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D O S T O E V S K I : A D U P L I C I D A D E N A E S T R U T U R A N A R R A T I V A D E
O DU PLO *
Sigrid Rnau x **
Introduo
T 1 Proposio
Este trabalho pretende examinar e considerar, tendo como embasa-
mento terico os estudos de Mikhail Bakhtine e Leonid Grossman, a estrutura
narrativa de O Duplo, *** a f im de demonstrar que a " forma" deste ro-
mance, que Dostoevski considerou "fracassada", na realidade um reflexo
do contedo bifurcado, isto , a duplicidade ou fragmentao da estrutura
corresponderia ao esfacelamento ou bifurcao do contedo, atravs do des-
dobramento da personalidade da personagem principal. A anlise ser com-
pletada com uma tentativa de encaixar parte do simbolismo da narrativa
no explorado completamente por Bakhtine e Grossman, no contexto de du-
plicidade da estrutura, como sugesto para uma futura pesquisa do simbo-
lismo em outras obras de Dostoevski.
Assim, aps o levantamento de elementos ao nvel da narrativa, tentar-
-se- articulao deles, para chegar a uma interpretao da obra que se
coadune com o mundo imaginrio de Dostoevski, e com a viso polivalente
que ele nos deu da sua e da nossa realidade.
1.2. O tema de O Du plo na literatura e sua influncia sobre Dostoevski
O conceito da existncia de um "duplo", de uma rplica exata mas ge-
ralmente invisvel de cada homem, pssaro ou animal, uma superstio
muito antiga e difundida. Na crena popular pensava-se que a alma pudesse
sc separar por um certo tempo do corpo, ou acompanh-lo como sombra.
* Trabalho final apresentado ao professor de Teoria liter ria. Dr . Boris Schnai-
derman, na disciplina Anlise das Estruturas Narrativas dos Contos de Dos-
toevski no Curso de Ps-Graduao da Universidade de So Paulo e que me-
receu conceito A. Junho 1975.
* Sigrid Paula Maria Lange Scherrer Rnaux Mestre em Estudos Anglo-Ame-
ricanos pela Universidade de So Paulo (1974) com a Dissertao Word, Image
and Symbol in H.D.'s Early Nature Poetry. Publica na revista Letras desde
1971. Auxiliar de Ensino de Lngua e Literatura Inglesa na Universidade Fe-
deral do Paran.
** Todas as referncias a O Duplo na anlise foram tiradas da edio brasileira
da Obra Completa de Dostoevski, v. 1. Traduo de Natlia Nunes. Rio,
Aguilar, 1963.
Leiras, Curitiba (25): 347 - 400, jul. 1976
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Bakht ine observa porm que Dosto evsk i no se insp i ra d i re ta ou cons -
c ientemente na Sti ra Menipia , apesar de acharmos em sua obra todas as
particularidade de la ; e le apenas pegou a corrente que atravessava sua po-
ca . pois a Menipia est presente no na memria subjetiva de Dostoevski ,
mas na memria ob je t iva do gnero que e le empregava . Dos to evsk i inc lus ive
ultrapassa os autores da Menipia antiga , pois esta ignorava a pol i fonia ,
p reparando- lhe apenas o caminho, com o Di logo Socr t i co .
Continuando sua anl ise d iacrnica , Bakhtine expl ica como se deu o de -
senvolv imento pos te r ior da Menip ia na Idade Md ia , Renascena e Epoca
Moderna , sempre renovada por mtodos a rt s t i cos e correntes l i te r r i as d i -
ferentes . A carnaval izao, ento, at ingiu Dostoevski como tradio de g -
nero l i terrio, cuja fonte no l i terria , o carnaval , pode nem ter s ido per-
ceb ida . A fon te principa l da carna val izao p ar a a l i teratu ra dos sculos
X V I I , X V I I I e X I X encont rava -s e nos au to re s da Renascena Boccacc io .
Rabela is , Shakespeare , Cervantes como nos romances p icarescos , pois os
escri tores destas pocas t i raram muito da l i teratura carnaval izada da Anti -
gidade e Idade Mdia . Dostoevski ass imi lou a carnaval izao atravs destas
d ive rsas fontes , ma i s p ro fu nda m ente porm , a travs de Ba lzac . Sand , Hu go,
carnaval izao que se traduz por sua ambiva lncia . De Sterne e Dickens .
Dosto evsk i herdou uma mis tura de ca rnava l i zao e sent imenta l i smo; de
Poe e Hof fmann, ca rnava l i zao e ideo log ia romnt ica . Sof re , a lm d i s so ,
inf luncia de Go gol e Push kin. Con clui Bak htin e qu e na ob ra de Dostoevski
a t rad io ca rnava lesca renasce tambm de modo pessoa l , combinada com
outros momentos art st icos e servindo a outros f ins , l igada como est a to-
das as pa rt i cu la r idades do romance po l i fnico .
J pa ra Grosman .
4
os ss ias jun to com os pensado res e sonhado res ,
jovens ultra jadas , devassos , pa lhaos voluntrios , os puros e os justos so
um dos Le i tmoti fs da potica de Dostoevski , que def inem as f iguras e dra -
mas da sociedade humana por e le cr iada . Repeties temticas atravessam
toda sua obra e seu interesse pe los fenmenos de dupla personal idade, ma-
nias e h ipnot i smo inaugu ra - se exatamente com Gol i dk in , pe rson agem cen-
t ra l de O Dup lo (O Ss ia , em Grossman) . Por outro lado , como a f i rma Gross -
man, o p r inc ip io da i luminao b i la te ra l do tema pr inc ipa l mantm-se domi -
rante em Dos to evsk i ,
5
re lac ionan do- se com os fenm eno s do aparec imento
de "ss ias" que exercem funo importante quanto s id ias , ps icolog ia e
compos io . E essa b i furcao do tema pr inc ipa l se r i a um processo a rt s t i co
aprendido na msica . lembrando o " jogo de dois espe lhos face a face , e
que env i am um pa ra o ou t ro a mesma imagem" .6 a id ia tam bm do
"punctum contra punctum" , to ca ra a Dosto evsk i , ou se ja , da apresentao
4 GR OS SM AN , Leonid. Dostoievski artista. Rio de Janeiro, Civilizao B ra -
sile ira , 1967. p . 136-7.
5 I b i d . , p . 3 4 .
G I b i d . , p . 3 2 .
Letras, Curitiba 1251: 347 - 400, ju l. 1976
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de duas narrativas paralelas, "competindo em tenso de paixes e intensidade
de sofrimento" .?
Se, portanto, as fontes do "duplo" na l iteratura remontam at a Anti-
gidade Clssica e Dostoievski as absorveu subjetivamente atravs de sua vasta
leitura de escritores renascentistas e romnticos, como afirma Bakhtine por
um lado, e Grossman por outro, que o leitmotif do "duplo" exerce funo
Importante entre as leis bsicas de composio Dostoievski, evidente que
deva ser dada a O Duplo, obra em que aparece pela primeira vez a bifurca-
da conscincia cm Dostoievski, uma leitura mais em profundidade, obra
bsica que para a compreenso dos grandes romances posteriores: o tema
do "sub-solo espiritual" em O Duplo
prenuncio daquela decadncia que matizou claramente as obras
do romancista que envelhecia. Os sofrimentos patolgicos das per-
sonagens, dominadas pela fragmentao do pensamento, possudas
de um a excitabi lidade doentia [ . . . ] que perdem o juzo [ . . . ] que
se inclinam para as alucinaes e as idias f ixas e, por f im per-
dem o dom do pensamento lgico e a unidade do discurso-8
so fenmenos todos magistralmente expressos em Os Demnios e Os
Irmos Karamazov.
Poderamos ainda mencionar, como complementao, a opinio de Arnold
Hauser, para quem a psicologia moderna comea com a descrio da
discrdia interior da alma, e a expresso mais palpvel da discordncia do
esprito consigo prprio a idia do "double". Dostoievski, segundo Hauser,
descobriu "o princpio capital da psicologia moderna: a ambivalncia dos
sentimentos e a mltipla natureza de todas as atividades espirituais" e esta
desintegrao, "que consiste no s na incoerncia dos elementos da alma hu-
mana, mas tambm no seu constante deslocamento e transformao, reva-
lorizao e reinterpretao", so uma conseqncia da luta contra o ro-
ma ntismo e da oscilao entre as atitudes ro m ntica e no-rom ntica- 9
1.3 Histrico de O Dup lo:
O Du plo foi publica do em prim eiro de fevereiro de 1846, nos Anais da
Ptria, duas semanas aps a publ icao de Gente Pobre. Segundo Rafael Can-
sinos Assens, no prlo go da edio e spanhola do roma nce, to Dostoievski, no
intervalo entre Gente Pobre e O Duplo, havia se inimizado com Bielinski e
deixado de ser o jovem gnio que se acreditava. Suas exibies nos sales
literrios lhe foram fatais, afastando-lhe todas as simpatias. Dostoievski foge
das pessoas, sente-se repelido e se afasta, se perde durante temporadas in-
7 GRO SSM AN, p. 31.
8 Ib id ., p . '109.
9 HA USER , Arnold. Histria social da literatura e da arte. So Paulo, Mestre
Jou, 1972. v. 2, p . 1025-6.
10 DO ST OIEVSK I, Fiodos M . Obras completas. Madrid, Aguilar, 1953. v. 1,
p. 207.
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te i ras , va i por essas ruas " fa lando sozinho" , como diz sua f i lha . Nestas con-
d ies esc reve O Dup lo , e s ta es tranha nove la , na qua l se unem um "sangran-
te " rea l i smo ps ico lg ico com as fants t i cas penumbras dos Contos de Hof f -
m a nn .
Se bem que Dosto evsk i na poca aca lentasse g randes esperanas em re -
l a o a O Dup lo , c omo e s c reve ra ao i rmo ( "Go l i adk ine va i bem encami -
nha do. S e r a min ha ob ra p r i m a " " ) j em dezesse is de no vem bro de 1845.
e seus p r ime i ros cap tu los te rem produzido extraord inr i a impresso nos
amigos , e le e s tragou a id ia baude la i r i ana de que "em cada homem h do i s
pos tu lantes s imultneos , um vo l tado a Deus e outro para Satans " , segundo
Henr i Troyat , porque no soube dominar a in f lunc ia de Gogo l , do qua l
ressa ltam frases inte i ras em O Duplo
1 2
. Por i s so , mesmo Dosto evsk i e s for -
ando- se por apagar os ves t g ios gogo l i anos , no fo i su f i c i ente para sa lva r
O Du p lo , qu e f icou sempre um rom anc e " m ane i ra de " , em bo ra genia l. W
E a segunda reao ao romance foi a cr t ica de que se tratava de uma
obra "es tranha" , que no correspond ia expecta t iva c r i ada pe la sua pr i -
me i ra obra , n s pe lo fa to de no haver ma is romance soc ia l ( em voga
na Rss ia na poca ) como tambm pe lo fa to de Dosto ievsk i aprove i ta r nes -
t a nove l a o " de sdob ramento pa to lg i co da pe r sona l i dade "
1 4
ap l icado tec -
nica de f ico l i terria . Bie l inski , o maior cr t ico russo da poca, achava
O Dup lo
long-winded, lacking in measure , unclear in point of v iew, and,
m ost imp ortant, ' fantastic ' : [ . . . ] T he fantastic in ou r t ime can
have a p lace only in an insane asylum, and not in our l i terature ;
it has a place in the art of the doctor, but not in the art of a poet,
a c r e s c e n t a n d o que " the re shou ld be noth ing da rk and unc l e a r i n a r t " .
