Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde
RICARDO CABRAL DE FREITAS
O FÍSICO E O MORAL NA DISSERTAÇÃO SOBRE AS PAIXÕES DA ALMA (1753) DE ANTONIO RIBEIRO SANCHES (1699-1783)
Rio de Janeiro 2012
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RICARDO CABRAL DE FREITAS
O FÍSICO E O MORAL NA DISSERTAÇÃO SOBRE AS PAIXÕES DA ALMA (1753) DE ANTONIO RIBEIRO SANCHES (1699-1783)
Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-Fiocruz, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências.
Orientador: Prof. Dr. Flavio Coelho Edler
Rio de Janeiro 2012
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F862f Freitas, Ricardo Cabral de. O físico e o moral na dissertação sobre as paixões da alma
(1753) de Antonio Ribeiro Sanches (1699-1783) / Ricardo Cabral de Freitas. – Rio de Janeiro : s.n., 2012.
151 f.
Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz, 2012.
Bibliografia: f. _ _
1. Medicina. 2. História da medicina. 3. Medicina na literatura. 4. Médicos. 5. Sanches, Antonio Nunes Ribeiro. 6. Portugal.
CDD 610.9469
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RICARDO CABRAL DE FREITAS
O FÍSICO E O MORAL NA DISSERTAÇÃO SOBRE AS PAIXÕES DA ALMA (1753) DE ANTONIO RIBEIRO SANCHES (1699-1783)
Dissertação de mestrado apresentada ao Curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz-FIOCRUZ, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de Concentração: História das Ciências.
Aprovado em de .
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________Prof.Dr. Flavio Coelho Edler (COC-FIOCRUZ)-Orientador
______________________________________________________________
Profa.Dra. Júnia Ferreira Furtado (FFCH-UFMG)
___________________________________________________________________ Profa.Dra. Lorelai Brilhante Kury (COC-Fiocruz)
Suplente:
___________________________________________________________________
Prof.Dr. Robert Wegner (COC-FIOCRUZ)
___________________________________________________________________ Profa.Dra. Heloisa Meireles Gesteira(CHC-MAST)
Rio de Janeiro
2012
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AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, quero agradecer ao meu orientador Flavio Coelho Edler, pela
dedicação e incentivo constantes. Desde nossos primeiros contatos, antes mesmo do
processo seletivo, tive a sorte de poder contar com sua competência e confiança. Também
não posso deixar de agradecer aos meus colegas de mestrado pelo companheirismo durante
todo esse tempo. Foi ótimo poder fazer parte de uma turma tão unida e camarada! Tenho
uma dívida de gratidão com todos, sobretudo com Daniele Ribeiro e Leandro Felício, meus
companheiros de orientação, com quem dividi dúvidas, angústias e alegrias mais de perto.
Desde que iniciei meus estudos na COC fui surpreendido pela solicitude e
organização dos funcionários. Acho que não sou o único a afirmar que, infelizmente, isso é
coisa rara em instituições de ensino público. Portanto, quero deixar registrado meu
agradecimento a todos os funcionários da biblioteca, da xerox e da secretaria acadêmica.
Também quero agradecer à CAPES pelo financiamento da pesquisa, o que
possibilitou minha dedicação exclusiva ao projeto, com a tranquilidade de sempre receber a
bolsa sem atrasos significativos.
No plano pessoal, sou muito grato a meu pai, Luiz Carlos, e meu irmão, Bernardo.
Apesar de tudo, fico feliz de sermos capazes de continuar nos ajudando e tocar a vida pra
frente. Também devo agradecer a meu amigo e companheiro de mestrado e de profissão,
Arlindo Souza, (que deve estar defendendo sua dissertação enquanto escrevo esse texto!)
pelas conversas, incentivos, trocas de ideias e tardes de rock n’ roll.
Por fim, não poderia deixar de registrar minha gratidão pelo apoio incondicional de
Susana Alvarez. Ninguém ouviu mais de perto as minhas angústias e indecisões e ninguém
as compreendeu melhor do que ela. Seu carinho e senso de humor tornaram tudo mais fácil.
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DEDICATÓRIA
Ao longo desses dois anos de mestrado, eu e meus colegas tivemos contato com
diversos textos e leituras que foram exaustivamente discutidos em sala de aula. Porém,
apesar do cotidiano acadêmico, nossas vidas também são pontuadas por outros
acontecimentos, e acabei me identificando com o último parágrafo do prefácio do livro de
Marshall Berman, Tudo que é sólido desmancha no ar, quando o autor faz uma comovente
homenagem a seu filho, que falecera aos cinco anos de idade:
“no mundo moderno, aqueles que são mais felizes na tranqüilidade
doméstica, (...), talvez sejam os mais vulneráveis aos demônios que
assediam esse mundo; a rotina diária dos parques e bicicletas, das
compras, do comer e limpar-se, dos abraços e beijos costumeiros,
talvez não seja apenas infinitamente bela e festiva, mas também
infinitamente frágil e precária; manter essa vida exige talvez esforços
desesperados e heróicos, e às vezes perdemos.”1
Em 10 abril de 2010, eu e minha família perdemos minha mãe após uma sofrida
batalha contra uma hepatite, descoberta apenas seis meses antes. Quem a conheceu sabe
que, assim como o filho de Berman, ela era mais feliz na “tranquilidade doméstica” e “nos
abraços e beijos costumeiros.” Ao nos deixar, ela levou consigo partes de nossas vidas que,
como fica mais claro a cada dia, nunca serão recuperadas, e me fez sentir na pele as
palavras do autor, quando me dei conta de que a vida não pode ser feita de outra coisa que
de continuidade, apesar da saudade e da dor.
Esse trabalho é parte de meu sincero esforço de continuidade, e eu o dedico a Janete
Cabral de Freitas.
Rio de Janeiro,
Fevereiro de 2012.
1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das letras, 1986., p.14.
7
RESUMO
Esse trabalho procura analisar a obra Dissertação Sobre as Paixões da Alma (1753),
escrita pelo médico português Antonio Nunes Ribeiro Sanches no contexto das reformas
ilustradas em Portugal no século XVIII. Ao apresentar as dinâmicas existentes entre a alma
e o corpo humano através de uma análise dos efeitos causados pelas paixões nesses dois
domínios, o autor atribui legitimidade ao discurso médico para reivindicar o tratamento da
alma como um objeto próprio à sua jurisdição. Nesse sentido, a produção de discurso a
respeito do comportamento humano, é apresentada como alternativa aos discursos
tradicionais, representados, sobretudo, pela Teologia e o Direito. Nosso objetivo é mostrar
como o autor formula sua argumentação através da apropriação de um vocabulário médico
de referencial empirista, que estava em pleno processo de gestação nos debates que
ocorriam entre círculos médicos vitalistas, animistas, mecanicistas e sensualistas no
período, e que acabariam por forjar um discurso higiênico renovado e em íntima
consonância com a ilustração.
Antonio Nunes Ribeiro Sanches; paixões da alma; Iluminismo em Portugal; medicina portuguesa.
8
ABSTRACT
This work analyses the text Dissertação sobre as paixões da alma (1753), written
by the Portuguese doctor Antonio Nunes Ribeiro Sanches in the context of the Portuguese
enlightenment, in the XVIIIth century. As the author shows the existing dynamics between
the human soul and the body, through the effects of the passions on these domains, he
attributes legitimacy to the medical discourse to claim for the treatment of the human soul
as part of its jurisdiction. Thus, the production of discourse in regard to the human behavior
is presented as an alternative to the traditional discourses, especially the Theology and the
Law. Our purpose is to show how the author formulates his arguments by appropriating an
empiricist medical vocabulary, which was being forged at that time, through the intense
debates between vitalists, animists, mechanicists and sensualists medical circles. By the
second half of the century, these debates would forge a renewed hygienical discourse in
close connection to the enlightenment.
Antonio Nunes Ribeiro Sanches; Passions of the soul; Portuguese Enlightenment; Portuguese Medecine.
9
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................10
1. Ilustração e Medicina no Portugal Pombalino..................................................20
1.1 A intelectualidade ilustrada e renovação de ideias..............................................21
1.2 A medicina lusitana setecentista..........................................................................41
2. Medicina Política: as redes de Ribeiro Sanches e suas propostas de reforma
para Portugal............................................................................................................56
2.1 Trajetória e relações com a intelectualidade ilustrada.........................................56
2.2 Educação, Estado e Igreja....................................................................................73
2.3 Uma medicina do físico e do moral.....................................................................82
3. Ribeiro Sanches e a retórica médica setecentista sobre o físico e o moral.....95
3.1 As novas concepções médicas sobre o corpo e a alma........................................98
3.2 A psicofisiologia das paixões na medicina portuguesa: Ribeiro Sanches e
Francisco Melo Franco............................................................................................113
3.3 “O ânimo tem sumo poder de alterar o corpo”: a Dissertação sobre as paixões
da alma e a proposta de uma nova jurisdição médica.............................................118
Considerações Finais.............................................................................................138
Bibliografia e Fontes..............................................................................................142
10
INTRODUÇÃO
Antonio Nunes Ribeiro Sanches é um personagem importante para a compreensão
do reformismo ilustrado português no século XVIII. Nascido na cidade de Penamacor em
1699, fez seus primeiros estudos de medicina na Universidade de Salamanca. Anos mais
tarde, deixaria o reino sob uma suposta acusação de judaísmo e nunca mais retornaria a sua
terra natal. Após curta passagem por Itália, Inglaterra e França, estabeleceu-se em Leyden,
na Holanda, como aluno do famoso médico Herman Boerhaave (1668-1738), que
posteriormente lhe indicou para ocupar cargo de médico na corte russa, posto ao qual se
dedicou por 17 anos, até seu retorno à Paris, em 1757, onde permaneceria até o final de sua
vida, em outubro de 1783. Grosso modo, sua trajetória foi marcada pela variedade das suas
redes de contato, o que lhe garantiu lugar em importantes círculos intelectuais de sua época,
e pela sua adesão às idéias ilustradas.2
Todo esse arcabouço seria convertido numa variedade de propostas para
transformação da realidade político-cultural portuguesa a partir do período pombalino.
Como veremos, mesmo a distância, Sanches manteve o reino português entre seus
principais objetos de estudo e se alinhou a setores da sociedade lusa comprometidos em
reformá-la a partir do fortalecimento do poder régio diante da Igreja e do incentivo a
divulgação mais efetiva da filosofia natural reformada.
Dentre os temas privilegiados pelo autor em suas obras, a reivindicação da
ampliação dos limites jurisdicionais da medicina no Portugal reformado aparece de forma
clara na maior parte de seus textos. Nesse sentido, este trabalho orbita em torno da obra
Dissertação Sobre as Paixões da Alma, escrita pelo autor na capital francesa, em 1753, mas
que permaneceu como manuscrito até sua publicação póstuma em 1787, em língua
francesa, na Encyclopédie Métodique, sob o título Affections de l'ame. No texto, Sanches
procura fazer uma minuciosa apresentação da dinâmica existente entre a alma e o corpo
humano através de uma análise dos efeitos causados pelas paixões nesses dois domínios. A
2 CUNHA, Fanny Andrée Font Xavier da. Antonio Nunes Ribeiro Sanches. Médico higienista (1699-1783). In.:
Cadernos de Cultura: Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XIX. v.1, n.1 , pp. 19-27, 1989.
11
tese principal do médico de Penamacor está assentada na reivindicação do tratamento das
paixões da alma como objeto legítimo da medicina, já que, na sua concepção, o
conhecimento médico seria o único apto a desvendar os meandros das interações entre o
domínio físico e moral humano. Em linhas gerais, quando a alma ou o corpo estivessem
alterados pelas paixões, o estado de saúde do indivíduo seria afetado, manifestando sinais
patológicos variados: “Aqui vemos que o ânimo tem sumo poder no corpo para alterá-lo e
até fazê-lo enfermo e às vezes até perder a vida3”. Do mesmo modo, na via contrária, o
autor também considerava a possibilidade de alterações orgânicas do corpo determinarem
as manifestações das paixões da alma, e por consequência, alterações no ânimo.
Numa perspectiva mais ampla, a legitimidade atribuída pelo autor ao discurso
médico para reivindicar o tratamento da alma como um objeto próprio à sua jurisdição
supunha a primazia médica sobre a produção de discurso a respeito do comportamento
humano, apresentada como alternativa à moral cristã e ao discurso jurídico. Nosso objetivo
é compreender como, no contexto do reformismo ilustrado luso, o autor opera a tradução
dessa concepção na reivindicação de um novo papel para a medicina na sociedade
portuguesa reformada, através de uma interpelação direta de discursos mais tradicionais,
sobretudo o Direito e a Teologia, detentores, até então, da legitimidade da produção de
discurso sobre padrões de comportamento e de costumes.
Para responder às questões propostas pela pesquisa, procuramos identificar as
especificidades da relação entre os domínios do corpo e da alma nos moldes como foram
colocados por Ribeiro Sanches na Dissertação, através de sua apropriação de um
vocabulário médico que estava em pleno processo de gestação nos debates que ocorriam
em vários círculos médicos europeus setecentistas, que acabaria forjando um discurso
higiênico renovado e em íntima consonância com a ilustração. Veremos como as
concepções sobre a natureza humana, o corpo, a saúde e a doença defendidas pelo autor são
em grande parte informadas pelos debates médicos setecentistas surgidos na esteira da
revisão da filosofia mecânica e dos sistemas médicos seiscentistas.
Através de ampla literatura sobre a medicina do século XVIII, sobretudo a partir
autores como Renato Mazzolini, Roy Porter, Georges Rousseau, Roselyne Rey, Sergio
3 SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da Alma. Covilhã: Universidade da Beira
Interior, 2003., p. 1.
12
Moravia e Elizabeth Williams, veremos que a partir das críticas dirigidas à passividade da
matéria, implícita aos modelos fisiológicos mecanicistas, surgem longos e variados esforços
de revisão das concepções sobre o funcionamento das funções vitais humanas que propõem
alternativas diversas à cisão corpo/alma nos moldes em que ela foi colocada pela filosofia
de matriz cartesiana.
Ao obscurecer os limites entre os domínios do corpo e da alma, esses novos
discursos acabariam propondo alternativas à tradicional divisão do trabalho entre médicos e
teólogos, que entendia serem as funções corpóreas uma atribuição da medicina e as
espirituais específicas dos religiosos. Desse modo, houve uma crescente laicização dos
discursos sobre a natureza humana por meio dos debates entre vertentes de pensamento
sensualistas, vitalistas e animistas, dando origem a novas concepções sobre as relações do
indivíduo com seu próprio corpo e com o meio em que ele se insere. Na perspectiva
animista, por exemplo, a alma, cujas atribuições eram antes restritas à consciência e à
razão, foi colocada no centro das modelos explicativos da fisiologia humana e entendida
como a entidade gerenciadora das funções corporais, e portanto, imprescindível para a sua
compreensão. Os vitalistas, por outro lado, indicam a atualização de concepções holísticas
sobre a natureza humana, de modo que o funcionamento do corpo passou a ser entendido
como resultado de relações simbióticas entre os tecidos dos órgãos e os condicionamentos
impostos pelo clima, alimentação, temperamento, idade, sexo, etc.4
Nessas propostas, a condição do corpo torna-se determinante para o estado da alma,
e como conseqüência, do ânimo. Assim, as paixões e as sensibilidades humanas entraram
na ordem do dia e ajudaram a moldar uma nova retórica médica, calcada numa
reivindicação de ampliação de sua jurisdição em direção a um modelo de intervenção direta
na vida social, através do estabelecimento de novos padrões para avaliar condutas,
costumes e comportamentos. Desse modo, a medicina apresenta-se cada vez mais como
4 MAZZOLINI, Renato. Les lumières de la raison : des systèmes médicaux à l’organologie naturaliste. In. : GRMEK, Mirko ; FANTINI, Bernardino. Histoire de la pensée médicale en occident. V. 2. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Éditions du Seulo, 1996., p.102- 103 ; REY, Roseline Psyche, soma and the vitalist philosophy of medicine. In.: John P. Wright & Paul Porter (Ed.) Psyche and Soma: physicians and metephysicians on the mind-body problem from Antiquity to Enlightenment. Oxford: Clarendom Press, 2000. p.255.
13
alternativa aos discursos teológico e jurídico nas questões relativas à condição física e
moral do homem.5
Sanches mostra-se informado desses debates, e não é mera coincidência o fato de
que os lugares escolhidos por ele para dar prosseguimento à sua formação eram centros
privilegiados de produção de conhecimento médico do período. Londres, Leyden e Paris, só
para citar os principais, foram palco de alguns dos debates mais intensos entre as diversas
propostas e concepções médicas que marcaram a medicina setecentista européia.
Desse modo, através de uma abordagem contextualista, procuramos ampliar o foco
da análise para além da obra analisada e pensá-la em relação à trajetória de seu autor e de
sua produção intelectual, assim como do contexto político-cultural no qual estava inserida e
o com o qual dialogava. Para isso, será realizada uma apreciação do campo cultural de
Portugal no período da reforma pombalina, processo intensamente observado por Sanches,
e no qual tentou intervir em grande parte de suas obras, entre elas: Cartas para a Educação
da Mocidade (1759), Tratado da conservação da saúde dos Povos (1756), Método para
aprender e estudar a Medicina (1761)), e a já citada Dissertação sobre as paixões da alma
(1753). É nesse contexto que se desenrola sua rica biografia, marcada por um intenso
cosmopolitanismo e por fecundas redes de relações nas quais desempenhava papéis
diversos, intermediando trocas de favores, debates filosóficos e alianças políticas. Boa parte
de suas correspondências foram endereçadas a alguns dos principais intelectuais europeus
do século XVIII, como Diderot, D’Alembert e Buffon, com os quais travou contato sobre
temas relativos a questões de interesse científico, político e até pessoal. Através da
observação dessas redes, e das condições de sua formação intelectual, mostraremos como
Sanches acessava os debates médicos de seu tempo, participando de trocas de livros,
plantas, técnicas e relatos de observações que entremeavam suas obras e solidificavam seus
posicionamentos médicos e políticos.
Nossa perspectiva de análise da trajetória do personagem deve muito às propostas
mais recentes vindas do campo da história intelectual, que procuram superar a clássica
dualidade interno/externo e propor um esforço de interpretação calcado numa tentativa de
articulação desses dois âmbitos, como descreve François Dosse:
5 ROSELYNE, Rey. Hygiène Hygiène et souci de soi dans la pensée médicale des Lumières. In.:
Communications., n.56., p.25-39, 1993.,p.25
14
“O que pode emergir de uma abordagem ao mesmo tempo
internalista e externalista não são mecanismos de causalidade mas,
mais modestamente, a explicação de correlações, de simples vínculos
possíveis, como hipóteses, entre o conteúdo exprimido, o dizer de uma
lado, e a existência de redes, o pertencimento de geração, a adesão a
uma escola, o período e suas problemáticas do outro.”6
Longe de querermos estabelecer as filiações de Ribeiro Sanches a sistemas
filosóficos, ou classificarmos sua obra a partir de categorias concebidas a priori,
procuraremos apontar como o autor se apropria de debates e vocabulários que estavam
sendo forjados em diversos círculos intelectuais de sua época para construir sua
argumentação, que por sua vez, também tem íntima correlação com o contexto do
pensamento ilustrado e as novas formas de pensar a condição humana e a própria vida em
sociedade no século XVIII. Nesse sentido, adotamos uma postura de indeterminação
epistemológica, que o mesmo François Dosse descreve como um
“entrelaçamento de relações próprias ao campo intelectual, que
inserem os indivíduos em relações de superposição inextrincáveis entre
a defesa de seus valores, a de seus interesses, mas também (...) em uma
dimensão subjetiva de afetividade muito intensa, flutuante de acordo
com as amizades e inimizades formadas.” 7
Assim, nossa narrativa será esboçada através do entrelaçamento das diversas
camadas superpostas que constituíam as várias da facetas da vida de Antonio Ribeiro
Sanches. É através delas que procuraremos compreender os argumentos mobilizados pelo
autor em Dissertação sobre as paixões da alma e localizá-lo no debate setecentista sobre os
estudos da alma humana e das suas relações com o físico e o moral do indivíduo.
No entanto, não está entre nossos objetivos fazer uma incursão profunda na
biografia do personagem ou de esgotar as nuances de seu contexto de produção e das 6 DOSSE, François. História e ciências sociais. São Paulo: Edusc, 2004., p. 299.
7 Idem.
15
condições de recepção das suas obras. Além disso, não realizaremos uma revisão detida e
abrangente dos debates intelectuais científicos dos quais o autor se apropriou ao longo de
sua vida intelectual para construir os argumentos que compõem o conjunto de suas obras.
Nos limitaremos à apresentação dessas questões na medida em que elas se mostrarem
pertinentes para a compreensão das concepções defendidas por Sanches na Dissertação e
para localizá-la no seu contexto de produção.
Ao longo do desenvolvimento da pesquisa, pudemos perceber que a produção de
Ribeiro Sanches cobriu temas muito diversos. De fato, a Dissertação foi o único trabalho
em que o autor dedicou especial atenção ao tema das paixões da alma. Em um primeiro
momento, isso foi visto com certa surpresa, já que a obra não parecia possuir organicidade
clara com o restante da produção médica do personagem. No entanto, ao fazer uma análise
mais detida da parte de sua produção intelectual à qual tive acesso, foi possível identificar
que a reivindicação de um novo papel para a medicina no processo de reordenação do
mundo intelectual português funcionava como uma linha de fundo de boa parte delas. Na
verdade, enquanto representante do conhecimento médico, Sanches afirma retoricamente
que sua intenção não é formular um escopo jurisdicional novo e inédito para a Medicina,
mas sim, devolver a ela a legitimidade para tratar de temas que haviam sido usurpados de
sua jurisdição original pela ascensão do controle eclesiástico no controle do processo
educacional. Assim, em algumas de suas obras pedagógicas e higiênicas, o autor enfatiza os
supostos malefícios causados pelo domínio inaciano no processo educacional português,
que teriam desdobramentos nefastos não apenas na educação, mas sobretudo, para o
sustento da estrutura social. Nesse aspecto, em consonância com vários outros intelectuais
portugueses vinculados ao reformismo ilustrado, o autor mostra-se engajado com os ideais
utilitaristas próprios à retórica iluminista setecentista, no sentido de que todas práticas
sociais deveriam ter como fim a conservação da vida e do Estado, tarefa que a educação
eclesiástica, voltada para a perpetuação da estrutura administrativa e política da Igreja, não
poderia cumprir.
