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sem os murosda escola

No homeschooling ou no unschooling, pais que optaram por tirar seus filhos

de institutições formais de ensino experimentam novos métodos e mostram que a aprendizagem pode acontecer em

quaisquer espaço e momento

Reportagem Gabriela Portilho

O casal de funcionários públicos Nathalie Celestino Gou-hie, 34 anos, e Anderson Christian Rodrigues, 37, do Rio de Janeiro, alcançou tudo o que seus pais sonharam para eles. Com bons cargos, casaram-se, compraram uma casa e, em 2010, viveram a chegada de Sarah, única filha do casal. No entanto, a vida aparentemente perfeita não era sinônimo de dias felizes, pois a estabilidade financeira não compensava a falta de algo inspirador ou desafiador para eles.

Sarah ingressou na escola aos 8 meses e até os 4 anos passou por três instituições. Nesse tempo, Nathalie percebeu que sua filha alimentava uma postura competitiva, além da forte dife-renciação de gêneros na hora de brincar. Nas reuniões pedagó-gicas, ela entendeu que o comportamento era reflexo da cultura escolar. “As crianças tinham apenas 2 anos e os pais já discu-tiam sobre temas como alfabetização, informática e o que im-pactaria no vestibular. Tudo precocemente!”, pontua.

Isso provocou nela e em seu marido certa inquietação. Após uma boa pesquisa, Nathalie e Anderson conheceram outros meios de aprendizagem, inclusive o homeschooling e o unscho-oling, em que os pais se tornam os principais direcionadores e responsáveis pelo ensino de seus filhos. Embora não haja uma definição fechada para essas práticas, o que as diferencia é que, no homeschooling, há um roteiro mais definido sobre a apresen-tação de conteúdos, como o uso de uma apostila ou de livros baseados no currículo formal escolar. Enquanto isso, no uns-chooling, o conhecimento é pesquisado conforme o interesse da criança. Se ela deseja saber sobre furacões, por exemplo, o ponto de partida pode ser um filme, seguido de uma pesquisa na internet, até que ela se satisfaça sobre o assunto.

Aos poucos, o ensino doméstico ganha mais adeptos. Ho-je, ele já é legalizado em, pelo menos, 63 países e conta com seguidores, sobretudo nos Estados Unidos – onde mais de 2 milhões de crianças estudam fora da escola. Embora seja per-mitido na maioria das nações europeias, na Alemanha e na

Nathalie e Anderson não gostavam da postura competitiva que a filha, Sarah, 4 anos, desenvolveu na escola. Agora, estudam em casa e o assunto do momento é o circo

Suécia, é considerado crime. Já na França, a prática é a acei-ta, desde que os estudantes passem por uma avaliação anual de desempenho. No Brasil, a Associação Nacional de Educa-ção Domiciliar (Aned) estima que mais de 2 mil famílias te-nham optado pelo ensino doméstico – elas estão espalhadas pelas mais diferentes regiões do país.

Só para efeito de comparação, em 2010 eram apenas 300 fa-mílias. Um estudo realizado no mesmo ano, pelo doutor em so-ciologia André Vieira, do Centro de Pesquisas Quantitativas em Ciências Sociais da UFMG, revela que mais de 90% dos parti-cipantes adeptos da desescolarização desejavam oferecer uma educação melhor que a disponível na escola. A pesquisa teve uma amostra de 62 pais, sendo que a maior parte dos respon-dentes era casada (98,4%), com renda de seis a dez salários mí-nimos (34,48%) – seguido de 12,06% de famílias que ganham de dez a 20 – e pouco mais da metade com dois filhos (56,6%).

FAmíliA quE ESTudA juNToNathalie e Anderson pensaram por meses em como viabilizar o projeto. “Tiramos Sarah da escola no fim do ano passado e meu marido pediu demissão para acompanhá-la na jornada da livre aprendizagem. Temos estudado mais do que nunca para dar conta.” Em casa, a menina vivencia as atividades pelas quais se sente atraída. No momento, seu principal interesse é o circo. Ela frequenta espetáculos, faz aulas de acrobacia e malabares e, com a ajuda dos pais, de amigos, vizinhos e colegas da aula de circo, constrói os materiais necessários para pôr em prática as atividades, como pés de lata e bambolês.

