Ensinar gramática para desenvolver a consciência linguística
João Costa (CLUNL\FCSH-UNL) III Jornadas GrOC, Barcelona – fevereiro 2015
Objetivo • Refletir sobre razões para ensinar gramática e
sobre o papel da teoria linguística no ensino e na formação de docentes.
• Apresentar contributos da sintaxe teórica e do estudo da aquisição das línguas naturais para a definição e cumprimento de metas no ensino da língua.
• Relato sintético do percurso feito em Portugal.
Sumário
1. Ensinar gramática: alguns objetivos 2. Conhecimento gramatical implícito em idade
escolar. 3. Práticas de ensino informadas sobre o
conhecimento implícito: alguns benefícios.
Ensino da língua materna
• Currículo Nacional do Ensino Básico e Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997): conhecimento explícito da língua é competência nuclear no ensino da língua materna.
(2011-2014): Revogação do currículo Eliminação da palavra competência dos documentos oficiais Reformulação do ensino do português (promoção de atividades
taxionómicas)
Ensino da gramática • Vantagens do ensino da gramática amplamente
demonstradas em inúmeros trabalhos (Duarte (1992, 1997, 2000), Sim-Sim (1995), Hudson (2001), entre outros.
• É reconhecido que a gramática não tem sido ensinada nas escolas portuguesas, havendo alguns trabalhos que apontam causas e consequências deste estado de coisas (Delgado Martins et al. 1987, Duarte 1996, Costa 2007, entre outros).
Consciência Linguística • Estado intermédio entre conhecimento
implícito e conhecimento explícito. • Passo essencial para tomada de conhecimento,
antes de tomar decisão. • Inversão normal do percurso natural na didática
da língua – explora-se metalinguagem, sem recurso à consciência e ignorando-se conhecimento implícito.
Razões para ensinar gramática ! Algumas vantagens/objetivos do trabalho sobre consciência
linguística: ! Objetivos instrumentais
" Domínio do português padrão " Domínio de estruturas linguísticas de desenvolvimento tardio " Aperfeiçoamento e diversificação do uso da língua " Desenvolvimento de competências de estudo " Aprendizagem de línguas estrangeiras
! Objetivos atitudinais-axiológicos " Desenvolvimento da autoconfiança linguística " Desenvolvimento da tolerância linguística e cultural
! Objetivos cognitivos gerais e específicos " Aprendizagem do método científico e treino do pensamento analítico " Aprofundamento do conhecimento acerca da língua
Duarte (2008)
Ensinar língua materna
• Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997): “[Compete à escola] contribuir para o crescimento linguístico de todos os alunos, estimulando-lhes o desenvolvimento da linguagem e promovendo a aprendizagem das competências que não decorrem do processo natural de aquisição”. (p.35)
Ensinar língua materna
• Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997): “[Compete à escola] contribuir para o crescimento linguístico de todos os alunos, estimulando-lhes o desenvolvimento da linguagem e promovendo a aprendizagem das competências que não decorrem do processo natural de aquisição”. (p.35)
Pressupostos
• Intervenção consciente conhece: a) O que é crescimento linguístico; b) Grau de desenvolvimento linguístico dos alunos; c) Distinção entre competências que decorrem do processo natural de aquisição e o que tem de ser explicitamente aprendido; d) Ensino da gramática como actividade de desenvolvimento.
Orações relativas
Relativas de sujeito:
Gostava de ser o menino que come gelado.
Relativas de objeto:
Gostava de ser o menino que o avô encontra.
Orações relativas Relativa de sujeito Relativa de objeto
Gostava de ser o menino
que come gelado.
Estrutura: - Complexa. - Com movimento. - Com preservação da ordem canónica.
Gostava de ser o menino
que o avô encontra.
Estrutura: - Complexa. - Com movimento. - Sem preservação da ordem canónica.
Desenvolvimento das relativas
• Vasconcelos (1991): 0rações relativas são adquiridas cedo, mas há problemas no seu processamento/compreensão.
