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GUIA DO ESTUDANTE

Guia do Estudante

As orientaes abaixo o ajudaro em sua trajetria de aprendizagem. O material didtico, elaborado conforme os preceitos da Educao a Distncia, autoinstrucional, e o prprio aluno determina seu ritmo de estudos. Compe-se de mdulos e unidades, com informaes e exerccios objetivos e de mltipla escolha necessrios para o cumprimento dos objetivos propostos. Prazo - O sistema considera o dia da sua matrcula como data inicial do curso. A partir de ento, voc ter 60 dias para concluso. O no cumprimento do prazo estabelecido implicar o cancelamento automtico de sua matrcula e consequente impedimento por 3 meses de nova matrcula nos cursos oferecidos pelo ILB.

Atividades de estudo - Diversas atividades iro auxili-lo, funcionando como reforo na aprendizagem. Aps o estudo do contedo de cada unidade e mdulo, voc dever realizar os Exerccios. Essas atividades foram desenvolvidas para voc mesmo verificar o progresso obtido ao longo do percurso. As autoavaliaes sero corrigidas automaticamente pelo sistema. Avaliao Final - Para concluir o curso, faa a Avaliao Final, clicando no item "Avaliaes" do menu lateral. Lembre-se de que a Avaliao Final, alm de ser o nico instrumento vlido para a certificao do curso, no poder ser refeita depois de salva. Logo, responda as questes apenas quando tiver certeza da resposta.

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Certificao - Na Avaliao Final voc dever obter no mnimo 70 pontos (de 100 possveis). Nesse caso, ser aprovado e far jus certificao. O certificado ser disponibilizado 60 (sessenta) dias aps a data de efetivao da matrcula. Caso no tenha obtido o desempenho exigido, no desista. Voc pode inscrever-se novamente neste ou em outro de nossos cursos sem tutoria aps 3 meses. O ILB no fornece autenticao digital ou quaisquer outras comprovaes alm do certificado e da declarao emitidos eletronicamente e impressos pelo prprio aluno.

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Sugestes para um bom estudo: As atitudes do estudante a distncia, traduzidas em hbitos de estudo, so fatores que ajudam o aluno a persistir e permanecer no curso, determinando o sucesso final. Administre bem seu tempo - assegure-se de que ter disponibilidade para se dedicar ao estudo. Execute as atividades propostas em sequncia de mdulos eles so planejados de acordo com a complexidade dos contedos.

Apresentao

ApresentaoEstamos no incio de um curso sobre Doutrinas Polticas Contemporneas. Convm, assim, esclarecer alguns pontos sobre o significado do ttulo e a forma do curso. Que so doutrinas polticas contemporneas? Na perspectiva que aqui adotamos, so aquelas correntes de pensamento que inspiram e orientam os partidos polticos importantes em termos de influncia, voto e acesso ao poder no mundo de hoje. Dito de outra maneira, aquelas correntes que definem os objetivos de partidos atuais e, em alguns casos, os meios recomendados para alcanar esses objetivos. O critrio, portanto, prtico. No vamos discutir correntes de pensamento que alimentaram partidos fortes no passado, mas insignificantes no presente. No vamos discutir, por exemplo, uma corrente conservadora, uma vez que hoje nenhum partido de peso defende o retorno ordem econmica, social e poltica pr-moderna. Pela mesma razo, no discutiremos a corrente anarquista, uma vez que os partidos dessa tendncia perderam peso, nos pases onde ainda eram importantes, no perodo entre as duas guerras mundiais.

Na abordagem dessas correntes, o curso tem objetivos definidos. Ao final, o aluno deve estar capacitado a:

identificar os argumentos que cada corrente apresenta em sua defesa; relacionar as crticas recprocas levantadas entre elas; e discutir esses argumentos e crticas para analisar a realidade poltica do Brasil.

Um esclarecimento final necessrio. Grandes correntes de pensamento poltico no so objetos que possam ser estudados a partir de uma definio clara, unvoca, aceita por todos. Adversrios e partidrios tm interpretaes diferentes de cada corrente, e mesmo no interior de cada uma delas encontramos divises importantes. A seleo de assuntos e autores feita no curso , portanto, necessariamente parcial. Escolhemos obras de autores consagrados que tratam de temas que a maior parte dos liberais, socialistas, sociais-democratas e novos esquerdistas considera fundamentais. No entanto, outros temas e autores, talvez to importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir, para dizer de forma mais precisa, uma seleo de temas e autores importantes para cada uma dessas quatro correntes.

MDULO NICO - Socialismo

Mdulo nico - Socialismo:

Nossas trs prximas unidades sero dedicados discusso do socialismo.Vamos examinar, em primeiro lugar, algumas das condies histricas que possibilitaram o surgimento das idias socialistas. Em segundo lugar, discutiremos algumas das idias centrais da doutrina, tal como desenvolvidas na obra de um de seus pensadores mais influentes, Karl Marx. As idias selecionadas so o materialismo, a evoluo social e as classes sociais. Passaremos ento ao debate sobre o horizonte utpico do socialismo, ou seja, sobre qual o tipo de sociedade imaginada como substituio do capitalismo. Na ltima unidade, finalmente, a ascenso e crise do socialismo real, at sua queda, sero nossos temas de estudo.

Ao trmino deste estudo, esperamos que voc possa relacionar:

As condies histricas do socialismo; Idias centrais da doutrina, segundo Marx: Materialismo, evoluo social e classes sociais; utopia socialista e; ascenso, crise e queda do socialismo real.

Unidade 1 - Socialismo: Conceitos

Socialismo: Histrico e Conceitos Bsicos Nesta unidade vamos apresentar um breve histrico das idias socialistas. Em seguida, examinaremos alguns conceitos fundamentais do sistema socialista de maior influncia histrica, aquele desenvolvido por Karl Marx: materialismo, evoluo e classes sociais. Finalmente, vamos expor e debater algumas reflexes do mesmo autor sobre a transio de uma sociedade capitalista para o socialismo.

Veremos, portanto, nesta unidade: histrico das idias socialistas; conceitos marxistas: materialismo, evoluo e classes sociais; reflexes de Marx sobre transio do capitalismo para o socialismo. Para os fins do nosso curso, socialismo entendido como o conjunto de doutrinas polticas que contestaram, em primeiro lugar, a ordem do capitalismo nascente. Criticaram essa ordem desde um duplo ponto de vista: no plano tico, como injusta e desigual; no plano dos resultados, como irracional, por dilapidar, periodicamente, recursos materiais e humanos.

Da haverem proposto uma nova forma de organizar a sociedade, ao mesmo tempo mais justa e mais eficiente, mais eqitativa e mais abundante. Da seu endereamento preferencial ao ator poltico excludo da ordem capitalista e, por esse mesmo motivo, interessado em super-la: a classe operria. A social-democracia, que ser debatida em unidade prpria, constitui uma diferenciao desse padro clssico de socialismo, uma tentativa de dar resposta s mudanas por que o sistema capitalista havia passado at a virada do sculo XIX para o XX. Entre as diferentes correntes socialistas destaca-se, inegavelmente, por sua relevncia no plano terico e poltico, o marxismo. Por essa razo, os conceitos bsicos fundamentais doutrina sero analisados a partir do enfoque da obra de Marx.

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1. Histrico O socialismo surge como reao s conseqncias indesejveis da Revoluo Industrial, iniciada na Inglaterra no comeo do sculo XVIII. Importa, assim, relacionar, ainda que de forma sumria, as principais dentre essas mudanas e seus efeitos mais evidentes na sociedade. A mudana mais visvel e imediata ocorreu no campo da tecnologia. O desenvolvimento de uma srie de mquinas e o uso da fora motriz do vapor permitiram elevar a produtividade do trabalho a nveis nunca antes alcanados. Uma quantidade enorme, para os padres da poca, de mercadorias passou a ser produzida em tempo e custo unitrio menores, desencadeando um processo de intenso crescimento econmico, principalmente na Inglaterra, centro da revoluo. A disponibilidade de importantes jazidas de carvo e ferro produtos fundamentais nova forma de produzir assegurou a continuidade dessa posio de vanguarda do pas. A revoluo no se deteve no plano da tecnologia. Procedeu igualmente substituio das relaes estabelecidas tradicionalmente entre os homens no processo produtivo, por outras, mais adequadas s novas tcnicas. A relao mestre-aprendiz, centro da produo artesanal, cedeu espao livre contratao e dispensa de trabalhadores assalariados, ao sabor da convenincia daqueles que dispunham de recursos para a compra das mquinas. O treinamento demorado num ofcio tornou-se desnecessrio, face desqualificao do trabalho promovida pela mquina.

