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ENCONTROS NO ABISMO

Ludgero Almeida

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Ludgero Almeida

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2015

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“Cada um de nós se move em dois mundos: o interior de nossa consciência

e o exterior da participação na história de nosso tempo e lugar.”

Joseph Campbell

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O autor manteve a antiga ortografia vigente em Portugal

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Acerca do

“ENCONTROS NO ABISMO”

“Uma história comovente exige do contador o fulguroso engenho de se embrenhar nela com intensidade.

Como incorporou nele mesmo as personagens e as viveu alucinado! E não fosse ele um distante evocador do enlace,

teria presumido que ele experienciara na mais autêntica verdade cada detalhe húmido daquelas pedras, daquele sofrimento,

daquele ensaio de quase-morte.”O mOrdOmO

“Encontros no abismo” é um livro de ficção, ou talvez não seja. Apre-senta-nos quatro histórias, distantes entre si na aparência, mas onde se desencadeiam um conjunto de levantamentos oníricos e existen-ciais.

Encontrar alguém no abismo é precipitar-se com ele, na sua sensi-bilidade absurda, na sua confissão, no seu hábito, na sua existência ordinária. Há uma certa perversidade na vertigem, nos vôos rasantes e libertinos, na intensidade da vida.

Estas personagens estão inteiramente penetradas pelo conflito da contradição. Ante a bifurcação da sua inutilidade perante a vida e a sua esperança, entre a estagnação e a procura. É necessário consentir o seu jogo, a sua inquietação que transborda por vezes na loucura e no sublime. Incorporam-se do simbólico. Vêem no mundo uma

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engrenagem estética que se transfigura com a moralidade e o mito. Se por um lado percebem na natureza uma recreação de energias com pretensão do eterno, incorporadas ora no animal ou na planta, na noite ou na luz do dia, por outro lado nos espaços interiores as personagens auto-analisam-se, buscam no inconsciente um entendi-mento de si próprias.

Na breve história de “O Quarto” o espaço dado à descoberta asse-melha-se a uma gruta e à própria cabeça de Lorenz Wortmann. de-paramo-nos com as suas aflições, as suas dúvidas, o seu estado emo-cional. Ele, tal como o bicho kafkiano ou como os homúnculos da caverna platónica, é encontrado submisso, tanto ao seu corpo quanto à luz e ao espaço envolvente.

Em “Gatos Vadios” há uma disputa constante entre o espaço interior e o exterior, entre a luz que entra pela janela e a penumbra do inte-rior, entre o sensível e o racional, entre o ócio e o trabalho. No diálo-go teatral, percebe-se na personagem madalena uma corporificação das problemáticas levantadas pela outra personagem. madalena é ao mesmo tempo real e fictícia, uma duplicidade, um alter-ego.

Em “Considerações acerca de um nascimento” o narrador constrói-nos uma possível cena e cenografia para uma interação do homem com o seu reflexo. Propõem-nos uma experiência interpretativa do “eu” e do nascimento. Uma reativação infantil do espanto do homem para com o mundo e consigo, numa maravilhosa disponibilidade de entrega.

Já em “O mordomo”, a personagem/narrador permite-se levar no en-canto e desencanto daquilo que o caminho lhe propõe. Ele embarca numa aventura, numa caminhada, numa procura, num movimento sem motivos, onde as coisas se lhe apresentam segundo uma inten-sidade de experiência. E é nesse caminho que o mundo surge como entidade – inteira – e ele limita-se a observá-la numa contemplação sem pretensões. A sua única ação é mover-se. Algo nesta história nos convoca as ideias de Albert Camus e do mito de Sísifo ou a ci-nematografia de Werner Herzog, quando o absurdo dirige a nossa paixão derradeira pela vida.

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Nenhum dos narradores que orientam o sentido destas histórias têm um nome. Falam do que vêem, duplicam-se noutras personagens ou na água que observam. O seu nome pode ser o nosso.

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I

A minha vida nunca mais foi a mesma. Foi um achado, uma dúbia designação dos céus – a qual estranhei profundamente, pois quem merece tal sorte? Foi o culminar de uma sucessão de eventos que oportunamente desejei e sobretudo, que não deixei escapar.

recordo-me, sentava-me à mesma hora – hora a que o sol se des-membrava pelos rasgos dos edifícios. Estava lá e podia estar em qualquer outro sítio, sem nada apropriado a fazer. Habituei-me àquelas escadas, e como por vezes julgamos que a vida tem dema-siado tempo, desejamos perdê-lo. Julgo que qualquer sítio é um bom sítio para o perder. Uns perdem-no nas boates, com as cartas, com a bebida e o fumo. Uns perdem-no a dar milho aos pombos, a correr, a falar. Perdem-no com a televisão. Perdem-no a comprar objetos insignificantes. Juntam-se com outras pessoas que querem perder tempo, casam, têm filhos. Perdem tempo a fazer camisolas para os filhos. Perdem tempo a coleccionar caricas, carros em miniatura, coisas velhas. Para mim não há melhor sítio que umas escadarias. E aquelas eram perfeitas para se ficar.

No primeiro dia sentei-me e por casualidade comecei a contar as al-mas desviadas que via. Com desviadas quero dizer, aquelas pessoas cuja aparência ou gestos evidenciam um desnorte tal, onde eu me via refletido, o que me dava um gozo tremendo. E quantas mais contava mais prazeroso era para mim. Não estava sozinho. Havia mais gente como eu no mundo! Contava-as e agrupava-as. Comecei a jogar. Quantas pessoas absurdas via eu enquanto não pestanejava? E eram muitas! Não que fosse exímio a manter os olhos abertos, mas porque para onde olhasse as via.

As vidas sem sentido. Andam para aqui e para ali. Vão, voltam. repe-tem-se. Pessoas estranhas passam todos os dias por nós, homens que falam sós, putas lambuzadas, tresloucados, insanos por paixão, es-quizofrénicos, os paranóicos, os depressivos.