• Friedmann (2003): há assimetrias entre relativas de sujeito e de objeto na compreensão e na produção.
• Questão: que conhecimento têm as crianças portuguesas sobre relativas à entrada para o ensino?
Estudo de produção de relativas
• Costa, Lobo e Silva (2008): Adaptação de tarefa de preferência de Friedmann (2003), de acordo com estratégia do projecto COST-A33 “Crosslinguistically Robust Stages of Language Acquisition”.
• Participantes: 60 crianças entre os 3;9 e os 6;2 (média de idades 5;2) da área metropolitana de Lisboa.
Alternativas à produção de relativas de objeto
- Preenchimento da lacuna:
“Gostava de ser o menino que o avô encontra o menino”
“Gostava de ser o menino que o avô encontra-o”
Alternativas à produção de relativas de objeto
- Transformação em relativa de sujeito:
“Gostava de ser o menino que encontra o avô”
- Não resposta:
“Gostava de ser o menino que… é muito difícil, não consigo dizer” (G., 5 anos)
Compreensão de relativas Estratégia de selecção de
imagens.
Mostra-me o hipopótamo que seca o menino. Mostra-me o hipopótamo que o menino seca.
35 crianças entre 4 e 6 anos (média de idades 5;4)
Conclusões • Crianças em idade escolar ainda não têm
conhecimento estabilizado sobre estruturas relativas.
• Problema encontra-se nas relativas de objeto e não nas de sujeito.
• Problema não está no facto de se tratarem de estruturas complexas ou com movimento, mas na alteração da ordem (ver Cerdeira (2007) e Ferreira (2008) para resultados diferentes com doentes de agramatismo ou Fonseca (2011), Mangas (2011), Friedmann e Costa (2011), para crianças com PEDL ou DA).
Relembrar…
• Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997): “[Compete à escola] contribuir para o crescimento linguístico de todos os alunos, estimulando-lhes o desenvolvimento da linguagem e promovendo a aprendizagem das competências que não decorrem do processo natural de aquisição”. (p.35)
Crescimento linguístico
• Observámos que as relativas são área de desenvolvimento linguístico ainda não estabilizada em idade escolar.
• Cabe à escola promover crescimento linguístico. • Cabe à escola promover atividades que
permitam trabalhar as orações relativas.
Estimulação • A consciência de que há assimetrias entre diferentes
tipos de relativas leva-nos a perceber que é preciso gerir de forma diferenciada diferentes estruturas que ocorrem em textos, que as atividades de escrita e leitura são tanto mais ricas quanto potenciarem o desenvolvimento das estruturas mais complexas.
• Um trabalho equilibrado de consciência linguística (Sim-Sim 1997) sobre as estruturas que não são problemáticas deve ser precursor do trabalho sobre as estruturas de aquisição tardia.
Competências que não decorrem do processo normal de aquisição • Outras estratégias de relativização:
Excluídas pela norma:
" Resuntivos: As questões que eu não estive de acordo com elas são…
" Cortadoras: O creme que você confia…
Exigidas pela norma:
" Pronomes relativos: Os rapazes com quem saí…
" Determinantes relativos: Os alunos cujos professores faltaram…
Da estimulação ao desenvolvimento
• A tomada de consciência de que as relativas de sujeito são diferentes das de objeto potencia:
- Desenvolvimento de estratégias de compreensão de relativas de objeto;
- Consciência de que relativas de objeto podem ser produzidas;
- Melhores desempenhos na leitura e na escrita.
Do desenvolvimento à norma • O trabalho de aprendizagem da gramática
através da observação de dados, da tomada de consciência do conhecimento implícito e da formulação e verificação de hipóteses e regras (Aprendizagem pela descoberta– Hudson 1992, Duarte 1992) abre caminho para hábitos de reflexão sobre a língua, que permitem uma compreensão mais clara dos casos verdadeiramente excecionais que devem ser aprendidos ou associados apenas a determinados registos.