Articulado com o processo de laicização dos discursos sobre a natureza humana
pela via do conhecimento médico, ao qual fizemos referência acima, o modelo de
intervenção social proposto por Sanches pretendia modificar esse estado de coisas ao
extirpar a presença clerical nos assuntos educacionais, devolvendo-a ao que considerava
16
sua jurisdição original, diga-se, o tratamento dos assuntos relativos à moral cristã e a
salvação das almas. Por outro lado, através de uma postura abertamente regalista, o autor
afirma o dever do Estado em promover um modelo de educação que pudesse preparar os
súditos para corresponder às suas necessidades. Essa preparação, por sua vez, não deveria
ser apenas intelectual, mas também moral e física. A administração adequada dos regimes
de vida, através de fatores como alimentação, atividades físicas, tempo de lazer e trabalho,
e adequada conduta moral, seria uma prerrogativa indispensável para preparar cidadãos
saudáveis e aptos para promover a conservação do Estado da forma mais eficiente possível.
Assim, o discurso médico é apresentado como o mais apto para garantir a manutenção do
estado de saúde da população, deixando os indivíduos imunes aos malefícios causados
pelas doenças e pelas paixões.
É no interior desse arcabouço discursivo, apresentado aqui em linhas gerais, que
Ribeiro Sanches formula suas reivindicações para o campo médico português. Na maior
parte de seus escritos sobre pedagogia e higiene, a busca pelo equilíbrio entre esses dois
domínios é almejada como condição básica para garantir a saúde e potencializar as
qualidades dos indivíduos enquanto cidadãos e trabalhadores, o que garantiria a
conservação do Estado e da vida civil. Assim, o domínio dessas duas dimensões da
natureza humana legitimaria o conhecimento médico a intervir na sociedade e fornecer os
meios que possibilitariam aos indivíduos alcançar um estilo de vida ordenado e considerado
o mais adequado, diante dos discursos mais tradicionais representados pelo Direito, e
sobretudo pela Igreja, para conservar o equilíbrio entre sua natureza e o meio em que
estavam inseridos. Em outras palavras, o ideal do estilo de vida equilibrado, tão caro à
medicina setencentista e tido como imprescindível para a cura e a manutenção da saúde
física e moral, deveria ser alcançada pela obra da medicina.
Veremos que boa parte das obras de Ribeiro Sanches dedicadas a Portugal foi
escrita a pedido da Coroa. Após a publicação de Tratado sobre a conservação da saúde dos
povos, em 1756, o autor obteve, por meio de suas relações com a diplomacia portuguesa,
uma pensão anual da Coroa em troca da produção de obras voltadas para o reino. Esse foi o
caso, por exemplo, de As Cartas para a educação da mocidade, de 1759, dedicada ao
Monsenhor Pedro da Costa de Almeida Salema, membro do corpo diplomático de Portugal
em Paris. Tudo indica que a Dissertação sobre as paixões da alma, escrita em 1753, mas só
17
publicada pouco mais de 30 anos depois, não foi fruto desses acordos. Além do fato de a
obra ter sido escrita anos antes do início do financiamento governamental e de seu conteúdo
condizer com suas propostas mais gerais para o reino, como vimos acima, sua interpelação
direta e radical do domínio eclesiástico sobre a alma humana parece ir além dos limites do
reformismo pombalino, empenhado em combater qualquer manifestação que fosse
considerada de viés ateu.
Sanches demonstra preocupação com a recepção da obra e teme consequências mais
graves caso ela caísse em mãos que não fossem as de seu interlocutor. Ao contrário das
obras acima, não conseguimos identificar quem era essa pessoa a quem Sanches se dirige
no manuscrito. Além disso, também não temos maiores informações sobre sua recepção em
Portugal, mas sua publicação tardia na França e em francês, pode ser tomada como um
indicativo de que, de fato, seu conteúdo era passível de retaliamento pela censura
pombalina.
No entanto, essas limitações não comprometeram nossos objetivos, uma vez que
nossa análise está centrada nos elementos apropriados de diversos níveis contextuais que
Sanches mobiliza na obra para defender sua tese sobre o papel da medicina nos assuntos
relativos à alma. Assim, se sua recepção não está ao alcance de nossa pesquisa documental,
ela também não configura um elemento fundamental para nossos objetivos.
Segundo Faustino Cordeiro, autor de uma edição comentada da Dissertação,
existem três versões do texto: o manuscrito De Animi Perturbationibus, sob a guarda da
Biblioteca da Faculdade de Medicina de Paris, aparenta ser uma versão preliminar da obra,
escrita diretamente por Sanches. A segunda versão, também depositada na mesma
biblioteca, leva o título pelo qual a conhecemos e, de acordo com Cordeiro, parece ter sido
revisada pelo próprio autor, o que pode ser constatado através de duas emendas ao texto
efetuadas com sua letra. A terceira versão é a mais conhecida e foi publicada em francês
por Charles Andry na Enciclopédie Méthodique em 1787, com o título Affections de l’âme.8
A versão publicada por Faustino Cordeiro foi baseada nas três versões e procura
apresentar as diferenças mais significativas entre as três, que serão apontadas nesse trabalho
mais adiante. Já a versão utilizada por mim é uma publicação eletrônica da Universidade de
8 SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da alma. Introdução e notas de Faustino
Cordeiro. Penamacor: Câmara Municipal de Penamacor, 1999.. p. 06.
18
Beira Interior do manuscrito Dissertação sobre as paixões da alma depositado na
Biblioteca da Faculdade de Medicina de Paris. Ao longo da pesquisa foi realizada uma
cuidadosa comparação entre a versão publicada por Cordeiro, a versão utilizada por mim e
o artigo Affections de l´âme na qual pude verificar que não há diferenças significativas entre
os três textos. Infelizmente, não pudemos ter acesso direto ao De Animi Perturbationibus, o
que compensaremos com os comentários de Faustino Cordeiro.
Dentre as dificuldades encontradas na pesquisa, também não tivemos acesso a
algumas obras clássicas sobre Ribeiro Sanches, em especial Ribeiro Sanches a sua vida e
obra de Maximiano Lemos, publicada em 1911 e, António Nunes Ribeiro Sanches – élève
de Boerhaave et son importance pour la Russie de David Willemse, de 1966. No entanto,
tivemos o suporte de ampla bibliografia sobre a vida e a obra do autor, que inclui os textos
publicados poucos anos após sua morte por Charles Andry e Vicq D’Azyr. Andry, que era
amigo pessoal de Sanches, foi responsável pela publicação de suas obras na França após
sua morte, dentre elas a Dissertação sobre as paixões da alma, e escreveu o longo texto
biográfico que acompanha o catálogo de livros de Sanches9. Vicq D’Azyr, por sua vez, foi
importante médico francês setecentista e publicou um elogio póstumo a Sanches em 1805.10
Dentre as obras utilizadas também devemos destacar o inteligente artigo de Georges Dulac
intitulado Science et politique : les réseaux du Dr. António Ribeiro Sanches (1699-1783)11,
no qual o autor faz uma análise precisa das relações pessoais e institucionais que nosso
personagem desenvolveu ao longo de sua trajetória, destacando os papéis desempenhados
pelo médico português nessas redes e como ele as articulava em favor de seus interesses e
os de seus aliados.
Nossa dissertação será divida em três capítulos: no primeiro será feita uma incursão
pelo contexto cultural português durante o período pombalino a partir de alguns
apontamentos historiográficos sobre a questão do iluminismo português; a reforma da
Universidade de Coimbra; o tema do decadentismo através da dicotomia progresso/atraso
na cultura portuguesa moderna; o papel dos intelectuais nas reformas e a recente revisão da
9 Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. Paris : Chez de Bure, 1783.
10 VICQ D’AZYR, Félix. Éloges historiques. v.3. Paris: Duprat-Duverger, 1805., p.218-259.
11 DULAC, Georges. Science et politique: les réseaux du Dr. António Ribeiro Sanches (1699-1783). Cahiers de
monde russe., v.43., n.2-3., p.251-274., 2002.
19
categoria de “estrangeirados” pela historiografia portuguesa. Essas questões são pertinentes
para construirmos um olhar mais lúcido sobre a figura de Ribeiro Sanches e sua condição
tanto como intelectual, quanto como súdito português. Além disso, elas nos permitirão
compreender de forma mais precisa o Portugal no qual nosso personagem procurava
intervir através de suas obras. Nesse sentido, realizaremos, em seguida, uma incursão sobre
a medicina portuguesa no interior dessas mesmas transformações, através do pensamento
médico luso e das renovações trazidas pela reforma da Universidade de Coimbra na esfera
do ensino e da prática médica portuguesa.
O segundo capítulo será mais diretamente assentado na figura de Sanches, onde
faremos um breve esboço de sua biografia, tendo em vista as questões tratadas no capítulo
anterior. Nosso objetivo é fazer uma contextualização não só de sua trajetória mas também
de algumas de suas obras, e assim ter uma compreensão mais precisa do posicionamento de
nosso personagem sobre a cultura portuguesa do período pombalino. Nesse processo,
também procuramos captar algumas das concepções de Sanches sobre a natureza humana e
sua relação com alguns dos modelos de intervenção que ele propôs para Portugal, que serão
desenvolvidas no terceiro capítulo. Como vimos acima, não se trata de uma imersão
profunda na biografia e nem na produção intelectual de Sanches, mas apenas de um esforço
para localizá-lo diante das questões pertinentes para o contexto português que ele elegeu
como objeto de estudo, e que de alguma forma estão presentes na sua argumentação na
Dissertação sobre as paixões da alma.
A Dissertação será o centro em torno do qual será estruturado o terceiro e último
capítulo de nosso trabalho. À luz do percurso dos capítulos anteriores, analisaremos a
proposta de interpelação do Direito e da Teologia pelo discurso médico proposta pelo autor,
através da reivindicação da legitimidade da medicina para tratar da alma e do
comportamento humano. Nesse sentido, veremos como Sanches constrói sua argumentação
em consonância com uma tradição de debates sobre o corpo e alma que tomava novos
rumos na medicina do século XVIII, contestando a hegemonia das explicações mecanicistas
e dando início ao resgate de uma visão holística da natureza humana, assentada na
interdependência entre corpo e alma e nos efeitos dessa relação sobre o moral do indivíduo.
20
CAPÍTULO I
ILUSTRAÇÃO E MEDICINA NO PORTUGAL POMBALINO.
O Portugal do século XVIII, no qual Ribeiro Sanches desejava intervir através de
suas obras, há tempos havia deixado de ser o império das glórias da expansão marítima dos
séculos XV e XVI. Após a restauração em 1640, o reino ainda mantinha possessões no
além-mar, mas havia perdido de longe a dianteira do cenário político-econômico europeu
frente à ascensão de nações como Inglaterra, França e Holanda que, inclusive, colocavam
em cheque sua capacidade de manter a soberania sobre seus domínios.12 As possessões da
Índia, já não se apresentavam como a principal fonte de riquezas como no passado, e no
final do século XVII o foco de interesse econômico deslocou-se para a América
Portuguesa. Porém, no século XVIII, o ciclo do ouro brasileiro já mostrava a conta dos
descontroles comerciais e o modelo administrativo português revelava-se cada vez mais
engessado pelo peso de sua tradição e cultura política.13 Nesse sentido, os ideais iluministas
eram usados por grupos que apontavam desgastes no modelo tradicional de organização do
poder em Portugal e pressionavam a Coroa para a realização de reformas que pudessem
dinamizar o sistema econômico e salvar o império da crise que se avistava no horizonte.
Assim o setecentos português, se por um lado caracterizou-se como o auge do Estado
absolutista, por outro, foi marcado pela urgência de reformas amplas que afetassem toda a
estrutura imperial14.
A figura da administração portuguesa que acabaria por se tornar símbolo dessas
transformações foi o ministro Sebastião de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal.
12
Sobre esse aspecto, Ricardo de Oliveira transcreve a seguinte passagem da Consulta do Conselho
Ultramarino a S.M. escrito pelo conselheiro Antônio Rodrigues da Costa em 1732: “os tratados de pazes, que temos com as nações marítimas da Europa, nos não podem dar segurança alguma de que não empreenderão sobre nós, para se senhorearem de tesouros tão ricos”. Sobre o Brasil, afirmava que seria “duvidosa e arriscada a conservação daquele Estado”. OLIVEIRA, Ricardo de. A monarquia portuguesa e as metamorfoses do império na primeira metade do século XVIII. Memória, História e Historiografia. Fronteiras. Mato Grosso do Sul, v.11, n.20, pp. 95-122, 2009., p.112. 13
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p.218. 14
Ibidem, p.38.
21
Nomeado por D. José I, que ascendeu ao trono após a morte de D. João V em 1750, Pombal
foi imbuído da tarefa de fortalecer o Estado português diante da nobreza e da Igreja e
reformá-lo de acordo com o ideário iluminista15. Nas décadas que se seguiram, as políticas
de Estado foram regidas por um caráter pragmático que enxergava na filosofia natural
reformada e nas ideias iluministas o caminho para superação dos “entraves”, impostos pelo
pensamento escolástico, que supostamente impediam Portugal de alcançar seu lugar entre
as nações mais destacadas do cenário político-cultural europeu.
Esse processo determinou alguns dos mais importantes debates que marcaram a
intelectualidade portuguesa do século XVIII, através da articulação de discursos que
visavam interpelar estruturas sócio-culturais há muito enraizadas na mentalidade lusa, num
contexto de efervescência de ideias que configurou tensões diversas entre setores da elite
letrada.
1.1 A intelectualidade ilustrada e renovação de ideias.
A questão do iluminismo em Portugal é tema polêmico na historiografia. Visto
tradicionalmente sob a chancela do isolacionismo ibérico, Portugal não teria participado da
renovação filosófica ocorrida no além-pirineus graças ao seu apego ao pensamento
escolástico, avesso às ideias modernas. Nessa perspectiva, sustentada por vertentes
historiográficas mais tradicionais, a decadência do império seria explicada pela estrutura de
ensino dominada pela Companhia de Jesus e pela atuação do aparato inquisitorial, que teria
tornado o reino refratário às inovações intelectuais apreendidas sob a denominação de
revolução científica. Assim, muitos desses autores, dos quais falaremos mais adiante,
sugerem que Galileu, Descartes, Newton, Bacon, enfim, todos os nomes que de alguma
forma simbolizam a profunda reordenação epistemológica das bases em que se assentava a
relação dos homens com o mundo natural na Europa, desde o século XVII, teriam
permanecidos desconhecidos em Portugal, onde o ensino seria restringido à leitura das
autoridades reconhecidas pela Igreja, em especial Aristóteles e São Tomás de Aquino.
15
VILLALTA, Luiz Carlos. Reformismo ilustrado, censura e práticas de leitura: usos do livro na América Portuguesa. Tese de doutorado apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p.115
22
Leituras consideradas contrárias aos dogmas e à fé católica seriam veementemente banidas,
afastando, portanto, as possibilidades de entrada de um suposto espírito “crítico” e
“renovador” das luzes o que, como sugerem, teria condenando o reino a permanecer
estagnado no pensamento medieval.
Essa concepção tem sido repensada pela historiografia há algum tempo. No presente
trabalho a analisaremos sob a perspectiva trazida nas últimas décadas por autores como
Flávio Rey de Carvalho, Pedro Calafate, Eduardo Lourenço e Francisco Contente
Domingues, que procuram rever as afirmações da historiografia tradicional, representada,
em boa parte, pelos intelectuais da “geração de 1870”, que teve no poeta e filósofo Antero
de Quental (1842-1891) um de seus maiores expoentes. Segundo os autores nos quais nos
apoiamos, o atraso português em relação às nações européias modernas não estava em
questão para a maior parte dos portugueses do setecentos, com exceção dos círculos de
intelectuais vinculados ao movimento ilustrado, que mantinham uma postura retórica
fortemente marcada pela crítica aos modelos de pensamento escolásticos. A retórica desses
intelectuais teria sido apropriada pela geração de Quental e naturalizada, de forma acrítica,
por tradições historiográficas posteriores. Na definição de Carvalho, a tese do atraso
português:
“só faz sentido para os intelectuais dos séculos XIX e XX,
pois, com exceção de alguns eruditos da primeira metade do
Setecentos, que tiveram contato com o estrangeiro, e do ambiente
pombalino de crítica à pedagogia dos jesuítas, não era hábito
estabelecer comparações entre a situação cultural interna do país com a
de outras nações. Os portugueses, no geral, não se abalavam por
viverem sob os dogmas do catolicismo, nem se sentiam atrasados em
relação às demais regiões da Europa, cuja situação - por questões de
ordem religiosa - não era almejada.”16
Na perspectiva de Eduardo Lourenço, o equívoco da Geração de 1870 foi atribuir
“exemplaridade” e “universalidade” a uma suposta “história européia”, entendida através 16
CARVALHO, Flávio Rey de. Um iluminismo português? A reforma da universidade de Coimbra (1772). São Paulo: Annablume, 2008.,p.23.
23
de uma teleologia que a conferia coesão e homogeneidade. Assim, os supostos desvios de
Portugal em relação a esse modelo tomado como referência acabaram sendo interpretados
sob o signo da “decadência” ou da “barbaridade”. Sob essa perspectiva, o atraso seria
mensurável na “ordem econômica e industrial, mas também na ordem cultural ou do perfil
humano daqueles povos ou continentes que não participavam a título de sujeitos ou de
reflexo da “superioridade” européia.” 17
Nesse sentido, o desconforto sentido por setores da sociedade portuguesa no século
XVIII seria resultado da comparação da situação em que se encontravam em relação
prestígio e vanguardismo vivido nos séculos XV e XVI. Internamente, com o advento da
contra-reforma e as medidas do Concílio de Trento (1545-1563), Portugal aferrou-se cada
vez mais aos princípios católicos e fez de sua política de Estado um instrumento de defesa
do catolicismo frente à onda protestante. A estrutura educacional foi posta sob a tutela da
Companhia de Jesus, e a Igreja afirmava sua autoridade una e universal através de códigos,
que passavam não só pelo catecismo e a liturgia, mas também pela moral e o saber. 18 As
Universidades de Évora e Coimbra, controladas pelos jesuítas, foram os esteios dessa visão
de mundo: procuravam “inculcar nos alunos um método-disciplina de pensar aliado a uma
ortodoxia de conteúdos”.19 A Ratio Studiorum, instituída em 1599, funcionaria como o
plano pedagógico da educação portuguesa até 1773, sem sofrer alterações significativas. O
documento recebeu a chancela in perpetuum, o que lhe conferia caráter imutável. Assim,
todo e qualquer ímpeto de mudança era interpretado como uma agressão aos princípios
religiosos20.
Segundo Francisco Domingues, a presença da Companhia de Jesus no ensino
português foi quase hegemônica no período que se segue a criação de uma rede de escolas a
partir da fundação do Colégio de Jesus, em 1542, e que se multiplicou rapidamente por
Braga, Bragança, Porto, Lisboa, Évora, Faro, Santarém, Setúbal, Portalegre, Funchal, entre
outras. O destaque ficaria para o Colégio das Artes, posto sob a administração inaciana,
17 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa: ressentimento e fascínio. In.: LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa: ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1994.,p. 31 18
GOUVEIA, Antônio Camões. Estratégias de interiorização da disciplina In:MATTOSO, José (Dir.) História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807).Lisboa: Editorial Estampa, 1992.p. 424. 19
Ibid., p.425. 20
CARVALHO., op. cit., p.23-24
24
ainda em 1555, onde eram aplicadas as provas dos exames necessários para a admissão na
Universidade de Coimbra. A passagem pelo Colégio independia da instituição de origem
dos alunos, o que na perspectiva de Domingues, acabava por impor relativa homogeneidade
aos esquemas de ensino, que se viam forçados a se adequarem aos seus padrões.21
Nas suas orientações mais gerais, o modelo de instrução escolástico baseava-se na
lógica aristotélica e procurava, através da dialética, fornecer explicações racionais que
justificassem os dogmas e as crenças do cristianismo. De acordo com Villalta, a dialética
aristotélica constituiria a “fonte de todas as formas de conhecimento, da ciência e das artes
em geral, dominando o ensino nas escolas e na universidade.” 22 A argumentação se dava,
dentre outras formas, por um método de raciocínio conhecido como tópica, constituído, a
grosso modo, por uma sucessão de etapas: a primeira seria a proposição-problema, na qual
se apresentava uma proposição que se convertia num problema. Nos tópicos, etapa
seguinte, pesquisava-se os pontos de vista a partir dos quais o problema poderia ser
analisado; nos argumentos-razões reuniam-se os argumentos favoráveis a cada uma das
soluções propostas, que, por sua vez, eram analisadas na etapa ponderação das razões. Por
fim, optava-se pela solução mais provável.23
De fato, esse estado de coisas dificultava a renovação de ideias, especialmente se
elas não estivessem estritamente de acordo com os dogmas católicos. Mas a tese de que os
jesuítas, principais responsáveis pelo sistema educacional português na época,
desconheciam as inovações da filosofia natural reformada já está ultrapassada há um bom
tempo. Mesmo no interior da estrutura educativa portuguesa havia algum espaço para a
discussão de ideias apartadas das concepções tridentinas mais tradicionais, apesar de elas
nunca terem se tornado hegemônicas. De acordo com Tiago Miranda24
“Apesar da discriminação de natureza essencialmente
religiosa, os contatos intelectuais do exterior não desapareceram com o
‘espírito da Contra-Reforma.’ Nos mosteiros e nas escolas, 21 DOMINGUES,Francisco Contente. Ilustração e Catolicismo: Teodoro de Almeida. Lisboa: Colibri, 1994.. p.29. 22
VILLALTA, op. cit. p.42 23
Idem. 24
MIRANDA, Tiago dos Reis. “Estrangeirados”: a questão do isolacionismo português nos séculos XVII e XVIII. Revista História., São Paulo., n.123-124., p.35-70., ago/jul. 1990-1991.
25
continuaram a entrar edições francesas, italianas e holandesas.(...) No
segundo quartel do século XVII, as grandes conquistas da astronomia
européia foram divulgadas em Portugal pelo Jesuíta Cristóvão Borri.