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Fui ficando realmente bom a manter os olhos abertos. Era capaz de ficar horas sem os fechar. Abria-os com o passar do padre que ia para a missa, e quando voltava eu ainda não tinha pestanejado. Cheguei ao ponto de atravessar meus olhos pelas oito horas laborais. As mu-lheres saiam de casa e quando voltavam eu ainda lá estava, sem me-xer um centímetro. Sem uma lágrima, sem uma ardência nos olhos. Uma vez li um livro sobre hipnotismo que dizia que era fundamental para o hipnotizador ter os olhos esbugalhados e compenetrados o maior tempo possível. Se o meu discurso não fosse disléxico teria talvez tido oportunidade de exercer uma profissão. Nunca fui muito convincente, nunca tive uma voz monótona e adormecida. Sempre gritei!

II

Aquele dia, lá estava eu, hirto e compenetrado, já com pelo menos umas trezentas e tal almas desajeitadas na minha lista quando ele apareceu. Não pude imaginar que um dia fosse conhecer uma pes-soa como o Artur, o texugo sem pernas. Que homem feio! Os órgãos emparelhados uns sobre os outros. Uma misteriosa árvore torcida. Um torcimento singelo, mas forçado. A cabeça megalítica sobre o corpo – uma península! O nariz caído e a boca a comer o nariz. Uma locomotiva que fumegava pelos olhos. E andava, como andava lento, como se a cabeça que, indo à frente do resto do corpo, formasse o único pêndulo para o seu movimento.

Não há muitas mulheres que o amem, certamente. E os homens de-vem gozar com a sua aparência. Um homem desentoado e rude.

Pude vê-lo aproximar-se, movido diretamente à minha pessoa rompendo com o caminho num divórcio ímprobo. Quanta gente o fizera antes? E que perguntas banais esperei eu? Que horas são? Onde ficam os correios? Onde posso comprar arame farpado para delimitar o meu quintal? Sabe o que tenho no meu quintal? A que horas partem os autocarros? Nem imagina para onde vou…

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mas não. Este ser mesquinho vinha e notava-se-lhe um intuito, uma chama, uma nostalgia. Que ricos olhos compenetrados!

Ele não sabia. mas eu via tudo nítido. E percebia naquela figura, mais do que em todas as outras que contei na minha vida, características que o faziam muito semelhante a mim.

Artur – viria a saber o seu nome – era daqueles homens capazes de entender as cativações dos outros, capaz de desnudar os desejos, as tragédias, as necessidades. Não se trata de bruxaria. É pura atenção. Ver por dentro do corpo humano. As entranhas vertidas e os dese-jos cativos. A eletricidade a bombear todas as vontades. E naquele momento, ainda longe, pude sentir Artur invadir as minhas ideias. Artur, mais um condenado a absolver a humanidade. mais um ao qual procuram para ilibar-se dos seus males. mais um ouvinte para os pobres de espírito. mais uns olhos que nos tocam. Seja louvado o Homem que por sinal fosse benzido dessas pérolas! mAS NÃO! A in-veja da humanidade é mais forte! Irão matá-lo como mataram todos os outros os que se atreveram a olhar profundamente. E no entanto, não o pregarão na cruz, a sua cruz foi-lhe entregue à nascença, e é a rejeição. Tal como eu, cairá no abismo. Embrulhá-lo-ão nas sedas mais pomposas, de um branco tónico, terrível manifestação da fortu-na em cada anel, em cada palavra amiga que afinal, reparará, apenas o levam ao enterro. Ao seu próprio enterro. Perceberá finalmente, as sedas foram as mortalhas, os anéis uma preparação canónica para o morto.

E agora, este defunto que imaginava, via soerguer-se vivo como uma tocha.

E da maneira que chegava, cada vez mais realizado, e da forma como se determinou frente a mim, tapando-me o sol, só pude imaginar um Alexandre, imponente, subido sob o seu cavalo branco frente a um cínico grego. Vem comigo, disse, dar-te-ei pão e água. mereces estar nutrido. E depois, nesta confusão de pensamentos, nesta efer-vescência que via soltar-se do interior do homem, acenei a cabeça como se lhe desse razão. E no entanto, tinha percebido alguma coisa do que ele me tinha dito? Julgo que NAdA. E ele como se visse no

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meu constrangimento um sinal de falta de entendimento, agarrou-me pelo braço e levantou-me. Preciso de alguém que me ajude a fazer as mudanças. Eu? Porquê? Porque estás sem fazer nada. E eu ofereço-te, pão e água. E deixo-te dormir uma noite na minha nova moradia. Eu durmo aqui mesmo. Às vezes acordo com um pouco de dor nas costas, durmo encolhido, mas logo me estico e os ossos recompõem-se. E o frio, não é assim tanto. A gente habitua-se. A gente habitua-se.

E foi então que ao olhar os olhos do brutamontes, percebi que ele sabia, primeiro do que eu próprio, que já há muito tempo tinha a ânsia de sair daquela escadaria para outro lugar.

decidi ajudar o homem. Aprumei a camisa, bati as solas na grade da minha escadaria e lá fomos nós. dois desconhecidos. Era-me difícil acompanhar-lhe os passos, parecia que uns elásticos atados aos cal-canhares de Artur lhe puxavam os pés para trás em cada avanço que dava. E por muito que atrasasse o meu andar, quando dava por mim, já me distanciava uns metros. de maneira que Artur me agarrou pelo braço e fomos de mãos dadas.

Pelo caminho foi-me contando algumas histórias caricatas. Começou claro, pelo seu nome.

III

Artur era o nome do pai, que por sua vez era o nome do seu avô, que por sua vez era o nome do bisavô cujo pai teria sido salvo en-quanto jovem por um tal de Artur. O tetravô de Artur, que era um fidalgo importante, teria sido empurrado por alguém e teria caído num poço.

O salto, contava Artur, foi tão grande que se afundou ao ponto de to-car o fundo e ao subir à tona, quase lhe faltava o ar. Quando sufocado pela queda começou a gritar, uma multidão de gente surgiu como vários vultos na boca do poço. Ouviu-se um murmúrio e algumas palavras soltas, as quais o mergulhador tentava decifrar, e quando

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finalmente juntou palavras que tivessem algum nexo parou de brace-jar.