E , como observa Edward Was io lek a respe i to , B ie l insk i e s tava ce rto : a a r te
dever i a se r sempre c la ra , mas o que c la ro para uma poca pode no o se r
para outra . O que Bie l inski considerava c laro, no era o que Dostoievski
c o ns i d e r a v a c l a r o .
Mas de acordo com Leonid Grossman, Dosto ievsk i e scutou as c r t i cas de
Bie l insk i sobre os de fe i tos de forma e fa l ta de med ida , que demonstravam
quanto seu ta lento era grande, e e le estava at de acordo com a opinio de
Bie l insk i , segundo a qua l a forma de O Dup lo no hav ia log rado e dever i a
s e r r e fund ida .
1 7
Dostoievski mesmo escreve em 1859 ( treze anos aps ter
escrito ao i rm o com o f icara a f l ig id o pe la id ia de hav er i ludido a expectativa
11 TR OY AT , He nr i. A vida de Dostoievsk i. Lisboa, Estdios Cor, 1958. p . 94.
12 I b i d . , P . 9 7 -
13 I b i d . , p . 9 8 .
14 D O ST O E V SK I, Fiodor M . Ob ra com pleta. Rio de Janeiro, Aguila^, 1963.
v 1. p . 285.
15 W A SI O LE K , Ed war d. Dostoevsky, the m ajor fiction. Cambridge, M IT Press,
1964. p . 5.
16 I b i d . , p . 5 .
17 GR OS SM AN , Lnide. Dostoevski. Moscou , E d. du Progrs, 1970. p. 66.
Letras, Curitiba (251: 347 - 400, ul. 1976
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do pbl ico e falhado numa obra que podia ser grandiosa, sentindo-se enjoado
de Golidkin, o que torna sua vida infernal e o faz adoecer de desespro):
"Pourquoi perdre une ide remarquable, un type d 'une porte sociale immen-
se que j 'ai t le prem ier d cou vrir et dont j 'a i t l 'annonciateur", is
Segundo Dmitri Chizhevsky, mesmo trinta anos aps a publicao de O
Duplo, Dostoievski tinha uma elevada opinio da idia do conto. Ele admite
no Dirio de um Escritor, em 1877, que O Duplo foi um fracasso completo,
que o conto no saiu. Mas chamou ateno para a idia do "duplo" : "A idia
era muito bri lhante e eu nunca propus nada mais srio em l iteratura" . Dos-
toievski apenas, cm 1846, no havia a chad o a for m a e dom inad o a'e st r ia,
como ele mesmo dissera. Chizhevsky conclui que esta idia do duplo, que
recorre atravs de suas obras em vrias metamorfoses, uma resposta aos
mais profundos problemas espirituais do sculo XIX e que ela ainda est
viva na filosofia de nossa prpria poca, conduzindo-nos ao verdadeiro cen-
tro da viso religiosa e tica de Dostoievski.19
Anlise de O Duplo
I I .1 A Duplicidade na estrutura:
II . 1.1 O plan o d o sonho e da realida de e as "duas narrativas" de
Dostoievski
Em seu captulo sobre as Leis de Composio de Dostoievski, Grossman
comenta que a lei da epopia dostoievskiana
sempre construda sobre dados exatos, isto , sobre ocorrncias da
vida real, fatos criminais, acontecimentos polticos e toda espcie
de documentos humanos, dos quais se destacam tumultuosos os
extraordinrios dramas individuais das personagens. Tem-se sem-
pre um a representao de fatos e ocorrncias autnticos [ . . . ] in-
terrompidos por 'no sei que outra narrativa', que espanta pela
intensidade do sofrimento [ . . . ] . Cada narrativa est l igada org-
nicamente a outra e completa-a por contraste [ . . . ] . Da provm
a ao dramtica dupla ou mltipla dos romances de D o s t o i e v s k i .
20
Estes dois inseparveis argumentos do romance, esta "iluminao bila-
teral do tema principal",21 j m encionada, so bsicos pa ra a com preenso
de O Duplo, narrativa "contrastante e unitria ao mesmo tempo", na qual
"dois temas opostos fundem-se" .22 Em O Duplo, percebemos u m a narrativa
18 GROSSMA N, p. 67.
13 CH IZ HEVSKY , Dimitri. The theme of the double in Dostoevsky In:
W E L L E K Ren,-ed. Dostoevsky: a collection o critical essays. Englewood Clis,
N . J., Prentice Hall, 1962. p . 113.
20 GROSSM AN , Dostoievski artista, p . 31-2.
21Ibid, p . 34. Ve r tambm p . 3.
22 ib id ., p . 34.
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b i furcada , re f le t ida como um espe lho , no s quanto ao tema . como tambm
quanto aos p lanos , que correm juntos :
Uma ambiva lncia entre e lementos fantsticos e e lementos rea is , entre
sonhar e acordar a "s i tuao excepcional" da Menipia estabe lec ida
desde o p r ime i ro pargra fo : Go l i dk in acorda s o i to , mas cont inua de i tado ,
" sem faze r um m ovimento , com o a lgum q ue no sabe be m se a inda dor m e
ou se j est acordado, se j est rodeado do mundo rea l ou se continua a
sonhar" (p . 287 ) . As " impresses hab i tua i s " que e le em breve vo l ta a sent i r
so de que tanto as pa redes de seu pequeno quarto cobertas de p , como
a cmoda, as cadeiras , a mesa , o d iv e as roupas despidas na vspera o
o lhavam "como se fossem uns ros tos conhec idos " ,
23
d o m e s m o m o d o c o m o o
"s impt ico" mao de notas o encarava com "amabi l idade e aprovao" (p . 288 ) .
Por outro lado , um leve p renunc io de um outro a rgumento se mis tura
ambig idade de p lanos , enr iquecendo-os : a luz c inzenta que entra pe la
jane la emb ac iada , " ins id iosamente " e com " a r soturn o" ( p . 287) l emb ra
personagem pr inc ipa l . Go l i dk in , de que "no es tava e fe t i vamente em ne -
nhu m re ino fants t ico m as em So Pete rsbu rgo [ . . . ] n a Rua Chest i lavtch-
na ia no qu arto andar de um a g ran de casa . nos seus p rp r ios apos ento s " .
" Ins id iosamente " , re fe r ind o- se luz cinzenta de outono, pa rece p rem un izar
a lgo ameaador , desconhec ido a inda , o que corroborado pe lo " a r soturno" ,
lgubre , da luz : o que poder i a rea lmente se r desc r i to como uma cena fan-
tstica , de sonho, a rea l idade mesquinha de So Petersburgo, ao passo
que , pa ra Gol i dk in , o " re ino fants t i co" dos sonhos dever i a se r bem d i fe -
rente daque le ambiente que o ce rca como se fosse um ros to conhec ido .
A dual idade entre sonho e rea l idade novamente estabe lec ida no f ina l
do cap tu lo IV , quando obr i gam Gol i dk in a sa i r da fe s ta de anive rs r io de
Kla ra O ls f i evna , f i lha do conse lhe i ro de Es tado B ie r i end iv , ant i go p rote tor
de Gol idkin, e para a qual e le no havia s ido convidado:
Sente que sub i tamente h uma mo que lhe pega no brao , outra
que o agarra pe las costas e que ambas o obrigam a sa i r da l i .
Nota que o fazem caminhar em d i reo porta . Quer fa la r , f aze r
a lgum a co i sa . . . o u antes , j no que r faze r nad a . Sor r i , apenas
ma quina lm ente . Sente que lhe ves tem o casaco , lhe ente rr am o
chapu quase at os olhos , e v -se na entrada, no escuro e ao f r io ,
e fina lmente , na escada . Tro pea , pa rece - lh e que ca i nu m ab i s m o.
Quer gri tar mas veri f ica que j est no ptio (p . 312) .
Es ta am big idad e de p lanos a t inge o c l imax no cap tu lo V , j co m um a
orientao para a inc ip iente loucura de Gol idkin, quando este encontra seu
dup lo pe la p r ime i ra vez , no ca i s do Fontanka , no me io de uma tempes -
tade:
Subitam ente , estrem ece dos ps cabe a e , inconscientemente , d
dois passos em frente . Olha sua volta numa grande inquietao,
23 Cf . Noites brancas, em qu e o heri tambm animiza as casas de So Peters-
burgo, que "corriam tt cum prime nt-lo" (p . 642 da Ob ra completa, v. 1).
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m as no v n ingu m. N em v i va lm a . N ad a av i sta de e x t rao rd in r i o
e, c o nt ud o . . . c on tu do . . . p a receu - lhe que a l gum e s tava a li , na -
que le momento , a seu lado , apoiando- se ta l como e le amurada
do ca is e , coisa estran ha qu e esse a lgu m se lhe d i r ig iu e lhe
fa lou com uma voz rp ida e sacud ida , no mui to c la ra . E as pa -
lavras que pro fe r iu d i z i am- lhe int imamente respe i to . Que te r i a
s ido? Es ta r i a sonhando? d iz , o lhando ma is uma vez sua vo l ta
(p . 313) .
Mas pe r to do f i na l do mesmo cap tu lo que a amb i g idade ent re o f an -
ts t i co e o rea l , entre sanidade e loucura levada ao extremo, quando Go-
l i dk in se encontra com seu dup lo pe la segunda vez :
"M as a f ina l que vem a se r i sto? pensou , t rans torn ado E sta -
re i do ido?" Vo l tou - se e cont inuou a caminhar , e s tugando cada
vez ma i s o pa s so e e s f o r ando - s e po r no pensa r em nada .
Ac abo u por fech ar os o lhos . M as , de sb i to , po r entre os g em i -
dos do vento e o ba ru lho da tempestde , chegou de novo aos seus
ouv idos um ru do de pa s sos p rx imo s . Es t remeceu e a b r i u os
o lhos . N a sua f rente , a uns v inte passos, a s i lhueta negra du m h o-
m e m a v a n a v a r a p i d a m e nt e [ . . . ] . S o l t o u e n t o u m g r it o d e e s -
pan to e ho rro r (p . 315 ) .