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SAIBA MAIS sobre os avanos tecnolgicos

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A percepo do tempo, produzida pela sociedade, foi tambm profundamente alterada. A sociedade tradicional, centrada na produo agrcola, tendia a gerar uma idia cclica de tempo, uma espcie de repetio do ciclo

produtivo que rege, da mesma maneira a cada ano, a produo agropecuria. A nova atividade econmica, decorrente da Revoluo Industrial, apresentava como caracterstica bsica a progressividade. Os atores econmicos e a sociedade como um todo passaram a encarar a progressividade crescente do processo de acumulao como natural. As crises, antes espordicas e claramente derivadas de anomalias naturais, passaram a ser peridicas, ocasionadas pela descoordenao das aes dos diversos atores. Enfim, o tempo passou a ser linear e progressivo. H que assinalar tambm a intensidade do processo de urbanizao e suas conseqncias. Antes da revoluo industrial, a grande maioria da populao residia no campo e as cidades eram centros principalmente comerciais e burocrticos. No decorrer da revoluo, a Inglaterra experimentou o afluxo continuado da populao aos centros urbanos que centralizavam a nova forma de produzir. Evidentemente, a infra-estrutura urbana pr-existente no se encontrava preparada para acolher um crescimento populacional to rpido e intenso, e diversos problemas, inclusive no que diz respeito sade, afloraram.

Leia aqui depoimentos e registros da poca da Revoluo Industrial (clique sobre cada um dos itens abaixo para ler os textos) Processo de urbanizao Avanos na agricultura Trabalho infantil nas fbricas Defesa dos trabalhadores

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A quebra das redes familiares e tradicionais de sociabilidade, a aglomerao em cidades carentes de servios bsicos, a jornada de trabalho excessiva, a contratao massiva de mulheres e crianas, tudo isso trouxe o declnio dos valores tradicionais muito antes do surgimento de um novo sistema de valores adequado s novas circunstncias. Criou-se uma situao de vazio de normas, que a sociologia nascente chamou de anomia, caracterizada por, entre outros indicadores, maior incidncia de suicdio, alcoolismo, criminalidade e divrcio. Finalmente, o conflito torna-se freqente na nova ordem. Conflito a respeito da jornada e das condies de trabalho, da repartio do produto entre salrios e lucro, da preservao dos postos de trabalho face s ameaas decorrentes do avano tecnolgico. Conflito que se manifesta em greves e destruio de mquinas, mas que tende constantemente a repetir-se na arena poltica. No plano da macropoltica, todo esse movimento se fez acompanhar de uma tendncia substituio dos regimes absolutistas por outros monarquias ou repblicas constitucionais. No modelo liberal dessa poca, no entanto, prevalecia a restrio do voto aos detentores de propriedade, num primeiro momento, e de um mnimo de renda, depois. Assim, os operrios encontravam-se excludos dos direitos polticos e sua manifestao nesse campo sempre se dava de forma paralela aos canais admitidos de participao. A presena dos operrios na cena poltica, quando acontecia, tendia, portanto, a ocorrer sob a forma de rebelio.

x Assista abaixo o vdeo sobre todas as fases da Revoluo Francesa x

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A nova ordem contrastava fortemente, portanto, com a sociedade tradicional. Os socialistas reconheciam os ganhos dela decorrentes, principalmente o aumento da capacidade produtiva do homem, que abria, pela primeira vez na histria, a possibilidade de eliminao da pobreza, da carncia material, para todos os cidados. Por outro lado, o prprio sistema tolhia a realizao das possibilidades que criara. Sua dinmica interna gerava desigualdade e, periodicamente, a crise, com falncias, desemprego e misria. A propriedade privada era percebida como a raiz tanto da injustia quanto da ineficincia. Como base da livre iniciativa, era condio tanto da distribuio desigual dos recursos sociais quanto da ausncia de coordenao dos atores econmicos, que levava, a cada dcada, a uma crise de superproduo. A tarefa, portanto, consistia na abolio da propriedade privada e na sua substituio por um sistema centralizado de planejamento da economia, de responsabilidade dos prprios produtores. A essa mudana fundamental seguir-se-ia de imediato, segundo a verso anarquista; aps um perodo de transio, segundo a comunista o fim do Estado e da poltica tal como a conhecemos. Instituies caractersticas de uma sociedade de classes entrariam em processo de obsolescncia, uma vez finda a diviso em classes.

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De maneira semelhante, a ordem socialista implicaria a liberao do indivduo dos laos que a famlia, a religio e a nao fazem pesar sobre ele. Os interesses dos trabalhadores sobrepem-se naturalmente aos particularismos nacionais: o socialismo , por definio, internacionalista. Famlia e religio pertencem tambm ordem condenada do presente. Mesmo sob o capitalismo, representariam valores negados, na prtica, aos operrios. importante ressaltar a radicalidade dos propsitos socialistas, at para confront-los com os objetivos, mais modestos, da socialdemocracia posterior. Importa tambm assinalar sua aceitao pelas diversas correntes do socialismo e sua continuidade no tempo. A utopia de uma nova sociedade, na qual mercado e Estado sejam dissolvidos, na qual a economia e a poltica sejam substitudas por uma ordem racional, fundada na interao consciente dos indivduos, encontra-se ao longo de toda a obra de Marx, da juventude maturidade. Mas encontra-se tambm, antes dele, nos socialistas chamados utpicos, e depois, nos anarquistas e nas correntes que reivindicam a herana bolchevique, de Lnin e Trotski.

Marcos no desenvolvimento dessa tradio so os nomes de Babeuf que ainda no sculo XVIII reivindicou a partio eqitativa da terra e da propriedade e desenhou o modelo de tomada do poder por um grupo pequeno e organizado de militantes; os socialistas utpicos Saint-Simon, Owen e Fourier Marx, principal terico da vertente comunista; Proudhon e Bakunin, formuladores do anarquismo.

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2. Conceitos fundamentais O materialismo O princpio do materialismo, ou o teorema da superestrutura, como Habermas o denomina, encontra sua sntese na conhecida expresso de Marx: no a conscincia que determina o ser, mas o ser que determina a conscincia. O enunciado implica a distino de dois tipos de fatos e a relao de determinao entre eles. A distino entre ser e conscincia significa estabelecer uma hierarquia dentro do mbito do ser, ou seja, de tudo que existe. H fatos observveis que so anteriores, e que nos fornecem a chave de o que os indivduos so. Outros fatos, englobados genericamente sob o rtulo de conscincia, so posteriores, distorcidos em relao ao padro observvel, e nos do a chave de o que os indivduos pensam que so. H, evidentemente, como qualquer comerciante que vende a crdito sabe, uma diferena significativa entre o que um indivduo e o que ele pensa que . Esse desacordo sempre resolvido em favor do "ser" do indivduo, da observao externa dos fatos fundamentais de sua existncia. No caso do comerciante, a credibilidade do cliente ser determinada pelo seu comportamento, observado a cada dia, no pelas promessas de pagamento.

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Esse exemplo ilustra a relao de determinao que tudo engloba: mesmo o desvio da conscincia em relao ao ser, suas omisses e falseamentos, as promessas desmentidas pela observao, so por ela explicados. Em outras palavras, Marx quer dizer que a dinmica essencial de cada sociedade no nos ensina apenas as leis de seu desenvolvimento, mas as razes de a sociedade perceber-se daquela maneira especfica. O critrio tomado para a hierarquizao dos diferentes fenmenos a vida. Para Marx, o fato histrico fundamental a presena e continuidade da vida humana. Da que os fatos fundamentais, por ordem de anterioridade e determinao, sejam aqueles necessrios produo e reproduo dessa vida. Numa ordem esquemtica, apresentada por Marx, a hierarquia dos fatos seria a seguinte:

Primeiro: produo dos meios necessrios manuteno da vida: alimento, moradia, vesturio; Segundo: produo dos meios empregados naquela produo, os instrumentos de trabalho; Terceiro: produo de outros homens, ou seja, a reproduo da espcie, basicamente a cargo da famlia, cuja variedade de formas historicamente observadas estaria determinada pelos dois momentos anteriores; Quarto: relaes de cooperao que os homens estabelecem entre si no processo de produo da vida; e, somente ento, aparece. Quinto: a "conscincia", na forma de linguagem, e a partir dela, o conjunto das superestruturas poltica, artstica, religiosa e outras.