Não podia ser. Não era possível que tivesse ouvido realmente aque-las palavras. Estava enganado. A adrenalina do mergulho devia tê-lo confundido. riu-se de si próprio por pensar aquelas barbaridades, mas quando se esforçou para ouvir melhor, começaram os vultos a desaparecer. E daí a confirmação. Confirmava-se que o abandona-vam.

Todo o cilindro se afunilou, e a boca soltou-se numa espiral, afastan-do-se, até que já não via luz na boca. Tudo ficou escuro. As paredes encolheram-se. E de repente, só havia espaço para um corpo. E as mãos melosas pareciam que apodrentavam ali mesmo. Bebeu água, mas chegou a hora em que água já não era pura. As secreções do homem misturam-se no poço. Todo o corpo fulminava em dor. Não havia dias que contar, não havia horas possíveis naquela eternidade.

Finalmente o fidalgo, cuja individualidade se libertava dos seus laços, largava-se ao horror da solidão. Um corpo traído pelos seus, afirmava o seu cúmulo de resíduos. Uma poeira de vitórias e conquistas da sua jovem vida, dissipava-se. Nada adiantou que tivesse nascido fidalgo.

Uma neurostenia zombava como um turbilhão de abelhas ao redor do ninho que era a sua cabeça. Um sadismo crónico possuía-lhe as ideias e o flagrante delírio principiava o capítulo da passagem.

E como se o homem não fosse capaz de olhar de frente a sua morte, esquivou-se.

Inventou palavras de sossego. Histórias, mil histórias para se rir. Amigos, mesas guarnecidas de comida e bebida, tudo reluzente e colorido. Contava as histórias e o eco parecia trazê-las de volta, como se mais alguém ali estivesse, e lhe respondesse, e lhe desse, im-portância. mas houve um momento, um momento decisivo, em que a inanição lhe tirou as palavras. E o eco o abandonou.

O que há depois da morte é o mesmo que houve antes da vida, disse, sussurrando.

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Eis que surge a afirmação individual no seu auge e se condena, fulgurante, à leveza. O homem tem a capacidade de por termo à sua vida, num ato que conjuga a coragem e a falta dela. O ápice da indi-vidualidade que quer, tão somente atingir a sua totalidade. Voltar a criar liames, desta vez verdadeiros, profundos e intrincados.

Pensou no suicídio.

E não se pode dizer que não tenha tentado! Tentou! Tentou enfiar a cabeça na água para se afogar! Estrangulou-se! Bateu com a cabeça nas pedras do poço! E nada. Ali estava sem que a morte o levasse. Porra! Nem um bocadinho de força para dar de si aos guindais dos anjos! E quando, ao alto do afunilado poço, viu um raio de luz entrar, só pode crer que deus finalmente o acolhera. E uma tranquilidade banhou-o. deixava-se inundar.

Chamaram-no. TU! Não te afogues! A corda! A corda! mas qual corda? Que anjo necessita de uma corda para içá-lo aos céus? Nova-mente, mais alto. A corda! A corda! Um tal Artur atirou-se ao poço num mergulho atlético, esticado e pouco prudente. E já no fundo agarrou a mão do naufragado e num puxão de trator levou-o à tona. E depois, a corda estava lá e não estava ninguém lá em cima. Artur acordou o fidalgo e disse-lhe umas palavras impercetíveis, mas que eram decididamente amistosas. Começou a gritar. Ajudai! Ajudai! Que imprudência esta, de Artur se atirar sem deixar mãos no topo para içá-los. mas, não fosse assim haveria já um morto.

***

madalena abriu a torneira do seu quintal e nem uma gota caiu. Nestes dias de verão o calor seca as águas que chegam das tubagens. Acontece recorrentemente. O marido não estava. maria, a empre-gada, tinha ido à vila com o cocheiro para comprar legumes e carnes no mercado e só voltaria ao final do dia. Por isso ela mesma teria de pegar os baldes e andar 5 quilómetros até à fonte. O caminho de volta era mais doloroso, com dois baldes cheios de água, um em cada mão. Saiu porta afora numa aceleração. O poço ficava abaixo de uma encosta. rodeado ao longe pelos pinhais, mas engolido por um

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pequeno deserto de perto.

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Uns passantes, talvez uns ciganitos de cara custosa, desceram cuida-dosamente com os seus burros de carga, e dirigiram-se ao poço.

Abriram a torneira da fonte que ficava a jazente e beberam. depois os burros satisfizeram-se.

Encheram umas garrafas e enfiaram-nas no meio da carga. E um dos mulatos, o mais catraio, foi dar de caras com uns sapatos a uns me-tros do poço. Que ricos sapatinhos! Velhos, mas bem ajeitados! Bons para as andanças. Calçou-os! Que maravilha! Eram grandes, mas ele havia de crescer! E para já, uns pares de meias a mais resolveriam o problema.

Fizeram-se à estrada.

***

madalena estava próxima, quando viu ao longe um grupo de gente com os seus burros.

Esta gente não é daqui. E foi-se esconder atrás de um arbusto. Não vá o diabo tecê-las. Gente estranha é sempre gente estranha. E não fal-tam relatos de ladrões por estas bandas. Viu-os passar. Um homem. dois homens. Uma mulher. Um velho. dois burros. E um rapazito a saltar de felicidade a correr aos ziguezagues entre a poeirada da estrada que ele próprio fazia.

