partícipe e, ao mesmo tempo, receptáculo dessa

crise de paradigma, que começa em meados do século XX, com o final da

Segunda Guerra e a liberação de grandes forças tecnológicas, científicas e

econômicas. Liberação em termos de aceleração completa. Estamos vivendo,

agora, o estressamento dessa onda de longa duração. Ninguém aguenta mais

tanta aceleração, tanta vida articulada pela lógica da velocidade. Para tudo temos

que correr, qualquer produção. E nós somos julgados e avaliados em função da

produtividade que fazemos em menos tempo. O jornalismo diário, e o semanal

também, é uma loucura, porque você precisa dar conta do tacape do tempo.

Então, a partir dessa época [meados do século XX], ocorreu o que os historiadores

teóricos vem tratando como Ocaso da Modernidade e a emergência de alguma

coisa que se pode chamar de “pós”: pós-industrial, pós-moderno, e até falaram em

pós-capitalismo.

Aí começa uma sensação, desde o senso comum até a Ciência, passando por

outras formas de produção simbólica na sociedade, e a principal delas é a

jornalística, de que nós já não sabíamos mais nomear quê tipo de civilização era

aquela que estavamos vivendo. E essa quebra de paradigma vinha justamente

pelo fato de que já não se podia mais acreditar nas metanarrativas, nas utopias ou

grandes visões de mundo, porque foram elas que nos levaram à hecatombe. Foi o

liberalismo pelo capitalismo, foi o nazismo pelo Terceiro Reich, foi o comunismo

stalinista, pela burocracia soviética, que nos levaram a um beco sem saída: a

Segunda Guerra, que aplicou, para destruição, todos os recursos do século XVIII,

ou desenvolvidos, a partir dele, para emancipar o gênero humano do

obscurantismo, da miséria. A Razão, a Ciência e a Técnica foram barganhadas

para a destruição massificada, inclusive depois daquela bomba, vieram outras

ogivas, no ápice da Guerra Fria, capazes de destruir o planeta.

Alguma coisa tinha que parar esse filme, que era o conto da carochinha do

progresso tecnológico. A modernidade acabou se realizando pela sua sombra. Não

foi a modernidade prevista, da liberdade, da distribuição da riqueza.

Ela precisou tropeçar. Na realidade, ela [a modernidade] tropeçou e não saiu do tropeço. Alguns

acreditam que se pode colocar a locomotiva no trilho; outros disseram que não há

mais condições, esse caminho não tem mais volta, e é impossível retomar os

ideais do século XVII, para corrigir um erro tão avassalador, que agora é

planetário. Antes havia um erro que era situado: o erro se torna na França, o erro

se torna em algum país da Europa. Agora, não. Agora ele é planetário, pois a

modernidade acabou racionalizando o mundo todo.

O ápice seria a crise de paradigmas pela qual passamos. A crise de paradigmas vem daí, mas para isso muito contribuiu a comunicação.

Quando a televisão emergiu, ela emergiu capitaneando os meios de comunicação

que existiam, o jornalismo mudou, o jornalismo impresso começou a ter que

colocar fotos, a proliferar imagens, para concorrer com a televisão. Hoje a

televisão faz links com o ciberespaço, pois está subordinado a ele. Na realidade,

essa comunicação, enquanto área e campo do saber, ajudou a quebra de

paradigmas, porque ela espalhou aquelas imagens de corpos mortos, corpos

esquálidos, vítimas do nazismo, judeus, ciganos, negros, homossexuais,

deficientes físicos. Aquilo foi avassalador e nós ainda não conseguimos superar

aquilo. Naquela época, começou-se a espalhar a idéia de que toda utopia rimava

com barbárie, e não o contrário. Porque elas nos fizeram crer que elas, as ideias,

eram o melhor, que traziam a emancipação, que elas iam nos trazer um mundo

melhor, de liberdade. A felicidade estava no depois, e isso era somente possível se

houvesse revolução.