Es te segundo e te rce i ro encontros com o dup lo na mesma noi te t rans tor -
nam tanto Gol i dk in que es te se pe a corre r , sem perceber por onde pas -
sava, pois
sent ia - se como a lgum que es t suspenso sobre um ab i smo e v
a te rra esboroar - se a seus ps . A inda h pouco a te rra t remia .
Agora e l a s e move ma i s uma vez , f ende - s e e a r ra s ta - o pa ra a
morte . E le , desg raado, no tem fora nem presena de esp r i to
pa r a r e cua r , nem s eque r mes m o pa ra de sp re ga r o s o lhos do a b i sm o
escancarado . Es te o a tra i e e le se p rec ip i ta , abrev iando por in i -
c i a t iva p r pr ia o m om ent o de sua perd io ( p . 316 ) .
E , c omo d i z M . Ho f fmann , r e f e r i ndo - s e ao encont ro de Go l i dk in com
seu duplo, "cet vnement invra isemblable est prsent avec la l igne qui s -
pare la ra l i t du d l i re d 'un fou" .
2
-
1
Como um espelho, o rea l continua se
re f let in do no fants tico e v ice -ver sa , atrav s dos cap tulos subse qen tes : n o
segundo d ia , ao acordar ,
todas as extrao rd inr i as aventuras da vspera , a s aventuras inve -
ross me is daque la no i te te rr ve l , surg i ram ao mesmo tempo na sua
imag inao , em tod a a sua c rueza . [ . . . ] e ra tu do to es tranho, to
incompreens ve l , que toda aque la h i s tr i a lhe parec ia inacred i t -
ve l . O senhor Gol i dk in es tava inc l inado a a tr i bu i r tudo a um
sonho, a um passage i ro de l r i o de imag inao , a um obscurec imento
mo men tneo do e sp r ito . [ . . . ] Po r ou t ro l ado o senhor Go l i dk in
sent ia os membros quebrados , a cabea entontec ida , os r ins fa -
t i gados , e um gran de res f r i ado tes tem unh ava - lhe a ve rac idade d e
todo s os inc identes do seu pass e io notu rno (p . 317-318).
24 H O F M A N N , M . Histoire de la littrature russe. Paris, Payot, 1934. p. 506.
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Mais ta rde , ao i r repart i o , Go l i dk in encontrava novamente seu du -
p lo que senta f rente de sua prpr ia mesa de t raba lho . O fa to de seus
co legas no te rem perceb ido nada . de ixou -o "pe rp lexo" .
Pa rec ia - lhe fora do senso comum. Aque le s i lnc io extraord inr io
chegava a assus t - lo . Todav ia , o caso e ra bem c la ro . Ma i s : e ra
es tranho, horr ve l , de en lou quecer . Os pensam entos a travessava m o
c reb ro do s enhor Go l i dk in como re l mpagos . Pa rec i a - lhe que
es tavam a ass - lo a fogo lento . T inha razo . O homem que es tava
sentado na sua f rente era o seu terror, a sua vergonha, o pesadlo
da vspera , e ra o p rpr io senhor Gol i dk in (p . 320 ) .
Gol idkin continua suas meditaes :
Es ta re i s onhando ou no? [ . . . ] ho j e ou ontem? [ . . . ] E s ta re i
dormindo ou sonhando? O senhor Gol i dk in be l i scou - se pa ra ce r -
t i f i ca r - se de que es tava acordado. No , in fe l i zmente no e ra um
sonho. [ . . . ] A cab a po r duv idar da sua pr pr ia ex i stnc ia (p . 320 ).
V - se que a ambig idade levada ao p rpr io p lano do tempo, como
tambm do consciente e inconsciente :
T do i sto, porm , e ra j demais . O senhor Go l i dk in sent ia - se no
extremo de suas foras . Durante minutos perde os sent idos e a
memria . Depois volta a s i e d conta que arrasta a pena sobre o
papel , m aquin alm ente , inconscientemente (p . 321) .
A sa ida do escri trio, ao encontrar o duplo, a ambigidade entre i luso e
rea l idade novamente estabe lec ida :
De repente o senhor Gol i dk in ca la - se , pa ra e t reme como uma
fo lh a ao vento . F echa os o lhos durante um min uto . Entre tanto ,
es pe ra . . . Se se t ivesse enga nad o T o m a a ab r i r os o lhos. O lha a
medo para a d i re i ta . No , no fo i uma i luso . A seu lado cami -
n h a . . . o ou t ro s enhor Go l i dk in [ . . . ] . ( p . 325 ).
N o in c io do terce iro d ia ( cap . V I I I ) , acen tua - se o es face lamen to da l i -
nha divisria entre loucura e sanidade, entre fantstico e rea l : Gol idkin
acordou.
lembrou- se do que se passa ra e f ranz iu as sobrance lhas . Eu , on-
tem. estava id iota de todo pen sou e le ao leva nta r-se e olh an do
a cam a do hsped e . M as qua l n o fo i o seu espanto N o s o
hspede j no es tava no quarto , como a cama em que dormia
tinha desaperecido (p . 332) .
E a p rem uni o do p r ime i ro c ap tu lo , d e que " s e r i a bem de sag radve l [ . . . ]
s e ho je qua lquer co i sa corresse ma l , se me aparecesse , por exemplo , um
fur ncu lo ou qua lq uer outra co i sa abo rrec ida " (p . 287 ) re f le t ida ma is
uma vez aqu i . ao sent i r o Senhor Gol i dk in "de modo imprec i so , que as
co i sas no es tavam indo be m e que o des t ino lhe p re pa rav a a inda qua lquer
surpre sa desag radv e l " ( p . 382 ).
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lEHAtlX, S. Dostoievski
De novo na repart i o , no compreende os acontec imentos ao ve r o
dup lo usurpar seu lugar junto ao che fe ; e , ao se r recusado por es te a ouv i r
seus p rotes tos , Go l i dk in de ixa - se ca i r numa cade i ra e pensa :
Tu do i sto i nac red itve l [ . . . ] N o pos s ve l . . . E u devo te r
sonhado. Fui eu com certeza quem foi ao gabinete do ministro ' .
Fu i eu quem ju l gou que e ra ou t ra pe s soa . . . No pe rcebo nada
T u do isto invero ss mi l ( p . 337) .
J t a rde na mesm a no i te ( c ap . IX ) , a p s have r do rm ido um pouco , Go -
l idkin acorda , s duas da manh e , aps haver d iscutido com seu criado
Pie truchka po r causa de u m a carta a Vakra m iev , G o l i dk in vo l ta ao quarto ,
a rrepend ido de t - la env iado . Es t
sentado no d iv . imve l e apavorado . De repente os o lhos f i xa -
r am- s e num ponto com a teno . Temendo uma i l u s o ou uma
a luc inao , e s tendeu a mo com uma es tranha mis tura de esperana
e de medo . No , no e ra nenhuma i l u s o nem nenhum log ro , mas
uma carta autntica que lhe era d i r ig ida (p . 349) .
Houve ento uma intens i f i cao no processo a luc inao rea l idade , se bem
que , u m pou co ad iante , aps te r l i do a ca rta de Vak ram iev ,
o senhor Gol i dk in f i cou dura nte a lg um tem po im ve r so"bre o
d iv . Uma nova luz i r rompia a travs do nevoe i ro espesso que o
rodeava , hav ia j do i s d i as . C om eav a a com pree nde r . Ten tou
erguer - se , da r vo l ta ao quarto para esc la recer e reuni r a s id ias
d i spersas , pa ra d i r i g i r e concentra r o pensamento e pa ra re f le t i r na
sua s i tuao a sangue f r i o . Mas vo l tou a ca i r sem foras sobre o d i -
v . (p . 350) .
M ant m -se o m esm o " suspe nse " no in c io do cap tu lo X , ( qu art o d ia ) ,
com nfase sobre o p lano on r i co :
To da a n o i t e , e s teve nu m a sem i - sonolnc ia , dan do vg l tas sobr e
vo l tas , gemendo ' e dor m ind o a lguns minutos p ar a acor dar log o em
seguida . Re cord ae s confusa s , pesa dlos horrve is , sensaes de -
s a g radve is op r im i am -no de m od o angus t i oso ( p . 351 ).
E as image ns se repet em em so nh o: de seu chefe , An dri i Fi l povitch, d u ro
c implacve l , de seu dup lo co m "ex press o t rac i s ta " no ros to , e de u m a fe s ta
na a l ta roda , em que , p r ime i ro , todos os aprec iavam at aparecer o dup lo ,
que faz ia m ud ar a o p in io dos outros , de m o d o que . despreza do e enxotado ,
Gol i dk in lana - se pe rsegu io de seu dup lo , s pa ra ve r surg i r outros du -
p los em sua volta . Aqui . o sonho to rea l que a l inha de separao entre
rea l idade , pesade lo e loucura novamente se esvanece :
Sem poder ma is , desesperado , o ve rdade i ro senhor Gol i dk in lan-
a -se contra e le , sorte . Mas a cada passo que d , cada vez que o
seu p toca no as fa l to do passe io surge deba ixo da te rra um novo
senhor Gol i dk in , cada vez ma is repugnante e com um ar ma i s
atravido. Todos estes Gol idkini se pem a correr uns atrs dos
out ros como um bando de pa tos . Pe r s eguem o s enhor Go l i dk in
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RENAUX, S. Dostoevski
Senior , qu e j no pode resp i ra r . S o j to num eroso s que e n-
chem toda a cap i ta l . Um guarda d iante de ta l e scnda lo , v - se
forado a agarr - los pe la go la e a conduzi - los ao ca labouo ma is
pr x im o. To lh ido e ge lado de me do, O Senhor Gol i dk in aco rdou ,
mas sentiu qu e a rea l idade n o e r a m a is ag ra d ve l . . . ( p . 353 ) .
Como na cena in ic i a l do conto , a rea l idade de So Pete rsburgo to desa -
g radve l tam bm quan to o re ino fants t i co dos sonhos . E G ol i dk in aco rda
com um gr i to .
Mas a rea l idade de novo embara lhada quando os sonhos se tornam
rea i s : no ' m esm o cap i tu lo , ta rde , na repart i o , Go l i dk in acom panh a os
movimentos do dup lo , que se ins inua aos outros , com seu "a r b re je i ro , sa l -
utante , mesure i ro , sorr indo e caoando como acontecera na vspera " (p . 359 ) :
" I s t o e ra sem t i ra r nem p or o qu e se pass a ra no sonh o do sen hor G ol i dk in
Senior " (p . 350 ) . Do mesmo modo, Andr i i F i l pov i tch mi ra Gol i dk in "des -
denhosamente " (p . 361 ) . quando es te lhe quer exp l i ca r a pe r f d i a do dup lo ,
e se nega a de ix - lo ve r Sua Exce lnc ia , como no pr ime i ro sonho. Ma i s ta r -
de, ap s te r f a lado com Anton An tonov i tch, o caos em que m ergu lhar
novam ente i luminado por um a nov a luz , qu e e ra " te rr v e l " e da qua l " em er -
g i am fa tos qu e nunca lhe hav iam pas sad o pe la cabe a " . Rece be ca rta de
Pissarienko, e , "com grande espanto, percebeu ento que se encontrava no
vestirio dos escri trios , no meio dos funcionrios que, tendo terminado o
servio, se d i r ig iam par a a sa da " , (p . 363) .