E não fosse aquela correria do miúdo, madalena não iria reparar que aqueles sapatos que calçava lhe eram profundamente familiares. Castanhos, pontiagudos, com os cordões fora de sítio, com exacta-mente o mesmo buraco no calcanhar. Aqueles sapatos eram iguais aos do marido! Nesse momento tudo lhe passou pela cabeça. O mari-do, que como sempre saiu de manhã para o trabalho e que ainda lá estaria… Onde estava afinal? Aqueles ciganos roubaram-no! deviam tê-lo feito mal. Onde estaria o Artur? Sangrento em qualquer canto!

madalena não se controlou! Saltou como um lince do matagal, afiou

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os dentes ante os demónios. Onde foste tu buscar esses sapatos? O miúdo estupefacto. Todos pararam. donde veio esta? Os sapatos en-contrámo-los nós à beira de um poço aqui perto. Encontraram-nos? Sim, encontramo-los. Artur passava por aquela estrada todos os dias. O poço era decididamente um lugar de paragem para beber água fresca. mas, porque ficariam lá os sapatos? Não, devem tê-los rou-bado! disse. Nós somos gente pobre senhora, mas não somos ladrões. Estavam espalhados no chão. Pareciam que tinham sido largados.

madalena dividiu-se. Quis correr imediatamente para o poço e por outro lado, quis bater nos ciganos, não sabia acreditar neles. Os ciga-nos viram-lhe a preocupação. E perceberam então que algo muito mau poderia ter acontecido. Não se encontram sapatos todos os dias afinal, nas bordas de um poço. Pobre homem, ter-se-á suicidado! Agora fazia sentido. Na altura nem imaginaram. Foram atrás de ma-dalena, não podia deixar de ser.

E foram dar com Artur no sítio onde já imaginavam que ele estivesse. Os burros puxaram as cordas e as cordas aos dois homens. O cigano levou os sapatos. Artur levou água nos baldes.

***

Quando recuperou, o fidalgo não quis crer. Que deus ouvisse os homens, acontece, que cismasse tal artimanha, tal confluência de acontecimentos e sucessões de eventos que o tirassem daquelas águas, não esperaria. Talvez deus não queira ser nítido nos seus ac-tos e por isso torna as coisas caóticas. Artur, os ciganos e madalena. Três enlaces para o tirarem do poço.

desde então o fidalgo, embrutecido, de olhos cavados, umas olhei-ras imensas de sono, levantava-se da cama e gritava, não me deixem cair! E a mulher quantas vezes experimentou um frio no colchão, de um vazio inóspito. E inquietada, foi encontrar o fidalgo a dor-mir na banheira, pelas águas no queixo, às vezes a borbulhar por conta do seu ronco. E ele confinado àquele afeto aquático, fazia-se dormir como uma criança, finalmente. A esposa pensava como um trauma por vezes pode ser terrivelmente perverso, ao ponto de se ver

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no pesadelo um lugar seguro? Nas águas que o matariam, afinal, o pobre do homem vê um lugar reconfortante. E na banheira um lugar uterino.

O fidalgo acordava, as peles dobradas sobre si próprias, moles e bran-cas. Uma feiura tomou-lhe as feições do rosto, uma deformação que lhe dava aquele ar decrépito dos mamíferos aquáticos, engordou-se, feito morsa. Arrastava-se pela casa.

IV

Uma história comovente exige do contador o fulguroso engenho de se embrenhar nela com intensidade. Como incorporou nele mesmo as personagens e as viveu alucinado! E não fosse ele um distante evo-cador do enlace, teria presumido que Artur experienciara na mais autêntica verdade cada detalhe húmido daquelas pedras, daquele sofrimento, daquele ensaio de quase-morte.

Continuamos o caminho, eis que o folgo sustido de Artur alforriou saído da sua boca equina. descansou a intensidade das palavras e pôde humedecer a língua, finalmente. Não fez braceiro, mas quase. Teve de se estancar ante a porta da frutaria, debruçar-se sobre as prateleiras e reparar a inércia que lhe flutuava a água nos olhos. de-pois, inocentemente, meneou uma maçã para a sua boca. Quase in-teira! Ninguém viu, só eu. Um constrangedor silêncio enquanto Ar-tur comia a maçã roubada. Num desmedido manducar, digno de um babuíno. mas não me perguntem se há babuínos que comem maçãs. Sou um indivíduo ético – ou pelo menos quando dou por mim a ser desordeiro, esforço a minha integridade a cumprir a minha cons-ciência – não pude devolver a maçã, mas não quis que descobrissem Artur a lambuzar-se. A pobre da velha da frutaria, vende frutas e não tem dinheiro para comer. É contraditório, mas é assim. E foi a maçã, a fornida que cromatizou a funérea do seu rosto. Finalmente conquistou a maçã para as bochechas. Artur, arrostou a sua face ante a minha, e notou-se-lhe uma vergonha. Que homem chora assim por

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uma história que ele não viveu? É de génio ou de tolo? Foi essa cer-tamente a pergunta que fez, e foi ela que veio colocar na minha boca.

Houve um silêncio. E parecia possível – da brevidade que existe entre nossos suspiros – perceber a mais generosa soma de palavras, indes-critíveis, cujo silêncio e só ele, pode falar. Assim resolvemos calar.

Aquela calçada… que velhos são os nomes dos velhos que a criaram. Os seus nomes já não se pronunciam da mesma forma, estão desu-sados, alguns esquecidos, outros nunca se chegaram a saber. Havia nomes de árabes, dizia-se, trabalhadores de sol nas costas. E sendo esta uma calçada portuguesa, não pode deixar de ser árabe. daí que o bairro que percorremos se chamasse Alarife em homenagem aos mestres. Há muita gente por aqui que não gosta de árabes. Eu acho-lhes piada.

A calçada ali está, em cada pedra o sacrifício das mãos. E em cada pedra, o peso dos passos que já lhes pisaram. Faz-me lembrar que em tempos, foram os fazedores de estradas os homens mais viajados. Está torta. Nas chuvas a água enche os buracos e entope as canaliza-ções, e se é forte cria-se uma ribeira, uma torrente que desce a galope a vertigem que leva daqui ao rio lá em baixo. Por isso se fizeram de-graus em todas as portas, o que nem sempre é o suficiente para que a água não entre. mas isso é só no inverno mais difícil. durante grande parte do ano não chove nestas bandas e por isso nunca se pensou mudar a calçada. Está bem assim.

A calçada leva-nos a um labirinto. Existem duzentos metros de ruas intersectadas, cujas esquinas desdobram-se em graus sinuosos para paradeiros, que nem eu, nem velhaco qualquer pode saber onde dão. As placas, se algum dia tivessem existido, já aqui não estariam. E para lá fica o largo. No largo haverão uns antigos camponeses sen-tados numas poltronas. Não os conheço, mas entre eles e as candeias, entre eles e o jardim, entre eles e as próprias poltronas onde se sen-tam, não existe diferença. Estão ali, como tudo, inanimados. mas gosto que ali estejam.