Houve, então, uma reversão completa. A metanarrativa, a grande visão de mundo,

na verdade, acabou por trazer o contrário, a destruição completa. Bom, mas elas

eram nossas salvações, elas nos davam os paradigmas para revolução, para

ciência... As ciências, cada qual no seu ramo, desenvolviam-se em função de uma

narrativa de emancipação, todas elas cooperavam para trazer luz, para que o ser

humano pudesse, através do conhecimento, da superação das doenças, da

superação da miséria, das superstições, a luz da ciência, a luz da Razão, para que

a humanidade pudesse prosperar em conjunto. As ciências trabalhavam em

função de uma metanarrativa; ou era o marxismo, ou era o liberalismo, ou o

humanismo. De repente, perdemos os referenciais primeiros. Cada ciência

começou a operar por conta própria, começou a olhar para dentro de si, e a se

desenvolver segundo um método, que é desenvolver-se em congressos

específicos. Uma não se comunica com a outra, e a idéia de interdisciplinaridade

começou a ser bastante artificial.

Mas hoje se fala muito em interdisciplinaridade, tanto em meio acadêmico,

quando no empresarial. Fala-se muito...

Há autores, como Edgar Morin, que falam muito desse conceito. De fato, não

está ocorrendo? É possível, desde que se faça o híbrido. Porque, na realidade, se você promove a

interdisciplinaridade com a ideia do “inter”, e não do “intra”, o “inter” significa

justaposição, então você faz uma interdisciplinaridade artificial. Você chama a

sociologia, a história, a antropologia a se encostarem na comunicação, e você

importa o método de uma, o conceito de outra. Isso ainda é interdisciplinaridade

falseada. A interdisciplinaridade autêntica, genuína, é aquela que realmente

mistura as coisas. E promove um conhecimento que já não se reconhece nem da

comunicação, nem da antropologia, nem da filosofia, nem das áreas conectadas.

O produto do trabalho já não se vincula à área a qual você pertence.

Mas isso não seria, aproveitando a expressão que foi utilizada recentemente,

uma utopia? Não, é possível sim. Tanto é o fato que se você traz diversas contribuições, eu não

sei se o Edgar Morin faz filosofia, entende? Ele, de alguma forma, produziu um

outro conhecimento, que se trata da Complexidade, Conhecimento Complexo.

Para mim, é uma outra coisa; ele pode situar na sociologia, na filosofia, em todas

as áreas, mas se é de todas, é de nenhuma. De fato, é transdisciplinar. Mas é

curioso, eu leio Morin e eu não me convenço de que o que ele aborda é crível,

porque há misturas que somente um pensamento mais ponderado deveria,

evidentemente, perfazer. Eu creio que há forçações ali. Ele produz um

pensamento dito complexo, porque ele envolve dimensões diferentes da existência

humana que nunca tinham sido tão articuladas e, portanto, para dizer que o

conhecimento produzido, o conhecimento que devemos ter sobre essas

dimensões não pode ser mecanicista, não pode funcionalista, não pode ser

meramente empirista; ele deve absorver a carga de complexidade, tanto de cada

dimensão (biológica, econômica, psicologica etc.), quanto a complexidade das

misturas.

E, para isso, você tem que prover explicação muitas vezes com neologismos. Ele,

Morin, está no terreno do híbrido, do tecido, que já não é nem uma coisa, nem

outra - já é Pensamento Complexo. Eu acredito e aceito, mas não há explicação

sobre o fenômeno em si; aquilo é apenas uma explicação explorando as

dimensões complexas, viável como outra qualquer, mas como tal criada por uma

reflexão individual. Nós precisamos é explorar o híbrido e verificar outras formas

de narrativa, inclusive tomando esta como uma tentativa muito bem sucedida (a de

Edgar Morin). Agora, a comunicação é um pivô, ao mesmo tempo beneficiária da

crise de paradigma, porque quando ela, na verdade, vem com a televisão e a

comunicação se espalha como regra, tudo passa a ser comunicacional, o

marketing transforma política em mercadoria, surge o marketing pessoal. Um

monte de coisas para dizer o quanto a comunicação articula nossa existência. Nós

não acordamos sem nos preocupar com e-mails, já está no sangue.