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A superestrutura como um todo no dotada, nessa perspectiva, de uma histria prpria; sua histria reflexa, compreensvel apenas a partir da considerao daqueles fatos tidos como fundamentais. As conseqncias deste princpio em termos de prtica poltica so evidentes. A transformao social, a revoluo, tem um foco central e prioritrio de atuao: superar as contradies emergentes do mundo desses fatos bsicos. Simplificando, a tarefa do movimento dar soluo ao plano da produo material. Problemas postos utopia no que respeita a valores legitimidade de uma ordem poltica, de critrios de distribuio dos bens que iro vigorar numa futura sociedade socialista so desqualificados. De um lado, so encarados como projees de questes relevantes na sociedade presente, que perdero significado no futuro. De outro, os problemas importantes que restarem tero soluo automtica, uma vez mudada a base fundamental sobre a qual se sustentam.

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A evoluo

O princpio da evoluo est intimamente vinculado ao do materialismo. Se a produo material o solo sobre o qual toda a histria transcorre, o processo que determina, em ltima instncia, as demais esferas da sociedade, fcil perceber que esse processo encontra-se sujeito a uma dinmica interna, progressiva: o desenvolvimento tecnolgico.

Componente do que Marx chama desenvolvimento das foras produtivas, o desenvolvimento tecnolgico inegavelmente acumulativo. Rege-se pelo critrio objetivo da eficincia, no qual procedimentos de maior economia de meios substituem os anteriores. Sob esse ponto de vista, possvel comparar etapas diferentes da histria e concluir pela superioridade, entendida como maior eficincia, das etapas

posteriores. Se a histria real da sociedade a situada, lgico que a histria reflexa a histria da poltica, da cultura, do direito, da religio se conforme ao mesmo padro evolutivo, de modo imediato ou relativo. Numa das imagens de Marx, se o moinho movido gua produz o feudalismo, o moinho a vapor gera o capitalismo. Da evoluo decorre igualmente a concepo geral da histria como seqncia de modos de produo. De uma situao inicial de grupos humanos no organizados em classes sociais e Estado, mas segundo sistemas de parentesco (as sociedades tribais), passa-se a sociedades organizadas em classes, de vrios tipos. Marx menciona os modos de produo antigo, feudal e asitico. De diferentes formas, essa multiplicidade de modos de produo converge em direo ao capitalismo, assentado em bases tecnolgicas superiores. Da tambm a previso de uma inevitvel etapa posterior, de superao do capitalismo: o surgimento e hegemonia do socialismo.

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As classes sociais A diviso da sociedade em classes sociais o fato crucial para a compreenso de sua dinmica. As classes e seus conflitos expressam, no mundo da poltica, as contradies fundamentais da sociedade, que emergem do plano da infraestrutura. Por isso, a clebre passagem do Manifesto Comunista: "a histria de todas as sociedades que existiram at nossos dias tem sido a histria da luta de classes". Uma sntese da teoria marxista das classes sociais excede os limites deste trabalho. Indicaremos apenas alguns de seus aspectos mais importantes. Em primeiro lugar, embora numa leitura mais complexa seja possvel identificar as determinaes das classes sociais em todos os planos econmico, poltico e ideolgico parece claro que, para Marx, o fator determinante a relao com os meios de produo. As relaes particulares que estabelecem com esses meios propriedade, posse, excluso determinam a existncia de pares de classes, cada qual caracterstica de um modo de produo determinado. Assim, a parelha escravo/senhor caracteriza o modo de produo antigo; o par servo/senhor, o modo de produo feudal; e o binmio operrio/capitalista, o modo de produo capitalista. Examinemos, a ttulo de exemplo, as relaes desse ltimo par de classes. A relao dos capitalistas com os meios de produo de propriedade e controle. Os operrios esto deles desvinculados e dispem apenas de sua fora de trabalho como fonte possvel de subsistncia. So, por conseguinte, obrigados a vend-la a um capitalista, em troca de um salrio. O excedente econmico produzido no processo ser disputado pelo capital e pelo trabalho e dividir-se-, em partes variveis, entre lucro e salrio. Observamos, nesse caso, algumas das caractersticas das classes. Existem aos pares, so antagnicas no sentido de que seus interesses no so conciliveis e, em cada par, sempre h uma classe dominante, aquela cuja relao com os meios de produo a deixa em condies de apropriar-se do produto excedente. classe dominada resta a subsistncia.

SAIBA MAIS...sobre as classes sociais

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A classe dominante tem interesse na conservao do estado de coisas, na preservao de sua posio privilegiada. A classe dominada tem interesse, pelo contrrio, na subverso desse estado de coisas em seu proveito. No caso do proletariado, como a estrutura de classes havia alcanado no capitalismo sua simplificao e polarizao maior, seria impossvel aos trabalhadores libertarem-se sem libertar toda a sociedade da prpria existncia das classes. Os trabalhadores seriam o agente histrico da passagem da pr-histria do homem para a sua verdadeira histria, nos marcos de uma sociedade sem classes. Como a fora motriz da histria o desenvolvimento das foras produtivas, nos momentos de ruptura revolucionria o nvel dessas foras existentes entra em conflito com as relaes de produo estabelecidas, e passam a existir as condies objetivas da mudana, encontrando-se as classes dominadas em condies de assumir seu papel transformador. No caso especfico do capitalismo, Marx observava no interior de sua dinmica as tendncias inexorveis a sua superao. Em primeiro lugar, o carter anrquico da produo levava a esse resultado. Aps um ciclo de expanso, a economia entrava, a cada dcada, em perodos de retrocesso, com a chegada de uma crise de superproduo. Na crise, observava-se um processo de destruio enorme de foras produtivas. Empresas menores e menos aparelhadas faliam; o desemprego e a misria de massas de trabalhadores se alastravam. Os empresrios maiores incorporavam as empresas falidas e, aps um perodo de purgao, tinha incio um novo perodo de crescimento.

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O resultado acumulado de crises desse tipo era a simplificao constante da estrutura social. De um lado um nmero cada vez menor de capitalistas mais ricos contrapostos a parcelas cada vez maiores da populao, mais pobres. Um segundo processo, vinculado ao primeiro, refere-se ao incremento constante do nmero de operrios. O capitalismo no poderia crescer sem aumentar o nmero de proletrios. A idia comum era que os trabalhadores iriam constituir, em algum momento, a maioria ampla da populao e que as camadas intermedirias, como artesos e camponeses, iriam submergir na massa operria. No apenas a polarizao da sociedade tornaria o conflito de classes mais simples e visvel. Operava tambm uma tendncia no sentido de reduzir os rendimentos do trabalhador ao nvel da subsistncia. Entendida como absoluta, a hiptese do empobrecimento implica afirmar que os salrios reais manter-se-o constantes apesar do crescimento econmico. Na sua verso relativa, diz apenas que, mesmo que o salrio aumente, sua diferena em relao ao incremento do lucro tende a ser maior. A diferena crescente entre salrios e lucros constituiria mais um estimulante da conscincia poltica dos operrios e tornaria insustentvel a continuidade dessa situao. Analogamente, a concentrao progressiva da produo em poucas mos evidenciaria cada vez mais seu carter social e a contradio entre esse carter e a apropriao privada do lucro. Nesse sentido, o surgimento das sociedades por aes, a separao entre a propriedade do capital e o controle administrativo do empreendimento, era lido por Marx como uma comprovao de sua hiptese sobre o carter suprfluo da classe capitalista. Finalmente, num plano mais geral, Marx postulava a existncia, no capitalismo, de uma tendncia constante queda da taxa de lucro. O lucro provinha do trabalho vivo, dos operrios em ao. medida que o progresso tecnolgico possibilitava a reduo do trabalho vivo e sua substituio pela maquinaria, pelo trabalho morto, a margem em que se move a taxa de lucro tenderia a se reduzir, o que leva a prever a manifestao de uma nova fonte de crises, de intensidade e freqncia superiores capacidade de resposta do sistema. Marx chegou a analisar o processo de transio na direo de uma nova sociedade, de carter socialista.

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3. A Comuna de Paris: um caso de transio

Finalmente, vale lembrar que Marx chegou a testemunhar uma insurreio operria vitoriosa, ainda que por pouco tempo. O experimento da Comuna de Paris, em 1870/71, foi lido por ele como a comprovao emprica de sua teoria, o primeiro ensaio de uma futura revoluo proletria capaz de uma vitria mais duradoura. O carter nitidamente operrio do movimento e sua ao na direo do Estado, contrastavam com a direo burguesa da revolta de 1848, derrotada na Frana. O incio da guerra franco-prussiana, em 1870, determinou a convocao da Guarda Nacional para auxiliar o exrcito francs regular a enfrentar o inimigo externo. A rpida derrota e aprisionamento do exrcito na batalha de Sedan deixou a Guarda Nacional frente da resistncia na cidade de Paris, sitiada. No grau de conflito de classe ento existente, armar o povo significava convocar a insurreio. Uma primeira revolta efetivamente ocorreu, em setembro daquele ano, resultando na proclamao da Repblica. medida que as tratativas de paz avanavam, o governo republicano tentou retomar o controle sobre Paris, o que implicava, basicamente, desarmar a Guarda Nacional. As tentativas falharam e levaram a uma segunda insurreio, dessa vez de inspirao social, que proclamou, em maro de 1871, a Comuna de Paris. Seguiu-se um perodo de guerra civil, encerrado com a derrota da revoluo em maio, aps a libertao das tropas francesas prisioneiras do exrcito alemo.

