EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DILEMAS E
PRÁTICAS
ISSN 1982 - 0283
Ano XXI Boletim 12 - Setembro 2011
SUMÁRIO
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas
Apresentação da série ................................................................................................. 3
Rosa Helena Mendonça
Introdução
Educação Física e Educação ......................... .............................................................. 4
Antonio Jorge Gonçalves Soares e Edivaldo Góis Junior
Texto 1: Dilemas da Educação Física no cotidiano
Dilemas no cotidiano da Educação Física escolar: entre o desinvestimento e a inovação
pedagógica ......................... ....................................................................................... 14
Valter Bracht
Texto 2: O que se ensina e o que pode ser ensinado
A pedagogização dos conteúdos da Educação Física: tradição e renovação...................... 21
Mauro Betti
Texto 3: Temas e experiências práticas
Megaeventos esportivos, Movimento Olímpico e mídia: o esporte saltando os muros
da Educação Física escolar ................................................................................................ 29
Marta Corrêa Gomes
3
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas APRESENTAÇÃO DA SÉRIE
1 Supervisora pedagógica do programa Salto para o Futuro/TV ESCOLA (MEC).
Cada vez mais, espaços e tempos têm sido
pensados como categorias indissociáveis
nas sociedades em geral e nas escolas em
particular. Na dinâmica escolar, essa ques-
tão ganha contornos específicos, uma vez
que faz parte da chamada cultura escolar
uma forma de organização que tende a di-
cotomizar tempo e espaço. As turmas ocu-
pam salas específicas que são agrupadas por
séries. E as aulas têm, em geral, duração de
cinquenta minutos.
Entre as disciplinas, a Educação Física, é
uma das que mais se ressente desse mode-
lo historicamente construído. Na busca de
uma inserção mais efetiva no currículo, a
Educação Física escolar, ao definir sua iden-
tidade enquanto área do conhecimento, tem
também evidenciado suas especificidades.
Afinal, “A Educação Física é representada pela
comunidade escolar como disciplina que incide
sobre a formação cultural do alu no? Ou como
atividade complementar que pode auxiliar a
construção de um ambiente prazeroso no coti-
diano escolar, a formação de hábitos saudáveis
e a socialização de experiências esportivas ou
de expressão corporal?”. Quais são os dilemas
e as perspectivas da disciplina no contexto
de valorização da ampliação da jornada es-
colar na perspectiva da educação integral?
Para discutir essa temática, a TV Escola, por
meio do programa Salto para o Futuro, apre-
senta a série Educação Física escolar: dile-
mas e práticas, com a consultoria de Anto-
nio Jorge Gonçalves Soares e Edivaldo Góis
Junior (UFRJ). Nos textos desta publicação
e nos programas televisivos são apresenta-
dos temas relevantes, como o histórico da
Educação Física na educação, os desafios da
disciplina escolar Educação Física e as me-
todologias emergentes para o ensino dessa
disciplina.
Esperamos, dessa forma, contribuir com
práticas inovadoras no âmbito da cultura
corporal do movimento.
Rosa Helena Mendonça1
4
Um dos mais importantes teóricos do libe-
ralismo, o inglês John Locke, no século XVII,
preocupava-se com a ênfase dada às carac-
terísticas intelectuais da educação inglesa.
Locke passa, então, a pregar uma educação
integral: intelectual, moral e física. Sobre
a educação física, Locke tinha uma visão
higienista, influenciada por sua formação
médica. Para ele, a prática de atividades fí-
sicas, inspirada nas concepções gregas de
educação, auxiliaria o processo de formação
do homem civilizado. O gentleman inglês
passaria necessariamente pela educação do
corpo3.
Percebemos que o pensamento sobre a edu-
cação física nos séculos XVIII, XIX e no início
do século XX se justifica a partir da educação
voltada para a saúde e para as habilidades
corporais. A ideia de educação corporal na
escola, com espaços e tempos definidos no
currículo, ganha destaque a partir do séc.
XX. Assim, a escola passa a ter a missão de
educar o intelecto, o corpo e a moral das
novas gerações no contexto da formação e
da consolidação dos Estados nacionais no
Ocidente. Observe-se que a instituição des-
sa disciplina no contexto escolar não se deu
sem embates no espaço contestado do cur-
rículo.
Hoje, podemos dizer que pensar a escola
com tempos e espaços voltados para edu-
cação do corpo e da expressividade dos alu-
nos se tornou quase um consenso. Vejamos
que os programas de ampliação da jornada
escolar no Brasil induzem a introdução de
atividades e de experiências que valorizam
a formação da expressividade e do corpo.
A escola não pode mais pensar a formação
dos alunos e das alunas apenas a partir de
saberes utilitários para a futura inserção
num imaginado mercado do trabalho. A so-
ciedade se tornou complexa, de modo que o
Educação Física Escolar: dilEmas E práticas
INTRODUÇÃO
Antonio Jorge Gonçalves Soares1
Edivaldo Góis Junior 2
1 Professor Associado da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-graduação em Educação. Pesquisador do CNPq. Consultor da série.
2 Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Consultor da série.
3 Cf. OLIVEIRA, Vítor Marinho de. Consenso e Conflito da Educação Física Brasileira. Campinas: Papirus, 1994.
5
mercado de trabalho e as ocupações trans-
formam-se rapidamente. Sem prescindir
da socialização de saberes heurísticos e/ou
utilitários, a educação escolar volta-se para
a formação de novas subjetividades num
mundo que questiona a hierarquia, as vio-
lências do passado e de hoje e as diferentes
formas de produção da desigualdade. Nessa
nova configuração cultural, a escola trans-
forma-se em meio às crises que perpassam o
currículo, a sociedade e a tradição. A Educa-
ção Física, enquanto disciplina escolar, tam-
bém procura uma nova identidade diante da
construção de novos acordos sobre o papel
da escola na contemporaneidade.
Nesse sentido, muitos debates sobre os ob-
jetivos dessa disciplina inflamaram o campo
a partir dos anos de 1980. Os profissionais
e intelectuais dessa área passaram a propor
objetivos educacionais para a Educação Físi-
ca escolar que permitam uma maior racio-
nalidade e uma adequação às novas deman-
das sociais e culturais entre seus saberes e
sua metodologia de ensino.
O objetivo desta série é debater os dilemas e
particularidades da Educação Física no espa-
ço escolar. Com isso, pretendemos fomentar
o debate sobre os objetivos específicos, mé-
todos e avaliação deste componente curri-
cular no espaço contestado do currículo.
UM POUCO DE HISTÓRIA
Inicialmente, o papel de educar o físico ca-
bia a instrutores que frequentavam cursos
especializados, a maioria deles em institui-
ções militares.
No século XVIII, a Educação Física foi in-
fluenciada pelos educadores, médicos e mi-
litares. Cada segmento oferece um ideário
que subsidia a sua prática, dando origem às
primeiras sistematizações de Educação Fí-
sica. Neste momento surgem, a pedido de
vários governos ou iniciativas individuais,
planos e métodos de Educação Física. A pro-
fissão começa a ser organizada.
Os exemplos mais conhecidos são os dos
Métodos Ginásticos europeus: o modelo
esportivo da Inglaterra; a ginástica sueca;
o nacionalismo do método alemão e o mé-
todo francês, que constituem as primeiras
teorias sobre a intervenção desta profissão.
Em pouco tempo, no século XIX, o ideal de
educação do corpo chega ao Brasil. Em 1810,
é criada a Academia Real Militar, com seu
treinamento baseado em teorias da exerci-
tação. Em 1851, com a Lei n. 630 de 17 de
setembro, o Governo Imperial incluía a gi-
nástica no ensino das escolas primárias4.
Contudo, sua prática foi iniciada no Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro, já em 18415.
4 Cf. DA COSTA, Lamartine. Formação Profissional em Educação Física, Esporte e Lazer. Blumenau: FURB, 1999.
5 Cf. CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando. Os exercícios gymnasticos no Collegio Imperial de Pedro Segundo (1841-1870). Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.
6
Em relação à Ginástica Escolar, Cunha Jú-
nior (2003) descreve que o Colégio Pedro II,
fundado em 1837 com o objetivo de oferecer
uma formação diferenciada à elite carioca
do século XIX, introduz no ensino público
fluminense as práticas da ginástica. Esse co-
légio oficial se diferenciou com uma forma-
ção moderna, que incluía em seu currículo
saberes que não faziam parte do currículo
dos outros colégios, como a música, o dese-
nho e a própria ginástica. O aluno formado
pelo colégio recebia o título de bacharel em
Letras, e poderia ingressar em qualquer cur-
so superior do país. O primeiro professor de
ginástica do Colégio Pedro II, em 1841, foi
Guilherme Luiz de Taube, contratado pelo
reitor Joaquim Caetano da Silva, médico for-
mado em Paris, que foi convencido pelos ar-
gumentos higienistas de Taube a introduzir
a ginástica no colégio. Outro argumento foi
o fato de os melhores colégios europeus já
terem adotado a prática de exercícios ginás-
ticos. Com isso, foi fixado o salário de Gui-
lherme de Taube em quatrocentos mil réis, o
menor salário do colégio, o que denota o pa-
pel complementar da área em relação às ou-
tras disciplinas da escola. Além disso, ele não
possuía o título de professor, era nomeado
como mestre, um título inferior na época6.
Em 1860, o método alemão é introduzido
no Brasil, trazido pelos imigrantes alemães.
Contudo, a profissão e a disciplina Educa-
ção Física não se generalizam no cenário
das escolas brasileiras; a introdução desta
nos currículos ocorria de forma isolada. Em
1882, Rui Barbosa propõe a obrigatoriedade
da Educação Física nas escolas, preocupado
com as condições de saúde das crianças bra-
sileiras.
Esse cenário só começará a ser transforma-
do na escola a partir do século XX. Em 1907, é
instalada a missão militar francesa, marcan-
do o início embrionário da Escola de Educa-
ção Física da Força Policial de São Paulo, o
mais antigo estabelecimento especializado
em todo país. Em 1922, por portaria do Mi-
nistério da Guerra, é criado o Centro Militar
de Educação Física, cuja proposta funda-
mental é dirigir, coordenar e difundir o novo
método de Educação Física, baseado no Mé-
todo Francês7. Ainda, nesta década, a preo-
cupação central das personalidades ligadas
à Educação Física era a criação de uma Es-
cola civil e profissional de Educação Física.
