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C. S. P. Ribeiro
ECOS DA ETERNIDADE
LIVRO I - JOHN
PARTE 1
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Copyright ©2016 por C.S.P. Ribeiro Facebook: @ribeiro.csp
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Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
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Capa:
CC0 Public Domain - Pixabay.com
Arte final por:
C. S. P. Ribeiro
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Índice
Agradecimentos ..................................................................................................... 5
Capítulo 1 ................................................................................................................ 7
Capítulo 2 .............................................................................................................. 17
Capítulo 3 .............................................................................................................. 29
Capítulo 4 .............................................................................................................. 39
Capítulo 5 .............................................................................................................. 51
Capítulo 6 .............................................................................................................. 64
Capítulo 7 .............................................................................................................. 74
Capítulo 8 .............................................................................................................. 83
Capítulo 9 .............................................................................................................. 96
Capítulo 10 .......................................................................................................... 109
Capítulo 11 .......................................................................................................... 119
Capítulo 12 .......................................................................................................... 127
Capítulo 13 .......................................................................................................... 137
Capítulo 14 .......................................................................................................... 145
Capítulo 15 .......................................................................................................... 154
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Capítulo 16 .......................................................................................................... 163
Capítulo 17 .......................................................................................................... 169
Capítulo 18 .......................................................................................................... 180
Capítulo 19 .......................................................................................................... 190
Capítulo 20 .......................................................................................................... 199
Capítulo 21 .......................................................................................................... 208
Capítulo 22 .......................................................................................................... 218
Capítulo 23 .......................................................................................................... 227
Capítulo 24 .......................................................................................................... 235
Capítulo 25 .......................................................................................................... 245
Capítulo 26 .......................................................................................................... 253
Prólogo Parte 2 .................................................................................................... 263
Sobre a Autora .................................................................................................... 270
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Um agradecimento especial a meu Kahuna ou Ahorangi José de Arimathea Gomes, por
todas as informações valiosas e principalmente por compartilhar da minha paixão pelo mar e
por catamarãs.
Ao meu marido Francisco por entender meus longos dias de isolamento e
destemperos.
A minha amiga Nathália Lira pela paciência, ideias e inspiração para Alícia.
A Tuca Hasserman pelas palavras de carinho e incentivo e tantas outras pessoas
que aturaram meus acessos de raiva, frustração, alegria e depressão.
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CAPÍTULO 1
O sol desceu no horizonte; começou a esfriar. O vento que sacudia seus
cabelos, agora começara a ficar incomodo. Um suspiro alto foi ouvido por entre o
barulho das ondas: “Melhor voltar...” Ela pensou com um sorriso triste, enquanto
caminhava pedras abaixo.
Mais um crepúsculo, menos um dia.
Seus olhos vagaram pelo horizonte uma última vez; os vestígios de uma
tempestade em alto mar tingiam o céu em tons de chumbo, iluminado ocasionalmente
pela queda de um ou outro raio. Ela ajustou melhor o xale contra o corpo e caminhou
lentamente pela praia em direção à sua casa.
Janelas azuis, paredes brancas, típica casa de pescador, pequena por fora,
enorme por dentro, perdida num paraíso só seu em algum lugar do nordeste do Brasil.
Paraíso perdido casava bem com o nome do local: Praia Esquecida. Uma das muitas
áreas de desova de tartarugas marinhas, ela literalmente levava trabalho para casa. Este
oásis era seu e de seus quelônios, ou melhor, seu, de Maiurá, sua amiga, confidente,
babá, Personal Bruxa e de Perseu, um Golden Retriever marrom escuro e profundos
olhos claros, que pelo barulho, devia estar em pleno serviço de demolição da sala.
“Perseu!” Ela gritou assim que abriu a porta. Perseu saiu de trás do sofá
com o que restara da almofada da cadeira e um jeito de “Ops, não fui eu.” Baixou a
cabeça, a cauda e foi andando com pesar para sua dona, esquecendo-se de tirar a
pobre almofada da boca. “Ah Perseu, era a minha predileta!” Ele aumentou o olhar de
desculpas e abanou o rabo. “Deixa para lá. Era só uma almofada...” Sofia suspirou.
“Mas vai me ajudar a arrumar essa bagunça antes que Maiurá volte!”
Passou pelo espelho do corredor e parou; seus cabelos castanhos claros
desarrumados pelo vento, combinavam com os olhos âmbar quase dourados e com
sua pele clara, fato improvável para uma bióloga marinha, porém o que mais lhe
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incomodava eram as persistentes sombras tristes em seu olhar; suspirou
profundamente e foi para o quarto.