Anos mais tarde, o padre Henrique Buseu ensinava princípios de
mecânica no colégio de Santo Antão e Francisco Soares Lusitano
citava René Descartes.”25
Sobre Borri, Francisco Contente Domingues, afirma que o italiano e professor do
Colégio de Santo Antão no século XVII, ensinava a doutrina copernicana a seus alunos do
curso de esfera e foi um divulgadores de Galileu no reino, apesar de ter sido seu
concorrente numa controvérsia sobre a descoberta de um processo seguro para determinar a
longitude em alto-mar.26 Além desse, o autor também comenta as aproximações de
Francisco Soares Lusitano e Antonio Cordeiro com as idéias de Descartes. Cordeiro,
inclusive, apesar de ter-se mantido fiel ao aristotelismo, teria revelado simpatia pelas idéias
modernas pela influência de outros autores jesuítas como Honorato Fabri e Inácio Kennis.
Tal aproximação teria chamado a atenção de Roma, fazendo com que, em janeiro de 1678,
fosse convocado pelo Provincial dos jesuítas a reformar seu curso de física, o que resultou
na condenação de algumas de suas teses e no retardo da publicação de sua obra mais
famosa, o Cursus Philosophicus.27
Como se pode ver, os jesuítas não apenas conheciam os debates reformadores no
campo da filosofia natural como os ensinavam a seus alunos. Assim, fica claro que a opção
pelo pensamento escolástico estava relacionada à convicção de que esse conhecimento era
de fato superior às idéias reformistas, o que fazia com que o esforço de manutenção do
pensamento escolástico estivesse muito mais relacionado à defesa de um modelo cultural
tido por eles como inquestionável, do que à opção de seguir um sistema reducionista e
isolacionista, deliberadamente usado como instrumento de dominação política.28 Além
disso, Domingues ressalta que a atitude de todos os membros não pode ser tomada como
homogênea, visto que o curso da renovação filosófica no interior da Companhia mostra-se
25
Ibid., p.59 26
DOMINGUES, op. cit. .p. 35. 27
Ibid. p.36-37. 28
Ibid. p.33-34.
26
muito mais complexo quando analisadas as trajetórias individuais e coletivas. Desse modo,
se é verdade que nas orientações mais gerais, a Companhia se manteve nos limites das
concepções preconizadas pela escolástica, de modo que as concepções reformistas
chegassem através de “ecos difusos, apreendidos mais das vezes por fontes secundárias”, a
trajetória individual de seus mestres, muito mais variada, precisa ser tomada com cuidado.29
Carlos Ziller Camenietzki ilustra bem essa característica ao apresentar as
concepções dos jesuítas Valentim Stansel, professor do Colégio da Bahia, e o prestigiado
pregador Antônio Vieira sobre a condição dos cometas enquanto resultado da intervenção
divina direta ou como concurso de causas naturais e suas formas de intervenção no mundo
dos homens no século XVII30. Enquanto para Vieira, os cometas seriam um aviso enviado
por Deus como forma de lembrá-los dos castigos a que estariam sujeitos caso não
corrigissem sua conduta moral. Stansel apresenta uma visão naturalística dos mesmos
apresentando-os como fruto do concurso de causas naturais, e seus efeitos no mundo
prescindiriam da intervenção divina.31 Apesar de a discussão remeter ao século XVII, ela é
ilustrativa de como era comum que os jesuítas construíssem seus argumentos apoiados em
filósofos que são apontados pela historiografia como representantes do processo de reforma
da filosofia natural, e que portanto, não figuravam no rol de autoridades supostamente caras
ao pensamento tridentino.
No caso específico da controvérsia analisada por Carlos Ziller, o Padre Vieira
demonstrava conhecer as discussões que marcaram o século XVII sobre a natureza e os
efeitos dos cometas e apresenta domínio das concepções de autores como Kepler e Scaliger.
Do outro lado, Stansel, que era matemático e havia sido professor de esfera do Colégio de
Santo Antão, utiliza o catálogo de Tycho Brahe para determinar as coordenadas de cometas
e dialoga com alguns dos principais autores do assunto de seu tempo, como Kepler,
Claramontius, Snell, Camilo Glorioso, Antonio Pimenta, dentre outros, além de variados
autores confrades seus.32 É importante destacar que tal atitude estava na raiz da própria
29 Ibid. Idem. 30
CAMENIETZKI, Carlos Ziller. O cometa, o pregador e o cientista: Antonio Vieira e Valentin Stansel observam o céu da Bahia no século XVII. Revista da SBHC., n.14., p.37-52., 1995. . 31
Ibid. p.31. 32
Ibid. p.37; 46.
27
prática intelectual jesuítica e era requisito necessário para que seus representantes
pudessem acessar e se posicionar diante dos debates intelectuais considerados pertinentes.
Diante disso, fica evidente que não se sustenta a aversão tradicionalmente atribuída aos
membros da Companhia de Jesus às idéias produzidas fora da tradição aristotélico-tomista.
Como bem definiu o historiador português Francisco Domingues:
“Galileu, Descartes ou Newton, para só citar esses, não tinham
sido desconhecidos: a questão está é no fato de as novas cosmovisões
terem sido divulgadas entre nós com notório atraso, muitas vezes
desvirtuadas, intencionalmente ou não, e quase sempre por outras vias
que não as originais.” 33
Assim, se essas inovações não deram o tom geral da instrução jesuítica, não foi por
desconhecimento dos membros da Companhia, mas sim porque elas não faziam sentido
para a cosmovisão defendida pela Companhia, ou pelo menos não eram tão eficazes quanto
as concepções aristotélicas e tomistas tradicionais.
Como mencionamos anteriormente, durante o período da Contra-reforma, essa
estrutura foi fortalecida como forma de evitar a expansão protestante. Nesse sentido, longe
de ser uma opção pelo “atraso”, a manutenção do pensamento escolástico na vida
intelectual lusa significou um esforço de manutenção do próprio catolicismo em Portugal,
fator estruturante da vida social e cultural do reino. Portanto, se é correto afirmar que os
imperativos religiosos geraram relativa resistência às ideias consideradas fora dos limites
do pensamento tridentino, para os portugueses dos séculos XVII e parte do XVIII, não
havia um quadro de decadência intelectual a ser superado e nem um sentimento de
inferioridade em relação às nações estrangeiras.34 Assim, a contestação do modelo
educacional português no século XVIII correspondia mais à presença, na sociedade
portuguesa, de grupos alinhados ao ideário ilustrado que defendiam a tese de que era
necessário que Portugal se igualasse às novas potências européias do que a uma suposta
inferioridade cultural.
33
DOMINGUES, op. cit. p.40. 34
CARVALHO, Ibid., p.48.
28
Foi com esse intuito que D. José I promoveu e criação da Junta de Providência
Literária em 1770 para fazer um levantamento das causas da decadência da Universidade
de Coimbra. A Junta apresentaria dois anos mais tarde um documento intitulado
Compendio Histórico da Universidade de Coimbra, que ao fazer um severo diagnóstico da
situação da universidade, daria início ao processo da reforma, do qual falaremos mais
adiante35. Porém, é importante dizer que a criação da Junta responde a um mal-estar com o
ambiente cultural português que dava sinais da existência de projetos educacionais e
pedagógicos alternativos.
O grupo que parte da historiografia convencionou chamar de “estrangeirados” era
composto por intelectuais que haviam deixado Portugal por motivos diversos e feito sua
formação no exterior. Caracterizavam-se, a grosso modo, pela adesão às idéias ilustradas e
procuraram intervir no processo da reforma ao tentar introduzi-las no reino. Inconformados
com a suposta inadequação econômica e cultural de Portugal frente às renovações que
fervilhavam nas nações onde estavam instalados, militavam pela reforma da estrutura
educacional portuguesa. De uma forma geral, os “estrangeirados” compartilhavam a adesão
à retórica do experimentalismo e à filosofia mecanicista, em contraposição ao modelo de
pensamento escolástico. Eram enfáticos na defesa da divulgação de novos conhecimentos
em Portugal, pois esse seria o único modo de superar o suposto quadro de atraso que
atribuíam ao Reino. Assim, Newton, Descartes, Francis Bacon, Galileu, dentre outros
filósofos naturais, eram citações constantes em suas obras e apontados como os baluartes
das concepções ilustradas que deveriam promover transformações radicais na cultura
portuguesa.
Ribeiro Sanches era um dos intelectuais vistos sob esse rótulo. Como veremos no
próximo capítulo, ao sair de Portugal em 1726, Sanches nunca mais retornaria à sua terra
natal, mas o reino permaneceria como um objeto constante de suas obras, tanto médicas
quanto pedagógicas. Além dele, podemos destacar outros com perfil semelhante que
também aturam na primeira metade do século XVIII: Luis António Verney, Jacob de Castro
Sarmento e D. Luís da Cunha, só para citar alguns.
35
Ibid., p.49
29
Mas a discussão sobre esse grupo precisa ser mais ampla, sob pena de ficarmos
presos à teleologia do discurso progressista da historiografia republicana, o que poderia
turvar nosso olhar sobre a análise que faremos da trajetória de Ribeiro Sanches e sua
condição de “estrangeirado” ao longo desse trabalho. Na verdade, o próprio termo tem sido
tema polêmico na historiografia. Correntes mais tradicionais tendem a ver esses intelectuais
como os primeiros raios das luzes em Portugal, no contexto do isolacionismo que era
atribuído ao quadro cultural luso no setecentos, descrito em linhas gerais no primeiro
parágrafo desse capítulo. O uso do termo remete à corrente que se estabeleceu em oposição
à historiografia nacionalista surgida em Portugal no contexto da república no início do
século XX, tendo em António Sérgio um de seus principais participantes.36
Sérgio procurou elaborar uma versão alternativa à história nacionalista dos
republicanos ao enfatizar os fatores externos que contribuíram para as transformações
culturais portuguesas no século XVIII. Daí, o termo “estrangeirado” afirmou-se como a
nomenclatura usada para referir-se aos intelectuais vinculados às correntes reformistas e
que supostamente teriam introduzido o iluminismo em Portugal, tomado como um conjunto
articulado e coerente de idéias e princípios.37 Porém, mesmo ao assumir tal perspectiva,
essa historiografia manteve em comum com os republicanos a conservação do mito do
isolacionismo português no século XVIII, uma herança do decadentismo dos autores da
geração de Antero de Quental.38
Tiago Reis Miranda aponta essa questão ao longo de uma detalhada análise dessa
historiografia e denuncia as contradições que marcam o uso indiscriminado do termo e
põem em cheque sua operacionalidade para entender o papel desses intelectuais na história
portuguesa do século XVIII. De acordo com o autor, nunca houve entre eles uma unidade
de pensamento e os “modelos” que buscavam nas nações estrangeiras não eram menos
heterogêneos. Além disso, os sentimentos que demonstravam em relação à sua terra natal 36
Sobre essa questão, Flávio Carvalho afirma que: “Com o advento da república portuguesa em 1910 surgiu, nos anos subsequentes, uma historiografia influenciada pelos ideais republicanos, voltada à elaboração da história de Portugal sob um viés nacionalista. Essa corrente – que teve em Teófilo Braga um de seus principais expoentes – conservou a interpretação oitocentista da história moderna lusa, veiculando a imagem do país hermeticamente fechado, principalmente sob o ângulo cultural, aos influxos vindos do exterior. Paralelamente, surgiu um movimento de crítica à historiografia republicana, sendo o ensaísta António Sérgio um de seus autores mais veementes.” CARVALHO., op. cit. p.28. 37
Idem. 38
Idem. Ver nota 5.
30
eram difusos, podendo ir desde a rejeição ao ambiente cultural luso até demonstrações de
saudade e afeto.39 Por fim, Miranda afirma que o fenômeno do “estrangeiramento” nunca
foi particular à modernidade portuguesa:
“O homem moderno cultivou o prazer de entrar em contato
com os vizinhos d’além-fronteiras, onde apreciava outros costumes e
podia reavaliar a opinião quanto aos do seu próprio Reino. Nesse
sentido, é claro que houve ‘estrangeirados’ em Portugal, tanto como no
resta da Europa. Mas difícil de admitir é que eles integrassem um
grupo definido e orgânico, monopolizando as críticas ao ‘sistema’ ou
que de alguma maneira quisessem tirar o país de um isolamento
asfixiante, em benefício de um ‘projeto’ vindo de fora.”40
Acrescenta-se o fato de que a estadia no meio intelectual de além Pirineus nunca foi
pré-requisito para a vinculação ao movimento reformista, apesar de ser um ponto em
comum na trajetória de muitos desses intelectuais. Sendo assim, nas páginas que se seguem,
não mais utilizaremos a nomenclatura “estrangeirados” como referência a esses atores, pois
para nossos objetivos no presente trabalho, interessam mais suas vinculações às ideias
reformistas do que as passagens por países estrangeiros. É a partir dessa perspectiva que
pretendemos enxergar esses intelectuais e analisar a trajetória do próprio Antonio Ribeiro
Sanches.
No entanto, se é equivocado atribuir homogeneidade a esses personagens tanto
quanto enxergá-los como os raios das luzes num Portugal supostamente avesso ao
39
MIRANDA., op. cit. p.50. Nas palavras do autor: “Quando se retrata um ‘estrangeirado’, dificilmente se lembram as saudades que ele tinha de sua terra natal e o lugar primordial que ela continuava a ocupar na formulação de sentimentos corriqueiros, ou dos projetos mais elaborados. Mesmo no exílio, boa parte continuava a viver basicamente em função de Portugal. Suas críticas poderiam ser uma tentativa de difundir no Reino algumas das práticas conhecidas no exterior; entretanto, em muitos aspectos, a ‘visão de mundo’ continuava inalterada.” P. 49. O autor cita os exemplos do Marquês de Nisa que, após permanecer em Londres durante cinco anos, lamentava não ver o Sol “como Deus o criou” (p.49). Mais significativo seria o caso de Antonio Freire de Andrade Encerrabodes, que lamentou em cartas sua desilusão com suas viagens ao exterior. Quanto à divergência de ideias, é ilustrativo o caso de D. Luís da Cunha – embaixador em Paris – e Carvalho e Melo, de Londres, que apresentavam visões bastante diferentes sobre os rumos que deveriam ser dados aos negócios estrangeiros de Portugal. (p.50) 40
Ibid., p.69.
31
estrangeiro, por outro lado, é inegável que muitos dentre os portugueses que tiveram acesso
ou formularam projetos de reforma deram contribuição importante no processo de
reorganização do mundo intelectual português ao externar sua insatisfação com o estado de
coisas na cultura lusa setecentista e, sobretudo, ao contribuírem para a difusão de idéias
alternativas ao pensamento tridentino. Em muitos momentos, essa tarefa foi levada a cabo
através de pesadas críticas a algumas das estruturas basilares da cultura portuguesa,
sobretudo o domínio eclesiástico na esfera educacional, representada pela Companhia de
Jesus, ao absolutismo da Coroa, aos privilégios de classe e ao tribunal inquisitorial.41
É importante destacar que esse processo não ocorreu através da defesa de
posicionamentos frontalmente opostos entre os reformadores e os defensores do
pensamento tradicional. Devemos levar em consideração que, em muitos momentos, os
debates se deram em zonas cinzentas, de modo que as diferentes concepções postas em
cena impedem uma clivagem rígida entre modernidade e tradição. Francisco Domingues
afirma que esses contornos foram sendo delineados mais claramente na medida em que as
circunstâncias permitiram que os intelectuais mais aproximados dos pressupostos da
filosofia natural reformada encontrassem mais espaço para expor suas ideias. O autor cita
que na década de 1740, há uma sucessão de publicações comprometidas com a divulgação
de novas idéias em Portugal, entre elas Lógica Racional, geométrica e analítica (1744) de
Azevedo Fortes, a tradução resumida em dois volumes do Teatro crítico universal de
Benito Jerônimo feijoo (1746-1748), o Verdadeiro método de estudar (1746) de Antonio
Verney e Philosophia (1748) de João Baptista.42
A Recreação Filosófica, escrita pelo padre oratoriano Theodoro de Almeida, cujos
primeiros dois volumes foram publicados em 1751, é obra bastante ilustrativa desse esforço
de divulgação de ideias no século XVIII português. Domingues destaca sua boa recepção
entre o público, verificada pela suas rápidas e sucessivas edições. O fim principal a que a
obra se destinava era claro: a divulgação da filosofia moderna entre todos aqueles que não
tinham estudos. Segundo o autor, seu título completo já anuncia um programa em si
mesmo: Recreação filosófica, ou diálogo sobre filosofia natural para instrução de pessoas
41
VILLALTA., op. cit. p.112. 42
DOMINGUES., op. cit. p.29
32
curiosas que não frequentaram as aulas.43 O acesso a essas idéias seria entendido por
Almeida como uma condição necessária às pessoas, pois, na sua concepção, por natureza os
indivíduos não seriam mais ou menos capazes, a variação estaria na “fortuna” de cada um
ao ter acesso aos meios que possibilitariam o aumento do seu grau de instrução. Nesse
sentido, inclusive, a escrita em língua portuguesa era apresentada como a mais adequada
diante das línguas latina e francesa, cujo uso em obras daquele tipo seria considerado pelo
autor uma “crueldade bárbara”.44
Apesar de se apoiarem nos pressupostos da reforma e estarem comprometidos com
a divulgação de novas ideias no reino, é equivocado assumir que o conteúdo dessas obras
estivesse assentado somente nos autores considerados representantes da filosofia natural
reformada, como Newton, Galileu e Copérnico, em detrimento de um suposto arcabouço
aristotélico-tomista, que deveria ser combatido. De acordo com Domingues, os
reformadores se levantaram contra a pedagogia escolástica mas os conhecimentos
reformados não eram considerados a única via. Houve intelectuais que oscilaram entre
tradição e reformismo como fatores explicativos dos fenômenos dos quais se ocupavam,
fazendo com que ruptura com o pensamento tradicional não fosse completa e nem
instantânea. Esse dado não subentende uma contradição entre esses personagens e encontra
sua justificativa nos modos através dos quais eles se apropriavam de conhecimentos e
interpelavam o mundo natural em suas investigações. De acordo com Domingues:
“No seu inquérito de permanente averiguação da verdade o
filósofo devia ser guiado por um experimentalismo racionalista que se
pretendia situar no meio de dois pólos extremos:o que atendia apenas
às deliberações do seu próprio juízo, estribando-se na especulação
alheada às experiências científicas, e o que nelas confiava cegamente,
sem indagar a razão acerca dos resultados do que via. Por isso mesmo,
quem enveredava por esta via tão pouco se podia fiar sem mais nas
conclusões de outrem, ainda que a nível experimental.”45
43
Ibid. p.47 44
Ibid. p.48. 45
Ibid. p.60.
33
Essa postura, conhecida como ecletismo, partia do pressuposto de que não havia
limites para a aplicação da racionalidade como fio condutor do pensamento, e se tornaria o
primeiro padrão de referência na filosofia portuguesa do setecentos. Ela subentende um
posicionamento crítico diante das referências utilizadas, fossem elas originárias de autores
vinculados ao movimento reformador ou aos setores considerados tradicionais. Nesse
sentido, não havia contradição em apoiar-se em autores como Newton, por exemplo, e fazer
referências a conceitos de autores alternativos, como René Descartes, ou ainda recuar, se
preciso, até Aristóteles.
De acordo com Pedro Calafate, a postura eclética preconizava a Razão como única
autoridade na produção de conhecimento e marcaria uma oposição à concepção de
“sistema”, entendida como esquema explicativo, e que passou a ser relacionada, de modo
pejorativo, a imobilismo. O filósofo não poderia interpelar o mundo natural munido de
conceitos concebidos a priori e que tivessem outra origem que não a experiência, pois
somente a partir dela é que poderiam surgir postulados legítimos sobre a realidade.46
Calafate enxerga essa atitude impressa na reivindicação de Verney de que o “verdadeiro
sistema moderno, é não ter sistema algum”, baseada na convicção de que não seria legítimo
esperar que a natureza se adapte às ideias, mas sim que as ideias se adaptem à
complexidade da natureza.47
É fundamental levarmos isso em consideração ao analisarmos as obras produzidas
pelos intelectuais vinculados ao reformismo ilustrado em Portugal em meados do século
XVIII, sob pena de ficarmos presos a uma clivagem ilusória entre modernidade e tradição,
que nunca esteve clara para os atores. No entanto, é importante destacarmos que o
ecletismo não configurou uma postura exclusiva dos intelectuais reformistas portugueses.
Na verdade, ele é uma característica marcante da própria retórica iluminista nos setecentos,
46
Calafate também relaciona essa postura à influência do experimentalismo Newtoniano e do sensismo Lockeano entre membros da intelectualidade portuguesa do período, o que estaria na raiz das críticas ao racionalismo metafísico da filosofia natural do século XVII. Nesse sentido, o modelo de pensamento de matriz cartesiana, por exemplo, passou a ser alvo de críticas, pois ao reduzir a matéria à extensão, à figura e ao movimento, “pressupunha uma estrutura formal do real que garantia a universalidade dos procedimentos dedutivos a priori”. Isso contradizia a concepção, cara aos newtonianos, de que as deduções só poderiam ter origem nos postulados adquiridos pela experiência, tendo a matemática como auxílio. CALAFATE, Pedro. Ecletismo e metodologia na ilustração portuguesa. In. Metamorfoses da palavra: estudos sobre o pensamento português e brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998. p. 218. 47
Ibid.. p. 219.
34
e sua apropriação entre os membros ilustrados da intelectualidade lusa só reafirma seu
engajamento nos debates filosóficos mais proeminentes da época. Nesse sentido, umas das
definições clássicas do termo, como ele era entendido por alguns dos mais destacados
círculos intelectuais do século XVIII, foi escrita por Diderot e publicada na sua
Enciclopédia:
« L’éclectique est un philosophe qui foulant aux pieds le
préjugé, la tradition, l’ancienneté, le consentement universel,
l’autorité, en un mot, tout ce qui subjuge la foule des esprits, ose
penser de lui-même, remonter aux principes généraux les plus clairs,
les examiner, les discuter, n’admettre rien que sur le témoignage de
son expérience & de sa raison & de toutes les philosophies, qu’il a
analysées sans égard & partialité, s’en faire une particuliere &
domestique que lui apartienne. » .48
Para Diderot, a ambição do filósofo eclético seria “menos de ser preceptor do
gênero humano, do que seu discípulo; de reformar os outros, do que reformar a si mesmo;
de conhecer a verdade, do que ensiná-la.” 49 O eclético não juntaria as ideias ao acaso e
nem as deixaria isoladas, ao mesmo tempo em que não se obstinaria em enquadrá-las em
sistemas de ideias pré-concebidos. Na descrição de Diderot, quando o filósofo eclético
admite um princípio, as proposições que se seguem, ou estão ligadas a esse mesmo
princípio, ou não se ligam a ele de nenhuma forma, ou lhe são opostas. No primeiro caso,
elas são consideradas verdadeiras; no segundo, o filósofo suspende seu julgamento até que
“as noções intermediárias que separam a proposição do princípio que ele examina”
mostrem sua ligação ou oposição a ele50; no terceiro caso, elas são consideradas falsas. Esse
seria o “método do eclético”, segundo Diderot, e o meio pelo qual ele constrói sua obra,
48
ÉCLETISME. In. : Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Tome cinq. 1995. p.270. 49 No original em Francês: « l’ambition de l’éclectique est moins d’être précepteur du genre humain, que son disciple ; de réformer les autres, que de se réformer lui-même ; de conoître la vérité, que l’enseigner. » ibid. p.270-271. 50
No original em francês: « Il suspend son jugement jusqu’à ce que des notions intermédiaires qui séparent la proposition qu’il examine du principe qu’il a admis, lui démontrent sa liaison ou sa oposition avec ce principe. » Ibid. 271.