Na década de 1930, com o apoio das políti-
cas higienistas de saúde pública e a constru-
ção de uma ideologia nacionalista na políti-
ca do governo Getúlio Vargas, os ideais dos
instrutores de Educação Física ganham eco.
São criados periódicos especializados no as-
sunto por parte de editoras públicas e pri-
6 Cf. CUNHA JÚNIOR, Carlos Fernando. Os exercícios gymnasticos no Collegio Imperial de Pedro Segundo (1841-1870). Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.
7 Cf. CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus, 1988.
7
vadas e são publicados diversos livros sobre
a temática. Ainda nessa década, o governo
Getúlio Vargas oficializa o Método Francês
como o método oficial a ser seguido pelas
escolas brasileiras a partir do Regulamento
n. 7, que serviu de base para a intervenção
pedagógica da Ginástica no contexto escolar
em 1931. Em 1939, a Universidade do Brasil
(atual Universidade Federal do Rio de Janei-
ro) cria a Escola Nacional de Educação Físi-
ca e Desportos. O curso da Escola Nacional
tinha a duração de dois anos, e era baseado
nos ensinamentos da Pedagogia, da Medici-
na e da Ginástica Militar.
Até aqui podemos observar que a Educação
Física faz parte de um projeto educacional
de formação do “homem brasileiro” em
moldes semelhantes aos de Locke. Isto era
reforçado pela crescente influência do “mo-
vimento higienista” no Brasil8.
Na década de 1970, podemos destacar a in-
serção de importantes influências originá-
rias dos Estados Unidos: o novo Movimento
de Saúde. Sobre o novo Movimento de Saú-
de, a intervenção atém-se, principalmente,
aos fenômenos físicos que alteram as con-
dições de saúde e também estéticas do in-
divíduo. O interesse central desta vertente
é intervir sobre os determinantes biológicos
e comportamentais da saúde. Os aspectos
físicos-biológicos e suas metodologias são
os focos centrais dos seus estudos, que bus-
cam melhorar a condição de vida das pes-
soas. Estes “novos higienistas”, na verdade,
preocupam-se mais com a elaboração e a
divulgação de seus programas de saúde que
com a democratização dos mesmos. Esta
tendência tem início nos Estados Unidos, e
é retratada no livro de Michael Goldenstein,
Movement of Health.
Segundo Goldenstein (1992), o “movimento
de saúde” começa a ganhar forma na socie-
dade americana com um processo de medi-
calização. Alguns observadores têm descrito
o período depois da II Guerra Mundial como
o marco inicial da medicalização. A Educa-
ção Física se coloca no centro desta concep-
ção, tornando mais íntima sua relação com
a Saúde. Destaca-se que esse movimento
possui vozes nos debates curriculares da
Educação Física escolar na contemporanei-
dade.
A Educação Física escolar em plena Ditadu-
ra Militar (1964-1985) abandona a prática de
ginástica militar, sobretudo a francesa, e
passa a sofrer forte influência de educação
esportiva. A ideia de saúde é incorporada no
movimento esportivo, pois o lema passa a
ser esporte é saúde. A política governamen-
tal de Educação Física teve como principal
objetivo esportivizar a Educação Física es-
colar, adotando um modelo piramidal que
8 Cf. GÓIS JUNIOR, Edivaldo; LOVISOLO, Hugo. Descontinuidade e Continuidades do Movimento Higienista no Brasil do século XX. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 25, n.1, 2003.
8
via na escola a base de formação de atletas
de alto nível e de uma população saudável,
atlética e ativa. Essa política era condizente
com o ideário de que uma potência espor-
tiva era fruto de uma população saudável e
ativa. Não se pode esquecer que a imagem
do país também era divulgada no cenário in-
ternacional pelas vitórias esportivas. Desse
modo, o principal objetivo da Educação Fí-
sica escolar foi o desenvolvimento de apti-
dões esportivas, transformando a Educação
Física escolar de ginástica militar para um
treinamento esportivo.
Essa tendência de esportivização desenhava-
se antes da Ditadura Militar. Começou com
os diversos cursos ministrados no Brasil pelo
professor francês Auguste Listello, intro-
dutor do Método Desportivo Generalizado.
Porém, no Brasil, a esportivização da Educa-
ção Física ganhou contornos de treinamen-
to, tese que não era defendida por Listello,
que destacava o prazer na prática esportiva
em relação à ginástica com características
militares. Todavia, ninguém pensaria que a
Educação Física, ao incorporar o modelo pe-
dagógico do treinamento esportivo, estaria
indo ao encontro das demandas de prazer e
satisfação dos alunos.
Logicamente, os interesses da área de Edu-
cação Física tornaram-se comuns aos inte-
resses da política governamental, mas não
foram determinados pelos interesses ideoló-
gicos da ditadura, e sim pelos interesses dos
próprios profissionais que incutiram a ideia
do Esporte Lazer, a exemplo do que já era fei-
to na Europa. Com o PNED – Plano Nacional
de Educação Física e Desporto foi criada a
terceira área de atuação da Educação Físi-
ca, o Desporto de Massa, juntamente com
o Desporto estudantil e o Desporto de alto
nível. Observe-se que as justificativas desse
campo de conhecimento dentro e fora da
escola passavam, obviamente, por concilia-
rem os valores da saúde, do lazer, da discipli-
na e da vida ativa.
Embora a parte da interpretação historio-
gráfica da Educação Física aponte que esse
período foi fortemente manipulado pelos
interesses educacionais da ditadura, as pes-
quisas recentes indicam, através das vozes
dos professores reais que estavam na escola,
que o modelo do treinamento esportivo não
foi incorporado cegamente como modelo
pedagógico nas aulas de Educação Física.
Tais estudos relativizam a importância es-
tratégica da Educação Física escolar para a
consolidação do regime ditatorial, tal como
fez boa parte da historiografia da Educação
Física nas duas últimas décadas do séc. XX9.
Os anos de 1980 são apontados como o pe-
ríodo em que o consenso sobre o papel da
Educação Física é quebrado. O esporte não
9 Cf. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira. Educação Física Escolar e ditadura militar no Brasil (1968-1984): entre a adesão e a resistência. Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v. 25, n. 2, p. 9-20, jan. 2004.
9
é por si só educativo e sua prática não pode
ser vista como indicador de saúde numa so-
ciedade desigual e injusta, em síntese, essa
é a problematização produzida no campo na
época. Assim, o papel da Educação Física na
escola, seus objetivos específicos e metodo-
logias passam por um processo de revisão
e questionamento de seus efeitos na forma-
ção dos alunos.
As concepções educacionais da área não te-
riam os mesmos objetivos das concepções
ligadas ao Movimento de Saúde. Criam-se
propostas diferenciadas para a escola, por
vezes enfatizando a formação cultural e po-
lítica do educando, por outras, centradas no
aspecto motor do desenvolvimento humano
ou em interpretações da Psicologia da Edu-
cação, propondo uma educação cognitiva
através do movimento humano.
Configura-se um clima de debate, que trou-
xe para a formação do profissional questões
sociais, ampliando o currículo, visando aten-
der a uma formação geral que passava pela
Filosofia, pela Antropologia, pela Sociologia
e pela História. Observando a trajetória his-
tórica da Educação Física Escolar, é possível
defini-la, nas suas características atuais,
como sendo uma área educacional que não
mais se preocupa apenas com a formação
corporal do indivíduo durante sua formação
básica no período escolar.
As releituras da disciplina e sua autocrítica
carregam consigo os problemas da identi-
dade disciplinar no currículo escolar que,
por conseguinte, provocam o debate da sua
especificidade. Das primeiras iniciativas no
campo da Educação Física escolar brasilei-
ra no século XIX, em comparação com os
dias atuais, percebemos que a Educação Fí-
sica, como componente curricular, partici-
pa de forma mais integrada com o projeto
político pedagógico da escola. Esse campo
de conhecimento tem pensado os proces-
sos de escolarização das práticas corporais
em articulação com o movimento cultural
contemporâneo. Todavia, alguns dilemas
permanecem no imaginário dos professores
e alunos. A Educação Física é representada
pela comunidade escolar como disciplina
que incide sobre a formação cultural do alu-
no? Ou como atividade complementar que
pode auxiliar a construção de um ambien-
te prazeroso no cotidiano escolar, a forma-
ção de hábitos saudáveis e a socialização
de experiências esportivas ou de expressão
corporal? Os termos da questão anterior
são realmente antagônicos ou podem ser
conciliados em propostas pedagógicas? Em
relação à hierarquia da importância da área
para a formação do educando, qual é o lugar
da Educação Física no currículo escolar? Em
síntese, qual tem sido o papel da Educação
Física no projeto da escola e quais as possi-
bilidades que estão sendo construídas nesse
tempo e espaço curricular?
Essas indagações nos levam a alguns deba-
tes que serão apresentados nesta série. Os
10
três textos, apresentados a seguir, buscam
práticas inovadoras para as aulas de Edu-
cação Física, na tentativa de superar visões
e compreensões da disciplina como: recre-
ação funcional ao ambiente escolar; base
para produção de atletas de alto rendimen-
to; espaço exclusivo para reprodução de ati-
vidades ou exercícios que formem hábitos
de uma vida ativa. A Educação Física aqui
desenhada propõe que esse tempo e espaço
escolar sejam o lugar de experiências cor-
porais, de socialização de conhecimentos e
referências que auxiliem o aluno a pensar
de forma autônoma e crítica o esporte, as
danças, as lutas, a saúde, a estética, o con-
sumo e outras possibilidades de educação
do corpo presentes na contemporaneidade.
As práticas inovadoras da Educação Física só
podem ser efetivadas nos currículos pratica-
dos quando se tornam parte da gestão do
projeto pedagógico da escola.
TEXTOS DA SÉRIE EDUCAÇÃO FÍSICA ESCOLAR: DILEMAS E PRÁTICAS10
A série Educação Física escolar: dilemas e práticas discute a representação da disciplina pela co-
munidade escolar, ora incidindo sobre a formação cultural do aluno, ora como atividade com-
plementar que pode auxiliar a construção de um ambiente prazeroso e promover a formação
de hábitos saudáveis e a socialização de experiências esportivas ou de expressão corporal. Nos
cinco programas da série, pretende-se discutir propostas pedagógicas que busquem contem-
plar os dilemas que envolvem o trabalho com a Educação Física no ambiente escolar e, ainda,
avaliar a importância da área para a formação do educando e refletir sobre o lugar da Educação
Física no currículo.