É só verificar quando esquecemos o celular em casa. É difícil não se sentir amputado, quantas vezes não voltamos [para casa para

buscar o aparelho]? Ninguém quer, mas quando ocorre uma oxidação de

Winchester, e sua vida está lá, pois vida é dados, você acha que perdeu alguma

coisa. Você leva para a assistência técnica, e o técnico diz que se salva só metade

dos dados.

Tem essa discussão sobre Nuvens, as Cloud Computing, em relação à

segurança de dados públicos e privados, à diminuição do hardware, a

abstração maior da tecnologia da informação. O que se acredita, mas ainda pode acontecer algo com o grande computador que

armazena tudo isso. O fato é que a comunicação é muito mais do que um campo

de trabalho, um campo de saber e é muito mais do que o conjunto dos aparatos da

sociedade, muito mais do que a nossa intencionalidade de chegar ao outro e dizer

alguma coisa. Ela é, hoje, prótese invisível do inconsciente. Ela é hoje modus

vivendi. Muniz Sodré, professor da UFRJ, em um livro chamado Antropológica do

Espelho, diz que comunicação é bios, gera hábitos. Então, ela faz parte e se

beneficiou da quebra de paradigma, porque ela, a comunicação, desde os anos

1940, 1950, com a cibernética, acabou por se colocar como uma nova utopia. Ela

se serviu do vazio deixado pelas utopias políticas e filosóficas, econômicas e

religiosas, e ela se colocou como o novo religare, uma nova forma de articular a

vida das pessoas. Hoje é preciso ter pela atendente bancária que haja um

treinamento, de recursos humanos, para ela aprender a ter inteligencia emocional

na situação de estresse e, ao mesmo tempo, sorrir. Porque isso é comunicação da

marca, é comunicação da empresa.

Você fala, então, de comunicação do modo mais amplo possível, certo?

Comunicação textual, verbal, imagética, signica, não-verbal e assim pior diante. É

o associar-se, o vincular-se e o reportar-se, enfim, onde há contato há

comunicação, mesmo entre duas máquinas. Por exemplo, quando a gente está na

nossa máquina, e operamos o Google, quem responde é uma máquina para a sua.

Você é apenas o receptor de leitura; existe aí uma conectividade, da ordem da

comunicação, desde que o código partilhado seja um código que no seu terminal

seja legível para você. Muitas coisas que operam entre as máquinas nós não

compreendemos, mas que ocorrem para tornar a comunicação possível.

Mas como e consolida esse novo modo de vida, esse novo religare? A comunicação se prevaleceu da crise de paradigma.

Mas há alguma perspectiva de quando isso pode ser novamente alterado, um

novo paradigma? Ou trata-se de algo definitivo, ou, pelo menos, sem

previsão para encerrar? Definitivo é muito forçoso, pois não temos um compreensão para além da zona

observável, nem a curto prazo. As tendências concretas que vão formar o nosso

horizonte nem sempre são previsíveis, e as previsões são falíveis. Nós não

podemos dizer que são definitivas jamais. um dia mudarão, porque é um

movimento, vamos crer no movimento. O movimento da sociedade provoca

rearranjamentos, reajustes, e funciona como uma caixa de surpresas, mas não

necessariamente uma caixa de Pandora. E a história é marcada por oscilações,

altos e baixos, por zonas obscuras e, ao mesmo tempo, por grandes rompantes de

luminosidades, que reacendem esperanças.

Essa ordem de tornar tudo iluminado e visível pela comunicação, sob o

pretexto da transparência, da visibilidade, até certo ponto é positiva. Mas há

características não tão positivas assim. Digamos que ela é o que é à sociedade. Como fato, a compreensão da