Certamente Artur não sabe dos velhos, nem dos árabes que cons-

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truíram esta calçada. mas não achei oportuno interromper o silêncio que guardávamos. Assim como assim, tanto os árabes quanto os ve-lhos, já não têm muita importância. Os árabes morreram. Os velhos vão morrer.

Para lá do largo existe outra rua alargada e nova. Bem planada, en-tre o calabouço dos modernos prédios, uma trincheira esgotante, mas limpa! Imagino que a casa de Artur fique muito além desta rua. Onde só haja campo. Um homem de espírito só poderia ali viver.

Andávamos e a rua alongava-se. Uma vertigem horizontal engolia-nos os passos, um afunilamento colocava-nos além, no fim da rua, onde a luz desfazia o solo num limbo, numa inexatidão de formas. Perpetuava-se um trajecto infindável. E eis que víamos naquele tem-po que leva de uma ponta à outra da rua, uma metamorfose que lembrava um crepúsculo. Um laranja adensava-se no horizonte na descida perversa do sol. E se em alturas o tempo se nos parece pobre, infindável e igual, ali tínhamos a certeza da velocidade abrupta de como giram os astros e o universo com eles. O sol cessava a ternura cabalmente, como uma esgotante vida de milénios que condensava-se. Pensei, que belo espetáculo nos dá a morte.

Lembrei que também no nosso cérebro há um lugar chamado glân-dula pineal, cujos místicos desta terra asseguram nos dar as maiores visões. No nascimento, dizem, dá-nos a abertura para o mundo, na morte encerra-nos e concluí-nos. Que visões maravilhosas devem ser essas. Que imagens podem concretizar a abertura para se ser, e deixar de ser como marcas de um capítulo. As imagens de um mori-bundo que agoniza, dão-se como uma revisão de memórias, um em-parelhado de imagens numa biblioteca ínfima, conferida no tempo limite em que se morre. Se este sol lembrasse agora todos os seus dias, que histórias não contaria das suas mágoas, do sofrido brilhar sobre a terra, sobre os absolutos seres que caminham e das plantas que imanam. Quantas vidas viu nascer e morrer num microssegun-do da sua existência?

Paramos num pequeno lago. Artur sentou-se na beirada. Uma meta-morfose nas águas emitia-se pela passagem do vento, um prelúdio de

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um crepúsculo.

do chafariz automatizado, ressoava um motor como um tamborim. A água do chafariz elevava-se numa linha única para se afligir numa queda desenfreada, de maneira que certas gotículas, pairando numa neblina, caiam junto de nós, dando-nos uma sensação de frescura. As gotas faziam bica nos pêlos de Artur, uma mistura de água e baba lambuzava-lhe a boca. O seu aspecto pestilento, as mãos tombadas e desengonçadas e os pés que batiam um ritmo arcaico, cardiológico, uma batida cavada, pueril, que lembra o rústico negro, que alçava nas costas o minério ou a plantação. E ele tinha algo de explorado. de revoltoso. de milenar. reparei nos tiques nervosos, o piscar de olhos, uma constante aflição do nariz que o fazia constantemente coçá-lo, uma tremedeira nas mãos e na cabeça que cessava apenas quando se movia, e ele movia-se constantemente o que me dava a entender que disfarçava e que tinha consciência dessa soberania do corpo.

Agora estava absolutamente de noite. E esta noite preocupava-me de certa forma. Não pela noite em si, a qual aprecio. mas por aquilo que ela representa no meu âmago. depois do chafariz abre-se uma estrada de terra, a qual caminhei somente de dia. Conheço-a pouco e facilmente me perderia nela se me vendassem os olhos. Em todo o caso a escuridão assemelha-se a isso. Não há candelabros nessa estrada. Não há indicações. Não há pessoas a que se possa perguntar onde estamos e qual o caminho. E os animais despertam na noite como entidades devassas, com seus olhos diversos mas igualmente penetrantes, que abrasam nossos medos, e nos convocam aflições e angústias, e convertem o nosso estado num estado de alerta. Primi-tivo.

Os animais andam por aí. Sabemos que fogem dos humanos na maior parte das vezes e que se escodem nas veredas. Nem por isso deixámos de ter receio. Olham-nos o mais longe possível, expectantes, como se nos estivessem a autorizar a passagem, como se nos inquerissem das nossas motivações e finalmente determinassem, considerando a sua fome, se nos devem ou não liberar. digo liberar, pois nesse instante pertencemos-lhes. mas os animais são um dos aspetos que tornam a

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noite como é. As plantas, que naturalmente nos dão a impressão de serem amistosas, que parecem isentas de maldição, e as quais se dão ao nosso olhar como passivas, traem facilmente a confiança que lhes depositamos, quando se escurecem e se confundem nas sombras. Tornam-se irreconhecíveis, humidificam-se. Entre si, criam uma ho-mogeneidade. Os pinheiros, os eucaliptos, os carvalhos, os arbustos, as trepadeiras, tudo quanto é planta, se mistura e conflui numa só massa, como se esvaziassem da integridade do seu corpo, para dar de si à existência da floresta. E a floresta interage como um todo, enche-se, pensa, torna-se arguta, ágil, desdenhosa. E a ela vem a viração, um sopro esplendoroso, uma aragem infinita que entra pelo bosque como que convidada. E suas linhas tortas e indefiníveis tocam a ra-mosidade dos troncos e a folhagem.

Continuemos a estrada. Sim, continuemos.

Estávamos refrescados. E o corpo comprometia-se com esta cami-nhada.