35
entendida como um “todo sólido”, constituído pela junção de diversas que partes que
pertencem umas às outras.51
No entanto, é fundamental destacarmos que no contexto do reformismo ilustrado
luso, a razão seria reivindicada não somente como forma de acessar o mundo natural, mas
também como forma de acessar e compreender a própria divindade. Nesse sentido, as
críticas à Igreja e aos jesuítas não se traduziram numa anti-religião, muito pelo contrário, a
filosofia natural era apontada como uma forma de acessar a mente divina e compreendê-la.
Segundo Pedro Calafate, em Portugal, essa questão se expressou através do conceito de
“religião natural”, expresso na “ideia de manifestação primordial de Deus à razão humana,
através da lei natural como participação da Lei Eterna, e também através da ordem e da
harmonia do Universo, em termos que nele resplandece o poder, bondade e sabedoria
divinos.”52 Em outras palavras, a religião natural poderia ser entendida como o
“conhecimento de Deus adquirido através da razão”53. No entanto, a religião “revelada” não
era considerada menos necessária, visto que o espírito humano era corruptível e dependeria
da moral cristã para corrigir-se. Assim, Calafate, coloca que essa relação pressupõe uma
“harmonia necessária” entre os binômios natureza/graça; razão/revelação, de modo que a
“moral revelada” deveria ser o guia da “suma razão”54. Nesse sentido, o trabalho do
filósofo, guiado pela razão, seria afirmar por meios demonstráveis os pressupostos da
moral, mostrando que razão e revelação não se referem a duas verdades, mas a uma só:
“Trata-se de uma ‘troca de bons ofícios’, em que a fé alerta a
razão contra seus erros e debilidades, e a razão traduz em princípios de
humana certeza o conteúdo da revelação, sem que em tal relação se
note a ausência do interesse apologético, por isso que, segura de o que
contradiz a revelação é falso, a razão adquire, nessa certeza, a força e
convicção necessárias para virar contra os detractores da revelação as
suas armas.”55
51 Ibid. p.271. 52
CALAFATE, Pedro. A religião natural no século XVIII em Portugal. In. Metamorfoses da palavra: estudos sobre o pensamento português e brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998. p.197. 53
Idem. 54
Ibid. p.200. 55
Ibid. p.201.
36
Essas concepções são fundamentais para entendermos a conciliação feita por muitos
intelectuais reformistas, dentre eles Ribeiro Sanches, entre crítica ao discurso teológico e
manutenção de sua religiosidade. No contexto das reivindicações pelas reformas, o que
estava sendo posto em cheque não era legitimidade da Igreja enquanto entidade
encarregada da vida religiosa do reino, mas sim sua aptidão enquanto instituição
ordenadora de sua vida intelectual. Assim, as críticas que recaíram sobre a pedagogia
jesuítica procuravam denunciar, fundamentadas no ideal eclético, a insuficiência de seus
métodos para ascender ao conhecimento “verdadeiro”, ou seja, em consonância com os
pressupostos da religião natural. O papel da Igreja enquanto instituição responsável pela
salvação das almas dos indivíduos não foi alvo de contestação, pelo contrário, ele era
reafirmado como parte legítima de sua jurisdição. Como veremos na obra de Ribeiro
Sanches, o que estava em jogo eram as fronteiras entre o discurso teológico e outros
discursos que procuravam se afirmar no campo intelectual luso da época, como o médico, o
jurídico, o régio, etc. A supressão do discurso teológico nunca foi objetivo desse processo,
mas sim limitá-lo à jurisdição que lhe era considerada cabível.
Dentre as obras consideradas mais representativas desse movimento está o
Verdadeiro Método de Estudar, publicado pelo clérigo radicado na Itália, Luiz António
Verney em 1746. Marcada por fortes críticas ao ensino jesuítico, classificado como
“obscurantista, autoritário, livresco, pedante e pouco prático” 56. O aprendizado baseado em
uma única autoridade, associado ao ensino eclesiástico, deveria ser substituído por uma
nova postura, que valorizava a primazia da observação e da experimentação na busca pelo
conhecimento e relegava o uso dos silogismos para segundo plano. O clérigo defende o
estudo prioritário da língua portuguesa, apesar da manutenção do ensino do latim, do qual o
ensino da retórica deveria ser desvinculado. Para ele, era fundamental que se desenvolvesse
o ensino de italiano e francês já que a maioria das obras científicas modernas do período
eram escritas nesses idiomas. Nesse sentido, a leitura de Newton, Gassendi, Descartes,
Galileu e seus divulgadores seria de extrema importância.57
56
VILLALTA., op. cit., p. 113. 57
Idem. Ibid.
37
Veremos as idéias de outros intelectuais da mesma estirpe de Verney na próxima
seção, quando falaremos das transformações ocorridas nesse período no campo médico. No
momento, é importante notar que, a partir da segunda metade do século XVIII, as ideias
ilustradas e as críticas ao ensino jesuítico começaram a ressoar mais largamente em
Portugal. A postura crítica representada pelos intelectuais reformistas portugueses desde o
reinado de D. João V foi institucionalizada pelas reformas empreendidas após a ascensão
do Marquês de Pombal ao ministério de D. João I em 175058.
Na descrição de Pedro Calafate, ao coincidir com o consulado pombalino, o
iluminismo português viria a adquirir “feição de estado, no quadro do despotismo
esclarecido, verificando-se pois uma clara aliança entre iluminismo e política”59. Era
necessário reformar a economia e torná-la mais eficiente e lucrativa para superar as
dificuldades financeiras que ajudavam a arruinar o já longamente combalido prestígio
português. Nesse sentido, as reformas foram regidas sob um caráter utilitarista, afinado com
as concepções ilustradas, com o fim de promover tudo o que parecesse útil ao
fortalecimento do Estado. Mais do que uma adequação filosófica, a adesão a ideias
iluministas nas reformas significava uma possibilidade real para Portugal se fortalecer no
cenário político-cultural europeu. Assim, esse caráter foi estendido não só às
transformações econômicas mas também à reformulação da própria estrutura educacional e
da circulação de ideias60.
Nesse processo, o ensino escolástico, encarnado no controle dos jesuítas sobre a
estrutura educacional, tornou-se um dos alvos favoritos dos reformadores, o que culminaria
na expulsão da Companhia de Jesus em 1759. Nesse contexto, o Compendio Histórico da 58
CARVALHO, op. cit., p.48 59 CALAFATE, Pedro. O iluminismo em Portugal. In. Metamorfoses da palavra: estudos sobre o pensamento português e brasileiro. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1998.. p.141. 60
Maria Odila Dias enfatiza que o pragmatismo foi uma das características mais marcantes da geração da reformista e marcaria a administração portuguesa nas décadas seguintes. Em Portugal, o ideário da ilustração serviu como base para uma política de Estado voltada para as ciências naturais, com o objetivo de fomentar a industrialização portuguesa e superar o atraso em relação às potências européias. No Brasil, essa política se refletiu num forte incentivo da Coroa à exploração do território como forma de tirar melhor proveito das potencialidades econômicas das atividades agrícolas e recuperar a combalida economia do Império português. Dias considera que os pedidos de levantamento da fauna brasileira feitos por Pombal foram o estímulo inicial às ciências naturais brasileiras. A grande profusão de memórias e estudos sobre o mundo natural da colônia começou a trazer à luz as possibilidades de exploração econômica e científica do território brasileiro. DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Aspectos da Ilustração no Brasil In: A Interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
38
Universidade de Coimbra apresentado a D. João I pela Junta de Providência Literária em
1771 listava os prejuízos supostamente causados pelo domínio jesuítico no ensino
universitário luso. O documento foi organizado em três partes: a primeira, dividida em
quatro prelúdios, relatou, de maneira histórica e cronológica, os danos cometidos às leis, às
regras e aos métodos que regiam a Universidade de Coimbra; a segunda apresentou, em três
capítulos, os estragos cometidos ao estudo da teologia, às jurisprudências canônica e civil e
à medicina; a terceira consistiu em um apêndice, sobre moral e ética, ao segundo capitulo
da segunda parte.61
As críticas à Companhia de Jesus tinham como cerne a rejeição do método adotado
por ela entre 1598 e 1771, no ensino. Essa matéria aparece como um requisito importante
na concepção educativa do documento:
“He o Methodo o primeiro requisito do Estudo, para por meio
delle poder adquirir hum conhecimento profundo, e sólido da
Sciencias. Quem desconhece o Methodo, não pode ter ordem no
estudo. E quem estuda sem ordem, adianta-se pouco na Estrada das
Sciencias, tropeça a cada passo, e perde um tempo infinito.”62
Flávio Carvalho observou através de uma comparação da noção de método
explicitada no Compêndio com o Dictionnaire de l’Academie française e com o
Diccionário da língua portuguesa que os ilustrados portugueses estavam em consonância
com a concepção veiculada no meio literário francês na mesma época.63 Outro ponto
destacado pelo autor foi o uso do termo peripatético de modo pejorativo (apesar de um
pouco vago) para se referir aos conhecimentos de base aristotélica utilizados pelo ensino
escolástico. O significado original do termo seria “que gosta de passear” e no caso do
Compêndio, seria usado para designar o caráter supostamente “mediato e sectário, haurido
da análise de comentários, glosas e opiniões”64 dos saberes divulgados pelos jesuítas. Na
perspectiva da Junta de Providência Literária, o estado de decadência em que se encontrava
61
CARVALHO., op. cit., p. 50 62
CARVALHO . op. cit. p..51 apud Compêndio, 1972 p. 245- 216. 63
CARVALHO., Ibid., p.51 64
Ibid., p.53.
39
a Universidade de Coimbra se devia à redução do ensino ao “debate de opiniões versadas
sobre questões abstratas e repletas de infindáveis desdobramentos especulativos” 65,
empreendida pelos peripatéticos. A falta de ecletismo66 também foi outra deficiência
importante apontada pelo Compêndio. Na visão da Junta isso resultaria na falta de espírito
crítico e analítico dos estudantes formados em Coimbra, fator agravado pela lógica de
péssima qualidade a qual seriam expostos ainda no Colégio das Artes e nas outras escolas
controladas pelos jesuítas em Portugal.67
Carvalho defende que as críticas apresentadas no Compendio seguem uma
tendência comum nos setecentos de incitação da polêmica através de uma marcada
contraposição entre épocas de luz e trevas, julgadas por meio da razão iluminista. Nesse
sentido, a pedagogia jesuíta era veementemente apontado como a causa primordial da
decadência do ensino português, constituindo um período de trevas, cujo fim seria imposto
pelas ideias ilustradas que finalmente possibilitariam a Portugal trilhar um novo caminho
em consonância com o pensamento moderno.68 No entanto, o autor enfatiza que a
construção dessa imagem seria parte da estratégia de fortalecimento do Estado português
diante da igreja. Ao afirmar a Companhia de Jesus como a causa da decadência, a ofensiva
pombalina contra os inacianos estaria plenamente justificada.69
Nesse aspecto, após a expulsão dos jesuítas em 1759, Pombal, numa medida
vanguardista do ponto de vista pedagógico, fundou um sistema público de ensino, antes até
da França, e criou o Colégio dos Nobres. A reforma da Universidade de Coimbra, através
dos novos Estatutos de 1772, imprimiu-lhe uma orientação voltada para a filosofia natural
reformada, em contraposição à hegemonia do tradicional ensino eclesiástico.70 De acordo
com a tendência filosófica iluminista, o ensino das ciências na universidade passou a ser
65
Idem. 66
Em outra passagem, Carvalho deixa claro que, entre os ilustrados, esse termo não possuía o caráter pejorativo que possui atualmente. Na definição de Diderot na Encyclopédie Méthodique, o ecletismo era “definido como postura metodológica própria aos filósofos, que, desprovidos do preconceito e do vínculo a qualquer auctoritas ou escola de intelectuais, voltavam-se à elaboração de um conhecimento sólido, produzido com base na seleção e na conjugação de elementos verossímeis obtidos das mais diferentes doutrinas filosóficas”. CARVALHO. op.cit. p.38 apud “Eclectisme” in. L’Encyclopédie, 1998. 67
Ibid., p.56. 68
A apropriação dessa dicotomia por parte de alguns autores, estaria também na raiz do decadentismo historiográfico português, já comentado anteriormente. 69
Ibid., p.61 70
VILLALTA., op. cit. p.117.
40
pautado pelo experimentalismo de Issac Newton (1642-1727) e do empirismo de John
Locke (1632-1704)71. Assim, afastando-se da argumentação dialética, as conjecturas
válidas deveriam fundamentar-se em fatos e fenômenos observados na realidade sensível, o
que inclusive, aponta uma afinação com os discursos pela reabilitação dos sentidos em
contraposição ao sistema lógico-dedutivo de matriz cartesiana, como veremos no capítulo
3.
A reforma da Universidade de Coimbra seria responsável pela larga difusão da
filosofia natural reformada e da retórica empirista em Portugal, no entanto, é necessário
apontar que, como vimos, isso não significou uma substituição plena das estruturas de
pensamento tradicionais. Se a igreja foi alvo do regalismo pombalino, este se esforçou para
manter seu papel como uma das instituições estruturantes da sociedade portuguesa. Tudo o
que pudesse representar uma ameaça ao catolicismo foi banido, especialmente livros
considerados ateístas e materialistas.72 Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que a
própria atitude crítica dos intelectuais reformistas e a opção pela postura eclética, como
citada acima, nunca significaram uma rejeição do divino, muito pelo contrário. A filosofia
natural era vista como o caminho legítimo para se conhecer o criador, e quanto mais ela
pudesse desvendar o mundo natural, mais comprovaria sua onipresença.73
A partir desses pressupostos, no contexto da reforma, optou-se pela modernização
parcial, de forma que as instituições tradicionais não fossem apenas mantidas, mas
reafirmadas. Se a igreja e a nobreza foram alvos da ofensiva reformista pombalina, foi com
o objetivo de estabelecer um novo equilíbrio entre essas forças e a Coroa, não eliminá-las.
Isso define o caráter seletivo da apropriação das ideias ilustradas pelos reformistas, que
visava, sobretudo, a reafirmação do Estado na orientação das políticas voltadas para a
economia e para a educação dos súditos. Mesmo entre os intelectuais cujos trabalhos
interpelavam de forma mais direta o poder da igreja, como Ribeiro Sanches em Dissertação
sobre as paixões da alma e Melo Franco em Medicina Theológica, que serão analisados
71
CARVALHO., op. cit. p.102-103. 72
Sobre esse tema consultar a tese de Luiz Carlos Villalta sobre censura e práticas de leitura na América portuguesa. VILLALTA., op. cit. 73
DOMINGUES, op. cit. p.68.
41
nos próximos capítulos, os autores são enfáticos em afirmar que reconhecem a igreja como
uma instituição fundamental.
Na próxima seção nos dedicaremos à medicina portuguesa nesse mesmo contexto
sob a luz de algumas das questões trabalhadas até agora sobre o setecentos português. De
forma geral, veremos como as ideias ilustradas ajudaram a moldar um discurso médico
voltado para a esfera social que pretendia estabelecer novos padrões de comportamento ao
introduzir novas concepções sobre o corpo e a moral. Ao mesmo tempo, esse discurso
opunha-se a outras concepções sobre a cura e o corpo longamente enraizadas na cultura
lusitana.
1.2 A medicina lusitana setecentista.
Não podemos dar conta das diversas nuances do campo filosófico português
setecentista sem fazer referência às diversas tradições culturais que o conformavam, pois,
para além da esfera formal dos estatutos da Universidade de Coimbra, as concepções que
constituíam o pensamento dos praticantes da filosofia natural lusa eram também concurso
de tradições culturais variadas que estendiam suas raízes há vários séculos na península
ibérica. Sem ignorar a existência de outras vertentes, destacamos a apropriação de práticas
e conhecimentos Árabes, além da longa e ativa participação dos judeus nos assuntos
relativos ao conhecimento do corpo humano e no estudo do mundo natural. Sobre esses
últimos, David Goodman, destaca sua presença marcante na produção de conhecimento
astronômico ibérico do início do período moderno e sobretudo na medicina, onde
constituiriam uma longa tradição. O autor atribui esse destaque a características próprias de
sua cultura religiosa, como atesta a presença no Torah, o corpo de leis judaicas, de textos
que incentivam o conhecimento dos astros e a prática médica.74 Do mesmo modo, os
conhecimentos astrológicos da Cabala atribuíam ligações diretas entre o mundo dos
homens e os astros e imbricavam-se na prática médica, como veremos mais adiante.75
74
GOODMAN, David. The Sicentific Revolution in Spain and Portugal. In.: The Scientific Revolution in National Context. PORTER, Roy; TEICH, Mikulás. London: Cambridge University Press. p.158-177. p. 161 75
Ibid. p.162.
42
Quanto aos árabes, são conhecidas suas contribuições na astronomia e nas práticas
de navegação marítima e na matemática lusa, que inclusive tiveram grande significância no
pioneirismo ibérico durante o período das grandes navegações. No caso da medicina, entre
as contribuições mais citadas pelos estudiosos está a influência de Avicena (980-1037),
médico que atuou na Pérsia que é apontado como um dos responsáveis pela confluência da
tradição médica hipocrático-galênica com a árabe. Suas contribuições foram importantes
não apenas para a medicina portuguesa, mas também para o restante da Europa, sendo que
na península ibérica é encontrada com mais intensidade, devido aos séculos de invasão
muçulmana que ali deixaram heranças culturais variadas.76
No que se refere ao campo médico luso, Júnia Furtado destaca que apesar da
proeminência judia e árabe, seus descendentes não ficariam imunes à discriminação por
parte de alguns setores da sociedade portuguesa. O Regimento dos Médicos e Boticários
dos estatutos da Universidade de Coimbra entre 1604 e 1653, por exemplo, proibia a
admissão de alunos de origem judaica, cristã-nova ou moura no curso de medicina. No caso
dos judeus, a autora afirma que devido à forte presença de médicos de origem hebraica, a
profissão acabaria ficando marcada pela discriminação atribuída a eles e aos cristãos-novos.
A situação ficaria mais acirrada com o advento da União Ibérica, o que acabaria tornando
comum que diante da perseguição, muitos médicos de origem judia fossem forçados a
deixar Portugal e se estabelecessem em outros países, onde muitas vezes reafirmariam suas
tradições.77 Como veremos no próximo capitulo, tal situação ainda persistia no século
XVIII e seria determinante na trajetória de nosso personagem, o cristão-novo Antonio
Ribeiro Sanches.
A íntima relação entre medicina e religiosidade era uma característica marcante
entre muitas das tradições médicas portuguesas. Segundo Márcia Moisés Ribeiro: “médicos
e teólogos compartilhavam das mesmas crenças, dos mesmos sistemas filosóficos, não se
podendo falar ainda na existência de fronteiras rígidas entre os dois setores.” 78 A autora
76 FURTADO, Júnia Ferreira. A Medicina na época moderna. In.: STARLING, Heloisa Maria Murgel; GERMANO, Lígia Beatriz de Paula; MARQUES, Rita de Cássia (org). Medicina: história em exame. Belo Horizonte: UFMG, 2011.p.47. 77
Ibid., p. 45-46. 78
RIBEIRO, Márcia Moisés. Exorcistas e demônios: demonologia e exorcismos no mundo luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003., p.43
43
destaca que muitos médicos da primeira metade do século XVIII voltaram-se para o tema
do satanismo, o que incluía não apenas médicos menos renomados, mas também nomes de
expressão.79 Procurando afastar-se de uma perspectiva que enxerga essas tradições como
resquícios ou contradições, Ribeiro demonstra que a temática do inferno e suas ameaças
eram perfeitamente cabíveis no universo cultural lusitano do período. Sob a influência do
tomismo, uma das principais referências da formação da elite intelectual portuguesa,
acreditava-se que o demônio seria a causa de muitas doenças. Aos médicos, caberia a
responsabilidade de alertar as pessoas sobre essas ameaças.
Nesse sentido, a teoria humoralista80, formulada pelos médicos gregos, ampliada
posteriormente por Galeno e amplamente difundida na formação médica escolástica, tendia
a relacionar a bile negra, também conhecida como humor melancólico, à noite e às trevas,
sendo reconhecido como o humor favorito do diabo81. Assim, o indivíduo ao qual fosse
atribuído um estado de predominância da bile negra estaria mais sujeito à ação do demônio.