fenomenologia do fato da sociedade, da história presente, é assim. O [filósofo

Jean] Baudrillard foi um daqueles que disse que a nossa sociedade é da

transparência, da visualidade, de que tudo tem que vir à tona, o segredo tem que

ser profanado, tudo tem que ser transformado em imagem, em informação. Para

aonde se vai, tem que voltar com fotos, vídeos. Isso acaba colocando, como você

disse, em preocupação também para nós a questão: onde iremos parar? O que

realmente significa essa total transparência? Alguma forma de vida está sendo

colocada em baixo do tapete ou sendo excluída, porque se a sociedade é da

transparência, e é disso que se trata agora, não há mais segredo, o que é

impossível. Mas vamos supor que seja - segredos se guerra, de Estado -, tudo

vem à tona, manchando reputações; se tudo isso é a transparência, é porque a

sociedade da transparência já está excluindo novos horizontes ou outros

horizontes possíveis, porque esse tipo de sociedade acaba se implantando como

modelo que acaba excluindo as demais possibilidades. E todos os modelos

implantados trazem consigo a regra da falibilidade, todos eles se colocam como

não sendo a completude, o sistema perfeito, sempre há alguma zona, alguma

franja aberta, que diz respeito a uma ilogicidade e a uma desrazão, uma produção

de desigualdade.

Óbvio que traz uma preocupação, só precisamos saber como teorizar, porque, por

ora, toda a nossa cidadania acabou por se formar, nos últimos séculos, tendente a

fazer desaparecer todo tipo de segredo, para que saibamos e com eles possamos

lidar. Sequer segredos de Estado, porque se o Estado é sustentado por nós, então

como podem determinadas informações serem objeto de monopólio de uma casta

que se acha profissionalizada para poder ocupar os cargos da política, mesmo por

eleições, e então encobre, segreda, engaveta, porque acha que a população não

pode saber. Com que direito? São razões de Estado, por causa das guerras

possíveis, da concorrência internacional, então o segredo é estrategicamente,

muitas vezes, necessário. Mas se estamos caminhando para uma sociedade da

transparência completa, o que não acredito, mas se estamos caminhando para

deixar no horizonte esta utopia, o que é preocupante é o fato de haver, então, a

possibilidade - eu diria ilusória, imaginária - de ver instaurado, como sociedade, um

contexto humano de que a maior riqueza da vida é expurgada. Justamente o

segredo, o mistério.

Se se trata de jogar com o instrumento da transparenciação, com todos os

esquemas jornalísticos e máquinas, é jogar a transparência como máquina de

guerra contra tudo aquilo que marca, e vai marcar, aquela zona a partir da qual

você não sabe nada, que você não consegue identificar o que seja o que. E que é

o segredo, o obscuro, o não-dito, o indizível, o sublime, o mistério. No campo da

fenomenologia, você tem, aqui e agora, o campo da transcendência. A

transcendência está disponível para você; o seu campo próprio se dispõe de uma

transcendência que separa o que é cognoscível, de acordo com as categorias que

você domina, e com o conhecimento disponível na sua época, daquilo que você

não domina e não vai dominar nunca, porque o cérebro não está adaptado para

essa compreensão.

Houve um momento em que a ciência foi a grande desbravadora e chegou

mesmo a aniquilar saberes tradicionais, antigos, mas não reconhecidos pela

racionalidade, pela lógica. Podemos dizer que esse atual momento da

comunicação tem exatamente esse papel, essa função que a ciência teve? Essa pergunta é perspicaz. A comunicação é um modus vivendi hoje, um habitus

social. Está em todos, não é o monopólio de uma empresa, de uma indústria, de

uma linha de produção simbólica ou de uma linguagem específica. A comunicação

é uma práxis. Nossa sociedade exige de todos competência comunicacional - não

estou falando da competência comunicativa de Habermas, mas da competência

comunicacional. Você tem que ser comunicativo, para ser bom profissional nas

metrópoles e cidades médias desenvolvidas você tem que se abrir para o jogo do

outro, abrir-se para a avaliação e julgamento alheios, frequentemente avaliam sua

qualidade, entrelaçada com competências comunicacionais. Nas entrevistas de

emprego, querem saber o quão flexível você é, o quão aberto você se entrega

para a linguagem do outro. E o quanto daquela linguagem você pode ser

manipulador ou não, e assim por diante.