TEXTO 1: DILEMAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO COTIDIANO
O primeiro texto da série, de autoria do professor Valter Bracht, faz um diagnóstico deste
componente curricular no universo da escola. Questiona a efetiva relação da Educação Física
com os projetos pedagógicos, observando como se dão os processos de desinvestimento dos
docentes e as práticas inovadoras da Educação Física na escola. As práticas inovadoras são
10 Estes textos são complementares à série Educação Física escolar: dilemas e práticas, com veiculação no programa Salto para o Futuro/TV Escola, de 26/09/2011 a 30/09/2011.
11
caracterizadas por uma concepção de Educação Física em que os conteúdos são tratados e
selecionados a partir do conceito da Cultura Corporal de Movimento. Tal conceito tem duas
dimensões: a primeira identificada pelo saber fazer, e a segunda pelo saber sobre o fazer, obje-
tivando a formação crítica e autônoma do aluno em relação às possibilidades de prática, refle-
xão e consumo do esporte, do lazer, da luta, do exercício físico e das demais possibilidades de
educação corporal em nossa cultura. O texto se propõe a apresentar e discutir alguns dilemas
e desafios que a disciplina escolar Educação Física vem enfrentando nas últimas décadas, para
exatamente afirmar-se como uma disciplina escolar plenamente integrada aos projetos peda-
gógicos das escolas. Neste contexto, caracteriza as práticas inovadoras que podem contribuir
para essa afirmação e discute, também, a existência de práticas de desinvestimento pedagógi-
co que precisam ser superadas.
TEXTO 2: O QUE SE ENSINA E O QUE PODE SER ENSINADO
O segundo texto da série, de autoria do professor Mauro Betti, discute as possibilidades de
estruturação de uma proposta curricular para a Educação Física escolar. O autor propõe a re-
novação dos conteúdos tradicionais embasados nos jogos, esportes, lutas, danças e ginásticas
para um universo ampliado de experiências inovadoras, como na apropriação da Cultura Cor-
poral de Movimento a partir da relação dos conteúdos com temas, quais sejam: as Mídias; La-
zer e Trabalho; Corpo, Saúde e Beleza; Organismo Humano e Movimento; Contemporaneidade.
O texto apresenta questões como essas, entre outras: Qual é o seu corpo de conhecimentos na
contemporaneidade? Quais os conhecimentos que atravessam a educação do corpo em nossa
sociedade que podem ser pedagogizados nas aulas de Educação Física?
TEXTO 3: TEMAS E EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS
O terceiro texto, da professora Marta Corrêa Gomes, descreve as possíveis relações e possibili-
dades pedagógicas para tratar os megaeventos esportivos. Na mesma perspectiva dos autores
anteriores, a professora aponta que a Educação Física escolar deve tratar os conhecimentos e
as formas de organização do ensino de modo que possibilitem a emancipação dos alunos. O
texto apresenta como o tema dos Jogos Olímpicos ou da Copa do Mundo pode ser tratado me-
todologicamente nas aulas de Educação Física, na direção da compreensão crítica e ativa do es-
tudante frente à contemporaneidade desses grandes eventos esportivos no contexto brasileiro.
Os textos 1, 2 e 3 também são referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4 – Outros olhares
sobre Educação Física escolar e do PGM 5: Educação Física escolar em debate.
12
BIBLIOGRAFIA
Dentre as inúmeras publicações sobre ensi-
no da Educação Física, destacamos algumas:
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Editora Phorte: Série “Educação Física Esco-
lar”
Editora Papirus: Série “Educação Física/Mo-
tricidade”
PÁGINAS DE INTERESSE
Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte
. www.cbce.org.br
Centro Esportivo Virtual
. www.cev.org.br
Revista Movimento
. www.ufrgs.br/revistamovimento
Revista Brasileira de Ciências do Esporte
. www.rbceonline.org.br
Revista Motriz
. www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.
php/motriz
14
INTRODUÇÃO
Após a crítica à concepção tradicional de
Educação Física (EF) pelo movimento reno-
vador da década de 19802, a expectativa era
a de que a prática pedagógica na EF escolar
vivesse novos tempos e que a EF se afirmas-
se no currículo escolar como uma disciplina
responsável pela transmissão de uma impor-
tante parcela da cultura humana. E, ainda,
que ela saísse da condição de mera ativida-
de destinada a apenas divertir os alunos ou,
então, desenvolver neles a aptidão física e
as habilidades esportivas (a monocultura do
esporte), e passasse a introduzir os alunos
no mundo da Cultura Corporal de Movimen-
to, de maneira que os mesmos adquirissem
não só o saber fazer corporal (apropriando-
se das diferentes práticas ou técnicas corpo-
rais), mas, também, que fossem capazes de
situar criticamente essas práticas nas suas
vidas e na sociedade em que vivem, tornan-
do-se assim construtores, ao invés de meros
consumidores dessa cultura.
Por várias razões, que não é possível discu-
tir aqui, o que presenciamos de lá para cá
foi, sim, um certo declínio da EF tradicio-
nal, mas, por outro lado, a não construção
concomitante de uma “nova prática”, o que
vem sendo caracterizado por Fensterseifer e
González (2010) como uma situação entre o
“não mais e o ainda não”. Em muitos casos
não temos mais a EF tradicional (com seu
ensino dos esportes visando às competições
escolares)3, mas também ainda não temos
uma perspectiva crítica de EF largamente
consolidada nas práticas pedagógicas esco-
TEXTO 1
DILEMAS DA EDUCAÇÃO FÍSICA NO COTIDIANO
dilEmas no cotidiano da Educação Física Escolar: EntrE o dEsin-vEstimEnto E a inovação pEdagógica
Valter Bracht 1
1 Coordenador do Laboratório de Estudos em Educação Física - LESEF/CEFD/UFES.
2 Durante os anos 1980, no contexto de uma ampla movimentação social e política da sociedade brasileira em prol da sua democratização, constituiu-se também no âmbito da comunidade da Educação Física brasileira um movimento, posteriormente denominado de movimento renovador, que na sua vertente progressista fez uma forte crítica à função atribuída até então à Educação Física no currículo escolar. Decorre dessa crítica uma mudança radical do entendimento do conteúdo da Educação Física.
3 Embora estejamos vivendo um certo renascer dessa perspectiva, muito em função do “momento esportivo” que o país está vivendo devido à realização no Brasil nos próximos anos de alguns megaeventos esportivos (Copa do Mundo de Futebol e Jogos Olímpicos).
15
lares. Ou seja, parece que vivemos um hia-
to. Outra leitura possível4 do atual momento
que vive a EF é a de que, em função da inexis-
tência hoje de uma “EF oficial”5, instalou-se
um quadro de maior pluralidade de visões de
EF, o que é visto por alguns como algo negati-
vo, com o argumento de que assim “cada um
faz o que quer!” Entendo, ao contrário, que é
preciso não apenas conviver e respeitar essa
pluralidade como condição de uma socieda-
de democrática6, como compreendê-la como
produtiva, como fator de criatividade.
Em termos legais, a EF no Brasil tem um lu-
gar reconhecido no currículo das escolas de
Ensino Fundamental e Médio, embora isso
não elimine de imediato seu crônico défi-
cit de legitimidade7. Mas, sobre sua contri-
buição, sobre a forma que vai assumir (se,
por exemplo, vai assumir as características
presentes nas demais disciplinas escolares),
persistem muitas dúvidas e controvérsias.
Se na própria EF existem dúvidas a respeito,
no âmbito do campo pedagógico mais geral
(entre diretores de escola e coordenadores
pedagógicos, por exemplo) essas dúvidas
(e mesmo o desconhecimento) são ainda
maiores. Enquanto isso, a EF oscila entre
práticas inovadoras e de desinvestimento
pedagógico.
ENTRE A INOVAÇÃO E O
DESINVESTIMENTO
Nesse contexto, encontramos nos cotidia-
nos escolares práticas pedagógicas em EF
que ainda podem ser caracterizadas como
da EF tradicional, mas também dois outros
“extremos” vêm ganhando algum terreno e
importância. Trata-se, por um lado das prá-
ticas inovadoras (muitas vezes orientadas
na produção do chamado Movimento Reno-
vador), mas, por outro, de práticas de de-
sinvestimento pedagógico, ou seja, a prática
da “não-aula”, do mero ocupar as crianças
com uma bola sem intervenção pedagógica
intencional e efetiva.
O que aqui chamamos de práticas inovado-
ras são aquelas que trabalham com a pers-
pectiva de que a EF, assim como as outras
disciplinas curriculares, possui um conheci-
mento relevante socialmente e que é dever
da escola fazer com que as novas gerações
4 Nunca é demais observar que estamos falando da prática pedagógica em EF escolar num país extremamente heterogêneo, de maneira que essas tentativas de caracterização do que acontece nesse âmbito são sempre parciais e limitadas e, claro, não traduzem toda a realidade.
5 Chamamos de “EF oficial” a definição de uma determinada visão de EF definida por lei (no regime ditatorial e tecnocrático da Ditadura Militar pós 1964) como foi o caso do Decreto nº 69.450, de novembro de 1971, que definia os seus objetivos, conteúdos e formas de avaliação.
6 Como sabemos, o pensamento único não coaduna com democracia.
7 Existe uma hierarquia entre as disciplinas escolares, sendo que a Educação Física (juntamente com Artes, e mesmo, Inglês) situa-se entre as consideradas menos importantes pela cultura escolar.
16
dele se apropriem. Nesse caso, trata-se do
conhecimento que pode ser identificado
com o conceito de cultura corporal de mo-
vimento. O conhecimento ou o saber de que
trata a EF possui um duplo caráter: por um
lado, trata-se do saber fazer expresso nas
diferentes práticas corporais que compõem
a cultura corporal de movimento e, por ou-
tro, o saber sobre essas mesmas práticas,
portanto, um saber também de ordem con-
ceitual. No tocante ao saber fazer ou ao en-
sino das diferentes práticas corporais que
compõem nossa cul-
tura corporal de mo-
vimento, as práticas
inovadoras procuram
superar o monopólio
do esporte, buscando
propiciar aos alunos o
acesso às danças, aos
diferentes jogos po-
pulares, às diferentes
formas de ginástica,
aos esportes ditos radicais, etc. Elemento
importante também é o método de ensino
que busca uma gestão mais democrática das
aulas, solicitando uma participação mais
efetiva dos alunos nas decisões que confor-
mam o evento social aula, fundamental para
o desenvolvimento da autonomia dos sujei-
tos. No tocante ao saber sobre as práticas
corporais, esses professores buscam propi-
ciar ao aluno o acesso a conhecimentos que
permitam com que ele compreenda aquela
prática corporal como elemento de nossa
cultura. Nesse bojo encontram-se conhe-
cimentos sobre a fisiologia dos exercícios,
implicações das práticas corporais na saúde
(por exemplo: conhecimentos sobre o uso
de anabolizantes nas práticas corporais), so-
bre as relações dessas práticas com o lazer,
sobre as implicações políticas e econômicas
de fenômenos como o esporte, etc.