A partir desse eixo central do conhecimento, Sarah mostra o caminho e os pais a acompanham, auxiliando com o que é ne-cessário. “Se não sabemos ensinar, buscamos quem saiba.” Is-so não significa, necessariamente, a contratação de professores particulares. Profissionais, sejam amigos da família ou desco-nhecidos, dispostos a ajudar e que possam responder aos ques-tionamentos da criança, são bem-vindos.

A mudança atingiu toda a família. Nathalie redescobriu seu gosto por leitura e escrita, além da flexibilidade adquirida nas aulas de circo, que faz junto com a filha. O marido, agora, pla-neja trabalhar com orgânicos. A ideia é vender a casa para vi-verem no interior do estado. Segundo a mãe, Sarah nunca este-ve tão sorridente e curiosa. “A entrada de dinheiro em casa

No site leia a reportagem sobre o documentário que discute educação de crianças fora da escola.

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caiu pela metade, mas temos o dobro de alegria. Ao tirar a es-cola e o trabalho em tempo integral de nossas vidas, reencon-tramos o desejo de fazer o que realmente gostamos”, explica.

diSCuSSão lEGAlA legislação brasileira não é clara em relação ao ensino domésti-co. Embora a matrícula nas escolas seja obrigatória entre 4 e 17 anos, a modalidade não é citada nos dois principais documen-tos que tratam de educação no país – Constituição Federal e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) –, o que dá margem a uma grande discussão legal. Alguns pais, inclusive, sofreram acusações de abandono intelectual por praticarem es-se tipo de ensino. O Código Penal define como abandono inte-lectual, no artigo 246, “deixar, sem justa causa, de prover à ins-trução primária de filho em idade escolar”. A norma prevê como pena a detenção de 15 dias a um mês ou o pagamento de multa.

Foi o caso do empresário Cléber Nunes, 51 anos, e sua esposa Bernadeth, 47, de Caratinga (MG). Em 2010, eles foram con-denados por fornecerem aos filhos ensino fora da escola. A Jus-tiça determinou que o casal pagasse uma multa de R$ 9 mil e submeteu os meninos a inúmeros testes de conhecimento. Na época, com 12 e 13 anos, Davi e Jônatas foram aprovados em todos eles. Mesmo assim, a família foi condenada sob a alega-ção de transformarem os meninos em autodidatas. Fora da es-cola desde 2006, os jovens têm, hoje, 20 e 21 anos. Jônatas é webdesigner e Davi, programador. Juntos, ganharam recente-mente passagens e estadia para a Campus Party na Califórnia, após vencerem um concurso na edição brasileira do evento.

No Brasil, dez famílias, pelo menos, foram acusadas de aban-dono intelectual e duas, condenadas. Apenas uma conseguiu autorização formal do governo para educar no lar. Para regula-mentar a situação, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 3.179/12, que propõe a inclusão da educação familiar na LDB. O projeto sugere que os alunos submetidos ao ensino do-méstico passem por uma avaliação anual de desempenho, que atenda às diretrizes curriculares nacionais.

Para Carla Ferro, pesquisadora em aprendizagem sem ensino e desescolarização, se aprovado nesses moldes, o projeto limita-ria a autonomia dos pais, já que os obrigaria a seguir um currí-

culo predeterminado pelo Estado. “Não queremos o fim das es-colas. Desejamos apenas que as pessoas que não se enquadram nesse sistema tenham a liberdade de exercer a diferença”, expli-ca. Enquanto especialistas em educação se dividem sobre o te-ma, o Ministério da Educação (MEC) se posiciona contra, em nota à CRESCER: “A proposta de ensino domiciliar não apre-senta amparo legal, ferindo o Estatuto da Criança e do Adoles-cente, a LDB e a própria Constituição Federal”.

olhAr dE pAiMesmo com o impedimento legal, algumas famílias aceitam os riscos e tiram seus filhos do ensino regular, passando por inten-so processo de planejamento e reorganização. O bibliotecário gaúcho Celvio Derbi, 34 anos, de Porto Alegre, levou dois anos

para tirar da escola a filha Julia, de 14. Apesar da relação posi-tiva com os colegas e das boas notas, ela considerava tudo um martírio. Celvio procurou instituições com propostas pedagó-gicas mais livres, mas não encontrou nenhuma com as carac-terísticas que procurava. Incentivou atividades no contraturno escolar, mas elas não estimulavam a criatividade da menina e só minavam suas energias. Pesquisou outros processos peda-gógicos e, junto com sua família, optou pela desescolarização.