Quando você diz que a comunicação pode estar substituindo, ou fazendo murchar

certos fenômenos que antes eram comuns, tradicionais, você tem razão. Por

exemplo, a comunicação, como práxis, no cotidiano que a civilização midiática

exige de nós o que eu chamo de dromoaptidão, que é a capacidade de ser veloz

com equipamentos de comunicação. Se você tem essa capacidade de ser veloz,

se você é um dromoapto, então você está conforme o que os valores existentes

pedem de você. Se você não está, isso pode comprometer inclusive sua

sobrevivência. Mas, no caso da comunicação, ela acabou não por fazer murchar a

ciência ou a racionalidade científica, porque o jornalismo é racional. Algumas

coberturas podem ser irracionais - o sujeito vai à guerra, e o jornalista vai, porque

precisa daquilo para a carreira, mas o fato de uma empresa concordar que ele vá é

seguridade zero, uma coisa meio Euclídes da Cunha. Então, na realidade, o

jornalismo, como produto, trabalha com a lógica, a racionalidade, como outra

ciência qualquer. Porém, vou dar um exemplo bem concreto contrário agora: estou

orientando várias pessoas, e no mestrado e no doutorado já me chegaram alunos

que não conseguem aprofundar. Não conseguem ter uma linguagem acadêmica,

científica aprofundada. Então eu diria que na civilização da comunicação, a

primeira vítima dela foi, primeiro, a profundidade e, em, segundo, a crítica, o senso

crítico.

A crítica que a civilização midiática promove é integrada, é uma crítica previsível;

faz parte, é aquilo que em direito se fala direito ao contradito. Já está no sistema.

Então o sujeito vai falar qualquer coisa, já está pressuposto que ele será ouvido, e

pode, evidentemente, não ser considerado. Mas há o direito ao contradito. É quase

como a esquerda e seus partidos políticos, que hoje se tornaram dóceis,

domesticáveis, porque acabaram adentrando no sistema do Estado e disputando

com os outros partidos do status quo o poder do Estado. E quando adentram no

Estado, para disputar o Estado, cumprindo as regras do jogo democrático, do jogo

do Estado burguês, é porque o potencial político deste partido já está

comprometido na base. Porque ele vai falar, fazer, proceder, protocolar etc. tudo o

que já é, dentro da própria regra que fabrica o status quo, contra o qual ele quer

lutar, e se debate muitas vezes de modo radical, mas não consegue, porque a

regra do jogo o domestica, dentro dos princípios que movem o próprio Estado de

Direito.

Por isso que muitos conhecimentos que se fazem na academia que não possuem

relação com partido político ou nenhum utopia são mais radicais, porque não

precisam e não tem necessidade de satisfazer ninguém, e cumprem o critério da

liberdade de expressão no seu mais alto nível. Coisa que um programa de

televisão não pode fazer, coisa que uma reportagem jornalística muitas vezes não

pode fazer e às vezes até uma peça de teatro não pode fazer, porque tem que dar

satisfação aos produtores.

Mas a ciência não faz o papel de grande narrativa social, que articula todos. Por

exemplo, o marxismo fez uma ideia assim: ele articulou várias pessoas em

inúmeras populações; o humanismo renascentista também.

Mas você tem também movimentos científicos que mobilizaram populações,

como a questão médica na saúde pública, o militarismo ligado à tecnologia. Mas aí no caso são visões de mundo, opiniões, que articulam e tal, mas não se

pode dizer que é uma metanarrativa, uma grande visão de mundo, como o

anarquismo, o humanismo. De repente tudo isso caiu, e a comunicação vem, de

modo impessoal, porque não tem ninguém que fale por ela - é um fenômeno

autopoiético, ela se põe. Quando nós achamos que estamos sendo indivíduos

autônomos, fazendo aquilo que queremos, mal sabemos que estamos no jogo da

reprodução do próprio processo civilizatório, que não depende de nós. Amanhã

podemos morrer, e a estrutura permanece. A comunicação herda o espaço vazio

e, ao mesmo tempo coloca-se de modo impessoal normalizando as relações,

articulando corpos, empresas, lares, enfim, num planeta glocal. E ela, a

comunicação, como procedimento e técnica, acaba matando algumas coisas. A

própria comunicação em tempo real aboliu o planeta. Estamos passando por uma

mutação percepcional do espaço e nem sabemos onde isso vai dar.