Resolvido a apanhar o inimigo. Gol idkin se lana em sua perseguio:
u loucura o faz sent i r "uma energ ia desusada " (p . 364 ) .
Apesar d i s so t inha a impresso de
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RENAUX, S. Dostoevski
Observa - se aqu i como no apenas os p lanos do rea l e do fants t i co ca -
minham juntos , como tambm presente , passado e futuro se mis turam, po i s
a cena da tempestade j v ivera antes , e a cena da carruagem ser v iv ida
m ais um a vez, n o f ina l do cont o.
A loucura de Gol i dk in se acentua , ao p rocura r Sua Exce lnc ia em seu
gabinete : no dist ingue objetos de pessoas . Segue-se outra crise , desta vez
"de espanto e de mdo" . no pt io da casa de O lsu f Ivnov i tch, ao perceber
que perdera a ca rta que recebera de K la ra O ls f i evna : "V inham- lhe id ia
caras es tranhas , l em br av a - se de acontec imentos esquec idos hav ia m ui to "
(p . 380) . Sente -se perdido, aniqui lado. E, f ina lmente , seu terce i ro sonho se
torna um p esade lo na rea l idad e ao se r conduzido p ar a a fe s ta na casa de
Olsu f Ivnov i tch pe lo dup lo : aco lh ido o "me lhor poss ve l " por O lsu f Iv -
nov i tch, e Go l i dk in perce be um a lg r im a em seus o lhos, com o tam -
bm nos de K la ra e V l ad imi r S i emnov i tch .
Pensou que a imperturbve l d i gnidade de Andr i i F i l pov i tch co -
m ov era a todos a t s lg r im as . Ou n o es ta r i a e le p r pr io sendo
v t ima de uma i luso , pe lo mui to que hav ia chorado? At mesmo
naque le momento lg r imas esca ldantes lhe corr i am a inda pe las fa -
c es g e l a da s . . . " ( p . 384 ).
E a dua l i d ade i l u s o - re a l i d ade t rans fo rma - s e em rea l i d ade - pe sad lo , a o pe r -
ceber que
todos lhe davam pa s s agem, o o lhavam com uma cu r i os i dade e s t ra -
nha e um a s impa t i a mi s te r io s a e i ncompreens vel . [ . . . ] . Pe rcebeu
vagam ente qu e v inha mu i ta gente a trs de le [ . . . ] cochichava - se ,
f a l a va - s e , f a z i am - s e coment r ios . [ . . . ] . Cus tava - lhe r e sp ira r , p a -
rec ia que ab a fa va . To dos aque les o lhos em c ima de le o op r im iam
e e s m ag av am . . . [ . . . ] Depo i s de sbi to , p e rdeu a noo dos f a tos
e o sentido das rea l idade s . L o go q ue voltou a s i, de u con ta de
que se m ov ia no m e io dum la rgo c rcu lo de conv idad os ( p . 385 ).
A ambiva lncia f ina l se d quando, aps se ouvir um gri to terr ve l , ensurdece-
dor , " repet ido com o um eco de m au a go ur o" pe los que o rodeavam . G ol i dk in
c conduzido pe lo md ico Kres t i an Rutensp i tz a uma carruagem, que o leva
a um mani cm io :
O senhor Gol i dk in sent ia uma dor es tranha no corao ; o sangua
parec ia fe rve r - lhe na cabea , que es ta lava . Sent ia - se aba fa r , te r i a
qu er id o desabo toar - se ; p r o pe i to ao lu , co br i - lo de neve, inun -
d - l o de gua f r i a . Acab ou por pe rd e r o s s en t i dos . . . Q uan do vo l -
tou a s i [ . . . ] j u l gou que ia de sma i a r de m edo . Do i s olhos , b r i -
l hante s como duas b ra s a s , o lhavam-no na penumbra do c a r ro e
re f le t i am uma a leg r i a d iab l i ca e de mau pressg io .
No e ra Kres t i an Ivnov i tch. . . Quem ser i a ento? Era e le? E le?
Sim, e ra de fa to Kres t i an Ivnov i tch, no o ant i go mas um outro
Krestian Ivnovitch, que agora lhe parec ia terr ve l (p . 388) .
O p lano do rea l e do fants t i co novamente correm para le los , po i s no
d i s t ingu imos se Gol i dk in ao se re fe r i r a "E le " , e s t pensando no dup lo ou
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RENAUX, S. Dostoevski
no novo Kres t i an Ivanov i tch. E a cena f ina l acaba com Gol i dk in repet indo
"Ai de le J h mu ito pressentia que. m ais tard e ou mais cedo, i s to ha via d e
acontecer . . . " ambig izando ma is uma vez os p lanos do presente , passado e
futuro .
Concluindo, v imos como a superpos io dos dois p lanos da narrativa , o
fantstico e o rea l , o sonho ou a loucura e o acordar, a sanidade, um dos
e lementos de compos io bs icos nes ta obra , a t ravessando-a do comeo ao
f im . Co m o d iz o p r pr io Dosto ievsk i , " . . . aqu i lo qu e a m a ior i a cham a de
quase fantstico e excepcional , consti tui s vezes para mim a prpria essn-
cia do real" .
2
5 Es ta experim enta o ps icolg ica , com rep resen tao d e esta -
dos ps qicos incomuns, inc luda por Bakhtinc , como j mencionado, como
uma das caracterst icas da Menipia e e ia uma das causas da b i furcao da
narra t iva . I s to conf i rmado por Ra fae l Cans inos Assens no pr logo da
edio espanhola de O Duplo, em que Dostoievski ,
m uy acertadam ente , desd e el punto de vista l iterrio, ma ntiene la
ambigedad de l p roceso nove lesco entre lo ob je t i vo - rea l y lo idea l -
- subjetivo, con lo que se enriquece doblemente e l inters de l re lato-
E l d rama puede desarro la r - se en la rea l idad exte r ior o en le ce re -
bro perturbado de l seor Gol idk in , y de ambas maneras puede
considerar- lo e l lector, s in que por eso resulte menos impress io-
nante , menos t rg icamente bu fo .26
Grossman apresenta esta le i de composio de Dostoievski , das duas nar-
rativas,
como uma horizonta l do entrecho em desenvolvimento, intercepta -
da pe las vert ica is dos episdios tumultuosos , que erguem a ao
para a a l tura , e que parecem transport - la pa ra um novo p lano ,
onde a l inha do a rgumento , pa ra le la p r ime i ra , em breve tambm
se prec ip i tar pa ra o a lto, em vi rt ude da explo so de u m a n ova
ocor rnc i a i ncomum.
2 7
Esta l inha de composio em degraus e levaria ento o entrecho "at a sua
concluso def ini t iva , na catstro fe f ina l e na catarse conclu den te" . Ap l ican -
do esta l inha de composio em degraus a O Duplo, ter amos o seguinte
mode lo :
1- dia
c a
p . i Go l idkin f inge n o ser e le
c a
p . l i Go l idkin con fessa ao m dico ter inimigos
cap. I I I Gol idkin caoado pe los colegas , no recebido na festa de
OIsuf Iv.
cap. IV Golidkin vai festa, comete tolices, expulso.
25 GRO SS M AN . Dostoievski artista, p. 62.
26 D O ST O IE VS K I, Ob ras completas, v. 1, p . 207.
27 G R OS SM AN , Dostoievski artista, p. 36.
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cap. V Golidkin "aniquilado" encontra seu duplo na ponte, em meio
tempestade.
2* dia
cap. V I Golidkin e duplo na repartio, duplo o acom panha at sua
casa
cap. V I I Duplo dorm e l. aps travarem amizade.
3- dia
cap. V I I I Dup lo apossa-se dos papis de Golidkin na repartio, ri-
diculariza-o perante os colegas.
cap. IX Golidkin e duplo no restaurante, este lhe prega uma pea.
Carta de Vakramiev "aparece" frente de Gol idkin.
4.' dia
cap. X Golidkin tem pesadelos. ridicu larizado na repartio e
desprezado pelo chefe.
cap. XI Ridicularizado pelo duplo no restaurante, Golidkin o per-
segue, lutam na carruagem. L carta de Klara, despeja remdio no cho, na
taberna.
cap. XII Pietruchka o abandona. Golidkin expulso da casa do ministro
cap. XIII Golidkin aguarda no ptio de Olsuf Iv.. levado festa
pelo duplo, e de l ao manicmio, pelo mdico.
II . 1.2 A to pogr afia cnica com o pro je o da personage m e local de conflito
Para Massaud Moiss,
a geografia do conto deve estar diretamente relacionada com o
drama que lhe serve de motivo: a paisagem vale como uma es-
pcie de projeo das personagens ou o local ideal para o con-
f l ito [ . . . ] ; no pano de fundo, mas algo como personagem inerte,
interiorizada e possuidora de fora dramtica-28
Em O Duplo, o espao exerce ambas as funes, pois, se o quarto de Golidkin
um "prolongamento" de sua prpria personal idade, se a tempestade na
noite de seu encontro com o duplo parece contribuir para o seu prprio
aniquilamento, todos os outros cenrios servem de local para conflitos in-
ternos na mente de Golidjcin e externos com as outras perso-
nagens.
28 MOISES , Massaud. Guia prtico de anlise literria. So Paulo, Cultrix, 1970.
p. 108.