Uma questão que logo se coloca para essa
nova perspectiva é a identificação, seleção,
organização e siste-
matização dos con-
teúdos da Educação
Física ao longo dos
nove anos do Ensino
Fundamental e dos
três anos do Ensino
Médio.
Para a seleção dos
conteúdos, é pre-
ciso estabelecer critérios, já que a escola
é necessariamente seletiva em relação aos
conteúdos culturais. A seguir, apresentamos
o exemplo de seleção de conteúdos de uma
escola de Belo Horizonte, divulgado por Sil-
veira e Pinto (2001). Os autores partiram,
inicialmente, da delimitação dos conteúdos
proposta pelo Coletivo de Autores (1992):
Jogos, Danças, Esportes, Ginásticas e Lutas,
compondo um quadro detalhado dessas prá-
ticas corporais, como mostra o quadro 1:
Para a seleção dos
conteúdos, é preciso
estabelecer critérios, já que
a escola é necessariamente
seletiva em relação aos
conteúdos culturais.
17
Esses conteúdos são, então, distribuídos nas
diferentes séries ou anos do ensino (ver SIL-
VEIRA e PINTO, 2001). Outra possibilidade de
identificar e organizar o conhecimento da
EF nas diferentes séries ou anos é a desen-
volvida por González e Fraga (2009) e que
constitui os Referenciais Curriculares da EF
da rede estadual de educação do estado do
Rio Grande do Sul.
Além dessas possibilidades e ações e da im-
portância de a EF assumir efetivamente o
estatuto de uma disciplina escolar, ela vive
nesse processo alguns dilemas, como o que
está relacionado ao grande paradoxo da re-
lação da EF com a escola atual. As pesquisas
têm mostrado que quando pedimos aos alu-
nos da Educação Básica para elencar, hierar-
quizando, de quais disciplinas/matérias eles
mais gostam, é muito frequente a EF estar
colocada no topo da preferência dos alu-
nos. Por outro lado, quando pedimos para
que esses mesmos alunos hierarquizem as
disciplinas mais importantes da escola, a EF
tende a figurar (junto com Inglês e Artes)
no final da lista. Ou seja, o que os alunos
mais gostam é aquilo que eles consideram
menos importante (ou o que a cultura es-
colar considera menos importante?). Como
a escola e os gestores educacionais têm li-
dado com esse paradoxo? Suspeito que a EF
é, na verdade, tolerada pela cultura escolar
Quadro 1 – Relação das práticas que compõem a cultura corporal de movimento e que foram
selecionadas para conformar o conteúdo das aulas de Educação Física nas diferentes séries
do Ensino Fundamental
JOGOS DANÇA ESPORTE GINÁSTICA LUTAS
•Brincadeiras
de rua•Cantigas de roda • Futebol
•Ginástica de
academia• Judô
•Brinquedos e
sucata
•Dança regional,
folclórica e
internacional
•Voleibol •Atletismo •Karatê
• Jogos de salão
derivados dos
esportes
•Dança de salão •Handebol•Ginástica
rítmica•Cabo de guerra
• Jogos de raquete
e/ou peteca
• Expressão
corporal•Basquete
•Ginástica
•olímpica•Braço de ferro
• Jogos
internacionais
•Ginástica
acrobática
•Capoeira
(também abordada
como jogo e dança)
•Ginástica de
condicionamento
18
exatamente porque a EF (e o esporte esco-
lar) é fator de uma mobilização dos alunos
para a vida da escola que, sem ela, torna-
se muito mais enfadonha, chata. E como a
própria EF tem lidado com isso? Muitos de
nós, professores de EF, temos nos valido da
informação de que os alunos gostam muito
da EF para justificar sua presença e conferir
importância à EF na escola. Outros tomam a
segunda parte da avaliação dos alunos, a de
que estes não a con-
sideram uma disci-
plina importante,
para tentar mudar a
EF no sentido de ela
assumir as caracte-
rísticas comuns das
disciplinas conside-
radas importantes.
Esses últimos utili-
zam-se de estraté-
gias como: aula teó-
rica em sala de aula,
provas e trabalhos
teóricos/escritos;
solicitação de tarefas de casa, entre outras.
Ou seja, valem-se de instrumentos larga-
mente utilizados pelas disciplinas escolares
consolidadas (Matemática, Português, Ciên-
cias...).
Obviamente que o objetivo não pode ser
simplesmente inverter o paradoxo – que
os alunos passem a considerá-la como a
mais importante, ao custo de torná-la a
menos preferida. A pergunta – ou o desafio
– é como construir uma prática ao mesmo
tempo prazerosa, que continue motivando
os alunos a frequentar a escola e que possua
um conteúdo de aprendizagem considerado
relevante pela cultura escolar. A esse res-
peito entendemos que existem discussão e
conhecimento acumulados na área para re-
alizar essa ideia (na bibliografia comentada
indicamos dois trabalhos que ajudam nesse
sentido).
Entendemos, não
obstante, que fir-
mar-se plenamen-
te como disciplina
escolar não pode
significar, no caso
da EF, assumir total-
mente as caracterís-
ticas das disciplinas
escolares, pois isso
pode ferir elemen-
tos que conferem à
EF sua especificida-
de e que, em parte, são responsáveis pelas
demonstrações de apreço dos alunos. Isso
pode ocorrer na medida em que, em bus-
ca de legitimidade, passa-se, por exemplo,
a desenvolver um grande número de “aulas
teóricas” em sala de aula e trabalhos escri-
tos, muitas vezes sem o menor sentido, pois
reduzidos ao exercício de cópia ou descon-
textualizados em relação ao conteúdo prin-
cipal.
A pergunta – ou o desafio
– é como construir uma
prática ao mesmo tempo
prazerosa, que continue
motivando os alunos a
frequentar a escola e que
possua um conteúdo de
aprendizagem considerado
relevante pela cultura
escolar.
19
Além disso, é preciso dizer que a EF, em fun-
ção da especificidade de seus conteúdos,
pode participar da vida da escola para além
do currículo formalizado em disciplinas.
Pode enriquecer a vida cultural dos alunos
e da escola a partir de ações/atividades para
além do previsto na “caixa” dos conheci-
mentos disciplinares. A realização de jogos
escolares ou festivais de cultura e, mais es-
pecificamente, de cultura corporal de movi-
mento (danças, jogos populares, etc.) pode
movimentar e motivar a participação ativa
de estudantes, conferindo um clima positivo
à escola. O cuidado aqui é para que essas ati-
vidades estejam efetivamente vinculadas ao
projeto pedagógico da escola e às atividades
desenvolvidas nas diferentes disciplinas. O
risco, no caso da EF, é o de haver uma con-
tradição entre o que se desenvolve na dis-
ciplina e o que se realiza nessas atividades
complementares.
Mais uma vez um elemento chave para esse
processo está ligado ao Esporte (já que a EF
foi fortemente esportivizada). E a questão é
mais premente, porque estaremos vivendo,
nos próximos anos, uma avalanche de mega-
eventos esportivos no nosso país. O grande
risco é a escola ser mais uma vez instrumen-
talizada pelo sistema esportivo, mais especi-
ficamente, pela indústria esportiva. Joga-se
aqui com algo extremamente sedutor, que é
a possibilidade de (pseudo)valorização da EF,
processo que já conhecemos (estudado na
EF). Qual o problema? É exatamente utilizar
a escola para a identificação de talentos es-
portivos e de construção de um grande con-
tingente de consumidores, sem que isso sig-
nifique formação cultural de qualidade para
os alunos, que é o primeiro papel da escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os professores inovadores, muitas vezes, se
defrontam com uma cultura escolar de EF
que resiste a mudanças. Uma dessas resis-
tências está relacionada ao fato de que as
aulas de EF são vistas pelos alunos não como
um espaço de aprendizagens significativas e,
sim, como um espaço de mero divertimento
(por isso gostam da EF, mas não a valorizam
quando o assunto é “sério”). Por outro lado,
o próprio professor inovador precisa lançar
mão de saberes e conhecimentos que exi-
gem dele uma formação cultural bastante
ampla. O que se pode observar nas pesqui-
sas é que os professores inovadores não se
limitam, em termos de acervo cultural, ao
fenômeno esportivo, o que lhes possibilita
tematizar outros elementos da cultura cor-
poral de movimento.
Mas, como dissemos no início, também ga-
nha volume uma situação na prática pedagó-
gica da EF nas escolas que podemos caracte-
rizar como de desinvestimento pedagógico.
Esses professores tendem a ser caracteri-
zados pejorativamente como professores
“rola bola”. É preciso não cair no simplismo
20
da mera denúncia ou culpabilização desses
professores. O fenômeno é bem complexo e
envolve uma série de fatores. A própria falta
de reconhecimento da disciplina escolar EF
e, consequentemente, do trabalho dos pro-
fessores de EF é um dos fatores que levam
os mesmos a desinvestir. Assim, é preciso
um grande esforço no âmbito dos proces-
sos de formação inicial e continuada e das
políticas públicas para a EF para que esses
professores tenham elementos para ressig-
nificar a prática pedagógica da EF e, com
isso, alcançar o reconhecimento social que
os leve, então, a novamente investir na sua
prática pedagógica.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA
CAPARROZ, F. E. Entre a educação física na es-
cola e a educação física da escola. 3. ed. Cam-
pinas: Autores Associados, 2007. (Este livro
trata do movimento renovador da EF brasi-
leira, analisando o contexto de sua consti-
tuição e, também, os impasses e possibilida-
des pedagógicas que dele derivaram.)
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia de en-
sino da educação física. São Paulo: Cortez,
1992. (Este livro foi a primeira tentativa de
sistematizar uma proposta pedagógica críti-
ca para a EF brasileira derivada do chamado
Movimento Renovador.)