***
O som de um trovão ecoou forte e um relâmpago iluminou a crista da
onda mais próxima. Apesar de ter crescido no mar, John sabia que tempestades
repentinas eram perigosas, ajustou o rumo do catamarã em relação às ondas que
quebravam iluminadas contra os cascos. De uma das escotilhas viu a silhueta de seu
gato tentando arrumar um lugar razoavelmente confortável e quieto. “Pobre Gato.”
Pensou, a tempestade teimava em jogá-lo de um lado para o outro como um
brinquedinho qualquer.
Olhou com carinho e orgulho para as linhas elegantes e hidrodinâmicas
dos cascos brancos realçados pelos tons pesados do mar ao redor, o barco sempre
fora seu lar desde que começara sua volta ao mundo; seu contrato como fotógrafo de
vida selvagem junto a um famoso instituto de preservação ambiental, lhe deu chance
de conhecer lugares e pessoas incríveis, porém de maneira súbita, uma cama em um
chão estável e uma refeição quente começou a parecer cada vez mais atraentes. John
riu alto o suficiente para o Gato de dentro da cabine, reclamar.
Começou a falar em voz alta e nossa, como ele fazia isso: “Quando poderia
imaginar, ele, John Matthew Tohu Kakahi Enriques, trinta e dois anos, neozelandês, filho de um
maori com uma brasileira, três anos velejando pelo mundo, vagabundo dos mares por convicção (meus
ancestrais decididamente são os culpados por isso), mulherengo por natureza, poderia se render à
necessidade de terra firme por muito tempo?” Voltou a rir alto. Ocasionalmente sim, quando
precisava reparar o catamarã, repor provisões, procurar uma companhia feminina ou
levar Gato ao veterinário. Mas nada além de dez dias; depois disso, simplesmente
enlouquecia.
***
Dentro da cabine, um velejador muito impaciente encarava um gato
muito irritado.
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“Não adianta reclamar Gato! Se quiser sair do barco vai ter que colocar a
coleira.” Gato lhe encarou ofendido e fungou alto. “E depois não vamos demorar por
aqui. Só preciso comprar comida para mim e para você também. Então é coleira ou
cabine, o que vai ser?” John sacudia a guia de um lado para o outro.
O felino baixou as orelhas em total desânimo, se é possível baixar ainda
mais as orelhas de um Scottish Fold e deixou que a maldita coisa fosse colocada nele.
“Humano idiota!” Pensou com desprezo. “Infelizmente tenho que lhe fazer companhia se não
vai acabar fazendo besteira ou se metendo em alguma confusão.” Miou desalentado. “Não é nada
fácil ser um gato de guarda!” Bufou e se deixou carregar da proa para o cais. Poderia ter
feito este salto com mais elegância e rapidez, contudo de alguma forma isso criava um
tipo de satisfação e falso domínio da situação que parecia ser muito importante para o
seu humano, então miou alto e o lambeu. “Gosto de você, me alimenta, escova, faz carinho e
brinca.” E só por causa disso resolveu tentar se comportar bem pelo resto do dia.
John encarou a cidade com certo desconforto, apesar de não ter
marinas, pelo menos o catamarã pôde parar direto no único píer existente no que
parecia ser o centro comercial; poucas lojas, carros antigos, bicicletas para todos os
lados. Uma praça, um coreto, uma igreja e um cemitério... Uma rua principal, uma
farmácia e um supermercado até grande; típica cidadezinha perdida em algum ponto
no litoral brasileiro. Suspirou melancólico e apertou o passo arrastando o Gato pela
coleira.
“Esquerda! Esquerda! Humano burro! Eu quero ir para a esquerda!” Gato
fincou suas quatro patas no chão; não adiantou muita coisa e resolveu andar ao sentir
suas preciosas unhas rasparem no asfalto, mas chiou em claro protesto pela
insubordinação de seu humano, sendo totalmente ignorado como sempre.
Enfim pararam em frente ao que parecia ser o supermercado. John
procurou um funcionário para perguntar se poderia entrar com o gato. Só encontrou
uma moça alta, meio gordinha, cabelos alourados e franja torta, sentada displicente,
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lendo uma revista de fofocas. Ela levantou os olhos mal humorados quando ele
repetiu a pergunta, baixando a revista a contragosto.
“Oh meu... Deus!” Pensou por cima dos óculos, agora sinceramente
interessada na mudança da paisagem. “Moreno de sol, cabelos pretos, alto... Senhor que corpo!