Desse modo, subentende-se uma interseção entre o discurso médico e o teológico, visto que
essa concepção atribuía aos religiosos certa legitimidade para interferir em questões
médicas.82
Esse universo demonológico também se relacionava com as concepções de natureza
humana difundidas entre os médicos portugueses nesse período. Como já fizemos alusão
anteriormente, a cultura portuguesa era marcada pela presença de tradições astrológicas,
muitas delas também conformadas pela presença árabe e judia na península ibérica. Assim,
a tradição astrológica ptolomaica, predominante em Portugal, atribuía aos astros o poder de
interferir na região terrestre, ao provocar alterações nos quatro elementos primários que
79
Idem. 80
A teoria humoralista baseava-se no princípio de que todos os corpos eram compostos dos quatro elementos primários: ar, terra, fogo, água e ar; que se conjugavam em quatro qualidades essenciais: o quente, o frio, o seco e o úmido. Essas qualidades constituíam os quatro fluidos ou humores presentes no corpo humano: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. Quando o equilíbrio entre os humores é perturbado, seja pela predominância ou ausência de algum de um ou de outro, a saúde do indivíduo é imediatamente afetada. Os desequilíbrios poderiam ter causas internas relativas a características específicas do corpo como, raça, sexo, idade; ou fatores externos, como alimentação, ar, excessos de esforço ou repouso. A terapêutica entendia que o papel do médico consistiria em ajudar o corpo a restabelecer seu equilíbrio e trazer o indivíduo para seu estado natural de saúde. FURTADO, op. cit. p.74. 81
RIBEIRO., op. cit., p.44 82
Ibid., p.45
44
formavam a base da vida na Terra: fogo, ar, água e terra.83 Ao conjugar os efeitos
atribuídos à ação dos planetas, do Sol e da Lua, com conhecimentos sobre o zodíaco, dentre
outros fatores, formava-se um sistema de relações bastante complexo, cujo manejo poderia
prever o temperamento de pessoas e, em certa medida, a ocorrência futura de grandes
eventos coletivos. Nesse sentido, essa suposta capacidade da prática astrológica suscitava
debates intensos com o discurso católico, uma vez que a possibilidade de se prever eventos
futuros interferia diretamente no princípio do livre-arbítrio, caro ao discurso tridentino.
Vale acrescentar que a definição do alcance do poder dos astros sobre a vida terrestre não
era consenso nem entre os astrólogos, mas de qualquer forma, a questão gerava
desconfiança nos teólogos. No entanto, isso não quer dizer que eles fossem opositores do
conhecimento astrológico, muito pelo contrário, muitos teólogos enxergavam as relações
entre os astros e o mundo dos homens como possíveis meios a partir dos quais Deus
poderia intervir na vida terrena. Em linhas gerais, podemos afirmar que as resistências
tinham origem na possibilidade de determinação das ações humanas futuras a partir dos
astros, o que punha em questão o livre-arbítrio. De resto, a influência dos astros poderia ser
admitida, desde que afetasse somente o corpo humano, deixando a alma racional
completamente imune.84
Nesse sentido, o conhecimento astrológico era usado por muitos com a intenção de
prever as doenças que poderiam incorrer em determinadas pessoas. Era comum que essas
práticas se baseassem numa confluência entre o conhecimento astrológico e a teoria
humoral, como aponta Luís Carolino:
“Como se considerava que havia quatro tipos de humores – o
sangue, a fleuma, a cólera e a melancolia – humores, que tinham
correspondência com as quatro qualidades primárias dos planetas [frio,
secura, calor e umidade], nada mais natural que uma doença resultasse
da ação prejudicial de um planeta que provocava o excesso de um
humor em detrimento dos outros.” 85
83
CAROLINO, Luís Miguel. A escrita celeste: almanaques astrológicos em Portugal nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Acces, 2002. p.15 84
Ibid. p. 22-24. 85
Ibid. p.27.
45
Essas relações estavam na base da concepção na natureza humana como um
microcosmo, originária da cultura greco-romana e bastante difundida na Idade Média e no
renascimento. O homem era entendido como uma espécie de “resumo” do cosmos, de
modo que tudo o que está presente naquele encontra-se representado no indivíduo. Para os
praticantes da arte médica, isso se traduzia no imperativo de dominar essas relações através
de conhecimentos de natureza não apenas médica, mas também, alquímica, astrológica e
filosófica. Assim, sua atuação dependeria do manejo da simbologia e das alegorias
inseridas nessas tradições, de modo a articular o conhecimento médico com outras formas
de interação com o mundo natural. Jean Abreu destaca que as teorias do microcosmo
relacionavam-se com a teologia cristã, no sentido de que Deus seria o grande “artífice” e
“arquiteto” das relações entre o homem e o cosmos, assim, o conhecimento do corpo
comprovaria, sobretudo, a existência e a perfeição de Deus. Desse modo, na medicina luso-
brasileira da primeira metade do século XVIII a jurisdição do conhecimento sobre o corpo
continuava indissociável de temas relativos à filosofia natural, religião e astrologia,
constituindo uma ampla e fluida tradição que deitava raízes em fontes distintas e bastantes
arraigadas no imaginário luso.86
A larga presença dessas concepções na cultura popular portuguesa do século XVIII,
pode ser comprovada pela popularidade dos almanaques astrológicos conforme atesta Luís
Miguel Carolino. Publicado com maior intensidade entre os séculos XVII e XVIII, esse
gênero literário ganhou larga difusão na sociedade européia com edições anuais de largas
tiragens, livros de pequenas dimensões e preços acessíveis. Tinham como objeto a previsão
dos tempos futuros, o que incluía não apenas informações sobre os dias e os meses do ano,
as datas das festividades religiosas, feriados e fases da lua, mas também as previsões dos
astrólogos para o ano vindouro.87 De acordo com o autor, para o público amplo e sem
ligação direta dos círculos letrados, a ação celeste tendia a ser vista como mais forte e
efetiva do que concebiam os teólogos e os filósofos. Era comum que se explicassem
sucessos e infortúnios a partir dessas influências, assim como eventos de maior relevância
86
ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber medico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.. p.60-63. 87
CAROLINO., op. cit. p.07.
46
para a comunidade, como a morte de monarcas e príncipes. Assim, Carolino atribui não
apenas uma científica para o saber astrológico, mas também política e religiosa.88
Conforme já foi mencionado, no âmbito formal do ensino médico universitário
português, até a primeira metade do século XVIII o ensino da medicina na Universidade de
Coimbra tinha como base os autores da antiguidade, como Hipócrates e Galeno, além de
seus comentadores árabes na Idade Média, como Avicena. Como afirma Jean Abreu,
formular novos saberes não estava entre os principais objetivos do ensino, mas sim preparar
os alunos para atuar de acordo com o conhecimento preestabelecido. 89 Nesse sentido,
apesar da familiaridade dos jesuítas com os temas relativos à filosofia natural reformada, as
ideias alternativas ao pensamento tridentino estavam longe de se tornarem hegemônicas, ou
pelo menos, de ditarem as orientações mais gerais do ensino médico.
Em resumo, para os médicos educados nos termos da tradição médica galênica,
hegemônica na formação universitária portuguesa do período, a cura era entendida como o
processo de restabelecimento do equilíbrio dos humores, geralmente perturbado por desvios
morais do indivíduo ou por fatores como higiene, clima e alimentação. Na esteira das
concepções sobre a natureza humana como microcosmo, descritas acima, a saúde era
entendida como um estado de harmonia do corpo com seu meio. Este estado deveria ser
almejado pela prática médica através do conhecimento das qualidades e do poder simpático
ou antipático da matéria sobre o corpo humano, o que também poderia ser conjugado com
domínio das simbologias oriundas da tradição astrológica. Para isso recorriam à ampla
gama de matérias providas pelos reinos animal, vegetal e mineral:
“A combinação entre a temperatura e a qualidade de plantas,
minerais e animais era usada, a partir desses princípios, como
prescrição para reencontrar o equilíbrio do corpo humano. Por
exemplo, o sangue era vermelho e molhado e, quando em excesso,
demandava a prescrição de algo frio e seco para contrabalançar” 90
88
Ibid. p.08. 89
ABREU., op. cit., p.17 90
FURTADO., op. cit. p.36.
47
Apesar da forte presença dessas concepções, o campo da filosofia natural
portuguesa setecentista também foi marcado pela ascensão de ideias alternativas que
procuravam explicar os fenômenos patológicos, com destaque para a filosofia mecânico-
corpuscular. As concepções mecanicistas eram apontadas por seus adeptos como alternativa
para ao ensino escolástico formal, que por sua vez, passou a ser frequentemente
desqualificado como irracional e impreciso. Nesse sentido, diante dessas transformações e
do paulatino enfraquecimento da pedagogia escolástica, a noção do que era considerado
sobrenatural se alterou. Vale ressaltar que esse processo não foi uniforme e não subentende
a substituição de um sistema de crenças por outro, mas sim um entrelaçamento complexo
de diversas crenças e tradições, marcado por permanências e apropriações diversas das
novas ideias.91 No caso do discurso médico, se antes a atuação do demônio no mundo e as
relações entre o macrocosmo e o microcosmo eram partes intrínsecas dos sistemas médico-
teológicos, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII, esses fatores
começaram a ser enxergados por grupos médicos influentes como alheios aos fenômenos
patológicos92.
Nesse processo, muitos reformadores do conhecimento médico como, Boneli,
Harvey e Versalius passaram a ser citados com maior freqüência nos tratados de medicina
editados em Portugal. No caso do estudo das doenças, Herman Boerhaave, famoso médico
91 Parte da literatura que se ocupa da medicina luso-brasileira no século XVIII é enfática ao afirmar que mesmo entre os médicos vinculados às concepções médicas reformadas, o saber mágico-teológico ainda se fazia influente. Apesar do referencial mecânico, Hipócrates e Galeno continuaram como fundamentação das asserções de muitos médicos portugueses, fosse por medo da perseguição inquisitorial ou porque as autoridades antigas continuaram como referência para muitos desses autores. O mesmo vale para outros campos do saber pois, como relata Márcia Ribeiro, em alguns setores havia certa insegurança com as novas formas de explicar os fenômenos naturais. Até mesmo entre adeptos das teorias astronômicas ligadas às concepções mecânicas, havia aqueles que ainda atribuíam simbolismos aos astros, especialmente sobre sua suposta capacidade de prever o futuro. Com o terremoto de Lisboa em 1755, as crenças nesses novos referenciais filosóficos sofreram forte abalo, sendo comum que intelectuais ilustrados recorressem à interferência divina como forma de dar conta das causas de um evento tão inesperado quanto catastrófico, (a exemplo do próprio Antonio Ribeiro Sanches, como veremos no próximo capítulo). A autora conclui que mesmo com o advento das reformas, a cultura portuguesa jamais chegou aos extremos de uma anti-religião. RIBEIRO, Márcia Moisés., op. cit., p.36-40. Ver também: ABREU, Jean Luiz Neves., op. cit. sobre essas continuidades no campo médico; e VILLALTA., op. cit. sobre a presença de dos milenarismos na cultura portuguesa pouco antes das reformas. 92
Márcia Moisés Ribeiro aponta uma transformação na própria noção de superstição. Nos sistemas tradicionais eram assim considerados os malefícios em si, ou seja, o ato de fazer mal a alguém com a ajuda do diabo. Para o pensamento moderno, “supersticioso passa a ser aquele que crê na existência de bruxas, feiticeiras e na sua imaginada capacidade de provocar o mal.” RIBEIRO., op. cit., p.149-150.
48
holandês de Leyden tornou-se uma das principais referências.93 A difusão dessas ideias no
reino teve contribuição importante dos médicos portugueses que tiveram passagem por
outras universidades européias, muitos deles, mesmo sem retornar ao reino, colocaram seus
conhecimentos adquiridos no estrangeiro a serviço das reformas do ensino médico luso. Já
fizemos alusão a esses intelectuais, denominados “estrangeirados” por parte da
historiografia, na primeira seção desse capítulo, e dentre os que contribuíram mais
ativamente para a renovação de ideias no campo médico português, podemos destacar o já
citado Luis Antonio Verney, José Rodrigues Abreu, Jacob de Castro Sarmento, e Antonio
Ribeiro Sanches.
Verney, em seu Verdadeiro Método de Estudar, era claro ao comparar o corpo
humano a uma máquina hidráulica, “muito mais perfeita que um relógio” e afirmar que
aqueles que não têm conhecimento da anatomia, “não são capazes de saber medicina.” 94
Jacob de Castro Sarmento, à semelhança de Antonio Ribeiro Sanches, seria mais um
cristão-novo vítima de perseguições em território português que se viu forçado a abandonar
o reino por causa de problemas com o tribunal inquisitorial. Em 1720, foi denunciado junto
com vários outros conversos pelo médico Francisco de Sá e Mesquita, e no ano seguinte,
mudou-se para Londres, onde aderiria publicamente à religião judaica e trocaria seu nome
de nascença, Henrique de Castro, pelo nome com o qual é conhecido. Conseguiu boa
inserção no meio filosófico inglês, o que lhe renderia o título de Fellow da Royal Society
em 1730.95 Durante sua estadia na capital inglesa voltou parte de sua produção intelectual
para a realidade portuguesa a pedido de D. João V, sendo consultado sobre a reforma do
ensino médico em Portugal, além de traduzir para o português as obras filosóficas de
Francis Bacon e publicar obra sobre a teoria das marés sob a luz da física newtoniana96. No
entanto, sua obra mais conhecida é Matéria médica, físico-histórico-mecânica, que teve sua
93
ABREU, Jean Luiz Neves. Ilustração, experimentalismo e mecanicismo: aspectos das transformações do saber médico em Portugal no século XVIII. Topoi, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, jul-dez., pp. 80-104, 2007., p.93-97. 94
ABREU., op. cit., p.65 95 DIAS, José Pedro Souza. Jacob de Castro Sarmento e a conversão à ciência moderna. In: Primeiro Encontro
de História das Ciências Naturais e da Saúde. Lisboa: Centro de Estudos de História das Ciências Naturais e da Saúde (Instituto de Investigação Científica Bento da Rocha Cabral) e Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa,. p.58. 96
Obra, de 1737, intitulava-se Teórica verdadeira das marés, conforme à filosofia do “incomparável cavalheiro Isaac Newton”. Ibid. p.63.
49
primeira parte, dedicada aos medicamentos de origem mineral, publicada em 1735, sendo
que a segunda, dedicada aos medicamentos de origem animal e vegetal, só veria a luz do
dia 23 anos depois. A obra, fiel à vertente modernizadora do conhecimento médico
procurava divulgar os princípios da iatro-mecânica com forte teor das concepções
newtonianas e boerhaverianas.97
José Rodrigues de Abreu era um prestigiado funcionário da Coroa e prestou seus
serviços em diversos domínios portugueses, chegando a passar algum tempo no Brasil,
onde teve passagens por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas do Ouro. Era dono de vasta
biblioteca e chegou a ser eleito membro da Academia Médica Ibérica do Porto. Ao longo
das muitas viagens que fez a serviço do reino, acumulou observações e notícias das virtudes
medicinais de diversas ervas e plantas, além de observações náuticas, publicadas no volume
Luz dos cirurugiões embarcadiços, que trata das doenças epidêmicas de que costumam
enfermar os que se embarcam para os portos ultramarinos.98 No entanto, sua obra mais
conhecida é Histotiologia Médica, fundada e estabelecida nos princípios de George
Ernesto Sthal, na qual procurava divulgar as ideias animistas do famoso médico prussiano
em Portugal.
A trajetória e as concepções médicas de António Ribeiro Sanches serão objeto de
nosso próximo capítulo. No momento, nos limitaremos a localizá-lo entre os médicos
portugueses da primeira metade do setecentos que procuraram intervir na cultura médica
lusa através da divulgação de conhecimentos alternativos às concepções mais tradicionais
que permaneciam hegemônicas no ensino da Medicina no reino. Sobre esse aspecto, vale
ressaltar que, com o advento das reformas pombalinas, a renovação do ensino médico
tornou-se interesse do próprio Estado. Todos os intelectuais que acabamos de citar foram
contratados pela Coroa para produzir obras de divulgação de novos conhecimentos.
Veremos como Sanches, por exemplo, receberia pensão vitalícia do governo português em
troca da produção de obras voltadas para o tema das reformas em Portugal. Além dele, Luis
Verney teria papel destacado como conselheiro das reformas educacionais e Castro
Sarmento teria estabelecido boas relações com o próprio Pombal.
97
Ibid. p.60-62. 98
FURTADO, op. cit. p.53.
50
Tal estado de coisas se refletiu na produção do Compêndio histórico encomendado
pela Junta Literária pouco antes da reforma universitária de 1772. No que se refere ao
ensino da medicina, o documento mostrava-se bastante apologético das idéias iluministas e,
afinado com os setores reformadores da intelectualidade portuguesa, dava grande valor a
figuras como William Harvey e Boerhaave dentre outros médicos e anatomistas que tinham
grande influência na renovação do conhecimento médico do período. Nesse contexto, o
estudo da anatomia passou a ser reivindicado como imprescindível para a formação médica.
Segundo Abreu, o próprio Compêndio era enfático ao acusar os jesuítas pelo atraso dos
estudos anatômicos e afirmava que, embora os livros de Galeno oferecessem preciosas
lições sobre o tema, eram insuficientes. 99
Embora a reivindicação pelos estudos anatômicos como parte da formação
universitária fosse uma tônica do discurso reformador, não podemos ignorar que essa
prática já se encontrava inscrita no ensino médico português pelo menos desde o período
manuelino (1469-1521), quando foi instituída a cadeira de Anatomia e Cirurgia na
Universidade de Coimbra. Sobre esse aspecto, Júnia Furtado contesta a aversão ao estudo
da anatomia atribuída ao discurso católico por parte da historiografia:
“É um equívoco a afirmação de que a Anatomia foi banida dos
países católicos. Ao contrário, em Portugal, desde cedo, era parte
integrante do currículo do curso de Medicina. Por essa época [período
manuelino], o livro de Vessalius, Suorum de Humani coporis fabrica
epítome, de 1543, que condensava o conhecimento anatômico
disponível até então, era adotado na universidade, juntamente com os
ensinamentos de Galeno. O que a Igreja condenava era a anatomia
feita a título privado ou por não especialistas.” 100
No contexto do reformismo do século XVIII a reivindicação pelos estudos
anatômicos era motivada pelo prestígio das teorias iatromecânicas em detrimento da
fisiologia humoralista e estava na base do movimento de contestação do modelo de ensino
99
Ibid., op. cit. p. 87-88. 100
FURTADO, op. cit. p.49.
51
escolástico. Não à toa, a pesquisa sobre a circulação sanguínea de William Harvey (1578-
1657), anatomista ligado à escola médica aristotélica de Pádua, fora tomada como exemplo
da aplicação das concepções mecanicistas ao estudo do corpo humano.101
É importante notar que no decurso dessas transformações, o próprio discurso
médico adquiria feições cada vez mais distintas e voltadas para a intervenção no mundo
privado. Como veremos no último capítulo, esse novo vocabulário médico foi forjado no
interior dos debates entre teorias não apenas mecanicistas, mas também animistas e
vitalistas que permearam os círculos médicos europeus ao longo do século XVIII, nos quais
foram propostas várias concepções de natureza humana que fundamentavam discursos
distintos sobre o corpo, a doença e o comportamento dos indivíduos.
Jean Abreu aponta que a Europa de século das Luzes conheceu ampla produção de
tratados e manuais de medicina voltados para a “saúde dos povos”. O mundo ibérico teria
acompanhado essa tendência. Na Espanha e suas colônias, desde meados daquele século, a
tradução e produção de manuais desse tipo foram acompanhadas de regulamentações do
saneamento das cidades e organização de sistemas contra as epidemias.102 No contexto
luso-brasileiro, a saúde da população começa a ser alvo de preocupações do Estado. Apesar
dos limites das intervenções, houve esforços de caráter administrativo e fiscalizador, como
a instituição da Junta do Protomedicato em 1782 que ficou com a incumbência de reprimir
as atividades de cura realizadas sem licença e de forma clandestina. 103 Márcia Moisés
Ribeiro também salienta que, apesar da relativa ausência estatal nesse assunto, os tratados
de medicina começaram a mostrar preocupação com a saúde dos colonos, especialmente
dos escravos. O Erário Mineral104 possuía capítulos inteiros sobre a saúde dos cativos e,
assim como outros tratados do período, procurava “instruir os senhores sobre a melhor
101
Como exemplo desse processo, John Henry demonstra como Descartes, ao recorrer aos estudos de Harvey sobre o coração e o sangue, eliminou as conclusões do anatomista sobre a presença de um poder inato vital no sangue, dotado de uma propriedade pulsativa própria, para produzir uma explicação mecanicista para a circulação sanguínea. HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciencia
moderna, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998., p.77-78. 102 ABREU., op. cit., 121. 103
Ibid., p.122. 104
O Erário Mineral, de autoria do cirurgião-barbeiro Luís Gomes Ferreira, foi editado em 1735. A obra é composta de relatos de experiências de Ferreira na capitania de Minas Gerais. Além de descrever os principais males da região, o autor disserta sobre os meios mais eficazes de cura utilizados por ele e lista alguns dos mais principais remédios utilizados na época e suas funções.
52
forma de manutenção de seus plantéis, o que, certamente, redundava em menores
prejuízos.” 105 Sobre esse aspecto, não podemos perder de vista que o interesse estatal
nesses assuntos também tinha íntima relação com o utilitarismo das reformas econômicas.
Assim a ciência tornava-se uma aliada necessária na tarefa de conservar os corpos para
explorá-los ao máximo.106
Dentre os diversos tratados de higiene publicados nesse período, além do Erário
Mineral de Luis Gomes Ferreira, destaca-se o Tratado da Conservação da Saúde dos Povos
(1756) de Antonio Ribeiro Sanches, analisado com mais detalhes no próximo capítulo;
Medicina Doméstica do médico escocês Guilherme Buchan e A arte de se tratar a si
mesmo nas enfermidades venéreas, e de se curar os seus diferentes sintomas de Mr.
Bourru, ambos com significativa circulação em Portugal.107 Em Âncora medicinal para
conservar a vida com saúde (1721), por exemplo, Fonseca Henriques afirma que, ao
contrário de suas obras anteriores, essa se destinava aos sãos, pois se as outras procuravam
curar as enfermidades, essa era para não deixar adoecer e conservar a saúde.108
Os tratados procuravam apresentar medidas destinadas não só à cura e prevenção
das doenças, mas também ao combate a focos e causas da sua propagação. Nesse sentido, o
clima e o ar atmosférico eram apontados como alguns dos principais fatores etiológicos,
remontando ao clássico texto do corpus hippocraticum Ares, águas e lugares.109 Além
desse, há uma clara influência dos escritos de Sydenham, médico inglês do século XVII,
considerado por Ribeiro Sanches o “Hipócrates de nosso tempo”110. Abreu afirma que
Sydenham foi um dos pioneiros na abordagem topográfica das doenças, constituída pela
análise pormenorizada dos terrenos, água, ar, sociedade e temperamento dos habitantes.
Além de prezar pela saúde da população, é importante mencionar que toda essa
literatura tinha em comum a intenção de divulgar o saber médico como forma de impedir
que a população ficasse à mercê do que consideravam charlatanice, ou seja, os
105
RIBEIRO, Márcia Moisés A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997., p. 112-113. 106 Ibid., p. 112. Sobre o utilitarismo das reformas do império português no século XVIII, retomar a nota 36. 107
ABREU., op. cit., p. 126 108
Ibid., 127. 109
Ibid., p.132. 110
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da Alma. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.2.