Agora, a casa é apenas um local onde se organizam os percur-sos de aprendizagem, que acontecem em toda parte. “Quando a Julia se interessou por culinária, por exemplo, pensamos em uma oficina envolvendo matemática, que passou por temas co-mo alimentação, saúde e história dos temperos”, lembra. Em-bora a internet seja grande fonte de pesquisa, os pais buscam

conhecimento, preferencialmente, com especialistas do as-sunto em pauta (engenheiros, médicos, advogados etc.), em livros e nas saídas de campo. “As atividades são pensadas pa-ra gerar contato com a diversidade cultural da cidade e a par-ticipação na vida da comunidade”, explica o pai. Julia é ma-triculada na Clonlara School, um programa de tutoria que permite a validação do diploma no fim do ensino doméstico, possibilitando que ela preste vestibular e siga, caso queira, com os estudos em nível superior fora do país, pois é aceito por muitas universidades norte-americanas.

Celvio tem percebido uma mudança constante e gradual na autoestima da filha. Com o passar dos dias, foi florescen-do seu interesse pela leitura e ela começou a escrever contos e poesias. Julia também busca ilustrações e fotografias e cria

no brasil...

Ensino feito em casa pelas mães, pelos padres, por preceptores ou por quem tivesse conhecimento e disponibilida-de. A chegada da família real impulsio-

nou a criação de escolas

Obrigatoriedade do ensino de quatro

anos, oferecido em escolas públicas

O ensino obrigatório e

gratuito passou a ser de oito anos

Aumenta para nove anos a obrigatoriedade do ensino no

Brasil. Neste ano, estimava-se que 300 famílias já

haviam optado pelo ensino doméstico, mesmo sem a

regularização

O número de crianças educadas pela família

cresceu para mais de 2 mil. Tramita na Câmara dos

Deputados um projeto de lei que propõe a inclusão da

educação familiar na LDB

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Surge a escolaridade obrigatória na Prússia

Presença de todas as crianças em instituições de ensino na Europa se torna obrigatória

O ensino doméstico é legal em 63 países (há 193, no mundo, segundo a ONU). Nos EUA, mais de 2 milhões de crianças estudam dessa maneira. Na Alemanha e na Suécia, é considerado

crime e, na França, é aceito se avaliado

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Gabriel, aos 8 anos, pediu para Sabrina, sua mãe, tirá-lo da escola. depois de pesquisar sobre ensino doméstico, ela atendeu ao pedido do filho, que hoje, aos 12 anos, se dedica a um projeto de alimentação infantil saudável

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seu próprio percurso de escrita criativa. “Alguns interesses nas-cem e outros morrem. E é nesse fluxo que surgem novos cami-nhos de aprendizado que ampliam a visão de mundo”, avalia.

mudANçAS pArA TodoSPara a pesquisadora Carla Ferro, desescolarizar não é tirar da escola e reproduzir o mesmo ambiente fora. É conviver em es-paços inteligentes o suficiente para que o aluno não precise ir até lá. “As trocas com pessoas diferentes, de variadas idades e classes sociais, são riquíssimas, pois criam abundância de possibilidades e conexões”, explica. Permitir que as crianças aprendam e se relacionem livremente necessita também de mudança no estilo de vida dos adultos.

A empreendedora social Sabrina Bittencourt, 34 anos, de São Paulo, mãe de três filhos, viu seu mundo de cabeça para bai-xo quando, aos 8, Gabriel, o mais velho, pediu para sair da es-cola. Ele já havia passado por oito instituições. “Seu sonho era desenvolver um trabalho sobre alimentação infantil. Enviei-o ao Brasil (na época, eles moravam em Barcelona) para estudar, por seis meses, numa área rural do Rio Grande Sul. Ele preci-sava aprender com os trabalhadores da terra sobre o ciclo dos alimentos (semear, nutrir, colher, preparar).”