Passo ante passo, caminhávamos numa lentidão necessária. Os pés praticamente invisíveis na penumbra, elaboravam um toque cui-dadoso na terra para nos convencer da segurança e dos hipotéticos comprometimentos da nossa passagem. Aqui e ali uma cova, um buraco, uma armadilha. mais além um objecto largado, um volume morto, um empecilho, um estorvo, algo físico com uma tendência perversa. Suspeitamos, contornamos, saltamos, corremos. da ca-beça, pela coluna vertebral aos pés, um calafrio indispensável na confusão dos gestos. repare-se que Artur estava seguramente mais à vontade naquela circunstância e ainda que tudo isto lhe apoquen-tasse, denotava uma tendência para manifestar uma certa relutância, nesta e naquela palavra que dizia, medianamente silenciosa e irónica. As noites são profundas e transformadoras, falava e ria-se. devemos por de lado as suas maneiras desagradáveis, acrescentava. Quando se ouvia um uivo além dizia, nem todos os bichos que uivam, uivam por nós. E depois, nós passamos e a floresta nem dará conta. E assim íamos levando. (continua...)

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O QUARTO

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A o fundo da sala acontecia o quarto. Cruzamos o passadiço e uma escuridão tão pegajosa quanto saliva, paulatinamente nos beijava e humedecia ao entrar pela boca. Pouco nos dava a ver. A serenidade do negro permitiu-nos pensar que tudo podia suceder. Entre paredes, estreitava-se a respiração. Afunilava-se-nos a vista. daí recearmos entrar e nos estancarmos na porta, como observadores discretos.

Ao nos focarmos no escuro, esbateram-se formas. Justamente abaixo da janela estava a cama. E na cama um monte de corpo quieto como tudo. Não sabia da nossa presença. A metamorfose soava-lhe den-tro, lenta e dolorida, alimentando-se do sonho como um tumor. So-brevivendo e crescendo, temperando-se da agudez dessa árvore que lhe deu vida. E o tumor trazia-lhe a morte. Um vermelho cismava-o como uma tocha.

Lorenz Wortmann estava retido pelas amarras dos lençóis. Na cama oscilante de medos ficava aprisionado. Lorenz Wortmann era este homem, sem pé que rangesse o soalho até à porta e a arroteasse, como o fizera outrora. Incapaz da exatidão com que brandia a janela ao lado de fora, para que a luz lhe tirasse o sono. A luz agora era o sono. E o sono prolongava-se por ela.

O não-movimento, a pesadez dos arcos das costelas, as rodilhas dos joelhos mal-amadas pelo tempo. O chumbo nas veias, e uma trouxa de obrigações por acontecer, faziam-no um casulo.

repentinamente mexeu-se como as lesmas, sem pernas e mãos que lhe valessem. Perturbado pelas ideias, procurou um frio de um café, bolorento de tanta idade. depois catou a medonha luz, para que o es-pelho facilitasse a sua memória. Acendeu uma vela, fonte de luz mais próxima, talvez na esperança de que esse ato – tão inocente quanto a sua juventude – lhe fosse salvar por inteiro da escuridão que o manto cobria sobre sua cabeça. depois nos foi apresentado o quarto por inteiro pela luz que dá as cores e as feições. Se houvesse vida, não

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haveria aquele homem, nem quarto assim, naquela casa. Que a única vida que houve foi a luz da vela em insurreição, restou a morte como presença natural, em todos os recantos.

Olhou-se ao espelho. Eis o ser que mais odiava! Via-o claramente! Não o reconhecia como seu. Estas não foram as mãos de um obreiro, nem de um talentoso, ou se foram esquecidas. A mãe gritava como tentáculos. Entorpecia-se-lhe o queixo, violava-se-lhe a alvorada do nascimento. As memórias eram soltas como morcegos, quando se dá o alvoroço. Procuraria de dedos nas gretas da epiderme, tentando a súbita recordação, de como e quando lhe deram aquele corpo. Lem-brar-se-ia do bicho kafkiano, frente à muralha da mente. muralha que o criara como monstro, tão igual aos outros, que se endoidecem lá fora. Nas portas da calçada.

Viu por entre as rachas a sina de um Narciso. A barba instalada pelo descuido, as sombras nos olhos e os olhos nas sombras dos reflexos. A pele como arquivo de um século, enrugada mil vezes com dobras de pressão, suaria a desnutrição e os cheiros confundir-se-iam.

Que motivos lhe vieram fazer ter o mais negro dos ofícios? Cismar em si as naturezas do mundo? E da psique? Abandonar o ócio dos irmãos e seus contentamentos, para se embrenhar na solidão por in-teiro.

O quarto tornou-se a cabeça e a cabeça gruta.

A primitiva gruta, a mais divina que o homem esboça e onde dorme, que ela própria é painel e berço, ventre onde se expressa tanto a morte quanto a vida, em celebração.

Assim, foi esta gruta. Noutras idades.

Agora nesta gruta está a podridão por cima das coisas, reveste as ma-deiras e o soalho, toma por fungos as achas para a fornalha, que con-quistadas pela humidade, exigem ao fogo a maior perícia. Os livros poisados como bocas silvestres, aleatoriamente, no chão, na cama, na mesa moribunda da cozinha, entre talheres e pratos decrépitos.

Estamos na depressão. A onda que leva os homens ao infundíbulo.

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O abismo onde alguns, por sua natureza, são levados à inércia e a cair. Cair como corvos, tão negros de si, que são buracos no tempo.

Lorenz Wortmann disse:

– Sou a suma do nascimento. A finalidade que irrompeu. mas que finalidade é essa que me deixa sem a saber?

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Gatos vadios

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***

Uma sala semi-escura; duas cadeiras; uma mesa; uma janela; duas personagens.

***

– madalena, se cerrares agora mesmo as cortinas, não terei de ver o dia nascer. Sabes que não suporto a primeira luz. A perniciosa sa-gração das cores. Prefiro o candeeiro.

– Espera um pouco.

– Esperar o quê? Que esperas da noite?

– Só espero.

– Sombras. Só sombras refletem naquela janela. E o gato. Não ali-mentes esse vagabundo.

– Não o alimento. Ele vem sempre por outros motivos.

– Pergunto-me que motivos? Esse gato aterroriza-me. da próxima vez que o vir atiro-lhe com a almofada.

– Uma almofada é uma boa proporção para se violentar um gato. O suficiente para o afastar.

– Abomino gatos vadios. Que se errem por ai a cogitar a mixórdia dos caixotes.

– Não o demonizes.