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Quais as medidas adotadas pela Comuna, em sua curta histria, que levaram Marx a retrat-la como a confirmao emprica de suas teses? No plano econmico, alm de medidas favorveis a devedores e inquilinos, a Comuna entregou as fbricas abandonadas pelos empresrios a cooperativas constitudas pelos operrios que nelas trabalhavam. Encontrava-se prevista a criao de federaes de cooperativas desse tipo e, para Marx, a tarefa de coordenao de suas atividades necessariamente caberia a um organismo central encarregado da planificao. O fato de esse esboo de economia planejada haver sido implementado por militantes de tendncias anarquistas, opositores ferrenhos do planejamento centralizado, sublinhava, no entender de Marx, o carter "necessrio" dessas medidas. No plano poltico, a Comuna estabeleceu a separao entre o Estado e a Igreja. O ensino passou a ser laico e os sacerdotes deixaram de ser funcionrios pblicos. O Exrcito foi abolido, por desnecessrio, uma vez que toda a populao estava armada. A estrutura do Estado foi radicalmente alterada. O sistema representativo tradicional, fundado na separao de poderes, foi substitudo por um sistema de conselhos, as comunas. Paris foi dividida em distritos, cada qual com seu conselho eleito, que acumulava as funes

executivas e legislativas. Cada conselho enviava representantes comuna maior, representativa do conjunto da cidade. Previa-se a ampliao do sistema a todas as localidades da Frana.

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Todos os funcionrios, inclusive os juzes, eram eleitos e demissveis pelos eleitores no momento em que no mais correspondessem a sua confiana. O maior salrio pago equivalia ao de um operrio especializado. Aos olhos de Marx, esse conjunto de medidas significava o desmantelamento do estado burgus, consolidado ao tempo de Napoleo I, e sua substituio por outra forma de Estado. No bastava, portanto, classe trabalhadora, uma vez vitoriosa, simplesmente utilizar, para seus fins, os instrumentos criados pela burguesia. Cumpria-lhe criar os prprios instrumentos, aptos para efetuar a transio nova sociedade. Examinaremos, com mais detalhe, as idias de Marx sobre a transio e seu ponto de chegada no prximo mdulo. preciso registrar, contudo, que no sculo que se seguiu Comuna, o modelo de democracia baseado em assemblias voltou a brotar, espontaneamente, como observou Hannah Arendt, onde tenha ocorrido uma sublevao popular. Foi assim com os sovietes em 1905 e 1917, com os conselhos operrios nas revolues europias posteriores primeira Guerra Mundial, particularmente na Itlia, e foi assim com a insurreio hngara de 1956, contra a dominao sovitica.

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Esta unidade apresentou um pequeno histrico das idias socialistas e discutiu trs de seus conceitos fundamentais, a partir da obra do autor mais influente dessa corrente, Karl Marx. Analisamos as premissas do materialismo e da evoluo e debatemos o conceito de classe social. Finalmente, discutimos algumas idias relativas transio do capitalismo para o socialismo. Estamos em condies de passar para a prxima, na qual veremos com mais detalhe o horizonte utpico do socialismo, ou seja, de que maneira era pensada a sociedade que iria substituir o capitalismo.

Parabns! Voc concluiu a primeira unidade. Vamos prosseguir?

Unidade 2 - A utopia socialista

Unidade 2 - A utopia socialista

Nesta unidade, voc conhecer, em seus pontos principais, o pensamento marxista sobre a sociedade que substituiria o capitalismo, pinado sobretudo da crtica de Marx ao projeto de um programa para o Partido Operrio Alemo. Tambm as observaes da pensadora Agnes Heller sobre os conceitos e a possibilidade de justia nessa concepo de sociedade socialista. Analisaremos aqui, basicamente, trs pontos: 1. introduo ao pensamento socialista utpico; 2. justia e justia distributiva; 3. possvel uma sociedade alm da justia?

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1. Introduo

A curta experincia da Comuna de Paris havia deixado indicaes, para Marx, dos rumos que tomaria a nova sociedade em seus primrdios. Poucos anos depois, produziu o nico texto em que suas hipteses sobre a constituio dessa nova sociedade so apresentadas com mais clareza: Crtica ao Programa de Gotha.

Leia aqui, na ntegra, a crtica ao Programa de Gotha

O texto faz diversas referncias s disputas internas ao movimento operrio alemo. Importa aqui recuperar as idias sobre a transio de uma sociedade capitalista para uma sociedade socialista, particularmente no que se refere questo dos critrios de distribuio dos bens produzidos, ou seja, questo da justia distributiva. Antes de iniciar a discusso desse tema, dois pontos levantados por Marx, nessa obra, merecem destaque. Em primeiro lugar, o internacionalismo. Para o autor, a luta da classe operria tem incio sob uma base nacional simplesmente porque a forma de Estado que se lhe depara o Estado nacional burgus. Vitoriosa, a nova sociedade ter o mesmo impulso universalista que o capitalismo demonstra, impulso que se realizar, no entanto, tambm, no plano da organizao poltica. No limite, as fronteiras divisrias entre os diferentes Estados sero abolidas. Como diz o Manifesto Comunista, o operariado no tem ptria, ou, na forma positiva da afirmao, sua ptria a humanidade.

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O segundo ponto diz respeito forma de Estado por que luta o movimento operrio. Marx se posiciona contra a incluso de bandeiras democrticas na plataforma dos socialistas alemes. A forma que o Estado adota est determinada pelo modo de produo. No capitalismo, sua forma mais evoluda a repblica democrtica, que seria, para ele, apenas a arena poltica em que se dariam os combates finais entre a burguesia e o proletariado. Essa repblica, em sua forma plena, no existia na Alemanha de sua poca, mas sim em outros pases, como os Estados Unidos e a Sua. Reivindicaes do tipo por um Estado livre, usuais entre os socialistas, so, para Marx, uma contradio em termos. A posio clara, no demaggica, isenta de supersties democrticas, seria simplesmente reconhecer que, no perodo de transio entre a ordem capitalista e a socialista, o Estado s poder assumir a forma de uma ditadura revolucionria do proletariado.

Essa postulao revela os ensinamentos da Comuna de Paris. Ali, a vitria da reao, das foras da ordem, foi seguida por uma represso dura, na qual milhares de militantes foram mortos, presos e deportados. O processo de transformao social foi interrompido. Na verdade, s poderia haver continuado seu curso se a ao dos interesses vinculados conservao da velha sociedade tivesse sido eficientemente reprimida. Da que a forma do Estado, nessa conjuntura, seja a de uma ditadura, embora seus beneficirios constituam a maioria da populao.

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2. Justia e justia distributiva

Os comentrios de Marx a respeito desse tema esto apresentados sob a forma de crtica reivindicao, constante do programa, de repartio eqitativa dos resultados do trabalho. Afinal, o que significa exatamente eqitativo? A atual repartio no eqitativa, do ponto de vista da burguesia? possvel demandar outra forma de distribuio no interior de uma sociedade capitalista? Para responder a essas questes, necessrio fazer valer o princpio materialista: no so as relaes jurdicas que determinam as relaes econmicas, inclusive as de distribuio, mas as relaes econmicas que determinam as jurdicas. Segue-se, ento, que a distribuio do produto no capitalismo obedece lei da troca de equivalentes. O operrio receber a ttulo de salrio o estritamente necessrio a sua sobrevivncia reproduo de sua fora de trabalho e o capitalista embolsar a totalidade, sempre progressiva, do excedente. Na transio para o socialismo, por sua vez, o que ser equitativo? Quais os critrios de distribuio do produto entre os indivduos participantes da produo? Em primeiro lugar, Marx chama a ateno para o fato de que no a totalidade do produto que ser objeto de repartio. H dedues a fazer, dedues que no tm relao com o princpio da eqidade.