Enquanto isso, Sabrina estudava, conhecia e se preparava junto às comunidades de famílias desescolarizadas como o en-sino doméstico funcionava. Gabriel aprendeu, amou a experi-ência e, quando retornou, iniciou o processo de saída do siste-ma escolar. Hoje, aos 12 anos, ele toca o seu projeto.

Sabrina e o ex-marido, Rafael Velasco, 41, engenheiro de sis-temas e empreendedor de tecnologia, passaram a trabalhar em casa, revezando-se nos cuida-dos com os filhos. Também cor-taram despesas com TV a cabo, carro e empregada. “Muita gen-te pensa que viver assim é coi-sa para ricos. Mas tudo o que meu filho tem hoje cabe em uma mala. Assim, ele consegue entender o que é realmente es-sencial na vida”, pontua. Os fi-lhos menores seguem o mesmo caminho: Raquel, 6, e David, 4, estão fora da escola formal.

A atriz Leila Garcia, 51 anos, também desescolarizou seu filho Pedro, de 8, há um ano – ele já havia passado por três escolas. Para terem mais tempo juntos e maior contato com a natureza, começou a alternar temporadas entre a capital e o litoral paulista, em Ubatuba. No entanto, Pedro tem en-contrado dificuldades em interagir com outras crianças, já que a maior parte delas passa muitas horas na escola. Já Sa-brina, mãe de Gabriel, Raquel e David, não mede a qualida-de da socialização de seus filhos pela quantidade de crian-ças da mesma idade que eles conhecem. “Eles se relacionam com pessoas de todas as idades e com quem querem esta-belecer amizade”, pontua. “Outro problema é que a escola não mistura diferentes faixas etárias.”

Para a socióloga e educadora Gisela Wajskop, colunista da CRESCER, o ensino doméstico não supre a necessidade de so-cialização. “Estar com colegas em uma praça e conviver com pares não é suficiente para ensinar o que é estar em socieda-de. A escola torna o aluno parte integrante da comunidade. É lá que se aprende a conter impulsos, respeitar o outro e enten-der limites. É claro que a escola tem problemas. Mas, juntos, os pais deveriam se organizar para mudá-la.”

Segundo Carla Ferro, é nesse ponto que as duas práticas se opõem. “Se muitas famílias optam por oferecer uma edu-cação não escolar aos filhos, é porque sentem que não ne-cessitam de um sistema que garanta isso a eles. É longe das instituições que encontram sua potência.” Para o cientis-ta social Guilherme Schröder, é possível que qualquer um aprenda a planejar o que estudar. “Quando confiamos no que podemos fazer juntos – e não só no que as escolas po-dem fazer por nós –, ampliamos as possibilidades. Apren-der sem consultar o outro. Por que não?”

Assumir ativamente sua responsabilidade na educação do filho, foi isso que Leila aprendeu com a desescolariza-ção. “Não basta entregá-lo para uma instituição e deixar que decidam tudo. Quero me sentir responsável e que o Pedro se sinta assim também. Responsável por ele, pelo planeta e por tudo que existe. Como em qualquer sistema, encontra-mos problemas. A diferença é que, dessa vez, eles passam a ser os problemas que a gente mesmo escolheu”, brinca.

cuidado coletivo de criançasÉ possível também adotar o ensino doméstico com crianças de até 3 anos. Para isso, pais e mães podem se organizar em grupos coletivos de cuidados com elas. A jornalista Carolina Lo-pes, mãe de Maya, de 1 ano e meio, juntou-se a outras mães para fundar um espaço de co--working. A ideia é que elas levem seus filhos, trabalhem de lá e também se revezem nos cuida-dos. Em São Paulo, o revisor Rodrigo Rosa e sua esposa Luana Gomes se uniram a mais quatro famílias para criar a creche parental Mãe de Oca. Todos os pais se alternem nas atividades, que incluem mutirões para a limpeza, produção de composteiras e plantação de orgânicos.

Fontes: Gilvan morandi e Walace Novaes, professores da Faculdade Espírito Santense de Ciências jurídicas (ES); Fábio Schebella, pedagogo e pesquisador autônomo em Ensino domiciliar, de São paulo; Fabiana maia, consultora em desenvolvimento de lideranças no Espaço Terra luminous (Sp); Ana inoue, diretora do Centro de Estudar Acacia Sagarana (Sp); Talita marsoli e renata Correa, mães homeschoolers, ambas de São paulo.

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