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RENAUX, S. Dostoevski
Dosto ievsk i e sco lhe como panorama da ao , como tambm em Gente
Pobre , a Pe te rsburgo de meados do scu lo XIX. o fundo rea l i s ta , sobre o
qual . como j mencionado, e le constri a fantstica luta interior~de sua per-
sonagem pr inc ipa l . Mas es ta v i so panormica de So Pete rsburgo , que a lm
de se r o ambiente rea l em que v ive o pequeno func ionr io de uma repart i o
pb l i ca , tambm um "s mbolo v ivo , repassado de imenso sent ido inte r ior
c de desenvolvimento incessante" ,29 e s ta v i so f ragm ent ada n um a s r i e
de "c lose -ups " que nos do a t ra je tr i a do her i , contr ibu indo tambm para
seu desvendamento ps icolg ico. So os seguintes os loca is principais do con-
to. e sua funo:
1) O qu arto de Gol idk in:
Tanto o ambiente e a t os ob je tos que ce rcam Gol i dk in pro je tam o
aspecto gasto, decado, "usado" , da personagem: o p das paredes e a luz
c inzenta que entra pe la jane la embac iada , re tra tam a " rea l idade mesquinha"
(p . 287) que o cerca , ass im como o espe lho no qual Gol idkin se olha ao
sa i r da cama re f lete "seu rosto ensonado, de olhos semicerrados , um tanto
j ja s to [ . . . ] daque les que passam desperceb idos " , f azendo-nos assoc ia r os v i -
d ros embac iados da jane la com seu ros to de o lhos semicerrados , que no
de ixam entra r luz , como tambm o seu ros to gas to com o quarto che io de
p . A cor ve rde su j o das pa redes ap arece tam bm n as ramage ns de seu
div turco e em seus prprios tra jes : a :carte i ra verde j usada" em que
gua rda u m "m ao de notas ve rd es " (p . 288 ) . E o sam ovar , do m esm o m od o
como os mve i s e o mao de notas , animizado, murmurando a Gol i dk in
'com o ca lor de sua es tranha fa la : 'Es tou pronto , meu amigo , t i re -me da -
Iff
q u i . . . .
A lm dessa funo , o quarto tam bm serve com o loca l pa ra conf l i to , po i s
no pequeno corredor que dava para a entrada da casa , Go l i dk in d com
"o criado rod ead o de ou tra criad age m e de espectadores de acaso . Pietru chk a
fa lava , os outros escutavam. Teriam s ido as pa lavras de Pietruchka ou esta as -
sembl ia imprev i s ta que desagradaram ao senhor Gol i dk in? (p . 288 ) . Segundo
Grossman, uma das caracterst icas de composio de Dostoievski so os con-
c laves , as cenas tumultuosas , as reunies incomuns com complicaes im-
prev i s tas ,
3 0
que e levam a narra t iva , p ro je tando ao mesmo tempo a descon-
f iana d Gol idkin. sua mania de perseguio em re lao aos outros .
Mais tarde , aps seu encontro com o duplo, quando este o precede aos seus
aposentos , o quarto torna-se mais uma vez loca l de conf l i to, pois o duplo
"us ur pa " seus aposentos e sua cama , ao sen ta r - se ne la e o cum prim entar :
Gol i dk in pra no me io do quarto , " como se um ra io o t i vesse fu lminado" (p .
317).
29 GROS SM AN , Dostoievski artista, p. 157.
30 Ib id ., p. 38.
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RENAUX, S. Dostoevski
Entretanto, na noite seguinte , o quarto serve at como loca l de uni f ica -
o de Gol idkin e seu duplo, pois . aps o convite de Gol idkin, o duplo o
acompanha sua casa e jantam juntos , t rocam conf idenc ias , bebem, e fu -
m am . aqu i tam bm qu e surge o "man uscr i to alhe io",31 apontam entos da
pe rsonagem, que , s e gundo Gros sman , i n te r rompem a a o ap ro fundando a
caracte r i zao da personagem. Aqui , o dup lo que esc reve uma "quadra
mui to sent imenta l " a Go l i dk in :
Se tu viesses a olv idar-me,
Eu jamais te o lv ida r i a
Venha l o que vier ,
Deve s t am bm record a r -m e ( p . 330 )
Esta quadra , com seu duplo sentido de amizade e tra io, i lumina no s
a persona l idade do dup lo , p r f ido e ins inuante , como tambm lana luz so -
br e o futu ro : Go l i dk in nun ca pod er de ixa r de reco rd - lo , po i s po r cau sa
do dup lo que e l e a caba r num mani cmio .
O quart o de Gol i dk in , a lm das duas funes m enc ion adas po r M . M oi -
ss , tambm serve de loca l de cena carnavalesca entre ambos , pois , ao ca i r
o chapu de Go l i dk in ao cho , am bo s se p rec ip i tam pa ra o apanhar , aps
o que dup lo " l imp a - lh e o p com tod o o cu id ado " (p . 326 ) . Ma i s ta rde , G o -
l i dk in conv ida o dup lo a dormi r em sua casa , numa "cama improv i sada so -
br e duas cade iras g ra nd es " ( p . 330 ) . O " t raves t i s sem ent" do dup lo , qu e pa -
rece ves t i r " roupas a lhe ias " , po i s so g randes demais , comple tado pe los
seus ges tos " ca rnava lescos " : puxa o co le te , enco lhe - se , pa rece quere r sumir .
O quarto , portanto , torna - se o lugar do "conta to l i v re e f ami l i a r "22 entre
a m b o s .
Por outro lado , e fe i tos de " i luminao rembrandt iana , da luta de luz e
s o m b r a "33 s o a inda conseguidos qua nd o Gol i dk in i lumina com u m a ve la
c hspede que dormia em seu quarto , concentrando ass im, toda a pa rca
i luminao no ros to de seu dup lo enquanto o res to do aposento permanece
r o e s cu ro . E s ta m esm a i luminao lgu b re e xp lo rada ma i s um a vez qu an -
do Gol i dk in vo l ta , na te rce i ra no i te , exaus to e confuso pe la humi lhao que
havia sofr ido na repartio: "a ve la ardia tr is temente , a luz danava nas
pa red es" (p . 346), re f let indo seu estado de espr i to. Ou tra cena carn avale sca
se segue a esta , pois Gol idkin, ao acordar no meio da noite , va i ao quarto
de P ie truchka ( com o extenso de seu pr p r io qu ar to ) acord - lo , e a me sm a
i luminao que ac ima exerc ia fun o reve lado ra do dra m a de Gol i dk in ,
aqui usada com f ina l idade cmica :
Ne s s e mom ento a ve l a apago u - s e . Pa s s a ram dez minutos ante s
qu e o senhor Go l i dk in encontrasse ou tra ve la e a acendesse . D u -
rante es tes dez minutos P ie truchka vo l tou a adormecer . . . 'Pa t i f e ,
cdhalha, m a r o to . . . ' g r i t a va o s enhor Go l i dk in s a cud indo - o .
31 B A K H T I N E , p . 176.
32 Ib id ., p. 170.
33 GR OSS M AN, Dostoievski artista, p . 159.
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PENAUX, S. Dostoevski
' Levantas - te ou no? Aco rdas ou no? ' Ao ca bo de um a meia ho ra
de es foros , o senhor Gol i dk in conseguiu acord - lo e a r ras ta - lo
par a fo r a . . . M as P ie truchka es tava a ca i r de b ba do e m a l se t i -
nha nas pe r na s " , ( p . 347 ).
Os aposentos de Gol idkin servem ainda de loca l de crise entre Gol idkin
c Pietruchka, quando este lhe d iz que va i "para casa de gente de juzo, de
pe s soa s que no tm embru lhada s n em du p lo s . . . " ( p . 348) Go l i dk in
"des tronizad o" como patro pe lo c r i ado com o tam bm so cenr io da
descoberta e do envio de mais "manuscri tos a lheios" : a carta que Gol idkin
subitamente v em seu quarto, e que, como j mencionado, intens i f ica o pro-
cesso a luc inao- rea l idade , e uma outra , p ro je tando a mania de persegu io
? as reaes pato lg icas de Gol i dk in , abr in do ao m esm o tem po novas pe rs -
de Gol idkin e respondida a ltura . Ambas novamente esc larecem a s i tuao
pectivas sobre a v ida passada do heri , que desconhecamos.
Fina lmente , o quarto loca l , como j v isto ac ima, de trs horrve is pe -
sadelos que Gol idkin tem, na mesma noite , em conseqncia de todos estes
acontec imentos . N o pr im e i ro desprezado p e lo che fe , na repart i o , no se -
gundo caoado pe lo dup lo em pb l i co e no te rce i ro humi lhado e "des tro -
niza do" pe lo dupl o n um a festa , at que, enxota do, corr e rua , lug ar o nde
aparecem, a cada passo qu e d , novos du p l os . . . ( p p . 351-3 ). E o "m an us -
cri to a lheio" , a carta que envia ao duplo ao acordar, somente demonstra o
parox i smo, a extrema intens idade a que chegaram os sent imentos de Gol i d -
k in , em re lao ao dup lo , ao esc rever : "Ou o senhor ou eu . Ambos no pode
ser. [ . . . ] e s tou sua d i spos io pa ra um due lo p i s to la " (p . 354 ).
As duas lt im as cenas pas sad as em sua casa j faz em parte pratica m ente
do dnouement do conto, pois o mandato que recebe do chefe , demitindo-o,
P ie truchka indo embora e Gol i dk in ouv indo a d i scusso das v i z inhas emba i -
xo com P ietruchka, nad a m ais so do que re f lexos de cenas que j acon tece-
ram ou que Gol i dk in j p rev i ra que i r i am acontecer .
2 ) A repar tio
A repartio tambm exerce a dupla funo de loca l de conf l i to e de cenas
carnavalescas : segundo Bakhtine , o carnaval exerceu inf luncia determinante
sobre a l i teratura e os d i ferentes gneros ,34
e
a carnavalizao, isto , a
transpos io do carnaval na l i teratura atravs da Menipia um dos con-
ce i tos -chave na obra de Dosto ievsk i , como menc ionado ac ima . Se no quarto
de Gol i dk in t i vemos j um esboo de ca rnava l i zao , rea lmente na repar -
t io que esta caracterst ica toma vulto, pois o " lugar" do desenrolar do
carnava l se r i a a p raa pb l i ca mas tambm as casas , onde te r i am lugar o
contato l i v re e f ami l i a r e tambm as en- e des tronizaes pb l i cas . Es ta am-
biva lncia do loca l de ao, no caso da repartio em que traba lha Gol idkin,
in ic i a -se quando G ol i dk in , sentado junto ao che fe An ton Antnov i tch, ev i -
tando provocaes com colegas , tenta descobri r a lgo de novo no rosto de les :
34 B A K H TI N E . p. 169.
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"Procura uma l i gao es tre i ta entre os acontec imentos da vspera e as a t i -
tudes de ho je " , des e ja t ima so luo , m esm o "des fav or ve l " ( p . 319 ). "A
porta da sa la v izinha" rangeu de leve , t imidamente , como a anunciar que
ia da r passagem a uma personagem ins igni f i cante . E o dup lo aparece sua
mesa, senta -se em frente de Gol idkin, enquanto este enterra "a cabea nos
papis " . Esta nova crise e leva a ao, pois este acontecimento inesperado
faz Gol i dk in sent i r - se no extremo de suas foras , e spantando- se com o fa to
dc n ingu m parec er te r da do pe la seme lha na entre am bo s .
