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  • 7/25/2019 Entre a Eleio e a Vida Simples _ Ricardo Gondim

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    Entre a eleio e a vida simples

    Entre a eleio e a vida simples

    Ricardo Gondim

    Algumas vezes procurei me isolar para meditar em lugares pouco convencionais. Esquisitos. Caminhei

    em alamedas de cemitrios antigos. Reconheo a excentricidade. No me vejo mrbido. que a

    morte uma realidade crua. Entre tumbas, por incrvel que parea, me coloco cara a cara com a vida.

    Cemitrio bom lugar para repensar prioridades.

    Nessas meditaes, paro diante de sepulcros semidestrudos. Indago: o que aconteceu com a famlia?

    Por que o mato toma conta? Outrora algum chorou aqui no sobrou um parente? Noto as placas

    gravadas em granito se esfarelando. Divago sobre o nomes. Quem foram? Nos epitfios, raro ter

    alguma referncia sobre o que viveram ou sofreram. Consta apenas a conjuno de apelidos que, umdia, garantiu a identidade de algum mas, hoje, desaparece entre escombros.

    Nessas divagaes, acordo para o desejo humano de no ser esquecido. Todos nos angustiamos com

    a ideia de ser gotas no oceano da histria. Choramos quando a luz nos encandeou pela primeira vez.

    Gritamos na sala de parto e ganhamos a ateno de quem nos ajudou a vir ao mundo. Naquele

    instante, comeamos a imaginar que o centro do universo estava perto da gente. A praa central da

    galxia podia muito bem ser o lugar onde estivssemos. O peito que nos alimentou, tambm nos nutriu

    de auto-estima. Crescemos com a convico nem sempre confessada de que o mundo existe por

    nossa causa.

    Gastamos parte da nossa existncia a ambicionar algum tipo de eleio. Quando a vida se impe com

    acidentes e percalos buscamos manter a certeza de que algo ou algum nos distingue dos

    demais. Fantasiamos existir uma lista de gente especial com o nosso nome no topo da lista. Iludidos,

    sonhamos com a possibilidade de contar com a confluncia dos astros, com as rodas do destino ou

    com os olhos de Deus. Precisamos tornar a nossa prpria histria o eixo do mundo. Sempre que

    algum evento confirma nossa singularidade ficamos alegres e sempre que somos frustrados,

    esperneamos. Lutamos para que os vetores estrelares se encaixem, a vontade de Deus se cumpra e okarma nos presenteie.

    O conceito de eleio est presente nas mitologias, nas narrativas bblicas e na meritocracia neoliberal

    do mercado. Narciso foi galardoado com beleza. O sacrifcio de Abel foi aceito por Deus e o de Caim,

    rejeitado. Jac, a despeito dos seus trambiques, manteve sua primogenitura enquanto Esa foi

    descartado. Samuel marcou um x nas costas de Davi ele era o estimado de Jav para ser rei em

    Israel.

    A histria secular tambm teve poetas, literatos, cientistas e polticos que se acreditaram eleitos. Deus,

    vida, destino ou quaisquer outras foras os separavam dos banais. Esses ditaram aos outros mortais

    os cdigos, as guerras e os valores que criaram.

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    Em Crime e castigo, Dostoievski separou a humanidade em ordinrios e extraordinrios. Os

    extraordinrios seriam homens e mulheres que tm o direito de fazer e acontecer na histria. Eles

    no sofrem as penas que os demais esto sujeitos. S as pessoas comuns so obrigadas a agir

    dentro do rigor da lei. As pessoas comuns, quando transgridem, sofrem no s o peso do tribunal, elas

    so, igualmente, devastadas pela culpa. As pessoas ordinrias no tm o direito de questionar as

    exigncias morais que os extraordinrios escrevem e impem, pois eles so os eleitos

    predestinados, escolhidos, ungidos..

    Muito do esforo humano consiste em no desaparecer. As placas dos cemitrios no deixam

    esquecer: Vaidade de vaidade, tudo acaba em nada. Religiosos sistematizam teologia para ensinar

    que mesmo na hostilidade da vida, Deus escolhe sua casta especial, e ela vai desfrutar as delcias do

    paraso. A indstria do entretenimento tambm elege reis e rainhas. Os dolos da msica, do futebol e

    do cinema no vivem com as mesmas regras que os fs. Polticos religiosos se sentem triplamente

    eleitos: o eterno os guinda posio de mando, o povo homologa a providncia divina e a fortuna os

    brinda com as benesses do poder.

    Acreditar-se eleito maldio antes de ser bno. Algum se sentir escolhido implica na necessidade

    de lidar com a soberba que antecipa a queda. Quem se acha escolhido, por ser rico, precisa superar

    uma piedade paternal, que enxerga o excludo de cima para baixo. O herdeiro de fortunas corre o risco

    de perder os espaos simples, onde a vida realmente acontece.

    Os maiores carniceiros da histria se viram eleitos. Hitler, Patton, Pinochet, Bush, acreditaram de

    verdade que alguma fora ou pessoa os privilegiou para mudar a histria. (Interessante observar:

    o Novo Testamento diz que o Messias o ungido de Deus abriu mo das prerrogativas, dosprivilgios divinos, para se irmanar a escravos e pobres).

    Todo e qualquer sistema que rodopia no conceito de raa eleita, povo especial ou cultura sagrada

    tende a se tornar opressor. Toda a barreira que separa homem de mulher, senhor de escravo e pobre

    de rico, merece ser implodida.

    O universo no se expande selecionando os que sero mais ou menos premiados. O tempo e o acaso

    alcanam a todos. O imprevisvel, resultado da aleatoriedade, esvazia a noo de que os incidentes

    cumprem algum imperativo do karma. Nas palavras de Jesus, sol e chuva veem sobre todas as

    pessoas sem distino. A graa divina no privilegia um punhado, relegando multides misria.

    Amor no particulariza. Misericrdia, para ser misericrdia, despreza a causa e o efeito da lei. O

    destino cego e, portanto, incapaz de nomear favoritos. A confluncia astral no distingue quem

    quem entre os milhares que chegam ao mundo naquele exato instante.

    Quem deseja se tornar predileto se apequena. Quem ambiciona ascender, cai. Quem cobia um

    patamar acima do restante da humanidade, mingua. Os ufanistas so pobres. A filosofia deve ensinar

    a irmandade das naes. Na poltica, vale insistir, no existe tica mais nobre que diminuir a brecha

    entre apaniguados e marginalizados. A verdadeira espiritualidade inclusiva. Chega de individualismo.

    Basta de egocentrismo e personalismo em nome do divino.

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    Em futuro no muito distante, algum caminhante vai parar diante de uma cova e no saber se ali jaz

    um predestinado que pensava ter o rei na barriga ou uma pessoa qualquer.

    Soli Deo Gloria


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