53
representantes de práticas médicas populares. Escritos em língua vernácula, os tratados
eram destinados ao público leigo e àqueles sem iniciação formal nas concepções médicas
consideradas legítimas por seus autores. Ribeiro Sanches, por exemplo, indicava a leitura
do Tratado para a Conservação da Saúde dos Povos a capitães, generais, médicos e pais de
família, daí sua intenção de escrever a obra em “estilo claro”.111
Outro assunto absorvido por esse novo discurso médico foram os chamados
“regimes de viver”. Mais voltado para a esfera privada, esse tema procurava estabelecer
padrões de conduta ideais que pudessem garantir a saúde dos indivíduos. Nesse sentido, a
moderação tornava-se a palavra de ordem, assim, Fonseca Henriques procurava apresentar
as qualidades medicinais dos alimentos e bebidas e procurava prescrever uma dieta
adequada aos indivíduos de acordo com sua idade e as estações do ano.112 Na juventude,
recomendava o consumo de alimentos refrigerantes, adequado ao intenso calor das idades
mais tenras, na velhice, por sua vez, eram mais adequados os alimentos quentes e úmidos
devido ao fato de que, nessa idade, os indivíduos tornavam-se mais frios e secos.113
Nessa literatura, o descontrole não só da alimentação, mas do regime de vida em
geral, teria conseqüências nefastas para o físico e moral dos indivíduos. Por esse viés, os
médicos procuravam intervir diretamente nos padrões de comportamento e ditar as
diretrizes adequadas. É importante dizer que isso não configura uma inovação no contexto
cultural luso. A diferença é, não só de ênfase, mas também, em alguns casos, de escopo,
pois a higiene se apresenta como aliado do Estado e pretende o monopólio do discurso
legítimo. Assim, o que antes era tratado na sermonística cristã, passa a ser reivindicado pelo
médico. Marina Massimi analisou as metáforas alimentares nos sermões de pregadores
brasileiros no século XVII.114 A autora identifica os sermões como um meio fundamental
de transmissão de saberes numa cultura ainda marcada pela oralidade. Nesse sentido, as
mensagens pedagógicas pretendidas pelos pregadores eram passadas aos fiéis por meio de
uma estratégia centrada na construção de imagens através do uso de metáforas.115
111 ABREU., op. cit., p. 130-131. 112
Ibid., p.157. 113
Ibid., p.157-158. 114
MASSIMI, Marina. Alimentos, palavras e saúde (da alma e do corpo), em sermões de pregadores brasileiros do século XVII, Hist. Cien. Saúde – Manguinhos, v. 13, n2, p. 253-70, abr-jun. 2006. 115
Ibid, p.54
54
Massimi afirma que as metáforas alimentares tinham suas raízes teóricas na
fisiologia aristotélica, que constituía uma das bases do discurso católico sobre o corpo e a
natureza humana no período. A língua seria a residência de duas funções naturais: o gosto e
a palavra. O gosto seria função necessária a uma grande quantidade de animais, e a fala
seria responsável pela expressão do pensamento. Na tradição ética teológica medieval, a
língua teria dupla função, por ser vista como um órgão de cruzamento entre corpo e
alma.116 Nesse sentido, a recepção da mensagem divina pelo indivíduo era constantemente
representada através da alegoria da alimentação: do mesmo modo que o homem digere os
alimentos, também o faria com os ensinamentos de Deus. Essa concepção passa, inclusive,
a fundamentar uma inter-relação entre o benefício específico que determinado alimento traz
para o corpo e sua correspondência espiritual. Codorniz e perdiz, por exemplo, eram
alimentos indicados pelo padre Lourenço Craveiro, da Companhia de Jesus, como o
alimento dos convalescentes, ao passo que também deveria ser usado pelos pecadores
arrependidos, portanto também convalescentes diante de Deus.117
A partir do século XVIII, o tratamento do moral torna-se alvo da ofensiva médica
sobre a tradição católica. Além de reivindicar a primazia discursiva sobre o corpo, os
médicos afirmam-se como os únicos aptos a compreender suas ligações com a alma, assim,
os comportamentos pecaminosos ou imorais são patologizados. Procura-se diagnosticá-los
e tratá-los por caminhos alternativos à virtude cristã. Nesse processo de ampliação de sua
jurisdição, a medicina acaba por transpor os tradicionais limites de suas atribuições e
interpela a esfera da Teologia, do Direito e da Filosofia Moral pela legitimidade de dissertar
sobre a moralidade. Nesse sentido, as paixões da alma tornam-se tema de tratados médicos
que procuravam identificar as paixões e seus efeitos sobre o corpo, do mesmo modo que
buscavam os meios através dos quais o corpo poderia afetar a alma. Assim, ao invés de
cominar o castigo ou o ascetismo, um grupo de médicos passou a almejar a normalidade
pela cura. Desse modo, a imagem do criminoso, como a do pecador, foi parcialmente
reconstruída como uma morbidade, a partir do multifacetado movimento ilustrado luso.
No próximo capítulo, faremos uma incursão pela biografia e obra de nosso
personagem visando localizá-lo no contexto das reformas ilustradas em Portugal. No curso
116
Ibid, p.57 117
Ibid, p.67
55
de sua trajetória, apontaremos as redes de circulação de ideias através das quais ele
cultivava relações políticas, pessoais e científicas. Por fim, veremos de que forma ele
acionava seu conhecimento médico em suas obras para fundamentar seus posicionamentos
diante da cultura portuguesa do período, especialmente no que tange ao Direito e a
Teologia, no contexto de sua reivindicação de um novo papel para a medicina no interior da
cultura lusa reformada.
56
CAPÍTULO II
MEDICINA POLÍTICA: AS REDES DE RIBEIRO SANCHES E SUAS
PROPOSTAS DE REFORMA PARA PORTUGAL.
2.1 Trajetória e relações com a intelectualidade ilustrada.
Ribeiro Sanches nasceu em Penamacor em 7 de março de 1699 e faleceu em Paris
no ano de 1783, às portas da Revolução Francesa. Filho de Ana Nunes Ribeiro e Simão
Nunes. De acordo com Vicq D’Azyr em seu elogio póstumo ao médico português, sua
família descendia da casa dos Nunes, que viveram em Roma no século XVI. Seu pai, um
bem-sucedido comerciante da região da Beira tinha gosto pelas letras e teria iniciado seu
filho na leitura de Montaigne e Plutarco.118 Aos 13 anos iniciou os estudos preparatórios
para ingresso no Colégio das Artes na cidade de Guarda onde, por influência de seu tio
Diogo Nunes Ribeiro, médico em Lisboa, aproximou-se do Dr. Bernardo Lopes de Pinho,
frustrando as vontades de seu pai que o queria seguindo carreira no Direito.119
Entre 1716 e 1718, foi aluno do Colégio das Artes em Coimbra, na época ainda sob
a tutela Companhia de Jesus, situação que só mudaria com o Alvará de 1759. De acordo
com José Luiz Doria, durante esse período o Colégio foi marcado por conflitos devidos ao
inconformismo dos alunos com os posicionamentos conservadores de seus professores. Ao
que parece, Sanches não ficou imune aos debates, mas cultivou uma relação amigável com
o Padre Manuel Baptista, seu professor de filosofia, cuja influência seria destacada por ele
em suas obras posteriores. Diante da situação desfavorável em Coimbra por conta do clima
tenso entre professores e alunos no Colégio das Artes, Sanches prossegue seus estudos na
118
VICQ D’AZYR, Félix. Éloges historiques. V.3. Paris: Duprat-Duverger, 1805., p.218. 119
DORIA, José Luis. Antonio Ribeiro Sanches. A Portuguese doctor in 18th century Europe. Versalius., v.7, n.1, pp. 27-35, 2001., p.27-28.
57
Universidade de Salamanca, na qual iniciaria seus estudos de medicina em 1720, formando-
se em 1724, aos vinte e cinco anos de idade.120
Após a obtenção de sua licenciatura em medicina, Sanches retornou a Portugal,
onde exerceu a prática médica durante breve período na cidade de Benaventi121. Pouco
tempo depois, deixou sua terra natal para nunca mais retornar. Parte da historiografia
atribui as razões de sua partida de Portugal a questões religiosas, especialmente pela
perseguição inquisitorial, da qual seus pais e alguns parentes haviam sido vítimas por conta
de sua condição de cristãos-novos. Raul Rêgo revela que o pai de Sanches, Simão Nunes
havia se apresentado ao Santo Ofício em 1715, enquanto ele esteve hospedado na casa de
sua tia, Leonor Mendes.122 Segundo o autor, o próprio Ribeiro Sanches foi denunciado pelo
seu primo, Manuel Nunes Sanches em 1726. No mesmo período, seu tio, Diogo Nunes
Ribeiro, médico que o recebeu após sua volta de Salamanca, teria sido também vítima de
outra denúncia123.
Rêgo afirma que esses episódios teriam levado Sanches a fugir de Portugal para
Londres, onde “professaria o judaísmo livremente” durante algum tempo124. Porém, quando
escreveu Cristãos Novos e Cristãos Velhos em Portugal, obra de 1735 mas só publicada em
1748, o autor já haveria se convertido ao catolicismo.125 No texto, assinado com o
codinome Philopater126, o autor denunciava as humilhações às quais eram submetidos os
cristãos-novos no Portugal de sua época, através da exigência de atestados de pureza de
sangue para a ocupação de cargos públicos importantes e para ingresso na vida eclesiástica,
bem como os efeitos da perseguição inquisitorial na vida familiar dos descendentes de
120
Ibid. p.28. 121
CUNHA, Fanny Andrée Font Xavier da. Antonio Nunes Ribeiro Sanches. Médico higienista (1699-1783). In.: Cadernos de Cultura: Medicina na Beira Interior - da pré-história ao séc. XIX. v.1, n.1 , pp. 19-27, 1989. 122
SANCHES, Antonio Ribeiro. Christãos-novos e christãos-velhos em Portugal (ed. Raul Rego). Porto, 1973. p.09 123
Ibid., p.10. 124
Ibid., p.11. 125
Segundo Luís de Pina, uma versão preliminar do texto teria sido enviada por carta a Sampaio Valadares, um médico amigo de Sanches em Portugal em 15 de julho de 1735. Nela, além da obra, Sanches afirmava sua fé católica: “declaro e afirmo do modo mais expressivo e valioso que sou cristão católico romano e que creio tudo aquilo que crê e ensina a Santa Igreja Católica romana em cuja fé e religião verdadeira prometo viver e morrer”. PINA, Luís de. Verney, Ribeiro Sanches e Diderot na história das universidades. Porto: Centro de Estudos Humanísticos, 1955. p.12 apud LEMOS, Maximiano, 1911., p.109. 126
Idem.
58
judeus ao se referir ao “desprezo universal que tinham e tem todos os portugueses pela
desgraçada Nação judaica, arraigado no coração desde a mais tenra infância127”. Na sua
visão, esse desprezo seria expressado cotidianamente:
“Os que têm melhor educação, lá dão seus sinais de distinção,
mas com maior decência: um quando fala com ele lhe diz uma meia
palavra de Cão, outro por gíria lhe chama Judeu; outro põe a mão no
nariz; outro antes que fale dá uma Cutilada de dedos pelos bigodes; a
maior parte faz acenos que tem rabo. Este é o trato que tem um Cristão
novo com os seus compatriotas;esta é a satisfação com que vive na sua
Pátria; e como o ser desprezado incita à vingança, não vive mais que
roído do ódio, e do fingimento.”128
De fato, no Portugal do século XVIII, mesmo com o gradativo arrefecimento do
aparato inquisitorial, sua atuação contra os cristãos-novos acusados de judaísmo ainda se
fazia presente. As delações, mesmo que infundadas, arruinavam a vida de muitas famílias
de descendência judia, confiscando seus bens ou até mesmo condenando-os a queimar na
fogueira inquisitorial. De acordo com Robert Rowland, mesmo que inocentes, os acusados
tinham possibilidades muitíssimo reduzidas de se livrar das punições, o que os levava
muitas vezes a forjar confissões de práticas que não haviam cometido para receberem penas
mais brandas.129 Após o julgamento, eram geralmente banidos do convívio com cristãos-
velhos e manchavam a genealogia de suas famílias, sendo estigmatizados por gerações pela
suspeita de infidelidade ao catolicismo.130 Rowland afirma que no século XVIII, a própria
inquisição funcionava também como instrumento de ascensão e afirmação social, uma vez
que a nomeação para qualquer um de seus cargos exigia uma extensa investigação
genealógica na vida do candidato para determinar se havia indícios de “sangue infecto”131.
127
SANCHES, Antonio Ribeiro. Cristaos novos e cristaos velhos em Portugal. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.01. 128
Ibid., p.03. 129
ROWLAND, Robert. Cristãos-novos, marranos e judeus no espelho da Inquisição. Topoi., v.11., n.20., p.172-188., jan-jun, 2010. p. 181. 130
Idem. 131
Ibid. p.183-184.
59
Quando aprovado, o candidato, e por conseqüência sua família, poderiam ostentar a
comprovação de sua pureza de sangue, tornando-se de grande interesse possuir membros do
tribunal inquisitorial entre os familiares.
Essas práticas contribuíam para a perpetuação da diferenciação entre cristãos novos
e velhos ao longo do tempo, marcando identidades e aguçando rivalidades e fazendo com
que “a ‘questão judaica’ em Portugal se tornasse cada vez menos uma questão religiosa e
cada vez mais uma questão de relação entre grupos sociais em todos os níveis da
sociedade.” 132 Desse modo, considerando os relatos de Sanches sobre a perseguição aos
cristãos-novos, é provável que ele tenha experimentado ao longo de sua vida em Portugal
certo clima de tensão relativo à sua ascendência judia e aos riscos de uma possível delação,
o que de forma ou de outra, pode ter contribuído para sua saída do reino. Vicq D’Azyr
afirma que o médico tinha “um ressentimento profundo” com a inquisição, que havia
vitimado alguns de seus parentes e amigos. Ele inclusive teria lhe dedicado um manuscrito
intitulado “Pensamentos sobre a inquisição, para meu uso” do qual não temos maiores
informações. Segundo o autor, esse sentimento em relação ao tribunal inquisitorial teria
sido o motivo de Sanches escolher a França ao invés de Portugal para se estabelecer após
sua saída da Rússia em 1747.133
Sem discordar das questões relativas às perseguições aos cristãos-novos, Ana
Cristina Araújo associa a saída de Ribeiro Sanches de Portugal em 1726 à curiosidade
científica que cultivava desde sua juventude, a qual aliada à pouca divulgação das ideias
ilustradas no reino, acabaram motivando sua saída para “aprender o que jamais se pode
aprender nele”, como confessaria em carta enviada a Francisco de Pina e Melo em 1769.134
No entanto, a própria autora admite que a escolha de Londres, como primeiro destino no
qual se estabeleceria fora de sua terra, fora motivada, pelo menos inicialmente, pela busca
de uma nova identidade religiosa. Porém, apesar da força da comunidade judaica
portuguesa na capital inglesa, ele teria se decepcionado com as exigências de espírito
132
Ibid. p. 184. 133
VICQ D’AZYR. op. cit. p. 242. 134
ARAÚJO, Ana Cristina. Ilustração, pedagogia e ciência em Antônio Nunes Ribeiro Sanches. Revista de
História e teoria das idéias. Revoltas e revolução. Coimbra. Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, v. 6, p. 377-395, 1984. p. 386.
60
dogmático e disciplina de culto, deixando em segundo plano as preocupações religiosas e
dedicando mais de seu tempo à matemática e às ciências experimentais.135
Vale destacar que Londres foi apenas uma das paradas que constituiriam o que
Georges Dulac classificou como “período errante” na biografia de Sanches136, situado entre
sua saída de Portugal e o estabelecimento na Rússia cinco anos depois. De acordo com o
autor, as cronologias desse período são imprecisas, mas o que nos interessa aqui é que foi
durante esses anos que Sanches começou a forjar as extensas redes de relações pessoais e
intelectuais das quais faria parte até o final de sua vida.137 A partir desses contatos, Sanches
adquiri o espírito cosmopolita que seria marca de sua trajetória, assim como de boa parte
dos intelectuais reformistas portugueses de seu tempo. Ainda na capital inglesa, travou
contato com outros exilados portugueses, com destaque para médico Jacob Castro de
Sarmento, pelo qual se manteria informado sobre a produção científica britânica que, como
afirma Dulac, continuaria entre seus interesses pelas décadas seguintes.138
Sobre a estadia de Sanches na Itália nessa mesma época, o autor afirma que apesar
de pouco documentada, teve impacto considerável na sua vida intelectual. Nesse sentido, se
não foi tão relevante quanto o período em Londres, deixou marcas em sua biblioteca,
sobretudo nos temas de política e economia, com as obras mais características de alguns
dos mais destacados iluministas italianos como, Vero despotismo de Gorani e Economia
Política de Verri.139 Durante esse período, o médico português também teria estabelecido
contato com o professor de filosofia e medicina Alberto de Soria em sua passagem pela
Universidade de Pisa. Deísta e newtoniano, Soria possuía extensa rede de contatos com
Inglaterra e Holanda, e de acordo com Dulac, teria contribuído para afastar Sanches do
judaísmo.
Além de Itália e Inglaterra, os caminhos de nosso personagem também teriam
passado pela França, país para onde retornaria em 1747, após longa estadia na Rússia. Viqc
D’Azyr narra a passagem de Sanches pelas cidades francesas de Toulon e Marselha,
135 Ibid. p.387 136
DULAC, Georges. Science et politique: les réseaux du Dr. António Ribeiro Sanches (1699-1783). Cahiers de monde russe., v.43., n.2-3., p.251-274., 2002. p.254. 137
Ibid. p.255. 138
Idem. 139
Ibid., p.256.
61
afetadas pela peste em 1728. O médico português teria visitado hospitais, locais de
quarentenas, testemunhado o estado de calamidade a que estavam submetidas as cidades,
com pilhas de corpos pelas ruas que “espalhavam vapores mórbidos.”140 No curso desses
acontecimentos, Sanches teria conhecido Dr. Bertrand, que gozava de grande prestígio
junto à população local pelo seu desempenho no combate à epidemia em Marselha. Tanto
Vicq D’Azyr quanto Charles Andry, afirmam que Bertrand teria sido o responsável por
apresentar os primeiros aforismos de Boerhaave ao médico português o que o motivou a se
estabelecer em Leyden como seu discípulo.141
O professor de Leyden se tornaria uma das principais referências médicas de
Sanches nos anos posteriores aos seus estudos na Holanda, ao qual atribuiria o papel de ter
organizado um modelo de ensino médico “fundado na verdadeira física.” 142 Durante esse
período, Ribeiro Sanches teria iniciado contato com D. Luís da Cunha (1662-1749),
embaixador de Portugal, membro da Academia de História de Lisboa, que mais tarde seria
reconhecido como uma das principais influências no pensamento do Marquês de Pombal143.
O contato entre os intelectuais teria iniciado durante a visita de Cunha à Universidade de
Leyden com objetivo de atender a um pedido do Cardeal Mota, um dos ministros da Corte
portuguesa, para que o diplomata compusesse “um catálogo dos melhores autores que
escreveram assim da filosofia como da medicina moderna, ajuntando-se os de que necessita
para praticar o que eles ensinam.” 144 O documento deveria atender a um primeiro esforço
de reforma do ensino médico na Universidade de Coimbra e, após consultas aos professores
da universidade holandesa, Cunha enviou para Lisboa dois catálogos de medicina e
filosofia, com nomes de vários intelectuais que deveriam ser adotados em Coimbra, dentre
eles, Sydenham, Newton e Boerhaave.145
Como intelectual ilustrado, Cunha era partidário da necessidade de reformar
Portugal através da “modernização” do Estado e do sistema educativo, reivindicando, assim
como seu compatriota Ribeiro Sanches o faria mais tarde, a redução da influência da igreja
140
VICQ D’AZYR. op. cit. p.224. No original em francês: “répandoient des vapeurs meurtrières.” 141 VICQ D’AZYR. op. cit., p.226; Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanches. op, cit. p.09 142
SANCHES, Antonio Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.27 143
DULAC. op. cit. p.257 144
FURTADO, op. cit. p.24. 145
Idem.
62
nos assuntos régios. De acordo com Georges Dulac, foi a pedido de Cunha que Sanches
começou a escrever, ainda na Holanda, seu plano para reforma dos estudos médicos em
Portugal, o Método para aprender a estudar medicina, do qual trataremos mais adiante, e
que seria retomado mais tarde, já em Paris, e publicado em 1761.146 A relação do diplomata
com o médico duraria até o fim da vida do primeiro, em 1749, e de acordo com Júnia
Furtado, Sanches teria sido o “médico de cabeceira” de Luís da Cunha nos seus últimos
anos de vida na capital francesa, “acompanhando-o em suas mazelas de velhice e
amparando-o em seu leito de morte.” 147
Obtendo destaque entre os alunos de Boerhaave, Ribeiro Sanches foi indicado por
ele para preencher um dos três cargos oferecidos pela czarina Anna Ivanovna em sua corte,
e usou de seus contatos com D. Luís da Cunha para conseguir as licenças necessárias para a
viagem.148 Em outubro de 1731 chegou à Russia e foi imediatamente nomeado ao cargo de
“médico do senado e da cidade” de Moscou. Entre suas obrigações, estava instruir os
barbeiros-cirurgiões, as parteiras e os farmacêuticos.149 Em 1734, foi transferido para a
cidade de São Petersburgo, onde se tornou médico do exército russo. Nesse cargo tomou
parte nas campanhas contra os tártaros e os turcos: “atravessou a Ucrânia, os desertos da
Crimeia e de Bachmut, até as planícies de Azof.”150 Ao longo do caminho fez várias
observações sobre os povos com que teve contato: calmuques, tártaros de Nogal, povos
Cuban, tártaros de Kergissi, entre outros.151 Cunha afirma que muitas dessas observações
seriam mais tarde repassadas ao naturalista George-Louis Leclerc, o conde de Buffon
(1707-1788), e citadas em sua obra Histoire Naturelle (1749).152
Apesar das pesadas críticas que Sanches dirigiria posteriormente, ao ensino jesuítico
e à interferência eclesiástica nos assuntos políticos e educacionais de Portugal, datam desse
período os contatos que desenvolveu com os membros da missão jesuítica portuguesa na
China, com destaque para Polycarpo de Sousa (?-1757), André Pereira (1689-1743) e
146
DULAC, op. cit. p.257. 147 FURTADO, op. cit. p.24. 148
ARAÚJO. op. cit.. p. 379. 149
CUNHA. op. cit. p.20. 150
Idem. 151
Idem. 152
Idem.