A humanidade sempre viveu na superfície planetária relacionada a outras pessoas

no contexto presencial. Se queriamos, antes do século XX, encontrar alguém, ou

enviávamos um emissário, ou uma carta, enfim. Do velho mundo para o novo

mundo chegaram após 36 dias de caravelas; o que dirá, por exemplo, migrações

do norte da África, passando pelo Oriente, pelo Cáucaso, com grandes

embarcações de mercadores árabes, que faziam as trocas econômicas. Na

realidade, o que ocorre é que tinhamos que ir ao encontro da pessoa, tudo

presencialmente no território geográfico, sem as grandes construções de arranha-

céus, que vão nos fazendo reféns de um espaço em que o céu não aparece mais.

O que acontece é que, hoje, tudo isso foi deixado para trás, existe uma morte

simbólica em tudo o que era tradição nesse aspecto. A superfície planetária é

abolida e com isso todas as cidades, esquinas, ruas e praças simplesmente não

existem mais. Porque agora nós temos uma pessoa relacionada ao computador, a

outra relacionada a outro computador, e que estão em rede, com uma, por

exemplo, em São Paulo e a outra no Japão.

Em tempo real, centésimos de segundos, a pessoa A está no computador da

pessoa B, e esta B está em A. O que ocorre aqui é da mesma ordem daquilo que

ocorre no meu celular: o outro está aqui comigo, a auteridade é espectral, é puro

som (espectro sonoro). No chat, você é espectro textual; no blog, você é textual;

no Youtube, você é espectro videográfico. A comunicação espectral, o espaço está

morto, porque temos sinal de rede, que vai por satélite; a representação do global,

que é a rede, entra no equipamento, vai a você e vice-e-versa, mas cada pessoa

está num local diferente. E o fato de eu estar vinculado a uma máquina capaz de

rede, e estar interagindo com uma pessoa que é como se estivesse do meu lado -

mas não é, pois existe a mediação do aparato tecnológico planetário -, faz com

que isso não seja mais um local, a materialidade do planeta se perde, em prol da

comunicação espectral. Bem , mas aí já estamos numa outra esfera, do glocal. E

isso é a representação da hibridação numa coisa só, entre dois locais diversos,

com o sinal e a rede que perpassam tudo. E isso aqui é a fenomenologia do glocal.

A comunicação, que herdou o espaço esvaziado das metanarrativas, produziu

esse tipo de coisa - o religare, que tem a ver com religião. Na verdade você tem,

então, não só o religare referente à religião, mas também o religare de

comunicação no social. As redes sociais perfazem um religare técnico específico,

fundado no glocal.

Mas tudo isso ainda segundo uma ordem escriturística, na qual o registro

escrito ainda prevalece como legitimador dos discursos. O senhor

concorda? Sim, a chamada veridicção: para existir eu tenho que aparecer no vídeo. Para eu

lidar com o existente e como presença, ou seja a garantia de que eu existo, e até

para a minha identidade e subjetividade. E não se trata só de e-mails, escritos. Por

exemplo, a foto no Flickr, do aniversário que você foi, comprovando que, de fato,

você esteve lá. A veridicção se dá pelo registro e da memória tecnológica externa.

Se eu quero saber se existiu, de fato, uma Segunda Guerra Mundial, eu vou até

meu arquivo e pego um vídeo documentário que trata daquilo. É a comprovação

de que o fato existiu, não porque ele existiu e está na memória de quem o viveu,

mas porque está na memória tecnológica.

E isso é um feito fenomenológico incrível: como é que uma invenção humana mata

o planeta? Veja bem, as duas pessoas falando, no exemplo que dei anteriormente,

precisariam de milhares de vidas para poder conhecer o que elas estão abolindo.