GONZÁLEZ, Fernando Jaime; FRAGA, Alex
Branco. Referencial Curricular de Educação
Física. In: RIO GRANDE DO SUL. Secretaria
de Estado da Educação. Departamento Pe-
dagógico (Org.). Referenciais Curriculares
do Estado do Rio Grande do Sul: linguagens,
códigos e suas tecnologias: arte e educação
física. Porto Alegre: SE/DP, 2009. v. 2, p. 112-
181. (O texto completo está disponível em
<www.educacao.rs.gov.br/pse/html/refer_cur-
ric.jsp?ACAO=acao1> e representa uma pro-
posta bastante avançada do que pode ser
a Educação Física como disciplina escolar.
Essa proposta é particularmente importante
porque sistematiza também o conhecimen-
to que a Educação Física pode e deve trans-
mitir sobre as práticas corporais.)
SILVEIRA, G. C. F. da; PINTO, J. F. Educação
física na perspectiva da cultura corporal:
uma proposta pedagógica. Revista Brasilei-
ra de Ciências do Esporte. v. 22, n.3, p. 137-
150, maio 2001. (Este texto é uma síntese de
uma proposta de currículo de Educação Fí-
sica de uma escola de Belo Horizonte/MG,
desenvolvida por um conjunto de professo-
res, também na perspectiva de ressignificá-
la como disciplina escolar.)
21
TEXTO 2
O QUE SE ENSINA E O QUE PODE SER ENSINADO
a pEdagogização dos contEúdos da Educação Física: tradição E rEnovação
Mauro Betti 1
Softbol, badminton, críquete, luta greco-
romana, pelota basca, hóquei, taekwondo
- modalidades esportivas que foram ou são
disputadas nos Jogos Olímpicos de Verão, o
evento esportivo de maior repercussão na
história da humanidade, e que em 2016 terá
no Rio de Janeiro/Brasil sua sede. Bilhões de
pessoas em todo o mundo tomaram ou to-
marão contato com essas e outras modali-
dades esportivas por meio da televisão.
E se um aluno perguntar ao seu professor
de Educação Física: “O que é water polo?”,
estará ele preparado para responder? A per-
gunta não é apenas hipotética, ela de fato
foi feita por um aluno, conforme me relatou
anos atrás um professor de uma pequena ci-
dade do interior do estado de São Paulo.
A enorme capacidade das mídias atuais de
produzir, armazenar e distribuir informa-
ções – que além dos meios tradicionais (te-
levisão, rádio, jornal etc.) incluem a inter-
net, o telefone celular, ipod, bluetooth etc.
– coloca uma nova situação para a escola,
incluindo a Educação Física: o que Orozco-
Gomez (1997) denominou “aprendizagem
antecipatória”. Quer dizer, crianças e jovens
tomam contato precocemente com con-
teúdos, assuntos, temas, que serão depois
objeto dos currículos escolares. Do que es-
tamos falando no caso da Educação Física?
De regras, táticas e técnicas de modalidades
esportivas, relações entre exercício físico,
saúde, emagrecimento e nutrição, modelos
e padrões de beleza corporal, aspectos his-
tóricos, políticos e econômicos do esporte,
dentre outros temas, encontrados, inclusi-
ve, em embalagens de produtos alimentí-
cios e em peças publicitárias.
Todavia, é importante observar que o es-
porte não é apresentado prioritariamente
pelas mídias como possibilidade de exerci-
tação sistemática e intencional da motrici-
dade (como “prática”), mas como consumo
1 Professor Adjunto do Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP) - campus de Bauru. Doutor em Filosofia da Educação pela UNICAMP.
22
de imagens e informações. Quer dizer, por
meio do esporte, as mídias (em especial a
TV) vendem a si próprias e a uma infinidade
de produtos e serviços.
É também relevante notar que a mesma
facilidade de acesso às informações permi-
te que adentrem a escola novas práticas e
significações, em geral ligadas às culturas
infanto-juvenis: esportes radicais, gêneros
musicais, danças, jogos e brinquedos do mo-
mento etc. Uma das características de al-
gumas dessas manifestações corporais é sua
efemeridade: aparecem e desaparecem com
rapidez. Mas outras permanecem, tornam-
se “clássicas” e , como nos casos do surfe
e do skate (antes símbolos de rebeldia e de
afirmação de valores contra-hegemônicos
de grupos jovens), tornam-se objeto do pro-
cesso de esportivização2, assim como algu-
mas manifestações rítmicas (músicas, dan-
ças) são apropriadas pela indústria cultural.
A cultura corporal de movimento3, senão no
plano da prática ativa, ao menos no plano
do consumo de informações e imagens, tor-
nou-se publicamente partilhada na socieda-
de contemporânea.
Essa situação gera um problema pedagógico
para a Educação Física, já que o currículo es-
colar necessariamente deve selecionar cer-
tos conteúdos. Nesse cenário, como aten-
der, por exemplo, aos critérios de relevância
social do conteúdo, propostos nos Parâme-
tros Curriculares Nacionais do Governo Fe-
deral (BRASIL, 1997, 1998)? Quem define o
que é relevante? Os especialistas, os alunos,
a comunidade?
Partir da cultura local, como proposto por al-
guns, não parece contemplar a complexida-
de do mundo contemporâneo, caracterizado
pela dialética local-global e pela incorpora-
ção, no repertório cultural local, de desejos,
imagens, objetos, representações, as quais,
além de tenderem a ser globais, nem sempre
se traduzem em práticas “físicas”, e podem
situar-se nos planos da virtualização e do
imaginário. Por exemplo, podemos dizer que
o futebol (de campo) não é parte da cultura
local de algum bairro qualquer, em qualquer
cidade brasileira, porque lá não há campos
de futebol disponíveis para a prática dos
moradores? Ou se grupos aficionados pela
prática de basquetebol, ou do tchoukball, ou
do rugby, acompanham as modalidades pela
internet, e, vindos de vários locais, reúnem-
se aos finais de semana para jogar em um
parque público ou instituição privada, cabe-
ria falar em “cultura local”? Parece-nos mais
adequado falar, então, no repertório cultural
dos alunos, que não guarda necessariamen-
2 Por “esportivização” entendemos a assimilação das características, valores e sentidos do sistema esportivo formal-federativo, conforme Betti (1991).
3 Por “cultura corporal de movimento” entendemos, conforme Betti (2001, 2009a), as formas culturais que vêm sendo historicamente construídas mediante o exercício sistemático e intencionado da motricidade humana – jogo, esporte, ginásticas, atividades rítmicas/danças, e lutas.
23
te relações diretas com o local (no sentido
geográfico).
Por outro lado, existe uma tradição oriunda
da Educação Física como área pedagógico-
profissional. Ensinar “jogos e brincadeiras”,
“esportes”, “lutas”, “danças” e “ginásticas”
é uma tarefa associada pelas pessoas, embo-
ra não com exclusividade, aos profissionais
da área, incluindo os professores de Educa-
ção Física nas escolas. A noção de “exercício
físico”4 é também associada à tradição da
Educação Física.
Existe hoje certo
consenso na litera-
tura especializada
de que jogo, esporte,
ginástica, luta e dan-
ça são os conteúdos
da Educação Física
na escola. Como
estas são manifes-
tações da cultura corporal de movimento
atravessadas por diversos valores e sentidos
(ligados à saúde, ao lazer, à espetaculariza-
ção, à moralidade etc.), bem como presen-
tes em diversas dimensões sociais (educa-
cionais, econômicas, políticas etc.), o que a
Educação Física como disciplina escolar faz
é selecionar e tratar pedagogicamente algu-
mas possibilidades daquelas manifestações,
a partir de certas intencionalidades educa-
cionais explícitas ou implícitas, que mudam
conforme os contextos históricos.
Mas também a tradição da Educação Físi-
ca deve renovar-se, sob risco de desatuali-
zar-se diante de novos valores, sentidos e
práticas no âmbito da cultura corporal de
movimento. Como poeticamente ensina a
frase atribuída ao escritor francês Marcel
Proust (1871-1922), “a verdadeira viagem da
descoberta não consiste em procurar no-
vas paisagens, mas
em ver com novos
olhos”, as concep-
ções e práticas tra-
dicionais do jogo,
esporte, ginástica,
luta e dança tam-
bém parecem não
dar mais conta das
transformações da
cultura contemporânea. E o que há de novo
na cultura corporal de movimento dos nos-
sos tempos? Vejamos:
• O corpo é linguagem e mercadoria: vende
a si próprio (belo, “malhado”, magro...) e
outras mercadorias (cosméticos, cirur-
gias, regimes, “métodos” de exercitação
Existe hoje certo consenso
na literatura especializada
de que jogo, esporte,
ginástica, luta e dança são
os conteúdos da Educação
Física na escola.
4 Entendemos “exercício físico” como uma subcategoria de Atividade Física, que se caracteriza por ser planejado, estruturado, repetitivo e proposto para aumentar ou manter um ou mais componentes da Aptidão Física (MONTEIRO; GONÇALVES, 1994).
24
física); é suporte para a impressão de sig-
nos (tatuagens, piercing, escarificações)
que expressam as singularidades e histó-
rias de pessoas e grupos.
• O esporte, antes que uma exercitação in-
tencional e sistemática da motricidade, é
consumo de imagens e informações tele-
visivas, é “falação” (quer dizer, as pesso-
ais mais falam sobre o esporte do que o
praticam ), conforme a expressão de Eco
(1984) .
• Estilos de dança, associados a gêneros mu-
sicais (street-dan-
ce, por exemplo)
são manifesta-
ções privilegiadas
para a expressão
de valores e sen-
tidos próprios às
culturas jovens.
• Novas práticas
corporais (streetball ou basquete de rua;
parkour; esportes de aventuras; as chama-
das “práticas corporais alternativas”, seja
as originadas na tradição oriental, como
tai-chi-chuan e a ioga, ou ainda as “antigi-
násticas”), que questionam os princípios
e valores das manifestações tradicionais.
• A associação do jogo, do esporte e da dan-
ça com as tecnologias do virtual (videoga-
mes de console ou on-line, “tapetinho” de
dança, Wii games).
• A valorização da ginástica em suas várias
formas (musculação, localizada, hidrogi-
nástica) como exercício físico, objetivan-
do emagrecimento, definição ou hiper-
trofia muscular e melhoria da condição
cardiovascular, “con-funde” (quer dizer,
funde e confunde) modelos de beleza de
um lado, e de saúde/fitness de outro (BET-
TI, 2004).