Inacusatividade
• Sintaxe formal distingue dois tipos de verbos intransitivos (Perlmutter 1978, Burzio 1986): - Inergativos - Inacusativos
Distinção com base em comportamentos sintáticos distintos: chegado o navio *corrido o atleta *chegador corredor Il est/*a arrivé Il *est/a couru.
Relevância para o ensino
• Costa (2001, 2002): problemas de concordância com sujeitos pós-verbais apenas com inacusativos: - Naquele tanque cabe dez litros de gasolina. - #Naquela piscina nada dez atletas.
• Se a distinção inacusativo/inergativo não for conhecida pelo professor, o erro pode nunca ser trabalhado.
Sintaxe dos sujeitos
• Figueiredo Silva (1996), Duarte (1995), e.o.
Sintaxe do sujeito em PB é diferente da do PE: - Maior taxa de sujeitos preenchidos; - Propriedades de correferência distintas; - Redobro pronominal com comportamento
diferenciado; - Propriedades flexionais distintas; - Formas de tratamento diferentes.
Relevância para o ensino.
• Plano de Ação de Brasília:
“1.2. Articular ações de cooperação para a capacitação de professores de língua portuguesa do ensino fundamental/básico e médio/secundário.
1.3. Formar os professores de língua portuguesa para o conhecimento das especificidades do português, conforme o uso padrão em cada Estado Membro.”
Relevância para o ensino
• Ensino do Português como LE só terá sucesso com política de ensino que tenha em conta a variação.
• Planeamento integrado requer formação dos professores para que haja consciência linguística.
Papel do conhecimento explícito
• Para o sucesso destes processos, é necessária metalinguagem, para:
- Conhecimento do professor; - Formulação de regras pelo professor e pelo
aluno; - Consulta de materiais auxiliares.
Contudo, a metalinguagem é um recurso e não um fim.
Implicações para formação de professores • Formação sólida de base sobre: - Propriedades da gramática do adulto; - Especificidades da variação interna ao
português; - Desenvolvimento linguístico; - Estratégias de ensino da gramática como
atividades de desenvolvimento; - Critérios para identificação de indicadores de
problemas de desenvolvimento.
Conclusão intermédia • A escola deve ter consciência das reais
capacidades dos alunos para saber gerir a sua intervenção.
• O ensino da língua materna só tem a ganhar com práticas informadas no ensino da gramática, que se baseiem no estímulo da competência linguística e da consciência (meta)linguística dos alunos.
• A teoria linguística é essencial para uma intervenção consciente.
Caminho seguido em Portugal até 2011 • Dicionário Terminológico (dt.dge.mec.pt). • Formação de professores para atualização científica. • Plano Nacional para o Ensino do Português (1º ciclo, formação em
sala de aula, formação em cascata). • Revisão dos normativos de apoio ao ensino do português (Programa
2009). • Formação nacional para implementação de professores de
português. • Plataforma digital para esclarecimento de dúvidas (Gramatica.pt) • Partilha e divulgação de boas práticas e materiais. • Publicação de materiais de apoio por competência (GIP – Guiões de
implementação do Programa). • Testagem de materiais em sala de aula antes da publicação.
Dificuldades • Enorme pressão mediática. • Resistência a mudança – argumentos como “maturidade”, “tudo
mudou”, “nova gramática”, “eu não aprendi assim”… • Guerra absurda entre literatos e linguistas. • Forte tradição de atividades centradas em identificação e
classificação.
Soluções • Participação em debate público. • Formação contextualizada. • Produção de materiais de apoio. • Formação sobre laboratório gramatical (Hudson 2000).
• Exemplo de material de apoio sobre sujeitos nulos.
Próximos passos • Discussão geral sobre currículo, com enquadramento das várias
disciplinas. • Definição de perfil de saída dos estudantes. • Clarificação das metas a atingir.