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De imediato, toda sociedade, qualquer que seja a sua forma, necessita repor o desgaste dos meios de produo consumidos no processo. Alm disso, uma parcela deve ser separada para fins de investimento. Uma terceira frao do produto total anual da sociedade ser carreada cobertura de acidentes de todo tipo, inclusive naturais. O montante dessas dedues vai depender do grau de depreciao das mquinas, da taxa de crescimento desejada e do clculo da probabilidade dos acidentes segurados. necessrio ainda cobrir os gastos relativos administrao do processo produtivo. Para Marx, esses gastos tenderiam a diminuir consideravelmente na nova sociedade, com a reduo progressiva da burocracia. Por outro lado, a previso de gastos com as necessidades coletivas, como escolas e centros de atendimento sade, tem sua origem tambm no produto total, devendo ser separada antes da repartio. Essa parcela tenderia a crescer no socialismo. Finalmente, as despesas com o sustento dos incapacitados para o trabalho, a previdncia e assistncia social, devem ser tambm subtradas previamente.

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Sintetizando, segundo Marx deveriam ser aplicadas as seguintes seis dedues ao conjunto da produo coletiva, antes de proceder sua diviso entre os trabalhadores:

Primeira: reposio do desgaste dos meios de produo; Segunda: parcela para investimento em novo meios; Terceira: cobertura de acidentes, inclusive naturais; Quarta: cobertura de gastos relativos administrao do processo produtivo; Quinta: gastos com necessidades coletivas (educao e sade, entre outros); Sexta: previdncia e assistncia social.

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Apenas ento pode-se processar a repartio individual do produto. Para Marx, o critrio numa sociedade recm-egressa do capitalismo s pode ser ainda a troca de equivalentes. Cada indivduo recebe proporcionalmente a sua contribuio sociedade. A palavra de ordem a cada um de acordo com a sua capacidade. Na prtica, na ausncia de mercado, no haveria concorrncia nem preos. As demandas seriam encaminhadas gesto da produo sob a forma de petio direta. Os trabalhadores receberiam algo como um vale-trabalho que lhes permitiria retirar dos armazns coletivos bens at o equivalente a aquele montante de trabalho. Observe-se que a regra a materializao do direito burgus: tratar a todos igualmente. O indivduo entrega um montante de trabalho e recebe o mesmo montante de volta, aps as dedues referidas. As limitaes inerentes a esse direito permanecem, contudo. Trata-se de aplicar uma medida igual, no caso o trabalho, a todos os indivduos. Mas os indivduos no so iguais, e o tratamento igual s tem como resultado a sua diferenciao. Assim, alguns so mais produtivos, por habilidade, resistncia ou motivao; outros so menos. Alguns indivduos so casados e tm filhos, e portanto suas necessidades so maiores, mas recebero talvez menos que um celibatrio. A regra igual produz desiguais na sua aplicao. A diferenciao com base na classe desaparece, mas persistem aquelas fundadas nas diferenas individuais.

Curiosidades sobre Karl Marx

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Com tais problemas, essa etapa inevitvel. Recorrendo uma vez mais ao princpio do materialismo, o direito no pode ser superior estrutura econmica da sociedade. Na fase superior da sociedade comunista, no entanto, quando o fim da diviso social do trabalho for fato; quando a abundncia material for a regra; quando, nas palavras de Marx, jorrarem em caudais os mananciais da riqueza coletiva, o critrio de distribuio ingressar, em conseqncia, numa etapa superior. A regra ser contemplar cada qual no mais segundo sua capacidade, mas segundo sua necessidade. Como corolrio do desenvolvimento das foras produtivas, portanto, ser possvel considerar cada indivduo em sua singularidade. A sociedade gerar o montante de riquezas suficiente para a satisfao de todas as necessidades individuais.

A questo que um horizonte utpico desse tipo levanta no a da possibilidade de sua realizao, hiptese na qual a utopia se converteria em realidade, como pensava Marx. A questo pertinente a da possibilidade de essa utopia ser pensada de maneira racional. Se a resposta afirmativa, uma utopia desse tipo pode cumprir sua funo: orientar a ao poltica no sentido da aproximao progressiva desse ideal normativo. Se a resposta negativa, essa utopia especfica dificilmente poder ser empregada, de forma conseqente, como norte da prtica poltica.

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3. possvel imaginar uma sociedade alm da justia?

Vamos apresentar nesta seo uma srie de argumentos crticos posio de Marx, tal como desenvolvidos pela pensadora de origem hngara Agnes Heller, em torno da possibilidade mesma da utopia por ele formulada. Em outras palavras, se a utopia socialista, em sua radicalidade, configura-se como uma sociedade alm da justia, na qual o tratamento igual para todos substitudo pelo tratamento singular, possvel conceber racionalmente uma sociedade desse tipo? Para responder a essa questo necessrio especificar qual o conceito de justia com que operamos. Para a autora, trs so as modalidades possveis de justia:

justia no plano formal; justia no plano poltico; justia no plano tico. Em primeiro lugar, a justia formal, caracterizada pela consistncia na aplicao das normas. Nessa definio, h justia quando todas as regras aplicam-se a todos os casos, ou seja, todos so alcanados pela lei. Um segundo plano de justia o poltico. Aqui h justia quando os valores que informam as regras a serem observadas, na condio de justas, so consensuais ou majoritrios.

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Finalmente, o terceiro, o plano tico da justia, que considera o prprio contedo desses valores, analisado a partir do prisma da soma total de virtudes aplicadas a outras pessoas. Como analisar, com a distino assinalada, os postulados de Marx? Vimos que, para Marx, a distribuio depende da produo; logo, no podemos esperar do capitalismo nada alm do que observamos. Demandar mais eqidade iluso, assim como tambm fantasioso chamar essa distribuio de injusta. Com efeito, a regra do capitalismo, a troca de equivalentes, aplica-se indistintamente a todos. Formalmente, portanto, a distribuio justa, exceto nos casos de lucros extraordinrios ou de salrios inferiores ao normal. Politicamente, a distribuio tambm justa, uma vez que h consenso, at entre os socialistas, a respeito da dependncia da distribuio com respeito produo. Se a produo capitalista, no faz sentido chamar distribuio tambm capitalista de injusta. Porm, na anlise de Marx encontra-se ausente o conceito tico de justia. Nada se diz sobre a avaliao substantiva dos valores. Essa ausncia necessria coerncia da obra marxiana, pois sua considerao implicaria admitir padres valorativos que transcendem os modos de produo, de um lado, e a liberdade autntica da sociedade socialista, de outro.

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No entanto, parece claro que se a produo um fator determinante na forma de distribuio, no o nico. Outros valores tambm tm seu peso, proporcionam outras normas e critrios, e podem fazer variar a distribuio no interior de um mesmo modo de produo. Vimos, no sculo XX, que, a partir do momento em que determinados valores foram institucionalizados, o Estado passou a interferir na distribuio dos bens, segundo critrios independentes da troca de equivalentes. Pessoas sem trabalho, sem contribuio anterior, passaram a ter direito a uma parte do produto social sem qualquer proporo a sua contribuio. Toda a experincia do Estado do bem-estar social pode ser resumida dessa maneira. Vejamos o critrio de distribuio proposto por Marx para a etapa superior da sociedade comunista. O princpio a cada qual segundo suas necessidades situa-se claramente alm da justia. Satisfao de necessidades individuais matria qual no se aplicam, por definio, normas e regras impessoais, igualmente vlidas para todos. Certamente devemos utilizar princpio desse tipo em nossas aes e julgamentos. Agnes Heller argumenta, contudo, que esse princpio, isoladamente, em todos os seus contedos possveis, tal como proposto

por Marx, inadequado para reger a distribuio em qualquer forma de organizao social.

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Uma primeira significao do enunciado pode ser a simples afirmao de que todas as necessidades de todos os indivduos sero satisfeitas. Necessidades so criadas pela produo, certo, mas tambm o so pelos valores. Marx parece subordinar as necessidades ao valor da liberdade: todos tero satisfeitas todas as necessidades que escolham. No entanto, se o valor liberdade no sofre, por sua vez, a limitao de outros valores, deixa-nos numa situao de necessidades ilimitadas e, necessariamente, insatisfeitas. Afinal, a prpria vida humana limitada e a satisfao de uma necessidade implica o sacrifcio de outras. A escassez constitutiva da condio humana e, nas palavras de Weber, na modernidade o homem morre de insatisfao. A satisfao de uma necessidade impede a de outra, de forma que uma situao de satisfao de todas as necessidades de todos os indivduos no faz sentido. Uma segunda leitura do princpio marxista, no entanto, pode dizer que a escolha das necessidades a serem satisfeitas cabe a cada indivduo e s a ele. Ningum tem o direito de impor uma determinada hierarquia de necessidades. A determinao apenas interna, nunca externa. A questo posta a essa interpretao a forma como se do as hierarquias de preferncias individuais. Os indivduos escolhem conforme seu gosto pessoal? A sociologia sabe que falar de necessidades e de preferncias individuais por essas necessidades implica falar de valores, integrados em vises de mundo coerentes, materializados em instituies sociais. Sem isso, no vazio, no h preferncias individuais. Em outras palavras, as escolhas de cada indivduo se do no marco de um modo de vida particular, que inclui grupos e coletividades, nunca apenas indivduos.