Como consideram Betti et al. (2010, p. 118) os
alunos, ao participarem de outros espaços e
tempos socioculturais não-escolares, e ao
interagirem com as
mídias e com seus
pares, “acessam e
compartilham in-
formações, formam
valores e constroem
comportamentos
em sintonia com os
temas e questões do
mundo contempo-
râneo, os quais, muitas vezes, são ignorados
pela tradição escolar, ou a confrontam”. Por
isso, prosseguem aqueles autores, a Educa-
ção Física deve “propiciar aos alunos opor-
tunidades para a identificação, decodifica-
ção e compreensão desses temas, à luz da
pedagogização específica que leva a cabo”
(BETTI et al., 2010, p. 119).
A tradição da Educação Física precisa ser
renovada pelos sentidos, valores e práticas
que emergem da dinâmica sociocultural.
A tradição da Educação
Física precisa ser renovada
pelos sentidos, valores e
práticas que emergem da
dinâmica sociocultural.
25
Tal fenômeno foi captado pelas Orientações
Curriculares do Ensino Médio do Governo
Federal (BRASIL, 2006), e por inúmeras e re-
centes propostas curriculares de Educação
Física para o Ensino Fundamental e Médio
em todo o Brasil, dentre as quais destaca-
mos os casos dos estados de Minas Gerais,
São Paulo e Rio Grande do Sul5.
Vamos nos deter aqui no exemplo da Propos-
ta Curricular de Educação Física do Estado
de São Paulo (SÃO PAULO, 2008), implemen-
tada a partir do ano de 2008 na rede pública
do Ensino Fundamental (a partir da 5ª série
ou 6º ano) e Ensino Médio.
A referida proposta curricular (doravante
designada apenas “PPC-EF”) sistematiza os
conteúdos a partir de um eixo de conteúdos,
definido pela tradição da Educação Física: o
jogo, o esporte, a ginástica, a luta e a ati-
vidade rítmica. Este eixo interage com um
eixo temático, que abrange temas considera-
dos “atuais e relevantes na sociedade” (SÃO
PAULO, 2008, p. 46):
Organismo Humano e Movimento: trata das
relações entre organismo humano,
exercício físico e saúde, com atenção
nas capacidades físicas, exigências das
tarefas cotidianas, postura, obesidade
e emagrecimento, doping e anaboli-
zantes .
Corpo, Saúde e Beleza: trata de doenças re-
lacionadas ao sedentarismo e dos
padrões de beleza corporal, que em
associação com produtos e práticas
alimentares e de exercício físico “colo-
cam os jovens na ‘linha de frente’ dos
cuidados com o corpo e a saúde” (SÃO
PAULO, 2008, p. 46).
Contemporaneidade: trata das transforma-
ções socioculturais experimentadas
pelo mundo atual, em especial o in-
cremento do fluxo de informações, na
medida em que “influencia os concei-
tos e as relações que as pessoas man-
têm com seus corpos e com as outras
pessoas, gerando, por vezes, reações
preconceituosas em relação a diferen-
ças de sexo, etnia, características físi-
cas, dentre outras” (SÃO PAULO, 2008,
p. 47).
Mídias: trata da influência das mídias sobre
a percepção, valoração e construção
das manifestações da cultura corporal
de movimento “muitas vezes atenden-
do a modelos que apenas dão supor-
te a interesses mercadológicos e que
5 Estas propostas curriculares podem ser encontradas, respectivamente, nos seguintes endereços eletrônicos: <http://crv.educacao.mg.gov.br>
<http://www.rededosaber.sp.gov.br/portais/Portals/18/arquivos/Prop_EDF_COMP_red_md_20_03.pdf>
<http://www.educacao.rs.gov.br/pse/html/refer_curric.jsp?ACAO=acao1>
26
precisam ser submetidos à análise crí-
tica” (SÃO PAULO, 2008, p. 47).
Lazer e Trabalho: trata das possibilidades
de incorporação de manifestações da
cultura corporal de movimento ao
lazer no “tempo escolar e posterior
a ele, de modo autônomo e crítico”;
assim como “a compreensão da im-
portância do controle sobre o próprio
esforço físico e o direito ao repouso
e lazer no mundo do trabalho” (SÃO
PAULO, 2008, p. 47).
A figura a seguir procura representar a interação sugerida entre o eixo dos conteúdos e o eixo
temático:
OrganismO humanO e mOvimentO
COrpO, saúde e Beleza
COntempOraneidade
mídias
lazer e traBalhO
JOGOS E BRINCADEIRAS
ESPORTES
LUTAS
GINÁSTICAS
DANÇAS
eiXO
dO
s te
ma
s
eiXO dOs COnteúdOs
De acordo com a PPC-EF, tal rede de inter-
relações, gerada pelo cruzamento do eixo de
conteúdos com o eixo temático “possibilita a
pluralidade e a simultaneidade no desenvol-
vimento dos conteúdos” (SÃO PAULO, 2008,
p.47), com o surgimento de novos olhares para
os conteúdos tradicionais da Educação Física.
Por exemplo, do cruzamento entre o conteú-
do Esporte e o tema Mídias emerge o sub-
tema ou subconteúdo “telespetacularização
do Esporte6”; entre Dança e Contemporanei-
dade, o subtema “gênero”; entre Ginástica
e Corpo, Saúde e Beleza, os “modelos e pa-
drões de beleza”; entre Jogo e Lazer e Traba-
6 Por esporte telespetáculo entendemos, conforme Betti (1998, 2009b) a realidade textual-imagética relativamente autônoma, que é construída pela codificação e pela mediação do espetáculo esportivo efetuadas pela televisão, envolvendo enquadramento das câmaras, edição das imagens e comentários/sons que se acrescentam a elas.
27
lho, a presença do lúdico no tempo livre, e
assim por diante.
Em que pesem as tantas contribuições já
existentes no plano das proposições curri-
culares e didático-metodológicas (dotadas
de potencialidades para produzir melhorias
nas práticas pedagógicas da Educação Fí-
sica), é preciso reconhecer que ainda não
foram implementadas mudanças concretas
em larga escala, apesar dos inúmeros rela-
tos de experiências bem sucedidas em esco-
las por todo o país. Propostas curriculares
constituem apenas um dos pilares da políti-
ca educacional, e os conteúdos da Educação
Física apenas uma das dimensões do currí-
culo escolar. Porque “conteúdos”, em últi-
ma análise, são abstrações, no sentido de
que não existem “o” esporte, ou “a” ginás-
tica etc.; mas pessoas que mantêm certos
tipos de relações concretas com tais ma-
nifestações culturais (praticam, assistem,
falam delas etc.). Portanto, na Educação
Física escolar, tais formas culturais apenas
se concretizam nas relações com os sujeitos
que ensinam e aprendem – alunos, profes-
sores, gestores e demais funcionários das
escolas – e, portanto, exigem ser debatidas
no âmbito de orientações e condutas didá-
ticas. Mas isso é assunto para outra opor-
tunidade...
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red_md_20_03.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2011.
29
TEXTO 3
TEMAS E EXPERIÊNCIAS PRÁTICAS
mEgaEvEntos Esportivos, movimEnto olímpico E mídia: o EsportE saltando os muros da Educação Física Escolar
Marta Corrêa Gomes 1
INTRODUÇÃO
Frente à participação do Brasil como sede
de megaeventos esportivos, especialmen-
te os Jogos Olímpicos, que trazem no seu
imaginário o olimpismo como filosofia hu-
manista que exalta a qualidade do esporte
em promover a amizade, o respeito, a exce-
lência e a paz entre os povos, não podemos
prescindir da efetivação de projetos pedagó-
gicos intra e extraescolares que promovam
a educação crítica para o esporte e a refle-
xão sobre valores universais e particulares,
visando ao protagonismo das juventudes.
A proposta desse texto é trazer à tona, sin-
teticamente e como efeito deflagrador de
discussões e ações no âmbito escolar, a con-
textualização sobre os megaeventos espor-
tivos e o Movimento Olímpico, apresentan-
do a Educação Olímpica numa perspectiva
emancipadora, como forma de tratar o es-
porte pedagogicamente, com possibilidades
de trabalho interdisciplinar e transdiscipli-
nar que envolva toda a comunidade escolar,
ressaltando, inclusive, sua afinidade com
os Parâmetros Curriculares Nacionais. Que
conhecimentos, habilidades e competên-
cias nossos jovens precisam adquirir para
tornarem-se consumidores esportivos numa
perspectiva de agentes sociais (como prati-
cantes de esportes, como espectadores,
produzindo comunicação sobre o esporte
e interagindo com os meios de comunica-
ção)?
APRESENTAÇÃO
A relação inseparável entre o esporte de alto
nível, especialmente o esporte olímpico, e
a mídia nos seus diferentes níveis de atu-
ação, traz a reboque os símbolos, signos e
sítios que resgatam o Movimento Olímpico,
ao mesmo tempo que reforçam o seu patri-
mônio histórico, conferindo o poder a esse
movimento e retroalimentando a intensa
cadeia econômica entre os consumidores,
as empresas patrocinadoras e as detentoras
1 Professora da Universidade Gama Filho e Coordenadora de Educação Física e esportes da rede FAETEC (Fundação de Apoio à Escola Técnica do RJ).
30
dos meios de comunicação. Neste contexto,
um dos mais discutidos temas gerados pelos
megaeventos esportivos, seja como justifi-
cativa para uma cidade sediá-los, seja como
efetiva e positiva “herança” socioeconômica
e cultural deixada pelos impactos gerados
por ações planejadas, é o legado. Portanto,
a escola, seus gestores e professores devem
promover projetos político-pedagógicos que
gerem discussões acerca do tema, estando
suficientemente preparados para transmitir
conhecimentos, conceitos e conduzir refle-
xões sobre valores consistentes visando à
formação de uma juventude que possa vir a
ser protagonista neste intenso “Movimento
Olímpico”.
Para sustentar essa discussão, considerei
necessário partir da defesa do reconheci-
mento de um corpo de conhecimentos pró-
prio da Educação Física no ambiente escolar,
em particular o esporte, para então am-
pliar conceitos e reflexões sobre o esporte,
os megaeventos e o Movimento Olímpico.
Trabalharei com a noção de protagonismo
das juventudes, apresentando propostas de
Educação Olímpica numa perspectiva de
aprendizagem “ativa” e emancipadora que
envolva toda a comunidade escolar, para se
pensar o Olimpismo por um ponto de vista
não doutrinário, mas de forma crítica e fi-
losófico-antropológica, em que o particular
e o universal se manifestam dialeticamente
no próprio potencial da prática esportiva.