De onde isso tudo saiu?!” O viu tirar os óculos de sol. “Nossa Mãe, que olhos verdes! Socorro
vou morrer!” Sacudiu a revista a guisa de leque e a cabeça a guisa de afirmação com boca
ainda aberta, totalmente atordoada. “Qual foi a pergunta mesmo? Gato, que gato?!”
Gato observou a cena com desdém felino: “Hehehehe... cio... Humanos são
tão estranhos.”
John riu baixinho e arrastou seu peludo amigo para o corredor mais
próximo, pegou um pequeno carrinho de compras manco e foi andando. “Macarrão,
arroz, leite, óleo, lentilhas, hummm... peixe não.” Passou para outro corredor. “Droga
de carrinho! Pasta de dentes, sabonete, creme de barbear... ah, comida para gato.
Alguma preferência peludo? Gato?!” Puxou a coleira que balançava vazia. “Como foi
que?!” Olhou ao redor, aflito. “Onde foi parar este filho da...” Então, parado ali no
fim do corredor, sentado despreocupadamente estava ele.
“FILHOTE DE HOUDINI...” Gritou. “AQUI, AGORA!” Gato se
levantou lentamente, deu uma boa espreguiçada e avançou sem pressa; chegando aos
pés de seu carrancudo humano, depositou no chão a única coisa que achou
interessante naquele lugar esquisito, o encarou e miou.
“De onde, por Netuno, você roubou este peixe?!” Se abaixou para pegar
o fruto do roubo e seu peito explodiu numa dor atroz; se apoiou no carrinho e levou
uma mão ao peito, parecia que seu esterno se rompia, sua visão ficou turva, começou
a transpirar e caiu de joelhos; a última coisa que viu foi Gato se enroscando em suas
pernas e miando baixinho.
***
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Verão - Ano 1470, Peru.
Aquele era o pior verão de todos; no vasto reino dominado pela
Nação Inca, nunca houvera uma seca como aquela e o imperador viu os filhos
do Império do Sol sucumbirem pela fome. Só existia uma maneira de
sobreviver àquela crise: Logo os tentáculos incas se espalharam pelas nações
vizinhas, tomando provisões, fazendo prisioneiros no intuito que a ira dos
deuses pudesse ser apaziguada com o sangue e carne do inimigo e voltasse a
chover sobre a terra devastada. Olhos famintos e sedentos então se voltaram
para o reino do Povo Chímu e a Cidadela de Chan Chan foi dominada.
Ele abriu os olhos, a luz ao redor era muito, muito forte; quis se mexer, não
conseguiu, aos poucos sua visão foi melhorando e ele voltou a ter consciência do entorno. A corda de
cipó apertava-lhe os pulsos fazendo suas mãos latejarem, algo quente e viscoso escorreu por seu pescoço,
seus joelhos doíam. O filho do Senhor de Chan Chan custou a acreditar no que estava acontecendo,
mas sabia o que viria depois - Todos os guerreiros capturados compartilhavam um só destino: O
sacrifício humano; ainda mais ele, filho da realeza. Virou ligeiramente a cabeça e viu ao longe, em
meio à fila de seus homens, seu amigo de infância, quase não o reconheceu pelos ferimentos na cabeça.
Ao menos ele ainda estava inteiro, inteiro e vivo pelo simples fato de ser importante demais para ser
molestado por enquanto. Separado, foi confinado em uma gruta no fundo de um vale, cuja única
entrada era guardada pela elite guerreira inca.
A noite caiu rápida e o encontrou cansado e dolorido. Chumuncaur acordou
sobressaltado, pois seu curto período de sono foi pontilhado por pesadelos. Virou-se quando ouviu
vozes e visualizou na boca da caverna, uma figura pequena e pálida parada sobre a luz da Lua. A
garota vestia branco e seus cabelos negros trançados emolduravam um rosto delicado, boca pequena,
bondosos olhos escuros. Trazia uma cuia em cada mão e sem demonstrar medo, se aproximou estendo-
lhe as mesmas. Encarou o guerreiro sentado e para a surpresa do Chímu, se expressou em seu dialeto.
“Sou Sisa, sacerdotisa do Templo de Pachamama. Trouxe comida e bebida para o
filho do Senhor de Chan Chan.” Continuou com as mãos esticadas e um olhar suave.
Chumuncaur não se mexeu. Ela se aproximou um pouco mais.