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Pensar uma sociedade situada alm da justia implica pensar a sociedade como um conjunto de tomos, cada qual dotado de autonomia moral absoluta. Marx criticava a fundamentao da economia na atividade de seres humanos isolados, como Robinson Cruso, sempre citado como exemplo pelos economistas clssicos. No plano moral, dos valores, no entanto, incorreria num tipo semelhante de equvoco. Para Agnes Heller, a nfase na liberdade individual que uma sociedade socialista acolher no a libertao completa do indivduo em relao ao coletivo, o que seria uma tarefa impossvel. A alternativa, mais modesta, seria oferecer ao indivduo a possibilidade de escolha entre um leque de modos de vida diferenciados. Persistem problemas ainda na construo de Marx. A sociedade, seja ela qual for, uma vez que num modelo robinsoniano essa questo complicada, no satisfaz diretamente as necessidades de cidado algum. O que est a seu alcance o provimento dos meios para tal. O exemplo evidente o da sade. O Estado prov hoje, ou deveria faz-lo, os meios para que cada cidado mantenha-se saudvel. A sua utilizao ou no de responsabilidade de cada um. No entanto, a disponibilidade dos meios, a que a sociedade procede, exige para sua distribuio critrios de justia, isto , igualmente aplicveis a todos.

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Mesmo o requisito da abundncia material pode ser discutido. Se as estruturas de necessidades so simbolicamente definidas, com o recurso a valores, abundncia e escassez so categorias relativas. Numa situao de pluralidade de modos de vida, cada qual com a sua prpria definio de abundncia, o princpio a cada qual segundo suas necessidades pode funcionar como princpio regulador, ou seja, deve indicar no que todas as necessidades sero satisfeitas, mas que todas devem ser igualmente consideradas e reconhecidas como legtimas. Retornemos ao princpio reitor da primeira fase: a cada qual segundo sua capacidade. Conforme Marx, esse princpio, como todo princpio de justia, gera injustia. Mas Marx demonstra apenas que esse princpio no eqitativo, no que injusto. No entanto, essa diretriz compatvel com a aplicao, corretora, do critrio da necessidade. o que parece haver realizado o estado do bem-estar social. Em sntese, para Marx toda aplicao da justia equivalia a uma situao de injustia. Os homens so nicos e incomensurveis, de forma que todo padro de justia igualmente aplicvel a todos constrange a liberdade humana, alm de produzir desigualdade. Da que a igualdade e com ela a justia tenha sido localizada numa primeira fase da transio para o socialismo. A segunda fase, com a realizao da liberdade absoluta, prescindiria da justia. No haveria igualdade nem a aplicao de qualquer padro comum a todos os indivduos.

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Que a liberdade deva ser um dos valores constitutivos da justia aceitvel. J a eliminao simples da justia numa sociedade futura no , como vimos, uma imagem racional, a menos que aceitemos a possibilidade de uma sociedade constituda por tomos, uma associao de indivduos isolados. Numa sociedade sem classes, na qual a liberdade integre efetivamente como valor o contedo da justia, os indivduos podero exercer a liberdade positiva de deliberar constantemente a respeito das regras que regero suas atividades. As deliberaes podero ser diferenciadas, conforme o modo de vida em questo. Mas tero tambm, conforme cada modo, um grau variado de liberdade negativa, em que normas comuns no vigoram para todos.

Com isso em mente, faamos, neste momento, a auto-avaliao da unidade.

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Unidade 2 - A Utopia Socialista

Vimos, nesta unidade, as idias de Marx a respeito dos critrios de justia distributiva numa sociedade socialista. Discutimos, tambm, as crticas que, nesse ponto, Agnes Heller dirige ao modelo marxista. Encerramos, assim, a apresentao dos conceitos mais importantes da doutrina socialista e estamos em condies de analisar, na prxima unidade, a tentativa de implementao prtica desse sistema, no sculo XX: a experincia do socialismo real.

Parabns! Voc concluiu a segunda unidade. Vamos prosseguir?

Unidade 3 - O Socialismo Real

Unidade 3 - O Socialismo Real

Nesta unidade, buscaremos percorrer a trajetria socialista desde a sua implantao num regime duradouro, com a Revoluo Russa de 1917, at o desmantelamento do sistema, nos episdios que culminaram com a queda do Muro de Berlim, investigando as possveis principais razes da falncia desse modelo.

Nesta unidade, examinaremos sobre a trajetria socialista:

a migrao de uma revoluo proletria para o totalitarismo; as razes dos diversos apoios URSS; as principais causas para sua queda, do perodo do ps-guerra extino da URSS em 1989

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1. Da revoluo ao totalitarismo

Em 1917 ocorre a Revoluo Russa, primeira experincia continuada que tentou pr em prtica as idias que Marx havia adiantado a respeito da futura sociedade. difcil hoje, decorridas quase duas dcadas do fim desse processo com o desmantelamento da Unio Sovitica em 1989 , avaliar plenamente a significao histrica desse evento. No entanto, patente que o mundo em que vivemos, no decorrer de todo o sculo XX, foi conformado pela presena de uma alternativa vivel ao capitalismo. O prprio sistema capitalista se modificou, atenuou seus traos "selvagens", permitiu o incremento das condies de vida de seus trabalhadores em funo da presena de um sistema alternativo, capaz de competir pela adeso dos trabalhadores de pases centrais e perifricos. Essa a razo de Hobsbawn delimitar o breve sculo XX entre o incio da primeira grande guerra, em 1914, que marca o fim da belle poque, e a queda do comunismo nos pases do leste europeu, em 1989. O fim da guerra fria, da diviso do mundo em duas grandes esferas de influncia, viu surgir um mundo to diferente que aos nossos olhos contemporneos parece marcar uma diviso de eras. A revoluo russa deu seus primeiros passos nos rumos previstos por Marx. Em termos econmicos, teve incio o processo de transferncia dos meios de produo das mos dos capitalistas para o Estado, e a conseqente substituio do mercado como mecanismo regulador pelo planejamento centralizado.

Para melhor compreender a Revoluo Russa, assista ao vdeo abaixo.

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Esse processo no avanou de maneira uniforme. At o incio da dcada de 1920, vigorou a "Nova Poltica Econmica", que concedia alguma margem de manobra iniciativa privada, fundamentalmente a pequenos produtores, rurais e urbanos. Na dcada seguinte, no entanto, voltou a prevalecer o eixo de eliminao da propriedade privada. Foram os anos da coletivizao forada do campo. Os camponeses abastados, os kulaks, desapareceram como classe e suas terras foram agrupadas em fazendas estatais ou cooperativas de explorao coletiva. Milhes de pessoas perderam a vida no processo, seja pela represso direta, seja em decorrncia da fome que se seguiu desorganizao da produo. No plano da poltica, a revoluo teve incio com a supresso do aparelho estatal e sua substituio pela democracia estruturada em torno das comunas russas: os sovietes. No entanto, a represso estendeu-se progressivamente. Em primeiro lugar, aps a revoluo de fevereiro, as organizaes monarquistas foram proibidas. Aps outubro, os partidos da base de apoio do governo derrubado, liberais e mencheviques, tambm foram objeto de perseguio. Nos primeiros anos do novo regime, foi a vez dos aliados dos bolcheviques, os anarquistas e socialistas revolucionrios. Finalmente, aps a morte de Lenin e na esteira da luta que se seguiu pela sucesso, a prpria velha guarda bolchevique foi sendo progressivamente expurgada, presa, submetida a julgamentos encenados e eliminada fisicamente.