ANTES DE TUDO: “O QUE A
EDUCAÇÃO FÍSICA ENSINA, QUE
SÓ A EDUCAÇÃO FÍSICA ENSINA?
Num seminário sobre megaeventos e valo-
res do esporte, ao apresentar uma palestra
sobre Educação Olímpica, solicitei que le-
vantassem os braços os alunos dos cursos
de Licenciatura em Educação Física e, após
identificá-los, fiz a seguinte pergunta: O que
a Educação Física ensina, que só a Educação
Física ensina? A princípio houve um silêncio
que aparentava dificuldade com a própria
pergunta, mas obtive as seguintes respos-
tas: “socialização, cidadania, valores...”. Re-
formulei o caminho da descoberta orientada
e indaguei: “Socialização, cidadania, valo-
res” constituem o corpo de conhecimentos
da Educação Física ou deveriam fazer parte
de um projeto da escola? E voltei à especi-
ficidade: O que a História ensina, que só a
História ensina? Qual é o conhecimento da
História? Prontamente, obtive a resposta:
“os fatos passados”. E a Biologia? O que a
Biologia ensina, que só a Biologia ensina?
Resposta: “os seres vivos, a biodiversidade,
etc.” E a Física? Resposta: “os fenômenos
naturais”. Voltei à pergunta inicial: O que a
educação Física ensina, que só a Educação
Física ensina? Até que as respostas foram se
convertendo aos temas da cultura corporal
de movimento: “esportes, jogos, danças, gi-
násticas, lutas e temas relacionados ao cor-
po em movimento”.
31
Verifico, cotidianamente, que entre os futu-
ros professores de Educação Física e os pro-
fissionais já formados há anos ainda há uma
grande dificuldade em definir o corpo de co-
nhecimentos da disciplina Educação Física,
sua especificidade, seus objetivos, seu papel
no espaço da escola e na inter-relação com
as outras disciplinas.
A despeito de todas as discussões que exis-
tem nos fóruns acadêmicos da Educação Fí-
sica, o professor em exercício ainda é visto
como professor de
valores e ele próprio
não reconhece que
possui um corpo
de conhecimentos
que é próprio de sua
disciplina e que, se
ele não ensinar es-
ses conhecimentos,
ninguém mais vai
ensiná-los. Todos
na escola são professores de valores e cabe
à comunidade escolar eleger que proposta
de cidadania deseja oferecer aos seus alu-
nos. Este deveria ser o escopo institucional,
reconhecido nos discursos de todos e em-
brenhado nas ações cotidianas de gestores,
funcionários e professores. A proposta deste
texto não é discutir o paradigma ideal ou he-
gemônico da Educação Física escolar, mas é
importante destacar que o trato pedagógico
dos megaeventos esportivos na escola pre-
cisa passar, necessariamente, pela identifi-
cação dos seus conteúdos e objetivos, inclu-
sive o esporte, e pelo reconhecimento dos
mesmos por parte da comunidade escolar e,
fundamentalmente, por parte dos professo-
res de Educação Física.
O esporte é um conhecimento, logo, um
conteúdo que deve estar presente na or-
ganização curricular da Educação Física e
merece ser tratado pedagogicamente com
suas características e princípios (como a
competição, por exemplo) e todos os con-
flitos, contradições
e “reinvenções” que
possam ser gerados
por suas práticas no
campo escolar. Ex-
cluir, simplesmente,
o esporte da escola,
seja como vivência
prática ou fórum de
discussões valora-
tivas, não resolve a
complexa rede de valores que ele pode car-
regar através da sua eficácia simbólica e dos
seus condutores: os meios de comunicação.
Muito pelo contrário, tal decisão político-
pedagógica apenas consolida uma via de
mão única de reprodução de normas sociais
e valores que são homeopaticamente absor-
vidos, sem a oportunidade de contextualizá-
los.
A escola é inegavelmente a instituição social
que tem como função transmitir, organi-
A escola é inegavelmente a
instituição social que tem
como função transmitir,
organizar, sistematizar e
produzir conhecimentos
científicos e culturais.
32
zar, sistematizar e produzir conhecimentos
científicos e culturais. E tendo como fim a
possibilidade de formação para uma cidada-
nia emancipada de jovens que desenvolvam
pensamento autônomo numa sociedade
dita democrática, as discussões sobre ética
e valores precisam também compor esse
quadro de conhecimentos, que deixam de
ser compreendidos como currículo oculto
para se tornar o objetivo e a ação perma-
nentes nos quatro cantos do espaço escolar.
OS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS
E O PROTAGONISMO DAS
JUVENTUDES
Os megaeventos são eventos preestabeleci-
dos de curta duração, e têm como caracte-
rística central o “gigantismo”, por isso são
chamados de “mega” pela sua grandiosi-
dade em termos de público, mercado alvo,
nível de envolvimento financeiro do setor
público, efeitos políticos, extensão de cober-
tura televisiva, construção de instalações e
impacto sobre o sistema econômico e social
da comunidade anfitriã. Os megaeventos
são basicamente produção da mídia e têm
impactos econômicos, políticos, culturais
e tecnológicos. As Copas do Mundo de Fu-
tebol e os Jogos Olímpicos de verão são os
megaeventos esportivos de maior impacto
em audiência televisiva2.
Holger Preuss, um dos maiores especialistas
em Economia e Legados de Megaeventos es-
portivos, diferencia impacto de legado. Se-
gundo o autor, enquanto o primeiro ocorre
apenas durante o período do evento, o se-
gundo pode vir a surgir a partir de impacto
anterior. Entendendo que o legado “não é
apenas uma herança, algo que permanece
como patrimônio”, Preuss demonstra que o
legado é um fator ativo de geração de im-
pactos, especialmente econômicos (2008,
p. 95)3. Por exemplo, dados da Fundação Ge-
túlio Vargas (2010) demonstram, a partir de
pesquisa de campo realizada entre peque-
nos e microempresários, uma expectativa
da Copa de 2014 de geração de milhões de
empregos em diferentes setores e atividades
profissionais: Construção civil: 224 ativida-
des; Tecnologia da informação: 164 ativida-
des; Turismo: 156 atividades; Produção as-
sociada ao turismo: 1404. Dessas atividades,
algumas são nitidamente circunstanciais,
das fases de pré-evento e evento, podendo
2 Para uma compreensão mais detalhada dos megaeventos esportivos, conferir DACOSTA, L. et al. (ed.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério dos Esportes, 2008.
3 PREUSS, Holger. Tendências atuais de conhecimento sobre gestão e economia de megaeventos e legados esportivos. In: DACOSTA, L. et al. (ed.). Legados de Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério dos Esportes, 2008.
4 Fundação Getúlio Vargas. Copa do Mundo FIFA 2014: Mapa de Oportunidades para as Micro e Pequenas Empresas nas Cidades-Sede. Resumo executivo. FGV/SEBRAE: 2010. Disponível em: http://gestaoportal.sebrae.com.br/customizado/menu-gestao-1-o-que-o-sebrae-pode-fazer-por-mim/sebrae_resumo_executivo_mapeamento.pdf. Acessado em: 20/07/2011.
33
ser potencializadas no pós-evento, depen-
dendo da competência na “sinalização” da
cidade-sede.
O fato de uma cidade sediar um megaevento
esportivo traz a ideia de “sinalização”, isto
é, “imagens expostas e circulantes na mídia
que conduzem mensagens implícitas so-
bre uma determinada vantagem oferecida”
(PREUSS, 2008, p. 94). Estas mensagens pos-
suem um capital simbólico que é lançado
ao público interno e externo ao país sobre
a imagem daquela cidade-sede e país, o que
pode trazer benefí-
cios de longo pra-
zo e mudanças de
localização de ati-
vidades: indústria,
turismo, moradia,
congressos, estilos
de vida, etc.
O legado de valores dos megaeventos é
considerado intangível, isto é, difícil de ser
avaliado, tocado. Entretanto, considerando
que a educação é sempre processo, a ação
pedagógica precisa ser imbuída de inten-
cionalidade. Logo, o legado de valores dos
Jogos Olímpicos, ao contrário do que mui-
tos acreditam, não se restringe ao sentido
filosófico-educacional do Olimpismo am-
plamente divulgado pelas mensagens do
Comitê Olímpico Internacional e Comitês
Olímpicos Nacionais. Ele pode refletir em
macroperspectiva, por exemplo, a forma
como são pensadas e executadas as estraté-
gias e políticas públicas num determinado
país, a partir da administração e do controle
dos investimentos e verbas na estrutura físi-
ca do evento, nas prioridades de melhorias
das cidades e populações beneficiadas, as-
sim como nas políticas de incentivo e demo-
cratização do esporte. Muito podemos falar
de valores tomando como ponto de referên-
cia esses elementos que, sem nenhuma dú-
vida, podem surtir efeitos positivos ou nega-
tivos para a imagem
de uma nação.
A reboque dessa
onda de “legados”,
projetos sociais es-
portivos aparecem
por todos os lados
utilizando o concei-
to de Protagonismo da Juventude. Além de
existirem diversas juventudes, a ideia de pro-
tagonizar não significa reduzir ações apenas
ao oferecimento de projetos de massifica-
ção no atendimento a essa população. Não
se trata de negar a importância de serviços
e necessidades básicas para as pessoas, o
que por si é uma instância de perspectiva
de cidadania – a do direito – especialmente
com tamanha desigualdade social no Brasil.
Como afirma Demo (2002)5: “Assim como
O legado de valores dos
megaeventos é considerado
intangível, isto é, difícil de
ser avaliado, tocado.
5 DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.
34
é imbecilizante querer combater pobreza
apenas com assistência, não é menos imbe-
cilizante descartar a assistência devida por
direito de cidadania” (p. 269). Mas cabe-nos
o papel de refletir e agir em prol do investi-
mento em programas de educação que pos-
sam pensar o esporte em sua relação com
a juventude pelo ponto de vista pedagógico,
visando a uma formação de competência
popular de fato emancipada. Por exemplo,
saúde e qualidade de vida, associadas ao es-
porte, implicam também redistribuição de
renda e equidade na educação.