No caso cognitivo, acadêmico, o fenômeno é de outra ordem: a comunicação mata

determinados procedimentos e hábitos, por exemplo o habitus da leitura recorrente

e aprofundada. Queremos tudo imediato, tudo tem que ser mais rápido, não dá

para ler mais do que uma ou uma hora e meia; logo muda-se de livro. A pós-

graduação stricto sensu bate de frente hoje com os hábitos dos nossos novos

alunos. Eles entram em depressão, é muito comum, em crise de competência, de

identidade, porque elas querem a carreira acadêmica, querem evoluir e prosperar,

e de repente vê que não formou o hábito - porque a civilização midiática, junto com

a família, não possibilitou que ela tivesse dias, meses, anos fechada numa sala,

lendo sozinha, criando o hábito de encarar o mundo a partir do livro e escrevendo.

É uma habituação, sem interferências externas. O hábito que hoje está sendo

promovido não é mais compatível com pesquisas aprofundadas. O sistema escolar

e familiar anterior ao século XX, uma vez que não tinha todo esse entretenimento

das comunicações, era mais propenso a produzir determinado cenário de

isolamento, de reflexão mais individualizada, numa biblioteca, com silêncio, e as

pessoas acumulando livros na sua zona privada para poder ter autonomia de

leitura.

Cientistas do passado, com Einstein, produziram poucas obras - alguns até

um única apenas - mas com nível teórico e de aprofundamento

extraordinário. Exatamente. É uma espécie de pesquisa científica sem consequencias. Mas o fato

é que hoje é vassalar, porque muitas vezes nós temos que exigir leituras,

aprofundamento e, em dois anos e meio, no mestrado, a pessoa não vai conseguir

formar o hábito. Quer dizer, ela não vai poder se abrir para a desconstrução de

hábitos que a trouxeram até aqui. É verídico, é autentico e legítimo que ela queira

fazer o mestrado e entrar na carreira acadêmica, muito bonita, por sinal, mas há

essa dificuldade incrível, porque o sistema escolar e a sociedade, digamos assim,

plugou essas pessoas em outros instrumentos, que não o livro. E forma inseridas e

incentivadas a ficar em situações diferentes de uma sala aconchegante para fazer

a leitura de um autor, e depois ir para outro, fazendo percursos. Elas foram

habituadas, no século XX inteiro, a ir ao cinema, ver televisão, estar entretidos com

jornalismo, e agora pulverizou tudo. Quando havia jornalismo impresso, jornalismo

radiofônico, até a primeira metade do século XX, alí você ainda tinha alguma coisa

de aprofundamento. A partir de meados do século XX, com a televisão, tudo

começou a ser feito muito fugaz, pois o tempo da televisão era muito fugaz. E aí o

rádio começou a ser assim também, o jornalismo reduziu suas matérias, de uma

página inteira para boxes. Assim, se por acaso não der para ler a página inteira,

você não precisa parar na metade, você pelo menos lê os boxes.

Muitos criticam esse tipo de análise, apontando como saudosista. Mas é só para dizer que jornalismo é uma refração escalonada e criativa das

exigências de época. Se o mercado mudou, se as pessoas mudaram, se o público

mudou, e o imaginário é outro, e as pessoas querem agilidade, querem ler no café,

no metrô, ou 30 minutinho para ler a revista Veja, então o jornalismo tem que

produzir esse público. E ao produzir para esse público ele tem que mudar. Não é

melancólico, nem saudosista. Antigamente era possível porque as pessoas tinham

vários tempos - tempo de lazer, um tempo livre, mas hoje não. Hoje você sai do

seu trabalho, muitas vezes com hora extra nas costas, tem que pegar o metrô.

Chega em casa, dorme, ou vai responder e-mails, tem que fazer alguma pesquisa,

faz curso de línguas. Então, é uma dupla, tripla, quadrupla jornada.

Não há o momento para parar de vez, porque a sociedade exige de você

multifuncionalidade e ao mesmo tempo inteligência emocional para o estresse.

Você tem que ser ultra ágil, sem dar a você uma garantia de seguridade, para que

você trate transtorno obsessivo compulsivo, depressão, LER, histerias e assim por

diante. Você que cuide das suas patologias,”vá a um analista e está aqui o seu

salário”. Se formos explorar tudo aquilo que a sociedade nos coloca de exigência,

e ao mesmo tempo não dá contrapartida, que deve ser paga por você, através de

planos, clubes, viagens de lazer. A cobrança é coletiva, mas as soluções são

individualizadas.


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