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A essa altura, a democracia conciliar existia apenas formalmente. O centro do poder deslocara-se dos sovietes para o aparelho partidrio. Cumpriu-se, dessa forma, o prognstico que o velho lder anarquista, Kropotkin, fizera a Lnin no incio da revoluo: os bolcheviques haviam dado vida a um monstro que os devoraria no futuro. A partir de ento, o regime aproxima-se cada vez mais de um modelo totalitrio. O expurgo passa a ser necessrio, a fazer parte da lgica da poltica. Toda possibilidade de discordncia, na poltica, na arte, mesmo na cincia, abortada. Exemplar do controle do poder poltico sobre todas as esferas da sociedade foi o caso protagonizado pelo bilogo Lisenko. Segundo a teoria por ele desenvolvida, caracteres adquiridos, ao contrrio do que afirmava a gentica tradicional, "burguesa", eram passveis de transmisso descendncia. Essa verso "dialtica" de uma cincia foi imposta, com o beneplcito de Stlin, aos cientistas soviticos, constituindo o pretexto para inmeros expurgos e prises. Da mesma maneira, os cientistas comunistas dos pases ocidentais foram submetidos a profisses de f, amplamente divulgadas, na nova "biologia revolucionria". A proibio formao de faces no interior do Partido Comunista, ainda na dcada de 1920, marca o fechamento do nico espao ainda relativamente aberto ao debate. A partir de ento a dinmica dos expurgos ganha fora e, em poucos anos, a gerao partidria que havia feito a revoluo encontrava-se presa ou executada. Momento crucial da mudana foi o julgamento e execuo, em 1936, de Bukharin, obrigado a confessar, entre outros crimes, a colaborao com as potncias capitalistas ocidentais. Nesses mesmos anos se verificava a ascenso, cpula do Partido, de Beria, promotor de todos os expurgos futuros. Inmeras so as razes aduzidas para a progresso do regime sovitico no rumo do totalitarismo. Alega-se a necessidade de enfrentar a guerra civil, apoiada por potncias estrangeiras, o isolamento da revoluo aps a derrota dos movimentos revolucionrios na Europa ocidental, entre outros. No se pode desconhecer, no entanto, a lgica imanente da revoluo de encarar todo e qualquer conflito poltico como expresso da oposio de classe contra classe, passvel, portanto, de emprego de meios de represso.

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2. Apoio e aplauso ao socialismo

Questo igualmente interessante o apoio amplo e militante que o novo regime recebeu dos movimentos operrios e de libertao nacional e da intelectualidade ao redor do mundo. Quais as razes desse apoio e de sua persistncia no tempo? Que levava cientistas de renome a compactuar com a fraseologia de Lisenko? Que levava militantes experimentados a "acreditar" nas farsas judiciais que incriminavam como traidores os heris da vspera? A propaganda era constante, mas por que acreditar na propaganda? Em primeiro lugar, necessrio lembrar que a democracia passava por um perodo de intenso descrdito. Identificada com o liberalismo e, por tabela, com os interesses britnicos, seu apelo era reduzido. O perodo entre as duas guerras assistiu ao fortalecimento das opes antidemocrticas, esquerda e direita, comunistas de um lado e fascistas e assemelhados do outro. Em segundo lugar, preciso ter em mente o sucesso econmico inicial do modelo, particularmente quando contrastado com um capitalismo abalado por uma persistente crise. A partir de 1929, enquanto os pases de livre mercado estagnavam, a Unio Sovitica crescia todo ano a taxas muito elevadas. O planejamento centralizado parecia haver provado sua superioridade sobre a irracionalidade da livre iniciativa. Em terceiro lugar, havia o evidente sucesso social, entendido como a incluso de toda a populao a padres de vida considerados dignos. O acesso sade e educao tornou-se universal, e uma sociedade igualitria, em termos de distribuio de renda, comeou a ser construda. Evidentemente, tratava-se de uma sociedade austera, de nvel de vida mdio inferior ao das classes altas ocidentais. No entanto, o padro de vida alcanado, alm de suficiente e eqitativamente distribudo, superava o da classe trabalhadora dos pases capitalistas.

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Decorrente do progresso educacional, destacava-se o sucesso no plano cientfico. A massificao da educao superior resultou numa das maiores taxas de doutores por habitante do planeta, com produo cientfica relevante em diversos campos, segundo todos os indicadores

utilizados. Importante lembrar que esse poderio cientfico jamais se traduziu em avano tecnolgico, exceto naquelas esferas excludas da produo de mercadorias, como a indstria blica e a corrida espacial. Finalmente, a posio da Unio Sovitica no plano internacional angariava as simpatias dos movimentos de libertao das colnias, bem como do conjunto das foras progressistas do terceiro mundo. O papel do pas na derrota do nazi-fascismo, a participao dos comunistas na resistncia, deixaram um importante estoque de legitimidade no ps-guerra. Posteriormente, o apoio aos movimentos de libertao ao redor do mundo desempenhou um papel similar na sua manuteno. Embora possa ser argumentado que esse apoio subordinava-se diviso do mundo em esferas de interesse das duas grandes potncias, ou seja, tornava-se apenas formal nos casos ocorridos na rea de ao dos norte-americanos, ou mesmo que se tratava de um apoio interessado, de uma subordinao dos interesses dos movimentos progressistas ao interesse nacional sovitico, parece clara a ocorrncia de apoios de forte base ideolgica. Como assinala Hobsbawn, difcil encontrar um componente interessado no apoio continuado a organizaes como a OLP ou o Congresso Nacional Africano. Face a esse rol de razes, a posio do partidrio do regime no mundo capitalista tendia a desqualificar as denncias como simples propaganda da "imprensa burguesa". Mesmo que contivessem verdades parciais, o dficit em democracia era visto como temporrio, imposio da guerra fria, e amplamente compensado pelos supervits em igualdade, justia social e solidariedade internacional

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3. A URSS do ps-guerra derrocada

O fim da segunda guerra mundial marcado pela expanso do sistema para fora das fronteiras da Unio Sovitica. A Europa oriental, mediante doses variadas de coero e participao popular, define-se pelo sistema a partir de 1948. Seguem-se China, Coria do Norte e Vietnam do Norte. Nos anos 50 vem o ingresso de Cuba. Na dcada seguinte, a Indochina, e, nos setenta, alguns pases da frica. O ltimo e malogrado degrau dessa escalada foi a invaso do Afeganisto, j nos anos 80. O fato que o mundo do ps-guerra caracterizou-se pela bipolaridade. A guerra fria ditou a dinmica das relaes internacionais, em alguns momentos com a vantagem aparente para o bloco sovitico. Talvez o momento de otimismo mais intenso para os soviticos tenha ocorrido ao final da dcada de 1950, aps a denncia, por parte de Krushev, dos crimes cometidos por Stlin. Apesar da crise que se abateu sobre o movimento comunista afinal as mentiras da imprensa burguesa revelavam-se verdades uma expectativa de democratizao foi criada. Esperava-se que a reforma fosse alm da eliminao das caractersticas mais claramente totalitrias do regime, no rumo de uma nova ordem poltica democrtica. Alm disso, a economia continuava a crescer a taxas expressivas, o que levou aquele lder sovitico a prognosticar a ultrapassagem da economia americana no espao de duas ou trs dcadas. Finalmente, a Unio Sovitica havia iniciado a corrida espacial, aparentando estar na vanguarda tecnolgica do planeta. Krushev derrubado em 1964. No prolongado governo que se seguiu, liderado por Breshnev, todas as expectativas alimentadas no perodo anterior foram sendo frustradas. A economia entrou num perodo de estagnao e a perspectiva de ultrapassar os americanos tornou-se uma quimera. A corrida espacial logo mostrou ntida vantagem americana, e o nvel de vida da populao sovitica comeou a crescer de forma muito mais lenta que o de seus vizinhos capitalistas.

SAIBA MAIS sobre a queda da Unio Sovitica

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Por que o sistema estagnou, aps dcadas de crescimento elevado?

Uma explicao plausvel supor que os limites da planificao central, como instrumento preponderante de coordenao econmica, haviam sido alcanados. Conforme essa hiptese, chegou um momento em que a economia e a sociedade se tornaram demasiado complexas para a capacidade de resoluo de um nico plano. Nesse momento, as ineficincias pontuais comearam a somar-se e a potencializar seus efeitos. A produo entra em declnio, manifesto na escassez, democraticamente (com a importante exceo das cpulas partidrias) distribuda nas filas. Questo mais intrigante a persistncia da situao de estagnao por mais de duas dcadas, sem sinais de tentativas de alterao de rumos. A posteriori relativamente simples diagnosticar a falta de mecanismos de correo do sistema. Um primeiro tipo de mecanismo de mercado permitiria a localizao imediata dos pontos de estrangulamento da economia, os bolses de ineficincia, primeiro passo para sua extirpao. Na falta de mercado, a crise era camuflada, o desempenho falseado nos informes burocrticos encaminhados s instncias superiores e as responsabilidades diludas no coletivo.