No d i a s e gu inte , d novamente com o dup lo "num vo duma por ta " na
lepartio. Desta vez, a repartio o loca l da usurpao dos papis que
Gol idkin deveria entregar ao chefe Andri i Fi l povitch, pe lo duplo:
fingindo qu ere r t i ra r um b or r o num a fo lha , o dup lo agarr ou t f
pap el que o che fe pe dir a mas e m vez de o rap a r co m o canivete ,
enro lou -o , meteu -o deba ixo do brao e em duas passadas es tava
jun to de An dr ie i F i l pov i tch, qu e no dera por na da .
O senhor Gol i dk in f i cou pregado no lugar , com o canivete na
mo, com o se se p rep arass e pa ra ra pa r a lgum a co i sa (p . 336 ).
Prec ip i ta - se em d i reo ao gab inete do d i re tor , mas ta rde , sua "des troni -
zao" pe rante o Mini s t ro j hav ia ocorr ido .
A "ma ld i ta cornucp ia " , a ao de ve loc idade desaba lada , a a l te rnnc ia
es tonteadora de acontec imentos fu lminantes que entram em acordo e se
despencam sob re a pe rs on agem ma is um a das ca rac te r s t i cas de com pos i -
o de Dosto ievsk i , segund o Gr oss m an com ea a se de rra m ar sobre Go -
l i dk in : a lm de o dup lo te r receb ido as honras pe lo t raba lho e Andr i i F i l -
pov i tch no quere r ouv i r Go l i dk in , seu ss ia conversa com todos e desa f i a
Go l idk in com palavras , caretas e p ipar ote s gestos carnav alescos pa ra
[ ad io dos co legas que os rode iam. Gol i dk in acaba por v i r a s i e compreen-
de que "est perdido, desonrado, que deu cabo de sua reputao, que se
de ixou escarnecer e insu l ta r em pb l i co" (p . 338 ) , enquanto o dup lo desa -
parece "no compart imento v i z inho" .
a c r i se , a cena tumultuosa , a reunio incomum com compl icaes im-
prev i s tas , o p r inc p io de construo do " s implr io lud ibr i ado" de que se
va le Dosto ievsk i ,
3 6
nes ta cena que ao mesmo tempo entronizante e ca r -
nava l izante para o duplo, e destronizante e de crise para Gol idkin.
Na sa da da repart i o h outro momento dec i s ivo : Go l i dk in agarra o
dup lo no l t imo degrau da escada , mas es te consegue escapar , pegando um
"d r j k i " e de s apa recendo de sua v i s ta. Go l i dk in ento " ap i a - s e t r emendo
de encontro a um pos te de luz" , aniqu i lado , po i s " tudo parec ia agora de f i -
n i t i vamente per d ido " (p . 340 ) .
No quarto d ia , d - se novo conc lave na repart i o : hora da sa da , os
func ion r ios m a is novo s rode iam Gol i dk in . f ech and o- lh e a sa da . Ento ,
com o no sonho qu e t i ve ra , um "acontec imen to inespe rado " d ca bo de le : ap a -
35 GR OS SM AN , Dostoievski artista, p. 42.
36 Ib id. , p 39.
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rece o duplo, abranando a todos e por f im estendendo a mo a Golidkin.
Temos ento outra cena de carnavalizao, pois o duplo retira com insolen-
cia sua mo da de Golidkin, cospe nela e limpa-a com o leno. Aps isso.
ataca Golidkin de "nosso Faublas russo", enquanto os funcionrios se mos-
tram indignados e descontentes com Golidkin. Este decide falar ao chefe,
mas, como no sonho. Andriei Filpovitch recusa e Golidkin desprezado pe-
la terceira vez. Alm disso, acusado por Anton Antnovitch, seu velho amigo-
Assim, a cornucpia continua vertendo seus infortnios sobre o pobre Go-
lidkin: crises, destronizao, humilhao e entronizao de seu ssia.
Entretanto, no s a repartio como at a entrada serve de local de
conflito e projeo da personagem: Golidkin ama os lugares escondidos, de
onde pode observar os outros sem ser observado. Ao ver o escriturrio Os-
tfiev entrar no vestbulo, ele tambm se introduz na entrada, chamando-o
"com um ar misterioso para um canto retirado, atrs de um grande fogo
de ferro" (p. 354). Assim escondidos, interpcla-o sobre as novidades de "den-
tro" da repartio. Um pouco depois, pela fresta da "muralha" que o escon-
dia. Golidkin mete o nariz, mas ao ouvir passos descendo a escada se "es-
conde atrs do fogo" (p. 357): o duplo passando, que sobe rapidamente
a escada de novo, "f ingindo no o ver" (p. 358).
3) O salo de festas na casa do conselheiro de Es tad o Blerlendllev:
A festa, como um procedimento para reunir pessoas de diferentes nveis
sociais (aqui, os chefes e os funcionrios mais categorizados"), assim como
sua programao que no obedece a nenhum esquema rgido ( improvisa-se
um pequeno baile, aps o jantar), um procedimento tpico dos contos de
Dostoievski, como em Uma Anedota Ordinria. A Arvore de Natal e um Ca-
samento, e outros. novamente o "conclave" para Grossman e a "utopia
social" para Bakhtine, em que Dostoievski foge da realidade "mesquinha"
(para Golidkin) de So Petersburgo, apresentando um mundo de fantasia,
em que todos esto nivelados como convidados do conselheiro Bieriendiiev
(antigo protetor de Golidkin), cuja f ilha, Klara, fazia anos.
Nada falta a mais este elemento da Menipia: a descrio da festa faz
deste acontecimento um "festim real" (p. 304) mais do que um jantar, pois
"o esplendor, o luxo, a etiqueta davam ao cenrio um ar babiln ico". N o
falta a abundncia a esta festa, em que a taa de vinho "parece cheia com
um nectar divino" (p. 305), em que h brindes, discursos, instantes solenes;
todos se comunicam neste espetculo sincrtico, pois anfitrio e chefes con-
fraternizam com os convidados subalternos, h felicitaes, beijos, risos, abra-
os, a amabilidade das senhoras extrema, as esposas dos funcionrios "pa-
recem mais fadas do que mulheres" e eles prprios esto "transformados
agora em brilhantes homens de salo" (p. 306). Fala-se francs, o russo
usado s para cumprimentos e apenas na sala de fumar se permitem "frases
familiares". A aniversariante "a rainha da festa" e as "convenincias" so
esquecidas Anton Antnovitch "cacarejou como um galo e recitou versos
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muito engraados" (p . 306) e a aniversariante o be i ja aps seu discurso ,
derruba - se tudo d i tado pe la des igua ldade soc ia l .
Es te m un do utp ico da fe s ta pode r i a se r contrapos to , com o o n ve l da
fantas ia , ao quarto de Gol i dk in , o mundo da rea l idade mesquinha , o que
corroborado por toda a desc r i o da fe s ta ac ima . E Gol i dk in se encontra
"qu ase l " (p . 307), nu m a s i tuao "a m a i s es tranha p oss ve l " :
e s t no patamar da escada de se rv io da casa de O lsu f Ivnov i tch:
[ . . . ] m e t i do nu m cant inho f r i o e s ombr i o , e scond ido po r u m a rm -
r io en orm e e po r u m b io m bo ve lho , no me io dos res tos e da loua
su ja . E nq uan to espera , ob se rv a os acontec imentos com o u m espec -
tador ind i fe rente .
duran te quase t rs ho ras . Es t e espao o fe rece novo contras te com o br i lh o
e o esp lendor da fe s ta, p ro je ta nd o ass im a si tuao la st imve l em qu e G o -
l idkin se encontra em re lao aos convidados da festa .
Mas do ves t bu lo onde se encontrava , Go l i dk in reso lve entra r pa ra a
copa, e de l para a sa la de jantar e sa lo de ba i le . E a festa de aniversrio,
que se rv i ra de loca l de "utop ia soc ia l " , t rans forma-se em loca l de conc lave
para o escnda lo e c r i se , e tambm de comic idade , o que aba la a es trutura
do conto, como diz Grossmann: o conclave e a cena carnavalesca , juntos .
Gol i dk in passa de uma para a outra sa la e " ca i como uma bomba na sa la
dc ba i le " (p . 308): com o s tem o lhos pa ra K la r a O ls f i evna , e le n o d
conta de na da e avana , dando encontres , p i sando n o ves t ido de u m a se -
nhora , empurrando um cr i ado , dando cotove ladas , a t se encontra r d iante
de K la ra . Quer "meter - se num buraco" , cada vez que es t numa s i tuao
cr ti ca ( a s s im com o se enc a fua "n o lug ar ma i s escond ido da ca r ru age m "
quando seus co legas de repart i o o vem em seme lhante coche , passeando
na Aven ida L it i ina ia (p . 290 ): sua p resena tor na - se mot ivo d e escn da lo
na fes ta , pa ra a qua l no hav ia s ido conv idado. To dos se ag ru pa m em sua
volta , r iem e cochicham, mas Gol idkin consegue chegar a um canto, onde
permanece . A conduta excntr i ca de Gol i dk in t rans forma-se em e lemento
cm ico e a fe s ta torn a - se lugar de t rans fo rm aes bruscas , de des tron iza -
es : Go l i dk in desdenhado por todos ; o c r i ado tenta a fas t - lo com um
recado, mas no consegue . Os conv idados o o lham, se bem que " tudo se
passa entre pessoas be m edu cada s " (p . 311) , m as Go l i dk in sente que se
tra ta de um "m om en to dec i s ivo" , qu e ho ra de "co nfu nd i r os seus in imi -
gos" : por a lguns instantes sente -se entronizado pe las pa lavras solenes que
pronunc ia , m as o ins tante so lene novam ente d iminudo , h um a rev i ra -
vo l ta na s i tuao , quando a orques tra entoa uma po lca . Go l i dk in esque -
c ido e , qua nd o tenta dan ar c om K la ra , cam ba le ia e nova cena cmica se
segue : "Forma-se novo c rcu lo sua vo l ta (des tronizao ) . Duas senhoras de
idade que e le , ao recuar, quase ati rou ao cho, soltam gri t inhos e lamenta-
es . A con fus o terr v e l" ( p . 311-312). G ol id kin ag ar ra do pe las costas
e ob rig ad o a sa i r da l i . um a cena de " travestissem ent " , ou tro dos r itos
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secundrios do carnaval ,37 qu e se segue: "Sen te que lhe vest em o casaco,
lhe enterram o chapu quase at aos olhos , e v -se na entrada, no escuro e
ao frio, e f inalmente, n a esc ad a" ( p . 312). o f i m de seu son ho de asce ns o
socia l , caracterizado mais uma vez pe lo contraste da festa bri lhante e a legre
com o corredor escuro e f r i o em que lanado, mas tambm do ambiente
"onde es t ive r enc lausurado" com a rua , onde encontra " a r e l i be rdade " .