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“Não tenha medo é só comida e bebida.” Sentou-se à frente do rapaz, pegou um
pouco do alimento e levou à boca, depois fez o mesmo com o líquido.
Ele ainda observava, sombras das tochas acesas brincavam sobre seu rosto, mas havia
alguma coisa estranha naquela pequena figura; uma esmagadora sensação de que a conhecia há
muito, muito tempo. Estendeu a mão em direção à cuia e suas mãos acabaram se tocando.
Chumuncaur sentiu como se um relâmpago tivesse passado por seu corpo e a pequena sacerdotisa
sentiu o mesmo. O recipiente caiu e rolou pela terra. Sisa levou a mão à boca, no intuito de abafar um
grito, o olhou com assombro; foi como se tivesse descoberto algo que poderia mudar sua vida para
sempre.
“Eu conheço você...” Ela disse tremula. “Eu já o vi antes... em meus sonhos.” Abriu
um enorme sorriso tímido.
A afirmação não soou de todo absurda, ele também compartilhava da mesma
sensação, mas ela era o inimigo, os que derrotaram e humilharam seu pai, destituíram seu império,
conquistaram seu povo e suas riquezas. Se ele tivesse algum sentimento em relação àquela estranha
familiar, que fosse para usá-la como meio de fuga e depois para vingança. Sacudiu a cabeça totalmente
confuso e voltou a ouvir a voz suave da garota.
“Eu conheço você.” Repetiu em um tom ainda mais suave. “Você voltou para mim.”
Sisa sussurrou baixando os olhos.
Nunca uma frase causou tanto impacto nele como aquela, ele puxou o ar com força,
como se estivesse submerso por muito tempo e viesse à superfície pela primeira vez depois um longo,
longo período.
“Sim voltei para você.” Chumuncaur já não sabia se o que saía de sua boca era
reflexo de seu coração ou pensamentos sem nexo de sua mente. Por mais caótica que fosse a situação,
aquilo de algum modo continuava fazendo sentido para ele e acabou sorrindo também.
Sisa viu o sorriso e uma lágrima correu pelo seu rosto. Ela esperara por tanto
tempo... Precisava que tirá-lo dali antes que o sumo sacerdote clamasse pela vida do prisioneiro real.
A possível imagem de Chumuncaur tendo seu coração retirado ainda com vida a encheu de pavor.
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Ele estendeu a mão e retirou a lágrima que caíra. Sisa se levantou repentinamente
fazendo sinal de silêncio.
“Me livrarei das sentinelas. Voltarei para lhe buscar.” Sussurrou e correu para a
saída antes que ele a segurasse. A pedra que selava a caverna foi retirada ao seu comando, a garota
desapareceu e o escuro voltou a dominar o local.
A noite seguiu seu curso e o guerreiro começou a achar que havia sido enganado. De
repente, a pedra foi deslocada com dificuldade, Chumuncaur se levantou, ajudou e por trás dela, duas
garotas e um rapaz apareceram. Sisa sorriu, enquanto cortava o cipó que lhe atava os pulsos.
“Venha, vamos logo! Minha irmã irá nos ajudar” O puxava insistentemente pela
mão.
O frescor da noite o fez sentir-se melhor na hora, parou alguns passos a diante, a
fazendo se virar.
“Vamos, não podemos ficar!” Observou temerosa o entorno.
“Meus homens... meus amigos...” Chumuncaur parado, mirava para o lado oposto,
em direção ao complexo de templos.
“Vamos rápido! Não devemos demorar e depois o tempo deles já acabou.” Seus
dedos se fecharam sobre os dele, num claro gesto de conforto.
Ela estava terrivelmente certa, não voltou a olhar para trás. Apertando mais a mão
pequena e delicada na sua, correram para longe da cidadela.
A trilha foi ficando cada vez mais fechada até a floresta densa preencher o terreno.
Pararam por algum tempo e as duas garotas se abraçaram.
“Minha irmã fica.” Sisa avisou com ar triste por saber que não a veria nunca mais.
Pacha, a garota de feições suaves voltou a abraçar a irmãzinha e depois encarou Chumuncaur,
desconfiada.
“Você toma conta irmã mais nova.” Tropeçou nas palavras e correu acompanhada
do rapaz por onde vieram, sumindo na escuridão.
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“Devemos continuar correndo.” Avisou. Sua cabeça funcionava alucinadamente,
precisava saber para onde poderiam ir a fim de escapar de uma possível perseguição. Os guerreiros
incas se espalhavam por longos territórios e ele sabia que tinham poucas chances de saírem vivos disso
tudo, mesmo assim, a necessidade urgente de proteger aquela garota o fazia acelerar cada vez mais e
mais.