63
Domingos Pinheiro (1688-1748).153 Através das caravanas comerciais que ligavam São
Petersburgo a Pequim, obteve plantas orientais e conhecimentos de suas aplicações
medicinais, além de livros de medicina e astronomia.154 Além disso, suas cartas, conforme
nos mostrou Georges Dulac, abordavam temas não diretamente ligados à atividade
científica, como a situação do cristianismo na China, as dificuldades encontradas por
Polycarpo de Sousa nas relações com Roma, e até mesmo questões comerciais entre Rússia
e China, o que inclusive levou Sanches a procurar apoio financeiro com os padres para
ajudar nas operações do diretor da caravana Russa, Lorentz Lang. Esses contatos
favoreceram sua relação com a própria Academia de Ciências de São Petersburgo, que na
época mostrava interesse em estabelecer relações com jesuítas de Pequim, e fez com que
Sanches desenvolvesse uma relação de amizade com os dois intelectuais russos que
encabeçavam a iniciativa, o sinólogo Gottlieb Siegfried Bayer, professor de línguas e
história oriental e o astrônomo e geólogo Joseph Nicolas Delisle.155 A rede de contato
acabou mostrando-se bastante profícua, com Sanches fazendo uso de sua relação na
Inglaterra com Jacob de Castro Sarmento para oferecer a seus correspondentes de Pequim
dois instrumentos científicos de seu interesse.156
No início da década de 1740, ao ocupar cargo de médico da corte de Anna
Ivanovna, o prestígio acumulado pelo médico passa a ser cada vez mais revertido em favor
de seus aliados no fortalecimento de suas redes de contato. Sanches passa a proteger alguns
acadêmicos, como quando apoiou as demandas de aumento de salário de Gerhard Friedrich
Müller e Johann Georg Gmelin, e a própria Academia de Ciências de São Petersburgo, na
época sem direção e em situação financeira delicada.157 Porém, com a morte da imperatriz,
dá-se início ao período de instabilidade política que daria o trono à Elizabeth Petrowna. De
acordo com Charles Andry, o médico seria envolvido no clima político tenso devido à sua
fidelidade à imperatriz falecida. Porém, sua boa reputação clínica lhe garantiu prestígio e
possibilitou que continuasse a ser requisitado como médico dos nobres, chegando até a
153
DULAC. op. cit. p.259. 154
Ibid., p.260. 155
Idem. 156
Idem. 157
Ibid. p.259.
64
tratar da princesa Anhalt-Zerst, a futura imperatriz Catharina II, e o Duque d’Holftein o que
acabou lhe rendendo o cargo de Conselheiro de Estado em 1744.158
Sanches era reconhecido não somente como médico, mas sobretudo como um
pensador, sendo consultado sobre diversos assuntos, em especial questões educacionais, e
mesmo após retornar à França, continuaria a ser procurado pelos nobres Russos de
passagem pela cidade. Nesse sentido, anos mais tarde, escreveria o Plano para educação da
fidalguia (1766) a pedido do vice-chanceler Mihail Voroncov e do Conde Kirill
Razumovskij159, no qual exporia suas concepções favoráveis ao controle da estrutura
educacional pelo Estado e de sua subordinação às necessidades políticas economias do
império, do mesmo modo que havia sugerido para Portugal em Cartas para a educação da
mocidade (1759), conforme veremos mais adiante.
Paris seria sua residência por 36 anos, entre 1747 e sua morte em 1783. Desde sua
chegada à capital francesa, tornou-se correspondente da Academia de Ciências de São
Petersburgo, posição que usaria como intercâmbio entre essa instituição e a Academia
Ciências de Paris, negociando mapas, instrumentos e cargos para seus aliados e
estabelecendo contatos entre intelectuais. Nesse aspecto, de acordo com Georges Dulac,
teria desempenhado papel importante ao remeter questões de Buffon ao governador da
cidade russa de Astrakhan sobre a fauna do mar Cáspio e colocá-lo em contato com
Thimotheus von Klingstedt, membro da comissão de comércio e autor de obra sobre
Samoiedos,160 que interessou ao naturalista francês161. Também foi hábil em manter as
relações que cultivava desde seu período na Russia com alguns dos discípulos mais
conhecidos de Boerhaave, como Hieronymus David Gaubius (1705-1780), Gehrard Van
Switen (1700-1772), conselheiro de Maria Teresa de Áustria e responsável pela reforma da
Faculdade de Medicina de Viena, além de Albrecht von Haller (1708- 1777), renomado
fisiologista e professor da Universidade de Göttingen.162
Durante esse período, produziria a maior parte de suas obras de medicina e higiene
e, além dos contatos com a Academia de Ciências de São Petesburgo, desenvolveria intensa
158
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. Op. cit. p. 14-16. 159
DULAC. op. cit. p.263. 160
Etnia do norte da Sibéria. 161
DULAC. op. cit. p.265. 162
ARAÚJO. op. cit. p.08.
65
atividade intelectual na Sociedade Real de Medicina de Paris e nas Academias de Ciências
de Paris e Lisboa, com escritos que cobriram vários temas incluindo, pedagogia, medicina,
sociedade, política, entre outros.163 Nesse sentido, não podemos deixar de notar as redes
que estabeleceu no fértil meio filosófico francês, especialmente com Denis Diderot (1713-
1784), que ao lado de Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783), foi diretor da Encyclopédie
Raisonné des Sciences, des Arts & Métiers. Ao analisar as cartas de Sanches enviadas ao
filósofo iluminista francês arquivadas na Biblioteca Nacional de Madrid, Georges Dulac
afirma que foi Diderot que o incentivou a escrever seu artigo intitulado VÉROLE grosse,
publicado no décimo sétimo volume da enciclopédia. No entanto, junto com o rascunho,
enviado em 1761, havia uma nota intitulada MELANCHOLIA, que supostamente seria um
segundo artigo de Sanches para o dicionário, mas o verbete correspondente não contém sua
assinatura.164 Em Vérole grosse, Sanches descreve brevemente os sintomas e as causas mais
gerais das doenças venéreas ao longo de duas páginas, assunto ao qual dedicou algumas de
suas obras, em especial Observations sur les maladies vénériennes, publicada
postumamente por Charles Andry em 1785.
A relação de Ribeiro Sanches com Diderot também foi importante para inseri-lo em
redes de contatos mais amplas e possibilitar seu acesso a obras produzidas no meio
intelectual francês. Foi a partir dele que Sanches teve acesso a algumas obras do Barão
d’Holbach (1723-1789), classificadas como anti-Cristãs e proibidas165. Além de Diderot,
também são conhecidas suas correspondências com D’Alembert, Buffon , Camille
Falconet, Messier, Delisle, Pluquet.166
163 CUNHA. op. cit. p.21 164
DULAC. op. cit. p.269, nota. 62. Ana Cristina Araújo confirma o envio do esboço do artigo Vérole para Diderot em 1761 nas cartas arquivadas em Madrid, mas não faz referência ao artigo Melancholia. (ARAÚJO, Ana Cristina. Medicina e utopia em Ribeiro Sanches. Ars Interpretandi —Diálogo e tempo, Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 2000, p. 35-85.. p.24, nota. 77). Verifiquei o verbete mencionado na Encyclopédie e o autor, de fato, não está identificado. Dulac, no entanto, não menciona qualquer comparação do conteúdo da nota encontrada na correspondência com o conteúdo do verbete da enciclopédia, o que poderia confirmar a autoria de Sanches. 165
Seu acesso a obras desse tipo também era garantido pela sua amizade com o príncipe russo Dmitrij Alekseevic Golicyn, que chegara em Paris aos 22 anos de idade e se identificaria como discípulo de Sanches, possibilitaria a entrada de diversas obras proibidas no território francês, possivelmente por intermédio da missão russa. DULAC. op. cit. p.252; 269 166
ARAÚJO. op. cit. p.07.
66
A partir da ascensão do consulado pombalino na década de 1750, os contatos com
Lisboa aumentaram consideravelmente167. Com o advento das reformas, Sanches passa a
ser mais procurado para dar seus posicionamentos sobre os caminhos que o reino deveria
tomar. Dulac afirma que suas contribuições adquiriram um caráter quase público, uma vez
que muitas das obras produzidas nessa época foram impressas em Paris financiadas pelo
governo português.168 Do mesmo modo, os contatos com outros intelectuais portugueses
ilustrados que viviam no exterior seriam potencializados. É desse período que datam as
cartas enviadas a Luis António Verney (1713-1794), o intelectual português fixado em
Roma e autor do Verdadeiro método de estudar (1746) do qual fizemos menção
anteriormente. Georges Dulac destaca que o início e a duração desse contato são
desconhecidos mas, a julgar pelas cartas que trocaram, foi bastante amigável, visto que
Verney teria, inclusive, usado a correspondência com seu compatriota para se queixar das
perseguições constantes de que era vítima por parte dos jesuítas, que haviam publicado um
panfleto contra ele.169
A partir dessas redes, Sanches passa a expressar mais diretamente seus
posicionamentos sobre a organização político-cultural portuguesa. Como já mencionado,
datam dessa época a maior parte das obras de higiene e medicina do autor, quase toda
marcadas por uma postura crítica dos caminhos tomados por Portugal, especialmente no
que se refere à interferência da igreja nos assuntos do Estado e dos métodos de ensino
escolásticos. Nesse sentido, como afirma Ana Cristina Araújo, Sanches defende a
transferência da responsabilidade educativa para o Estado, a partir de um modelo
educacional laico: “É, portanto, sob o signo da reforma intelectual e moral da sociedade,
utopicamente entrevista como o eixo principal do bem-estar, progresso e felicidade pública,
que se reclama o intervencionismo estatal em matéria de instrução.”170 Conforme será visto
na próxima seção deste capítulo, nota-se a intenção de redefinir a jurisdição do poder
escolástico para seu lugar de origem, ou seja, o cultivo da moral e da virtude cristã. O
167
DULAC. op. cit. p.266. 168
Idem. 169
Ibid. p.256. 170
ARAÚJO,1984. op. cit. p.390.
67
Estado constituiria um espaço laico, e seria responsabilidade tanto do soberano quanto dos
súditos de conservá-lo através de atividades voltadas para sua utilidade e bem comum.
O desconforto com o ambiente cultural português e seu ressentimento com a
inquisição já haviam sido revelados na obra, já citada, Cristãos novos e cristãos velhos em
Portugal de 1748. Três anos após o início do governo pombalino, Sanches escreve em
1753 a Dissertação Sobre as Paixões da Alma, que só seria publicada em 1787 sob a
tradução de Charles Andry na Encyclopédie Méthodique. Fiel à sua postura crítica à
organização político-cultural portuguesa, procura ampliar a jurisdição médica ao afirmar o
tratamento das patologias da alma como parte de suas atribuições, implicando um
questionamento direto do discurso jurídico e, em especial, o teológico. Pouco sabemos
sobre o interlocutor ao qual o autor se dirige nessa obra, e só podemos especular sobre os
motivos de sua publicação tardia, mas ao que parece, ela foi solicitada por alguém em
Portugal no contexto das reformas na década de 1750. Nesse sentido, ela seria uma das
primeiras de uma série de obras destinadas à intelectualidade portuguesa encomendadas ao
médico ao longo do tempo em que residiu em Paris. Durante esse tempo, o autor faria
amplo uso de suas redes de contato para fazer-se ouvir em sua terra natal.
Ana Cristina Araújo revela que a obra de higiene Tratado da conservação da saúde
dos povos é dedicada ao primeiro Duque de Lafões, irmão de D. João Carlos de Bragança.
Esse último, junto com Teodoro de Almeida, acalentava o desejo de criar uma Academia de
Ciências de Lisboa, o que só viria a acontecer em 1779. A autora ventila a hipótese de que
Sanches tivesse a par dessas intenções através dos contatos com embaixada portuguesa em
Paris, o que o teria motivado a escrever a obra, acrescida ainda, de um apêndice com
considerações sobre os terremotos. Nessa última parte, inspirada pelo terremoto que arrasou
Lisboa em 1755, Sanches não descarta a possibilidade de alguns desses fenômenos serem
causados pela atuação divina, mas tenta explicá-los através de analogias com experiências
hipotéticas com líquidos e gases, articulando noções de calorimetria e da bomba boyleana,
a partir de uma perspectiva mecanicista. 171
171
Nas palavras do autor: “Não se pretende demonstrar evidentemente a causa dos terramotos; tudo o que dissermos deles será por analogia. Se enchermos até ao meio uma garrafa de água onde se desfez uma porção de salitre e a selarmos, e depois a pusermos em cima de fogo de cinzas começará a encher-se de borbulhas de Ar, e continuando a ficar em cima do fogo virá a estalar a garrafa em mil pedaços.” SANCHES,
68
De acordo com Victor de Sá, o Tratado também marcaria o início do mecenato da
corte Portuguesa ao seu súdito expatriado na França. Após seu término, Sanches teria
alegado em carta para seu amigo na corte, Luís da Cunha (sobrinho do ministro homônimo,
que ajudara Sanches durante seu período na Holanda), enfrentar dificuldades financeiras
advindas dos custos de impressão e publicação da obra, e solicita seu apoio para conseguir
um financiamento permanente do governo português em troca de produções regulares que
pudessem “ser úteis aos seus fiéis e vassalos”.172 Ao que parece, seus apelos foram ouvidos
e o médico passou a receber uma pensão anual de 360$000 réis pelos seus serviços.173
As Cartas para a educação da mocidade (1759) também são resultado da boa
relação de Sanches com o meio diplomático português. A obra é dedicada ao Monsenhor
Pedro da Costa de Almeida Salema, ministro que na época representava Portugal em
Paris174 e, segundo Fanny Andrée da Cunha, teria sido inspirada nos regulamentos do corpo
de cadetes russo, no qual o médico português serviu em 1736. A instituição era uma espécie
Colégio Militar para a nobreza russa, o que viria a calhar para as pretensões de Sanches em
1759, motivado pelo alvará de 28 de julho do mesmo ano, que abolia o domínio jesuítico da
estrutura educacional portuguesa, ao qual o médico faz menção com entusiasmo, como
veremos adiante. As Cartas acabariam desempenhando papel importante em Portugal ao
inspirarem a criação do Colégio dos Nobres em 1761.175
Como foi mencionado acima, o Método para aprender a estudar medicina já vinha
sendo gestado desde a estadia de Sanches na Holanda no início década de 1730,
incentivado pelo seu amigo e protetor, o diplomata D. Luís da Cunha, sendo publicado em
1763 a pedido da corte portuguesa176. Segundo Araújo, um esboço da obra havia sido
enviado para o médico da corte de Lisboa Joaquim Pedro de Abreu em 1759177, ano da
publicação de Cartas para a educação da mocidade, o que pode ser entendido como um
Antonio Ribeiro. Tratado da conservação da saúde dos povos. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003. p.85. 172
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se e outros textos. Victor de Sá (org.). Lisboa: Livros Horizonte, 1980.. p.26. 173 Idem. 174
SANCHES, Antonio Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova edição revista e prefaciada pelo Dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922., p.3 175
CUNHA., op. cit. p.20-21. 176
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. op. cit. p.20, nota 01. 177
ARAÚJO., op cit.. p.383
69
indício do quanto a atividade intelectual de Sanches vinha sendo ocupada pelas questões
relacionada às reformas em Portugal. Do mesmo modo, Vicq D’Azyr se refere a outra obra
demandada pela corte no mesmo período, na qual o médico “traçou o plano de uma
universidade real, onde todas as ciências modernas deveriam ser ensinadas” 178
provavelmente se referindo a Apontamentos para fundar-se uma Universidade Real na
cidade do Reino que se achasse mais conveniente, também de 1761. Seguindo esse mesmo
modelo, Sanches também publicaria em 1763 os Apontamentos para estabelecer-se um
Tribunal e Colégio de Medicina na qual tentava propor para Portugal um modelo
institucional de regulação das atividades médicas do reino, com o objetivo de coibir a
perpetuação das práticas médicas que considerava prejudiciais à saúde da população e a
atuação de médicos sem comprometimento com “louvor e utilidade pública” 179.
Faremos uma análise mais pormenorizada dessas obras nas seções seguintes desse
capítulo, com exceção da Dissertação sobre as paixões da alma, que será objeto do terceiro
capítulo. Nosso objetivo aqui é mostrar como Sanches teceu e utilizou suas redes de contato
não apenas para ter acesso a informações, favores, livros, relatos, mas também para se fazer
ouvido onde bem desejasse. Se, durante os anos em Paris, sua produção intelectual atingiu
o auge, segundo Charles Andry, sua prática médica restringiu-se a amigos, camponeses,
russos e pobres. Com a redução dos atendimentos, seu sustento ficou por conta de sua
fortuna e do dinheiro que recebia da corte portuguesa e russa180. Suas atividades, como
correspondente da Academia de São Petersburgo, foram suspensas dois anos após sua
chegada a Paris, em 1749, só sendo retomadas durante o governo de Catharina II, dezesseis
anos depois. De acordo com Georges Dulac, o conde Kirill Razumovskij mais tarde lhe
afirmaria por meio de cartas que a Imperatriz Elizabeth teria tomado tal decisão por
influência dos inimigos de Sanches na corte russa, que o acusavam de manter práticas
judias apesar de sua conversão ao catolicismo.181 Charles Andry faz referência ao episódio
e afirma que, em 1763, seu amigo e protetor na Rússia, o General Betzkoi, teria avisado a
178 No original em francês: « Il a trace le plan d’une université royale oú toutes les sciences modernes devoient être enseignées. » VICQ D’AZYR. op. cit. p.253. 179
SANCHES, Antonio Ribeiro. Apontamentos para estabelecer-se um tribunal e colégio de medicina. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003. p.03. 180
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. op. cit. p.16 181
DULAC, Georges. op. cit. p.264.
70
Imperatriz Catharina II das dificuldades financeiras do médico português. Em
agradecimento por tê-la tratado durante sua juventude, ela não apenas o restituiria ao cargo
de correspondente da Academia de Ciências, como lhe daria uma pensão vitalícia paga pela
corte. Além da Imperatriz, o príncipe Alekseevic Golicyn também teria provido Sanches,
que considerava seu mestre, de uma pensão “sem interrupção” até final de sua vida.182
Para além das dívidas de gratidão, essas pensões eram motivadas por interesses
políticos muito bem fundamentados, como atesta a já mencionada quantia que o médico
recebia do governo português desde a década de 1750. Victor de Sá, inclusive, revela que a
ajuda foi suspensa em 1761 e só restabelecida por influência do embaixador Conde de
Souza em 1769. 183 Desse modo, apesar das boas relações pessoais que possibilitaram o
sustento de Sanches durante esses anos, não podemos perder de vista que esse período
coincide com uma fase de intensa produção intelectual, em boa parte voltada para as
solicitações feitas tanto pela corte russa quanto pela portuguesa sobre questões pertinentes
às reformas internas que pretendiam promover.
Charles Andry conta que o médico português, nos últimos anos de sua vida, foi
nomeado membro da Academia Real de Lisboa, criada em 1779, e membro estrangeiro da
Sociedade Real de Medicina de Paris, que publicou em suas memórias a última obra de
Ribeiro Sanches, Mémoire sur les bains de vapeur de Russie de 1779. Esse biógrafo
acrescenta que o médico também manifestou o desejo de publicar uma memória sobre as
virtudes da aplicação da água fria para tratamento de diversas doenças.184 Tal obra seria
dedicada à Academia de Lisboa, mas que não pôde ser realizada em virtude de seu
falecimento, em 14 de outubro de 1783, aos 84 anos de idade185.
Vicq D’Azyr e Charles Andry citam que, nos últimos anos de sua vida, Sanches
havia atendido uma mãe pobre que trouxe sua filha doente para ser tratada por ele. Após
tomar afeição pela criança, teria a assumido sob seus cuidados, deixando a ela parte de sua
182
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès., op. cit. p.16, nota 2. 183 SANCHES, Antonio Ribeiro. Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se e outros textos. Victor de Sá (org.). Lisboa: Livros Horizonte, 1980.. p.26. 184
Tradução livre do seguinte trecho em francês: « les vertus de l’eau froide apliquée extérieusement, & donée intérieusement dans différentes maladies ». Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. op. cit. p.23. 185
Idem.
71
fortuna em seu testamento.186 Uma parte de seus livros foi deixada para seu irmão, Marcelo
Sanches, também médico e residente em Nápoles, na Itália, e outra foi posta à venda na
residência de Sanches em Paris alguns meses após sua morte.187 Seus manuscritos foram
deixados para Charles Andry, seu amigo pessoal e autor da biografia que acompanha o
catálogo de sua biblioteca. Andry também foi responsável pela publicação póstuma de
algumas de suas obras, incluindo Observations sur les maladies vénériennes (1785), e a
tradução e publicação da Dissertação sobre as paixões na alma na Encyclopédie
Méthodique em 1787, com o título Affections de l’âme.
Sobre as redes que Ribeiro Sanches constituiu ao longo de sua vida, Georges Dulac
destaca que desempenharam a função básica de facilitar sua aquisição de saberes:
« Il est très significatif que, dans la lettre à Joachim Pedro de
Abreu déjà citée, Il mette sur le même plan, pour prouver sa
compétence en matière d’enseignement médical, la fréquentation de
plusieurs universités européennes, sa connaissance des hôpitaux de
Londres et de Russie, et enfin une demi-douzaine de correspondances
de longue durée avec d’éminents médecins et naturalistes »”188
Segundo Dulac, sua movimentação através desses contatos não só conferiam a
legitimidade que necessitava para ser ouvido, como era parte intrínseca do seu modo de
trabalho. Em todas as áreas do conhecimento em que tinha interesse, ele desenvolveu redes
a partir das quais coletava fatos, idéias e informações bibliográficas com seus
correspondentes.189 Foi dessa forma que conseguiu informações sobre as origens das
doenças venéreas, reuniu conhecimentos sobre o comércio português e sobre os
estabelecimentos de ensino russos. Nesse sentido, o médico também desenvolveu relações
de troca de favores como forma de ampliar e manter suas fontes de informação, como era o
186
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. op. cit. p.27-28 ; VICQ D’AZYR. op. cit. p.256-257. 187
Catalogue des livres de feu de M. Ant. Nuñes Ribeiro Sanchès. op. cit. p.25. 188
DULAC, Georges. op. cit. p.270. 189
Ibid. p.270.