Um segundo mecanismo possvel de controle tambm se encontrava ausente: a democracia. O livre debate e crtica dos resultados econmicos poderia levar a uma correo de rumos. No entanto, a desestalinizao apenas removera o mecanismo totalitrio, remanescendo um Estado fortemente ditatorial. No havia mais expurgos, prises, confinamentos e execues como antes, mas a liberdade de expresso e organizao no se restaurara.

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A conscincia da necessidade das mudanas comea a infiltrar-se nos quadros partidrios. Obedecendo a uma ordem lgica, aqueles setores com mais informao sobre os acontecimentos do mundo exterior ou seja, a diplomacia e o servio de informaes , convenceram-se em primeiro lugar da necessidade de reformular radicalmente o sistema sob pena de derrota imediata. Em outras palavras, se o objetivo era manter uma alternativa real, competitiva, ao sistema capitalista, o socialismo real deveria ser completamente alterado. Essa a proposta que ganhou o poder, em primeiro lugar com Andropov, posteriormente com Gorbachev. Foi sintetizada nas palavras glasnost (transparncia econmica e poltica) e perestroika (reestruturao). Sabemos que o projeto de auto-reforma do sistema fracassou. A intensidade dos conflitos encobertos em setenta anos de socialismo ultrapassou os meios disponveis para levar a transio a bom termo. A transparncia na economia e a aceitao tmida de mecanismos de mercado no resultaram em aumento imediato da produo, mas num momento de desorganizao produtiva. Alm disso, introduziu, desde o primeiro momento, a presena do risco, fazendo perigar a segurana econmica, embora num padro limitado, que o sistema garantira at ento a todo cidado sovitico. A mudana parecia conduzir a um mundo com todos os males do capitalismo e nenhuma de suas vantagens. Embora no fosse reversvel, dificilmente seria possvel a permanncia no poder do grupo que iniciara o processo.

Curiosidades sobre Mikhail Sergueievich Gorbachev

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Mesmo assim, pode-se afirmar que o colapso era inevitvel? Mesmo a tentativa de auto-reforma era indispensvel? Afinal, por que no prosseguir no mesmo rumo, com mais vinte anos de estagnao? A tentativa de resposta a essas questes exige um exame das mudanas que ento ocorriam no mundo capitalista. Aps a segunda guerra mundial, tem incio um perodo de crescimento econmico continuado que perdura por trs dcadas. Essa "era de ouro" do capitalismo apresentava a particularidade de dispensar mudanas tecnolgicas de monta, de maneira que o desemprego manteve-se relativamente baixo nos Estados Unidos e na Europa ocidental. Para os marxistas, essa situao era considerada evidncia do fato de a contradio entre as relaes de produo capitalistas e o desenvolvimento das foras produtivas haver alcanado seu estgio final. Sob o capitalismo os avanos cientficos no mais conseguiam ser transpostos para tecnologias aplicveis produo. Quando muito, eram revertidos para o desenvolvimento de foras destrutivas, como no caso evidente da energia nuclear. Esse perodo tem o seu final nos primeiros anos da dcada de 1970. A desvinculao do dlar em relao ao ouro e o choque dos preos do petrleo iniciaram um perodo de turbulncia econmica, com fortes implicaes polticas.

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A mudana de fundo, no entanto, j se encontrava em curso. Uma seqncia de inovaes cientficas e tecnolgicas, nos campos da informtica, da robtica, da qumica fina, dos novos materiais, da biotecnologia, comeava a acontecer. A articulao entre essas inovaes potencializava seus efeitos e acelerava o ritmo da mudana. O resultado dessas mudanas, denominadas genericamente de revoluo cientfico-tecnolgica, foi a reduo do tempo necessrio locomoo de bens e pessoas. O mundo encolheu e a informao passou a circular em tempo real. Todas essas mudanas ocorreram no mbito do capitalismo. sintomtico o fato de a estrutura de produo cientfica do socialismo, comparvel capitalista, no haver conseguido incorporar-se ao processo de inovao de tecnologia. Pelo contrrio, a nova economia que surge dessa revoluo parece necessitar de mercado, ou seja, de decises econmicas automticas e descentralizadas e de algum grau de democracia, de circulao plena das informaes. A ausncia de ambas as condies havia levado, como vimos, situao de estagnao do mundo sovitico. Nas novas condies, a carncia se tornava mais grave, pois sinalizava a impossibilidade de o sistema sovitico alcanar e superar o capitalismo ocidental.

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A estagnao em si j estava abalando a legitimidade do regime, pois, nesse perodo, alguns pases capitalistas menores haviam superado os soviticos at nas reas que constituam ponto de honra do socialismo: a sade e a educao. Segundo Hobsbawn, o simples fato de a expectativa de vida do sovitico haver sido ultrapassada por pases capitalistas europeus representava um forte abalo na legitimidade do sistema, principalmente para seus operadores polticos, a burocracia partidria. A revoluo cientfico-tecnolgica soma-se a esse quadro. A perspectiva passou a ser o salto em produtividade, riqueza e qualidade de vida dos pases capitalistas desenvolvidos, com o conseqente aumento da distncia em relao a um bloco comunista, no seu conjunto, estagnado. Tornava-se difcil, seno impossvel, manter a lealdade do povo com qualquer combinao de persuaso e coero que se empregasse. Em suma, na perspectiva da avaliao aqui apresentada, a queda do socialismo real deveu-se incapacidade que o sistema mostrou de cumprir as promessas que o sustentavam. O dficit em liberdade e democracia era tolervel enquanto percebido como temporrio, como prprio de uma etapa de conflito intersistmico, anterior vitria socialista que instalaria a abundncia e a igualdade.

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O salto tecnolgico do capitalismo mostrou a insuficincia do experimento sovitico para suplant-lo. A etapa posterior de vitria desapareceu do horizonte, e as mazelas at ento aceitas e justificadas num clculo ilusrio de perdas e ganhos de longo prazo passaram a ser compreendidas apenas como mazelas, a serem eliminadas com a maior rapidez possvel. Outras avaliaes da queda do socialismo real do nfase a momentos pontuais da histria, a decises polticas equivocadas, s potencialidades abandonadas pelo sistema, em razo do resultado das disputas intrapartidrias em vrios instantes cruciais. Todas afirmam, em ltima anlise, a viabilidade do sistema, mesmo sob novas condies, no caso de decises polticas corretas. Hobsbawn, para citar um exemplo, d grande importncia ao fato de os soviticos haverem se beneficiado dos aumentos do preo do petrleo, entrando no mercado como vendedores, abastecendo-se assim das divisas de que precisavam. A dependncia de um resultado comercial favorvel com o Ocidente teria sido fatal no mdio prazo para o regime. Postula-se, implicitamente, com essa posio, a hiptese de isolamento, com sucesso, do bloco. O mundo comunista poderia, nas novas condies, manter-se austero e igualitrio, independentemente do que estivesse ocorrendo nos pases capitalistas.

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Na mesma vertente corre a explicao que assinala a causalidade imediata. Soviticos no teriam conseguido competir na corrida armamentista, e a economia ter-se-ia arruinado no esforo de guerra. Retornamos aqui explicao de cunho estrutural. Quais as razes dessa ineficincia relativa? Em alguma engrenagem de seu funcionamento o socialismo real perdera a competio e deixara de ser alternativa ao capitalismo. O impulso formulador de novos modelos para a esquerda, objeto dos prximos mdulos, deriva, em boa medida, da autocrtica radical da experincia sovitica, da convico de que esse modelo demonstrou ser incapaz, nas condies presentes, de atingir os objetivos de longo prazo que caracterizam uma poltica de esquerda.

Passemos agora a mais uma auto-avaliao.

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Concluso

Acompanhamos, neste mdulo, a ascenso e declnio do sistema conhecido como socialismo real. Examinamos as razes de seus sucessos parciais, assim como as causas de sua estagnao, aps um expressivo perodo de crescimento acelerado. Vimos, em sntese, que a economia centralmente planificada revelou suas limitaes, medida que a sociedade foi tornando-se mais complexa. A revoluo tcnico-cientfica, ocorrida no mbito do sistema capitalista, decretou a impossibilidade de o socialismo competir e, em ltima anlise, de subsistir.

Palavras Finais

Palavras finais

Muito bem, voc chegou ao final do curso de Doutrinas Polticas Contemporneas: Socialismo! Esperamos que os conhecimentos aqui adquiridos sejam importantes para sua vida pessoal e profissional. E que voc os multiplique, pois assim estar no s aprimorando e consolidando seu aprendizado, mas tambm ajudando a construir uma coletividade mais consciente e cidad.


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