– Sonho com ele, por vezes. Com ele e com todos os outros. A es-trada vazia, plena noite. O carro para-me ali, onde não há vivalma. da floresta sai um dos bichos, depois vários, enchem o alcatrão. re-touçam para o capô do carro. Como são negros!

– Já me contaste.

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– Nem assim me livro deste pesadelo. Grito-o! E ele entranha-se-me. Estranho movimento.

– Ninguém te ouve daqui. Tu mesmo o disseste. Não há nada lá fora.

– Só gatos. Gatos e sombras.

– É assim à noite meu querido. mas decerto não o verás hoje.

– Também tu me aterrorizas com tuas certezas.

– Tens tu pesadelos comigo? Como são?

– rir-te-ias.

– diz…

– Não sei se devo… São diversos. Conturbados. São eróticos. Outros uma insanidade. Algo entre o amor e o ódio. Uns são indiferentes, outros, recordo-os por sua brutalidade.

– A brutalidade dos homens. O que te faz sentir ao acordar? E ver-me? depois dessa violência, deitada ao teu lado? Apazigua-te?

– Por vezes. Outras encontro-me num estado tal de embriaguez que me levanto para não te ver. Algo de vergonha ainda tresanda no meu suor. Fosse uma pessoa invadir os sonhos da outra.

– Conta-me mais.

– Não há nada a contar. São pesadelos, “os pesadelos a árvore, a memória o bicho de madeira”. Planeei ficar aqui só. Não queria ver ninguém. Contudo aqui estás. donde vieste? (acende um cigarro)

– muitas coisas são imprevisíveis. muitas coisas são da ordem do caos. Tudo do qual desconhecemos os propósitos.

– Assustas-me. Pareces saber muita coisa.

– Vá. Conta-me mais!

– O café está pronto.

– São seis horas.

– Sabes que tomo café a qualquer hora.

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– E o trabalho? Não dormirás nada antes dele? Pelo menos duas ho-ras…

– Hoje não dormirei!

– Não há muito a esconder nos teus olhos. Tão enegrecidos. Que olheiras! Ou não mais te incomoda que saibam das tuas noites? Antes parecia importunar-te. Que dirá o chefe de todos os chefes? Admirava-lo.

– Pois, agora desprezo-o. Esqueceste da janela, madalena.

(madalena fecha a janela)

– E a que se deve?

– Há algo nele. As promessas! Promessas! Esperei todos estes anos. Quis cumprir-me noutro homem. Vestir outros fatos. Calçar outras botas. Afastar-me das entranhas da cidade, das orgias da decadência. Quis passar longe delas. Longe, talvez, nem saber que existissem.

– Achas que te enganou?

– Talvez me tenha enganado eu. Talvez… Pouco importa. Ele sabe de tudo. Afinal, a má disposição que a sua figura me propicia, não é algo que se disfarce. Falamos por todas as entradas, não é assim? E depois, frente aos olhos da fera, não há perdão do corpo para uma ferida, para uma culpa, que imaginamos. Os olhos tremelicam de ânsia, a saliva seca a boca, desajeitamos os movimentos, para quê? Tudo fica nítido. Todos os pensamentos podem ser acedidos. Não há nada que nos proteja. A boca fala por nós, sem sequer lhe pedirmos!

– Que pensas fazer?

– Esperar. Para já, resta-me beber o café. A minha condição é man-ter-me acordado. Se não dormir tudo ficará bem.

– O corpo consente poucos cansaços, as noites mal dormidas que-bram com a realidade dos dias. O limbo entre o sono e a vida cons-ciente esbate-se até que um é o outro.

– Chega-nos a luz, madalena. Vêm do antro da terra, como ruge.

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– A janela está fechada. Não há abertura qualquer. Apenas uma ténue fogueira de luz se concretiza por entre os tecidos. Não te incomodará.

– Os meus olhos habituam-se. A cabeça é que não. O sonambulismo, madalena. Já disse que me levanto pela noite?

– Não digas mais.

– Não disse.

– melhor assim.

– O silêncio viceja em todas as coisas, não há murmúrio que se revele nelas, tudo é como realmente se anuncia, mais vasto que o próprio corpo que lhe dá nome.

– Que queres dizer?

– A penumbra revela o ignóbil que à luz é discreto. Certamente que já o sentiste…

– A imaginação toma o músculo que move tuas glândulas. Salivas por demasia.

– Pensas que estou louco. Não estou louco! Pareço-te louco?

– Pareces-me ruinoso.

– A ruína! A degradação! Não fosse a ruína de umas coisas não ha-veria as outras.

– Como os Impérios?

– Impérios?

– A ruína dos Impérios.

– dos Homens.

– de todos nós.

– A dor dos nervos amolece a vontade. Quem é suficientemente afor-tunado para que o corpo não lhe decaia antes do pensamento? Os formigueiros invadem o estômago, as peles endurecem e secam, a escamosidade borbulha, as rugas atuam na virgindade do meu te-

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cido. A calvez, a cinza nos olhos. Curvamo-nos à lei da gravidade. A esta aspereza soltamos símbolos, entidades, a alma imortal. Cremos pertencer a um reino nos céus, mais brando, menos trágico, onde o náufrago já não necessita da carne. Em breve estaremos livres dela.

Valem pouco os que confundem a duração da vida. Contudo, talvez sejam ligeiramente mais felizes. Ou não? As velhas de negro. Pode ser que não sejam. As mãos contorcidas do raquitismo a dedilhar no cruxifixo.

– mais café?

– Por favor.

– dão as oito no relógio.

– Havia um igual na cozinha dos meus pais.

– A mesma hora noutro tempo.

– Noutro lugar.

– Noutro tempo. Noutras circunstâncias.

– O café escalda.

– Foi purificado. Está tarde. Tens de ir.

– Estou cómodo. Esta cadeira engole-me pelo rabo como se fosse dotada de vácuo, vai-se o tronco, braços, cabeça, tudo desmoraliza neste conforto! Quem terá inventado o trabalho?

– Já estava inventado.

– Alguém o deve ter criado…

– Não. Já estava.

– Quisesse eu amá-lo. desprezo todos os deveres.

– E instituições!

– desprezo tanta coisa.