Depois de um bom par de horas correndo por um terreno desconhecido e acidentado,
Sisa tropeçou mais uma vez e ele a amparou. Precisavam descansar e arranjar um local para se
esconder, não tardaria a amanhecer e estariam totalmente expostos. A montanha à frente parecia
promissora, apontou para lá, sorriu e incentivou a pequena sacerdotisa a continuar. Subiram com
dificuldades até encontrarem uma caverna à beira de um precipício, ficariam lá até a noite cair. O
lugar não era grande nem pequeno, era discreto e a única opção que tinham, recuaram para um ponto
mais interno, o guerreiro encostou-se a uma rocha e aninhou a garota em seus braços. Passou
suavemente a mão em seus cabelos negros e macios, não havia mais necessidade de palavras ou gestos,
estavam em harmonia, estavam completos novamente. O cansaço os venceu e adormeceram.
Do fundo de sua inconsciência, o Chímu ouviu Sisa gritar. Assustado, abriu os olhos
e a procurou. Dois guerreiros incas a seguravam, ao mesmo tempo em que era amarrado por outros
dois; ordens eram gritadas pelo sumo sacerdote que esperava do lado de fora. Trouxeram o casal à sua
presença, o velho tagarelava sem parar, ele não conseguia entender; pelo menos não entendeu até ver
outros guerreiros carregando uma pesada pedra plana e sua pequena sacerdotisa gritar desesperada.
Agora seria o fim, não voltaria para seu povo, não veria mais seus amigos, o sacerdote iria sacrificá-lo
ali mesmo. Lutou quando o levantaram, precisava salvá-la; o que seria de Sisa quando tudo estivesse
consumado? Precisava se livrar dos guerreiros e fugir, todas as células de seu corpo gritavam para que
fizesse alguma coisa, mas as mãos ao seu redor pareciam garras. Sentiu a áspera e fria pedra contra
suas costas nuas quando quatro guerreiros o seguraram firmemente contra ela. Ele procurou os olhos
de Sisa e ela o olhou em prantos. Viu o sacerdote levantar o punhal cerimonial e num último esforço,
antes que fosse tarde, arfou e gritou: “EU VOLTAREI PARA VOCÊ NOVAMENTE!”
O punhal descreveu seu arco fatal. O último descendente real do Senhor de Chan
Chan, o último filho real do Reino Chímu estava morto. Sisa gritou se debatendo alucinada e ao se
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ver livre das mãos dos guerreiros, usou as forças que lhe restavam - agarrou-se ao velho sacerdote
tomando dele o coração ainda pulsante, depois recuou arrastando os dois para o abismo que cercava a
entrada da caverna.
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“Moço?! Moço!” Ouviu ao longe.
O entorpecimento e a dor no peito que John sentira foram deixando seu
corpo pouco a pouco. Suspirou profundamente, uma, duas, três vezes. Alguém
passava algo áspero e úmido em seu rosto, abriu os olhos devagar para descobrir que
Gato o lambia pacientemente. Ao seu redor metade da população da cidade, ele
calculou. Tentou sentar-se, mas sua cabeça girou. “Que sensação estranha e que sonho
esquisito!” Parecia que tinha tomado um porre sem ter bebido uma única gota;
precisava ficar em pé, muitas mãos o seguraram. A funcionária gordinha o abanava
desanimada; com ele consciente, acabaram suas chances de uma possível respiração
boca a boca.
“Droga!” Ela reclamou saindo de perto da confusão.
Mil olhos e a mesma pergunta.
“O moço tá melhor? Caiu feito jaca madura, a gente pensou que tava
tendo um treco do coração… O doutor foi atender na outra cidade, então a gente
chamou o veterinário, mas ele não chegou até agora!” Uma senhora magrinha o
encarou visivelmente apreensiva.
John cambaleou até o caixa com o carrinho, o Gato debaixo do braço e
metade da população o seguindo. A caixa o observou, francamente preocupada.
“O moço ainda não tá bom não! Tá meio verde! É melhor ir pro seu
barco, paga depois e a gente manda as mercadorias pra lá.” Ela continuou embalando
suas coisas.
Ele olhou para ela curioso. “Por que diabos a mulher está desfocada? Bom,
depois do veterinário, pelo menos essa fora a melhor ideia do dia.” Pensou. Deu um sorriso
pálido e saiu do supermercado atravessando um pequeno estacionamento em passos