A festa ento, servi r ia , como loca l de crise e de escndalo, para e levar
a ao para o c l max, que o encontro de Gol idkin com seu duplo, na
ponte .
Es te mesmo sa lo de O lsu f Ivnov i tch tambm serve de loca l pa ra a
catstrofe conclus iva , para o encontro de todas as personagens , que , para
Grossman, " lembra os tutti num cora l , i s to , a part ic ipao de todas as vo-
ze s". 38
tam bm a "ma ld i ta corn ucp ia " em ao , a s r ie e s tonteante f i -
na l dos acontec imentos fu lminantes que acaba de se despencar sobre Gol i d -
kin: as sa las esto apinhadas de convidados , todos querem lev- lo na d i reo
de Olsuf Ivnovitch. Gol idkin, sem viso n t ida das coisas , abre caminho
entre os conv idados , a t se r quase empurrado ao compart imento v i z inho- To -
dos que o rodeavam esperavam um "acontec imento extraord inr io " , a t que
a lgum chega, todos se levantam e Gol idkin e seu duplo so colocados um
em fren te do outro: o c l max f in a l do roma nce, a lt im a destron izao de
Gol i dk in , quando o dup lo , " com um sorr i so mau nos lb ios " e "uma inteno
m alvo la " no o lhar (p . 386 ) lhe d um b e i jo " son oro e p r f i do " . Ap s es ta
"con f ron ta o" mais um a das ca rac te r st i cas da Men ip ia39 e s ta ap re -
sentao das lt imas pa lavras e aes decis ivas do homem, d-se outro acon-
tec imento inesperado : a porta do sa lo se abre e aparece o doutor Kres t i an
Rutenspitz , que leva Gol idkin consigo, enquanto seu ss ia "avana sa lt i tante ,
t i ra uma ve la das mos dum cr i ado , caminha para a f rente , i luminando o
senhor Gol i dk in e Kres t i an Ivn ov i tc h" . . . ( p . 386) Os conv idados se p r e -
c ip i tam atrs de Gol idkin e do mdico e at na escadaria , "br i lhantemente
i luminada " , e s tava uma mult ido de pessoas , enquanto O lsu f Ivnov i tch "p re -
s i d ia c ena do pa tam ar de c ima [ . . . ] . Pa rec i a que todos a gua rd avam qu a l -
que r co i sa " (p . 387 ) . A destronizao com ple tada co m a entra da de Gol i d -
k in na ca rruagem, a judado por Kres t i an Ivnov i tch e Andr ie i F i l pov i tch, en-
quanto "o dup lo , covarde como de cos tume, empurrou -o por de trs " a
tragdia novamente abaixada ao nve l da comdia , pe los gestos carnava-
lescos do duplo.
A casa do ministro: como o havia s ido a casa de Olsuf Ivnovitch, tam-
bm o gabinete do ministro loca l de cenas de destronizao e conclave .
Gol idkin, aps ter s ido primeiro recusado pe lo criado, entra no gabinete
do mini s tro , ped indo- lhe demisso e que o de fenda do in imigo . Mas , ao ve r
o mini s tro v i ra r a cabea , " a ve rgonha e o desespero apossa ram-se de le "
37 B A K H T IN E , p. 174.
38 GR OS SM AN , Dostoievski artista, p. 44.
39 B A K H TI N E . p. 161.
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( p . 376 ). E o conc lave s e ence r ra com u m " to rne i o o r a l " . p roce s so su t il
em que as f rases centra i s do mater i a l vocabu la r pa recem fu lminar o in imigo
no momento do combate : aqu i , no gab inete do mini s tro , aps a entrada
de Kres t i an Rutensp i tz e do dup lo , que "aparece no me io da porta , que o
senho r Gol i dk in supuse ra se r um espe lho , com o j acontecera u m a o ut ra
vez " (p . 376), o her i se d i r ige ao m inistro, acu sand o o duplo : " u m ho m em
vulg ar e corro m pido . Exce lnc ia d i s se e le . Es ta va t rans tornado, m or to
de medo; contudo, cora josamente , apontava para seu in fame ss ia que an-
dava de vo l ta do m ini s tro " (p . 377 ) . E o dup lo , aps u m mo vim ento ge ra l ,
a vana e o in te rpel a : "D -m e li cena que lhe pe rgunte [ . . . ] d i ante de q ue m
t que o senhor ju lg a que es t fa lando ? Diante de quem es t o senhor? E m
casa de quem ?" E Go l i dk in em pur r ado " b r andam ente " , c om o seu " cov a rde
gmeo" f rente , ind icando- lhe o caminho. E na antecmara , outra cena de
" t raves t i s sement" ocorre , aba ixando novamente a t rag ic idade do acontec i -
mento ao n ve l do cmico :
O sob re tudo , o s ob re t ud o . . . do m eu m e lho r amigo O sob re tudo
do m eu m e lh or am igo d i s se o in fa m e com voz de fa l se te . A r -
r ancou o s ob re tudo da s m os d um c r i ado e b r i n cade i ra d i spa r a -
t ada m eteu - lho pe l a c abea aba i xo .
Enquanto procurava l i be rta r - se , o senhor Gol i dk in ouv iu d i s t in -
tamente os dois criados rindo (p. 377).
E , a s s im como a entrada da repart i o hav ia se rv ido de loca l de espera ,
de esconder i jo pa ra observar os outros , e a entrada da casa de O lsu f Ivno-
v itch tam bm exerceu fun o seme lhante, o p t io da casa de Ivnov i tch
loca l da espera da "ca ts tro fe conc lu s iva " v i s ta ac ima , co mo Gr os s -
man chama a cu lminao do drama que se funde com o ep logo : Go l i dk in ,
encharcado e f raco , tenta senta r - se "num cepo g rosso que es tava junto de
um mo nto de c avacos" , ( p . 378 ), p roc u ran do " um canto cm odo onde p u -
desse escon der - se von tade " . N o e ra o m esm o "cant inho de entra da d a
casa " do pr inc p io do conto , " entre um armr io e um ve lho b iombo, no me io
do l i xo , dos res tos e da loua su ja de coz inha" (p . 378-9 ) . Aguardando o
desenro la r dos acontec imentos , aps pagar o coche i ro que esperava por e le
h tanto tempo, Go l i dk in tambm corre embora , mas depoi s dec ide vo l ta r
s t rs . Ou tra vez a trs da p i lha de made i ra , pe rce be "u m a es tranha ag i tao"
na casa:
Todo s p rocu ravam o lha r pa r a o p t i o . Es con d ido a t r s da p i lha de
lenha, o senhor Gol idkin, interessado, olhava por sua vez este mo-
v imento . Es tend ia o pescoo para um e outro lado , tendo o cu idado
de no sa i r da sombra pro je tada pe la p i lha de lenha (p . 383 ) .
Quando percebeu que es tavam p rocura de le , e que "a sombra o t inha t ra do e
no o cobr i a j por comple to" qu i s e sconder - se " entre os cavacos , em qua l -
que r bu ra co " , m as e ra impos s ve l. Ch am am -no e o dup lo vem cor rendo ,
"aos pu l inhos " , conduz - lo e scada ac ima .
40 GR OS SM AN , Dostoievski artisia, p. 52.
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R E N A U X . S . D o s t o e v s k i
4) O cais do Fon tank a e a ponte Ism ailov, n a noite de temp estade:
Aps sua des t ron i zao na f e s t a de K la ra O l s f i e vna , Go l i dk in " c o -
m ea a anda r sem pre em f rente , sem nunca m ais se vo l t ar " (p . 312 ) . Chega a o
ca i s do F on tanka , pe r t o da pon t e I sma l o v , " f ug indo aos s eus in im igos e pe r -
s e g u i d o r e s "
.
Todo o c enr i o pa re ce s e e r gue r c on t ra e l e , c omo o f i z e ram seus
" in im igos " na f e s t a :
Es tava uma no i t e medon ha , um a no i t e de no ve m br o m ida e b ru -
mosa , t oda de chuva e de neve [ . . . ] . O v en to sop rava nas ruas
deser tas , e rgu ia ac ima das cade ias da ponte a gua negra do Fon-
tanka, bat ia nos candee i ros do ca is que respond iam a es tes asso -
b i o s c o m um ran ge r agudo e l amen toso . [ . . . ] Ch ov ia e nevava ao
m esm o t em po . Em pur rada pe l o v en to , a gua ca a em j o r r o s qu ase
ho r i z on ta i s [ . . . ] . Ba t i a e ch i co t eava o r o s t o do in f e l i z s enho r Go -
l idk in , co m o se f ossem agulhas e a l f ine tes aos mi lha res . [ . . . ] Pa -
rec ia que a es ta hora , e com um tempo ass im, n ingum poder ia an-
dar nas ruas . [ . . . ] A neve , a chuva , toda a a g i ta o d i f c i l de
expr im i r , da t empes tade p re s t e s a desencadear - s e no c u de novem-
bro de So Pe te rsburgo , perseguem o senhor Go l idk in , j to aca-
b runhad o com os seus p rp r i o s d esgos t o s . [ . . . ] T od os o s e l em en-
tos se unem con t ra o senhor Go l idk in co m o se es t i vessem de a co r -
do c om o s seus in imigos , a f i m ,de que t i vesse um d ia e um a n o i t e
de amargura, (p . 312-313) .
A funo da no i t e de t empestade no cenr io se rv i r ia po is , para reve lar
a an iqu i lao f s i ca do her i pe las f o ras da natureza o perseguindo , ass im
como e l e j hav i a s i do an iqu i l ado men ta lmen t e , p e l o e s cnda lo na f e s t a .
Ele
qu e r ou t ra v e z " e s conde r - s e de s i p rp r i o " , " r edu z i r - s e a p " : tudo lhe
ind i f e rente , es t " to desesperado , to a to rmentado , to per turbado , to
f a t i gado e f r aco que e squece tudo , a pon t e I sma i l o v e a Rua Ches t i l a v t ch -
na ia e a t o presente " (p . 313 ) .
nes te cenr io adverso de uma no i t e de t empestade , na amurada do ca is
do Fontanka, que o acontec imento que e leva ao mx imo a narra t i va t em lugar :
o encon t ro de Go l id k in com o dup lo , co m o conseqnc ia d e sua p erso na -
l i dade desdobrada pa to l g i camen te , a c r e s c ido do s eu dese j o de "mor re r " . S e -
g u n d o . Ed w a rd Was i o l ek , "he purges h imse l f by [ . . . ] a r itua l i s t i c g i v ing o f
h is d istaste ful t ra i ts to another" .