– A ti mesmo.

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– A mim mesmo? Não. Talvez me despreze em coisas supérfluas. Não se pode gostar de tudo. A masturbação contínua do meu sexo na hora de ponta da cidade, fascinado pela vislumbrante atração dos seios televisivos. Que repugnante! A velhice! A safadeza! O erro! Arrependo-me desta casa como me arrependo da minha cabeça, a cozinha deslavada, o soalho levantado pela humidade. Qual pen-samento simbolizará o soalho? Ou o sofá rasgado? Ou, quais pen-samentos meus serão metáfora para a minha cama, onde mortifico agonizante o naufrágio dos meus males? Não me desprezo verdadei-ramente. Ter-me-ia suicidado. Eu amo-me, isso sim. Amo todas as imperfeições do meu ser.

– Estás confuso. Não são os teus olhos que ofuscam a beleza das coi-sas?

– Não me maces, madalena.

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CONSIDERAÇÕES PARA UM NASCIMENTO

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O encenador explica:

– Está um homem nu na floresta.

Um homem cujo sentimento, subtilmente, é inclinado a irromper.

Com seu terrível bulbo, inteiramente penetrado – descarna a fo-lhagem e renasce o corpo exausto. Enverga-se para a nascente dos seus poderes e disponibiliza-se para nascer.

Agora mexe, e sopra e vê claramente.

Emocionalmente livre. Virtualmente luminoso. Cabalmente sur-preendido.

Uma tábula-rasa.

Isto é um sonho, tá a ver?

Você sonha. Todos os Homens sonham.

E no momento que se sonha, as imagens apreendem-se, transbor-dam um sumo sulfuroso, e o mundo das ideias acontece. Você sabe como elas se formam.

Não controlamos nada e não sabemos de nada.

Há uma matéria que nos suga. Uma mancha negra que se alastra nos olhos cerrados de cada um. Ou um orifício? Sim, um orifício, uma entrada, um portão.

E quando damos por ela, estamos dentro do universo dos lugares. Como um nascimento.

Nus, mas inteiros.

Parece-lhe congruente?

Estamos lá, como disse, dentro. Não em cima das coisas, ou da terra,

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ou do alcatrão, como naturalmente nos achamos situar o mundo. mas, dentro. E estar dentro é ser a coisa por inteiro.

Eis um lugar novo. Que nos cinge, que nos libera, que nos descalça, que nos desnuda.

E a nossa vontade que se esvai? Ou que nunca existiu!

E nós como uma labareda desencadeada, mas impetuosa, e no cimo do nosso corpo, afrontamos os arquitectos do mundo.

Uma massa rebarbativa escamoneia-se no nosso corpo, como pele de cobra.

Quando o homem adormece, escondendo a cabeça sob os braços.

Quando o homem sonha. Já foi sonhado.

O homem anda. E indaga e não alcança.

Imagino o que está a pensar. É pouca objectividade para um tempo tão curto de execução.

Eu sei, vejo-o na sua expressão. mas repare que estão aqui muitas ideias que podem ser trabalhadas.

Olhe por exemplo o que penso do lugar. Como lhe disse o homem aparece nu. mas além disso, posso dizer-lhe que o lugar tem perso-nalidade. É curioso, não é? Que um lugar tenha personalidade?

E vou mais longe, repare. O lugar deseja incessantemente a presença do homem. Não é um bonito pensamento? Não é uma bela com-posição?

Era um lugar, imagino, uma região alagada. Húmida, ventral. Có-moda, com cheiros diversos. Um lugar mitológico num fim de tarde, com uma luz correspondente. dissipada. Era um lugar, como hei-de dizer? Um lugar arguto, que agita e viceja, e envolve, e é furiosamente fértil.

Através do labirinto incomportável de árvores, o nosso homem desce a colina que o leva à cascata.

Não julgue conhecer os valores desta cascata. Vai além com sua água,

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criando primeiro um pequeno lago por onde depois é encaminhada para um rio, onde desce sinuosamente entre pedras.

Essa água vai para muito longe, mas digo-lhe, não tão longe quanto do sítio onde se originou.

Como poderia definir esta água? Como o sangue? Que percorre os músculos e os órgãos vitais, esta água liquidifica todos os lugares da floresta. É importante por isto!

Esta cena perderia toda a importância se não houvesse ali uma cas-cata, com estas características.

mas importa por outro motivo.

Onde poderia o nosso homem ver-se? Onde poderia refletir a sua imagem senão na água?

Não é irónico? Que o homem se duplique?

E ele, como reagiria? O que significaria para ele tudo isto?

Vou-lhe dizer como começa:

O homem agacha-se como um bicho que bebe. Sedento e expectante.

Isto é água. E devo beber para matar a minha sede. E bebe.

depois percebe, como é estranha a água.

Como se move. Como se agita. Como foge. Como é fluída.

Tenta compreender-lhe a transparência. O mistério da sua matéria que é incolor. Tenta quebrá-la com a força dos dedos.

E ela se esvaí, como todas as águas.

E o estrépito das suas navegações, por cima e por baixo das coisas. O som na rocha, o som na madeira, nos caules secos, na folha. Como diferem.

Como se comporta a luz, naturalmente desinquietada, que bate ali, e resvala nas curvas indefesas do líquido. Como se legitimiza e como ganha volume e como reflecte!

E ao olhar essa luz que brilha impiedosamente, começa a perceber

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outros contornos.

Há algo que a água me quer dizer. Algo tenebroso, mas necessário. Algo indecoroso, mas incontornável.

E finalmente, o homem, ingenuamente petrificado face à água, per-cebe que a água reflete o mundo, à sua maneira.

E vê um ser que lhe olha, curioso e humanamente confundido. E com um pouco de aritmética determina, que aquele desenho só po-deria ser ele mesmo refletido.

restabelece a sua condição, uma camada fina de tecido delimita-o, caracteriza-o. Implode-o. desabitua-o dos milagres. Todos os senti-dos articulados com engenho. Os olhos, o nariz, a boca, os ouvidos, a pele.

Via-o nítido. Um homem que pensa. Um homem que pensa frente à água.

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