Podemos, neste ponto, demonstrar como a
imagem do atleta herói brasileiro, originário
de classe baixa com grande vulnerabilidade
social, é usada pela mídia como modelo de
superação individual. Souza et al. (2008)6 de-
monstram o mito da mobilidade social atra-
vés do futebol quando apresentam a difícil re-
conversão da maioria dos jovens pobres que
abdica dos estudos para tentar a carreira fu-
tebolística na Europa, como projeto familiar
de ascensão social, mas, em caso de fracas-
so, não consegue se reinserir dignamente no
mercado de trabalho. Esses casos dificilmente
são tratados pela mídia, mas já são fruto de
pesquisas e de preocupação de grupos de de-
fesa da criança e do adolescente7.
Se a comunicação dos megaeventos esporti-
vos se dá prioritariamente através da mídia e
as mensagens são transmitidas por imagens,
textos e sons de modo a garantir a sua recep-
ção (consumo) de forma mais individualizada
possível, isto é, tornando o universal significa-
tivo para o particular (país, região, localidade,
cidade, bairro) e, ao mesmo tempo, conduzin-
do o particular à visibilidade do mundo, cabe
à escola interceder com ferramentas que aju-
dem os alunos a realizarem amplas “leituras”
sobre o que está sendo “dito”.
Dentro desta perspectiva, é interessan-
te emergir no universo desse “Movimento
Olímpico” no sentido de conhecer e reco-
nhecer que o papel da Educação Olímpica
precisa ser repensado em uma direção não
doutrinária, mas dinâmica, entendendo a
própria razão axiológica do esporte, conside-
rando a via de mão dupla entre valores na
relação indivíduo e sociedade, com as múl-
tiplas possibilidades de ressignificação da
prática esportiva a partir dos valores que os
próprios sujeitos atribuem às suas práticas
nas inter-relações.
Temas que podem emergir das discussões:
• o uso ideológico do esporte olímpico e da
noção de atleta-herói;
6 DEMO, Pedro. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez/Instituto Paulo Freire, 2002.
7 Para um trabalho de prevenção sobre o tráfico de adolescentes para o exterior relacionado ao futebol existe uma cartilha direcionada a professores, técnicos e responsáveis, intitulada “Na rede certa: direitos e prevenção ao tráfico de crianças e adolescentes no esporte”, realizada pela organização não governamental TRAMA, em parceria com a Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/groups/13474813/1694554371/name/Cartilha+Na+Rede+Certa+-+TRAMA+-+ACTERJ.pdf.
35
• a guerra fria; o nazismo e as relações en-
tre os usos do esporte e as tentativas de
eugenia da raça;
• as cidades-sede e as configurações da geo-
grafia política e da geografia urbana;
• os legados dos Jogos Olímpicos e a demo-
cratização dos espaços construídos;
• a dinamização de locais da cidade e a ge-
ração de empregos e oportunidades;
• a filosofia e a transgressão às regras e o
uso de doping;
• a corrupção e o clientelismo;
• a inclusão das minorias sociais e as prá-
ticas de reprodução dos estereótipos so-
ciais de raça, gênero, idade, classe, etc.;
• as linguagens produzidas e os campos
possíveis do “dito” e do “não dito”; a lin-
guagem da imprensa, e dos atletas;
• as estatísticas de medalhas, suas relações
com nível de desenvolvimento humano
dos países e PIB;
• os valores que são desenvolvidos pelos
jovens intersubjetivamente em suas rela-
ções com amigos nas práticas esportivas;
• a produção artística e os princípios de be-
leza e estética;
• o discurso do internacionalismo;
• os símbolos (a própria bandeira olímpica
representa essa união de povos e raças,
pois é formada por cinco anéis entrelaça-
dos, representando os cinco continentes
e suas cores);
• a paz, a amizade e o bom relacionamento
entre os povos são os princípios dos jo-
gos olímpicos. Isso se retrata na prática?
O esporte de alto nível consegue alcançar
esses objetivos? Como se reflete o esporte
no âmbito escolar e de lazer? (ver Figura 1).
Figura 1 – Educação Olímpica inter e transdisciplinar
36
SUGESTÕES DE TRABALHOS QUE POSSAM TEMATIZAR O ESPORTE, OS
MEGAEVENTOS ESPORTIVOS E SUA RELAÇÃO COM A MÍDIA
A seguir, apresento alguns exemplos práticos de projetos escolares bem sucedidos, usando
os meios de comunicação para o trato pedagógico do esporte na escola numa perspectiva de
protagonismo juvenil:
Exemplo 1
A discussão foi gerada a partir do Método
Divergente e do conceito de Fair Play. A par-
tir da primeira pergunta: P1) “Usar o doping
fere os princípios do Fair Play?” Houve res-
postas do tipo: “Sim, porque o atleta usu-
ário de droga ilícita quebra as regras”(R1).
“Sim, porque o atleta usuário de droga está
competindo em condições de vantagem”(R2).
“Mas se todos usarem o doping para melhorar
o desempenho, não haverá desvantagem entre
um e outro... Todos estão novamente em iguais
condições!”(R3) “Os anabolizantes fazem mal
à saúde” (R4). Há, então, uma sequência de
perguntas e respostas que tira os alunos da
zona de conforto: P2) Mas será que todos os
atletas de diferentes países do mundo têm
as mesmas condições econômicas e o aces-
so para adquirir drogas e suplementos? P3)
As indústrias farmacêuticas deveriam ser
também punidas? Por quê? P4) Quais são os
efeitos colaterais do uso de anabolizantes?
Se os efeitos do anabolizante fossem contro-
37
lados, não haveria tanto dano à saúde, logo,
eles poderiam ser liberados? Tais perguntas
vão desencadeando uma série de respostas
e ponderações finais do tipo: “Cada um deve
fazer o que for melhor pra si”; “Mas isso não
é bom para o esporte!”; “Todos devem pensar
em todos”; “O destaque deve ser dos atletas e
não do que eles usam” etc.
Exemplo III - FAETEC entra em campo
Neste programa, que está sendo implemen-
tado pela Fundação de Apoio à Escola Técni-
ca do Rio de Janeiro8, além do eixo de quali-
ficação profissional em que os cursos estão
sendo vocacionados para as demandas dos
megaeventos esportivos, criou-se uma ar-
ticulação institucional entre unidades de
ensino, que envolvem ensino profissionali-
zante e Ensino Básico a partir do tema Fair
Play. Após pesquisa e discussão, os alunos
das escolas técnicas criarão a mídia de di-
vulgação (DVD) com imagem, som e texto e
os alunos do Instituto Superior de Educação
participarão de um concurso de animação
com o tema FAIR PLAY, produzindo tecnolo-
gia de mídia educacional a ser utilizada nas
aulas de Educação Física curricular pelos
professores de Ensino Fundamental e Médio
da própria rede.
8 GOMES, Marta C. Apresentação do Programa FAETEC entra em Campo. Disponível em: http://www.faetec.rj.gov.br/daie/images/stories/faetec_entra_em_campo.pdf.
Exemplo II
38
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora os meios de comunicação de mas-
sa sejam formas muito eficazes de mani-
pulação ideológica, convém assinalar que,
atualmente, a mídia é interativa e essa ca-
racterística é a via principal de participação
popular sobre o que é ou não é transmitido,
na medida em que os veículos de propaga-
ção das mensagens têm um controle rela-
tivo, podendo a mídia global e os cidadãos
divulgarem tanto boas quanto más notícias,
imagens e falas. Hoje, as melhores imagens
de esporte, catástrofes e fatos do cotidiano
são feitas por pessoas comuns, não necessa-
riamente profissionais, no momento em que
ocorrem, e se a grande mídia não tiver inte-
resse em divulgar, as ferramentas de inter-
net dão condições para isso, como é o caso
da publicação no youtube, blogs pessoais e
comunidades virtuais.
Dessa forma, se a escola, seus gestores, fun-
cionários e professores estiverem imbuídos
em desenvolver uma proposta político-peda-
gógica que ponha o esporte e os megaeven-
tos no centro de uma aprendizagem ativa e
de profunda discussão, o caminho metodo-
lógico precisa considerar as três possibili-
dades: 1) A vivência esportiva (adaptada às
características dos escolares) pautada em
valores discutidos, produzidos em ambien-
tes mais e menos competitivos, dos quais
possam de fato emergir conflitos; 2) A relei-
39
tura da mídia com diferentes indicadores e
marcadores pedagógicos intencionais; e 3) A
produção de mídia pelos próprios alunos.
Para que esse ambiente seja de fato propor-
cionado, existem alguns pré-requisitos bási-
cos:
1) Conhecer para criticar: O que é o Movi-
mento Olímpico, que opera nas esferas da
Solidariedade Olímpica, com bolsas de es-
tudo na área de Estudos Olímpicos e bolsas
para atletas no mundo inteiro? O que é a
Educação Olímpica, que procura tematizar
valores associados ao esporte, como Fair
Play e os próprios Jogos Olímpicos? Qual é
o papel do Comitê Olímpico internacional,
dos Comitês Olímpicos Nacionais, da FIFA, e
das Federações nacionais na organização do
esporte e divulgação de mensagens e valo-
res esportivos?
2) Suprir a escola de equipamentos que ga-
rantam o acesso dos alunos às diferentes
mídias: televisão, computador com internet
e máquina de filmar.
3) Espaço físico para a vivência esportiva e
material didático esportivo.
4) Vontade política da gestão para elaborar
o Projeto Político Pedagógico juntamente
com a comunidade escolar, envolvendo e
motivando a todos.
O desenvolvimento de qualquer projeto ins-
titucional de Educação Olímpica é uma ação
político-pedagógica e reflete intenções so-
bre o tipo de nação e de cidadania que se de-
seja alcançar. Logo, uma Educação Olímpica
com finalidades ético-políticas considera o
desenvolvimento humano compreendido
como formação do cidadão do mundo, mas
também do cidadão da cidade, da participa-
ção ativa na comunidade e no país. Parafra-
seando Edgar Morin (2003), a consciência de
pertencer à espécie humana e de desenvol-
ver a cidadania planetária deve ser acompa-
nhada da consciência de uma cidadania e de
autonomias individuais9.
9 MORIN, Edgard. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 8ª ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO: 2003.
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Presidência da República
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Básica
TV ESCOLA/ SALTO PARA O FUTURO
Coordenação-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Coordenação Pedagógica
Maria Carolina Mello de Sousa
Supervisão Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Grazielle Avellar Bragança
Coordenação de Utilização e Avaliação
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Copidesque e Revisão
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Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV BrasilGerência de Criação e Produção de Arte
Consultores especialmente convidados
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Setembro 2011