No p r ime i ro encon t ro , Go l i dk in t em a impresso de que " a l gum es ta -
va a l i , naqu e le mo m ento , a seu lado , apo ian do- se ta l com o e le a mu rada
do ca i s [ . . . ] " ( P - 313 ), f a l ando - lhe com " v o z rp ida e sacud ida , no m u i t o
c lara " . A neve aumenta , no se d is t ingue nada . s se ouve o lgubre ch iar
dos candee i ros e a cano do vento , "mais lgubre " a inda . Go l idk in pe -se
novamente a caminho , desembaraa-se da neve na sua roupa, mas
" s no pod e desem baraa r - s e dos s eus e s t ranhos s en t im en tos " .
O es tampido de um canho av isa que as guas do N ieva t inham
subido , e Go l idk in av is ta sua f rente "um t ranseunte , ta l vez a l -
gum re tard atr io , que ve m na sua d i r e o " (p . 314 ) .
41 W AS IO LE K, p. 9.
letras, Curitiba 1251: 347 - 400, ul. 1976
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RENAUX, S. Dostoevski
O t r a ns e u n t e s e a p ro x i m a e Go l i d k i n c ru za c o m e l e , m a s
d e r e p e n t e , p a r o u a s s o m b ra d o c o m o se u m r a i o l he t i v e s s e c a i d o e m
c i m a ; d e p o i s v o l t o u - s e b ru s c a m e nt e p a r a t r s , p a r a o l h a r p e l a s
c o s t a s a t a l p e s s o a q u e a c a b a v a d e p a s s a r p o r e l e . Vo l t o u - s e c o m o
p u x a d o p o r u m c o r d o , t a l c o m o u m c a t a v e n t o q u e g i r a e m t o r n o
d e u m e i x o . . .
ne s t e m o v i m e n to c ru za d o q u e s e o p e ra e n t r e o s d o i s p a s s a n t e s q u e
s e d a r i a a t r a n s m u ta o d o Go l i d k i n I e m G o l i d k i n I I , nu m a t o q u e n o
d e i x a d e e s t a r l i g a d o c a rna v a l i z a o , p e l a s u a a m b i g i d a d e : o na s c i m e n to
c a m o r t e , a e n - e d e s t r o n i z a o " o he r i m o r r e ne ga - s e ) e m c a d a
u m d e s e u s d u p l o s p a ra s e r e no v a r ( s e p u r i f i c a r e s e u l t r a p a s s a r ) . 4 2 D e -
p o is , o t r a n s e u n t e d e s a p a r e c e " n a e s p e s su r a d a n e v e . . . [ . . . ] p e l o p a s s e i o
d o Fo n t a n k a " ( p . 3 1 5 ) .
Ma s Go l i d k i n , m a i s u m a v e z , " e n t r e o s g e m i d o s d o v e n t o e o b a ru l ho
d a t e m p e s t a d e " , o u v e p a s s o s e a v i s t a s u a f r e n t e " a s i l hu e t a ne g ra d u m
h o m e m " q u e a v a n a v a r a p i d a m e n t e . O e f e i t o d e l u z e s o m b r a d e q u e f a l a v a
Gro s s m a n a q u i a p ro v e i t a d o a o m x i m o , p o i s Go l i d k i n , a o s e l a n a r e m
s u a p e r s e gu i o f - l o d e t e r - s e a u ns d e z p a s s o s d e le , " s o b a lu z d o c a n d e e i r o
m a i s p r x i m o , q u e o i l u m i n a v a c o m p l e t a m e n t e " , n a e s c u r a n o i t e d e t e m -
p e s t a d e . A p s s eu a f a s t a m e n to , Go l i d k i n t r e m e nd o , " a c a b o u p o r s e s e n ta r ,
s u s p i r a nd o , nu m a d a s b e i r a s d o p a s s e i o " s u ge r i nd o a s s i m u m a p o s i o d e
i n f e r i o r i d a d e e m r e l a o a o d u p l o . De p o i s , p e - s e a c o r r e r p o r d i v e r s a s
r u as , q u e lh e p a r e c e m u m " l a b i r i n t o " a t q u e a v i s ta n o v a m e n t e o d e s c o n h e -
c i d o , q u e " s e gu i a o m e s m o c a m i nho e c o r r i a s u a f r e n t e , a l gu ns p a s s o s m a i s
a d i a n t e . . . V a i a go ra j na R u a C h e s t i l a v t c hn a i a " ( p . 3 1 6) , " p r a d i a n t e d a
c a s a d e Go l i d k i n e a p s t o c a r a c a m p a i nha , d e s a p a r e c e u s o b o t e t o a b o b a -
d a d o " . a d e s t r o n i z a o q u e se c o m p l e t a , c o m o d u p l o p e n e t r a nd o no s a p o -
sentos de G o l i d k in .
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M as a e s cada t ambm pro j e t a a pe r sona l i dade de Go l i dk in , sua d i f i cu ldade
em re l ac i onar - s e c m os ou t ro s , po i s , ao p ro cura r o md i co no comeo do
i omance , Go l i dk in " s obe a e s cada p rocurando con t e r as pu l saes
do co rao , que lhe ba t i a s empre com mui t a f o r a quando sub ia qua l -
que r out ra escada que no f osse a sua " (p . 281 ) . Opo s tam ente , ao descer
as escadas sa da do consul t r io , " so rr ia e es f regava a legremente as mos"
(p . 298) .
Ao i r casa de O lsf I vnov i t ch , Go l idk in " sa i do coche , p l ido , a lheado ,
sobe os degraus do patamar , t i ra o chapu, compe a roupa maquina lmente ,
e com uma leve t remura nos joe lhos , comea a sub i r a escada" (p . 307 ) : e la
ser ia o obs tculo sua ascenso soc ia l e por i sso mesmo, " campo de ao de
cenas penosas " , po is Go l id k in a fas tad o pe lo c r iad o pa ra da r passa gem a
do is conv idados , en t re os qua is seu che f e , An dr i i F i l p ov i t ch . N ov am en te
embaixo , Go l idk in encara seu che f e , ao a l to , que "parec ia pres tes a ca i r s . o -
br e e l e " . M as Go l id k in sobe de no vo a escada "d e u m pu lo " (p . 303 ) e o
che f e corre a f echar a por ta a t rs de s i . Aps descer correndo a escada .
Go l idk in quer "meter -se num buraco , esconder -se como um rato , a s i e
ca r r uag em " ( p . 304 ). a c onseqnc ia de sua " in f ra o " , a p r im e i ra des t ro -
n i zao , um prembulo des t ron izao que se segu i r , ao penet rar rea lmente
na f es ta .
6 ) Res taurante :
O res taurante "mui to conhec ido da Perspec t i va N ivsk i , mas de que e le
mal t inha ouv ido f a lar " , se rve tambm para pro je tar a ns ia de ascenso
soc ia l de Go l id kin (p . 300), sua vaid ad e, po is , ao en con tra r l do is de seus
co legas de repar t i o , f i ca per turbado , dese ja manter "uma cer ta d is tnc ia "
(p 300 ) de les e po r f i m assum e um "a r im po r tan te ao se desp ed i r de les .
Mais tarde , quando no h mais necess idade de aparentar , Go l idk in
va i a um bar de aparnc ia modes ta , numa ruaz inha es t re i ta , para ped i r um
jan ta r .
E aps o dup lo ha ver usu rpado seus pap is na repa r t i o , o m es m o
les tarante onde t inha es tado a descansar enquanto esperava pe la hora do
jan tar de O lsuf I vn ov i t ch cen r io de ou t ro escnda lo : aps hav er co m id o
um bo lo , na hora de pa ga r o em pr ega do lhe d i z que com era on ze . Espan tado ,
Go l i dk in acaba pagando , mas de r epen t e c ompreende o en i gma . Na po r t a
"que Go l idk in supunha ser um espe lho " em sua f rente , es tava o dup lo , co -
m end o o dc imo bo l o . novam en te o e l em en to cm ico ao l ado da t ragd ia
e es ta nova c r i se l eva Go l idk in a se humi lhar perante os out ros f regueses :
"O s enhor Go l i dk in e s tava pe rp l exo . Pa re c i a ob r a de f e i t i a r i a En t r e t an to
o vendedor esperava . J hav ia gente em vo l ta do senhor Go l idk in .
T i r o u um rub lo do bo l so . Es tava v e r m e lh o co m o um ca ma ro ( p . 343 ) .
Aps have r s i do " des t ron i zado " pe l o dup lo na r epar t i o , Go l i dk in con -
s egue a cus t o convenc - l o a e xp l i c a r em-se mutuamente a s i tuao . D i r i g em-
-se a um ca f deser to , onde . aps f ing i r amizade em re lao a Go l idk in . o
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dup lo despede -s e , ape r t ando - lhe " desdenhosamente " do i s dedos e r epe t indo " a
in t o l e rve l g rao l a daque la manh " . " J t inha me t ido no bo l so o l eno com
que l impara o s dedos , quando o s enho r Go l i dk in nmero um se ps a pe r -
segui r na sa la v i z inha o seu f i gada l e covarde in imigo " , (p . 367 ) . E a a lem,
vendo fug i r os do is c l i en tes , "ps -se a gr i tar e a tocar a campainha com to -
da a f o r a " , ( p . 368 ) .
Es ta comb inao de c enas penosas com ges t o s ca rnava l e s cos , t o e v i -
den t e ac ima , ma i s uma v e z p ro j e t ada , no c enr i o , no mesmo d ia , quando
Go l i dk in va i a um a t ab e rna : l a ca r t a qu e K la ra O l s f i e vna lhe env i a ra ,
co l o ca ndo -s e sob sua p ro t e o , s em pe r c eb e r que " o desa r ran jo da r oupa ,
sua v is ve l comoo , o caminhar desordenado a t ravs da sa la , os ges tos , as
pa lav ras so l t as " ( p . 369 ) chamam a a t eno dos p r e sen t e s e t odos o obse r -
v a m " d e u m m o d o p o u c o t r a n q i l i z a d o r " ( p . 3 7 0 ). E o e l e m e n t o c m i c o i n -
t e r v m, quando Go l i dk in , v endo sua f r en t e uma mesa que no hav i a s i do
t i rada , pe rgun ta ao em pre gad o : "Qu an to dev o? " e " sua vo l t a t odos c om ea -
ram a r ir, a t o m esm o em pr eg ad o " .
O s enho r Go l i dk in compreendeu que acabaca de d i z e r um g rande
d i spara t e . P ro cu rou o l eno pa ra f a z e r qu a lqu e r c o i sa . M as , c om
surpresa gera l e tam b m d e le pr p r io , n o f o i u m leno , que t i rou
d o b o l s o m a s u m f r a s c o q u e c o n ti n h a u m m e d i c a m e n t o r e c e i t a d o
qua t ro d i as an t e s po r K res t i an I vnov i t ch .
E , ao ca i r - lhe o f r as co das mos e quebra r - s e , h g rande mov imen to e c on -
fus o na sa l a e Go l i d k in c ma i s um a v e z hum