72
caso das traduções de espanhol e importações de obras russas para seus vizinhos
beneditinos da congregação Saint-Maur, cuja biblioteca era freqüentada por ele.190
Outra estratégia usada pelo nosso personagem era manter-se em contato com outros
intelectuais também pertencentes a redes extensas, o que acabava por favorecer seus
amigos e aliados. Como exemplo, Dulac cita o contato que estabeleceu entre o príncipe
Golicyn e Justus Gottfried Günz com João Jacinto de Magalhães (1722-1790), médico
português instalado na Inglaterra que lhes enviou obras científicas britânicas, ou até mesmo
sua intermediação, junto a seu amigo médico e economista Lebègue de Presle, para remessa
de obras inglesas para Lavoisier (1742-1794), entre as quais The Common sense de Thomas
Paine, The Wealth of nations, d’Adam Smith, e On Civil liberty, de Richard Price.191
O autor também enfatiza a heterogeneidade dos contatos de Sanches, uma vez que
ele se mostrava capaz de conciliar relações com personalidades conservadoras e hostis ao
movimento filosófico francês da segunda metade do século XVIII, como o matemático
Leonhard Euler (1707-1783), e alguns dos mais radicais adeptos do movimento como
Diderot e o Barão d’Holbach. Dulac atribui essa capacidade ao caráter pragmático que
Sanches atribuía a esses contatos, conjugado com um espírito de abertura e tolerância que
lhe possibilitou construir uma visão ampla da vida intelectual européia da época, o que
acabou se refletindo em suas obras, repletas de comparações e analogias entre práticas
científicas, culturais e políticas de diversos lugares.192 No entanto, vale lembrar que essa
postura não era exclusiva de Sanches e está na raiz do ecletismo, caro à intelectualidade
ilustrada européia no século XVIII e consagrado pelo verbete homônimo de Diderot em sua
enciclopédia, já citado no primeiro capítulo.
Nas próximas seções deste capítulo, nos dedicaremos aos posicionamentos de
Sanches relativos ao ambiente político-cultural português da segunda metade do século.
Através da análise dos argumentos mobilizados pelo autor em algumas de suas obras
produzidas no contexto das reformas portuguesas, pretendemos identificar o modelo de
sociedade que o autor reivindicava para o reino e quais concepções filosóficas e científicas
sustentavam seu projeto.
190
Ibid. p.270-271. 191
Ibid., p.271. 192
Ibid. p.272.
73
2.2 Educação, Estado e Igreja.
Como vimos no primeiro capítulo, o século XVIII português foi marcado por uma
profusão de ideias reformistas vindas de intelectuais portugueses afinados com os
pressupostos iluministas e inconformados com o suposto distanciamento português em
relação às novas potências européias. Os intelectuais portugueses vinculados aos
movimentos reformistas defendiam um Portugal reformado e livre da “dominação” política
e cultural inaciana, acusada como a causa da decadência lusa. O caminho da transformação
seria apontado pela laicização do processo educacional e político, através da submissão da
instrução às necessidades do Estado e na recusa dos métodos escolásticos. Para isso, muitos
intelectuais sustentavam uma postura regalista no campo político-institucional, visando à
afirmação do poder monárquico diante da Igreja. A trajetória e a atuação intelectual de
Antonio Ribeiro Sanches estão profundamente enraizadas nessas aspirações, conforme
atesta sua extensa produção literária assentada, de modo geral, nos temas da higiene,
pedagogia e medicina.
Nas duas próximas seções do capítulo, veremos como essa diversidade se traduzia
numa concepção relativamente articulada em torno de um projeto para um Portugal
idealizado pelo autor, cuja organicidade articulava tanto sua proposta de reforma
educacional, analisada na presente seção, quanto suas concepções sobre a função
desempenhada pelo conhecimento médico nesse processo, analisadas na última parte deste
capítulo. O projeto reformista reivindicado por Sanches estava em consonância com o
espírito utilitarista, que se configurou como a ordem do dia para a ilustração portuguesa.
Esse caráter fica explícito no ataque desferido à educação escolástica, tornada alvo, não
apenas por ser apresentada como obstáculo à renovação de ideias, mas sobretudo, por ser
vista como incapaz de formar indivíduos habilitados para atuar na conservação da vida
social. A seu ver, a presença da Igreja nos assuntos do Estado teria gerado conseqüências
tão negativas quanto profundas, que não poderiam ser revertidas facilmente.
Tal situação ainda seria sentida por Sanches quase trinta anos após a ascensão do
ministério pombalino, quando, em 1777, escreveu a obra inacabada Dificuldades que tem
um reino velho para emendar-se, na qual compara Portugal às “cidades que duraram por
74
500 e 600 anos”, formadas “de acordo com as leis da necessidade.” 193 Na hipótese de uma
reforma das mesmas, questiona-se:
“Que sucederá? Será necessário deitar abaixo a metade das
ruas, das Igrejas, das casas que ficam fora do contorno; que sucederá
depois? Quem foi senhor da sua casa, não tendo outra no lugar
assinalado conforme o risco, morrerá no inverno de frio e de fome, por
lhe faltarem os cômodos da vida.
Incômodos semelhantes sucederiam a todo aquele Legislador
que de um Reino velho, instituído com as leis do fanatismo, com as
leis sem serem fundadas na conservação e no amor dos súditos, leis
sem objecto algum para aumentar a população, sem objeto para a
defesa geral do Estado, quizesse de um jacto reformar este cadaveroso
reino, e formar dele um novo, à imitação daquele da Rússia, de
Prússia, Sardenha, etc, etc. (e não há aqui muitos)”194
A obra, embora escrita tardiamente, revela algumas das pretensões acalentadas pelo
autor durante décadas, mas que ainda se faziam presentes. Durante esse tempo, seu projeto
educacional havia sido apontado por ele como o caminho privilegiado para a superação
desse quadro, nesse sentido, Cartas sobre a Educação da Mocidade, de 1759, talvez seja a
que melhor sistematiza suas ideias.
Já sabemos que a obra foi dedicada ao Monsenhor Pedro da Costa de Almeida
Salema, ministro que na época representava Portugal em Paris, e motivada pelo alvará de
julho de 1759, que expurgou o controle jesuítico da estrutura educacional portuguesa. Logo
nos primeiros parágrafos do texto, Ribeiro Sanches já revela seu entusiasmo com o
documento. Segundo o próprio afirmou:
“Esta ley, Illustrissimo Senhor, incitou o meu animo, ainda
que pelos achaques abatido, a revolver no pensamento o que tinha
193
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dificuldades que tem um reino velho para emendar-se e outros textos. Victor de Sá (org.). Lisboa: Livros Horizonte, 1980.p.52 194
Idem.
75
ajuntado da minha lectura sobre a Educaçaõ civil e politica da
Mocidade, destinada a servir á sua patria tanto no tempo da paz como
no da guerra(...)
Mostrarei pelo discurso deste papel, que toda a Educaçaõ, que
teve a Mocidade Portugueza, desde que no Reyno se fundáraõ Escolas
e Universidades, foi meramente Ecclesiastica, ou conforme os
dictames dos Ecclesiasticos; e que todo o seu fim foi, ou para
conservar o Estado Ecclesiastico, ou para augmentalo.”195
Na passagem seguinte, o autor declara seu regalismo ao comparar a relação do Rei
com seu reino ao da alma com o corpo, afirmando a proeminência da educação nesse
conjunto:
“Só este grande Rey conheceo que como a alma governa os
movimentos de todo o corpo para conservalo; assim elle, como alma e
intelligencia superior do seu Estado, era obrigado (a) promover a sua
conservaçaõ, e o seu augmento por aquelles meyos que concebeo mais
adequados. Aquelle benegnissimo Alvará nos dá a conhecer que só a
Educaçaõ da Mocidade, como deve ser, he o mais effectivo e o mais
necessário.” 196
De acordo com o médico de Penamacor, as escolas cristãs teriam sido feitas para
ensinar a doutrina cristã, “a saber, os Mysterios da Fé, expressados nas Sagradas
Escrituras e nos Sanctos Padres” 197 e teriam como fim formar um perfeito cristão e não
indivíduos versados nos conhecimentos necessários para “viver no Estado Civil” e servir
nos cargos fundamentais ao seu funcionamento e à sua defesa. O controle da estrutura
educacional pelos pontífices e Bispos teria sido resultado de um longo processo histórico
que remete ao estabelecimento dos reinos bárbaros na Europa após a queda do Império
Romano. Os monarcas, de acordo, com Sanches, ignorantes na política e do “Direito das
gentes”, sem domínio da leitura e da escrita, teriam relegado a cultura letrada aos
195
SANCHES, Antonio Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Nova edição revista e prefaciada pelo Dr. Maximiano Lemos. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922., p.10. 196
Idem. 197
Ibid., p.17
76
eclesiásticos, que paulatinamente ampliaram sua jurisdição religiosa e tomaram para si o
controle do processo educacional. Com o aumento de seu prestígio, a educação eclesiástica
teria se tornado o modelo de instrução da própria nobreza, perpetuando o sistema e fazendo
dos bispos e pontífices “árbitros dos gabinetes dos Reis e Imperadores.” Sanches, denuncia
o esgotamento deste modelo e suas conseqüências nefastas para Portugal. O autor não
apresenta seu projeto como uma inovação, mas sobretudo, como forma de restabelecer a
fronteira jurisdicional que os eclesiásticos haviam transposto séculos antes. A partir de uma
perspectiva contratualista, que remete aos debates sobre as teorias de Estado ainda em voga
na época, o autor expõe uma teoria social que justifica sua postura regalista e denuncia a
usurpação do poder eclesiástico no Estado português:
“A forma, a uniaõ, o vinculo do Estado civil e politico, e o seu
principal fundamento he aquelle consentimento dos Povos a obedecer
e servir com as suas pessoas e bens ao Soberano; ou que este
consentimento seja reciproco, ou que seja tacito ou declarado, sempre
forma hum Estado, ou Monarchico, ou Republicano.”198
A divindade, venerada pelo povo e pelo soberano, seria evocada como “testemunha
e cauçaõ” deste pacto, tornando-o sagrado pois “nenhum estado civil pode formarse, nem
existir em seu vigor, sem huma Religiaõ, e sem observar-se o sagrado juramento” 199 A
partir desse momento, com o poder concedido pelos súditos, ficaria a cargo do soberano
garantir a manutenção do contrato através de leis que impedissem que se cometesse
qualquer “insulto que alterasse ou corrompesse a uniaõ e harmonia que deve Reynar no
Estado Civil” 200 Assim, Sanches estabelece duas leis básicas e “irrefragáveis de qualquer
Estado” que deveriam ser observadas pelos monarcas: a conservação do próprio Estado; e a
obrigação de cada súdito de “obrar com os outros, como elle quizera que obrassem como
elle.”201Em poder dos súditos que juraram fidelidade ao Soberano, restariam apenas duas
coisas: a propriedade, sendo que parte de sua renda deveria ser destinada para o sustento do
198
Ibid., p.20 199
Idem. 200
Ibid., p.23. 201
Ibid., p.22.
77
Estado; e o livre-arbítrio, definido como “aquella liberdade interior de querer, naõ querer,
amar, aborrecer, julgar, ou naõ julgar, ver, ou naõ ver: que saõ as acçoens interiores que
passaõ dentro de nós, e que se naõ mostraõ por acçoens exteriores, que todo o mundo possa
observar visivelmente.”202
Deste modo, ficaria estabelecida a igualdade entre os súditos e a sua subordinação
aos magistrados. Fazendo referência à República de Platão, Sanches afirma que “a maior
ruina de hum Estado, he que entre elles haja diversidade, huns com obrigaçaõ de obedecer,
e outros absolutos; huns sujeitos ás justiças, e outros sem nenhum Imperio.”203 Toda
distinção deve vir somente do Jus da Magestade que, impossibilitada de exercer todas as
funções necessárias para o funcionamento do Estado, escolhe aqueles mais aptos a
desempenhá-las e lhes delega parte de seu poder. Possivelmente marcado pela perseguição
de que foi vítima em sua terra natal por ser um cristão novo, Sanches afirma que mesmo a
distinção de nobreza ou fidalguia deveria originar-se no Poder Soberano e não a partir de
critérios de ascendência, nem de geração, porque todos os súditos seriam iguais perante o
juramento de fidelidade.
No modelo de contrato social de Ribeiro Sanches proposto nas Cartas, todas as
ações “viciosas” e “destruidoras da conservação própria” eram consideradas nocivas à vida
civil. Todas as leis, todo o trabalho e industria deveria ter a “utilidade por último fim”, caso
contrário, levaria à “destruiçaõ do Subdito, e do mesmo Estado”:
“assim que a utilidade publica e particular vem a ser o vinculo
e alma da vida civil; esta utilidade deve ser sempre acompanhada com
a decencia, que he aquella virtude que modera os excessos, ainda
aquelles da mesma virtude, por que de outro modo seria vicio”204.
Quando se arrogaram da educação, os sacerdotes teriam falhado no processo de
transmissão dos valores necessários à conservação do pacto social aos súditos, pois
somente teriam jurisdição sobre as consciências e ações mentais, de modo que as ações
202
Ibid., p.23. 203
Idem. 204
Ibid., p.25.
78
exteriores seriam jurisdição civil.205 Cristo teria dado à sua igreja a incumbência de
transmitir os valores de seu evangelho e administrar os sacramentos, em especial o batismo,
reduzindo sua atuação aos “bens espirituais, á graça, á santificação das almas e á vida
eterna.” Sanches estende essa divisão jurisdicional ao campo jurídico e defende uma
diferenciação entre crimes civis e crimes espirituais, aos quais deveriam corresponder
punições igualmente civis e espirituais. Portanto, os pecados, entendidos como ações
mentais, deveriam ser passíveis de “penitencia ecclesiastica ou a privação da Congregação
Christaã e divinos Mysterios” Do mesmo modo, súditos que roubassem ou matassem,
transgressões entendidas como ações exteriores, deveriam sofrer castigos “nos bens, na
honra e na vida”. 206 Logo, os castigos corporais aplicados aos pecadores significariam
uma transgressão da divisão jurídica imposta pelo autor, já que consistiriam na aplicação de
castigos civis para crimes espirituais207. Do mesmo modo:
“no Estado Civil ninguem fez cessaõ de bens ao mesmo Estado
antes de dar juramento de fidelidade; logo é incoherente que se
julguem as cauzas civis pelas leis dos Conventos, e das Igrejas da
primitiva Christandade; logo aquellas Leis que privaõ os herejes dos
seos bens, pertencendo ao Estado como subditos, naõ saõ Leis Civis,
saõ Leis Ecclesiasticas prevertidas.”208
Por esse mesmo motivo, a inquisição também seria considerada como uma
usurpação da jurisdição dos magistrados pela Igreja, e portanto, não menos ilegítima.
Quanto ao monarca, por ser a cabeça do Estado, ele dependeria diretamente e somente do
“Altissimo Deos,” pois o divino foi a testemunha do pacto estabelecido entre ele e o povo.
Desse modo, nem o Papa e nem o Cristianismo poderiam intervir na formação do Estado,
pois o rei depende da Igreja na medida em que ele, assim como qualquer outro súdito, é
cristão. Sanches afirma que o monarca deve obedecer ao confessor por crer no Divino da
mesma forma que obedece ao médico por ser humano:
205
Ibid. ,p.27 206
Ibid., p.28 207
Idem. 208
Ibid., p.44
79
“Bem sei que naõ admittem esta necessaria distinçaõ; mas que
me digam, quando um Fisico Mor ordena ao seo Rey que lhe sarjem o
lado doloroso de hum pleuris, e que o Rey obedece e se deyxa cortar, e
banhar em sangue, perguntase? A quem ordenou o Physico Mor, fazer
aquella operaçaõ? foi a el Rey? ao Christaõ? ou ao Homem? El Rey
obedeceo ao seu Fisico Mor, naõ como Rey, mas como Homem, como
huma parte da natureza humana; e que o Medico sendo Ministro da
natureza tem autoridade de governalla do modo mais a proposito para
conservar a vida. Todos approváraõ esta distinçaõ: e porque naõ
querem admittir aquella que ha entre o Rey, e o Christaõ? Acha o Rey
a sua consciencia gravada; chega aos pes do Confessor, e confessasse:
perguntase, quem se está ali confessando, he el Rey, ou o Christaõ?”
209
Essa passagem, ao mesmo tempo em que ilustra a divisão das autoridades no
modelo de Estado sanchesiano, também fornece uma amostra da sua concepção sobre a
jurisdição e autoridade médicas no interior dessa estrutura, como veremos na próxima
seção deste capítulo.
A partir dessas concepções e na esteira da crítica iluminista; a educação, por
constituir uma das necessidades fundamentais para a manutenção do contrato social,
deveria ser responsabilidade do soberano como parte de seu dever de garantir a felicidade e
bem estar dos súditos, só ele teria legitimidade para estabelecer as diretrizes sobre as quais
se desenvolveria o processo educacional e submetê-las às necessidades do Estado.
Esse assunto seria retomado em Apontamentos para fundar-se uma Universidade
Real na cidade do Reino que se achasse mais conveniente ao afirmar que a “jurisdição
Real, única no Reino, é incompatível com as pretensões da Corte de Roma, e com as
decisões do Concílio de Trento” 210 Nessa obra, escrita em 1761, nosso médico procura
estruturar o modelo de ensino universitário que considerava adequado para ser
209
Ibid., p.45. 210
SANCHES, Antonio Ribeiro. Apontamentos para fundar-se uma Universidade Real. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.01.
80
implementado nos domínios portugueses. A instituição proposta estaria fora do alcance do
poder eclesiástico, cujo ensino de “Teologia e dos Cânones” deveria ser transplantado para
cidades mais afastadas como Évora e Braga, de modo que ensinassem:
“à custa meramente dos Bispos e dos Cabidos, debaixo da direcção
dos Prelados; mas com a inspecção de dois Magistrados Fiscais
seculares, para observarem que não ensinassem doutrina alguma nem
imprimissem livro ou conclusão onde se contradissesse a Jurisdição
Real, ou lei fundamental do Reino, costume da Universidade de Paris e
de Turim.211
Seguindo o modelo adotado na Universidade de Nápoles “por cinco séculos”,
Sanches sugere que a estruturação da Universidade Real em três colégios: Filosofia,
matemáticas e humanidades; Medicina; e Jurisprudência. Todos eles sem qualquer
intervenção da “Corte de Roma.” A diretriz educacional da instituição deveria ser, acima de
tudo, a formação de espíritos comprometidos com a “pátria nos tempos da paz e da guerra”,
pois “mui limitado proveito retiraria o Estado, se o último fim de uma Universidade fosse
formar um Matemático, um Médico, e um Jurisconsulto, destituídos das virtudes morais, e
daquele amor do bem comum.” 212 O ensino universitário deveria ser representativo do
pensamento do Estado, de modo que, um estrangeiro interessado em conhecer as virtudes
morais, civis e cristãs de um dado Reino deveria observar sua principal universidade, pois é
nela que se formam seus Eclesiásticos, magistrados, letrados, médicos, e todos aqueles
empregados em atividades civis.213
No colégio de Filosofia, Matemáticas e Humanidades seria ensinado história antiga
e moderna, história da filosofia, as matemáticas elementares, geografia, antiguidade grega e
romana e a “inteligência dos autores clássicos.” 214 Esse colégio forneceria uma formação
básica para todos os estudantes, mesmo os interessados em medicina e jurisprudência.
211
Idem. 212
Ibid., p.02. 213
Ibid. p.04 214
Ibid., p.09
81
Todos deveriam frequentá-lo “por dois ou três anos” 215e não poderiam iniciar seus estudos
antes dos 14 anos e nem após os vinte, pois nenhum súdito poderia servir nos cargos da sua
pátria com o vigor necessário por vinte e cinco anos após ter iniciado sua carreira depois
dos vinte e cinco anos de idade, pois:
“passados cinquenta anos de idade começam os achaques, os
desgostos e os pesares, ou pela morte dos filhos, ou para estabelecê-
los, ou por não serem capazes de serem estabelecidos; fica já o corpo e
o ânimo abatido, e quase impossibilitado servir a sua pátria com aquele
vigor varonil que requer a sua conservação, e o seu aumento.”216
Ao tratar do Colégio de Jurisprudência, Sanches é cauteloso por lidar com assunto
fora de sua especialidade, mas insiste no banimento do ensino do Direito Canônico da nova
instituição. Aparentemente, pois não deixa claro, essa ciência deveria ser substituída pelos
ensinamentos adquiridos nos primeiros três anos de formação no Colégio de Filosofia,
Matemáticas e Humanidades. Para Sanches, a base necessária para os estudos jurídicos
estaria na Filosofia Moral, na História, na Geografia e nas antiguidades. Ao mesmo tempo
em que se recusa entrar no mérito das disciplinas específicas ao curso de Jurisprudência, o
autor insiste que suas diretrizes deveriam ser estabelecidas por essas disciplinas e que
nenhum jurisconsulto formado fora delas poderia advogar pelas leis do Reino, por
desconhecimento das bases sobre as quais aquelas foram erguidas.217
Sobre o Colégio de Medicina, Sanches limitou-se a escrever algumas poucas linhas,
pois, como fez referência, esse assunto já havia sido tratado nos Método para aprender a
estudar medicina (1761). Seguiremos caminho semelhante e deixaremos o Colégio de
Medicina como assunto para a próxima seção deste capítulo, voltada para as concepções de
nosso autor sobre o papel que a medicina deveria exercer no Portugal reformado.
215 Ibid., p.10. 216
Idem. Essa passagem, além de reafirmar o caráter utilitário que deveria ter a educação para Sanches, faz menção à importância que o autor dava à adequação necessária do físico e do moral dos indivíduos para exercerem suas funções civis. Esse aspecto será melhor explorado na discussão de algumas obras médicas de nosso autor mais adiante. 217
Ibid., p.14.
82
2.3 Uma medicina do físico e do moral.
Para compreendermos a proeminência reivindicada pelo nosso médico ilustrado à
sua ciência, é necessário fazer uma pequena incursão no modelo de medicina defendido por
ele. Em consonância com o que temos visto até aqui sobre sua reivindicação pela laicização
do ensino e da política, seu projeto médico é marcado por um ataque direto ao ensino
escolástico e ao estudo da medicina baseado somente nas autoridades antigas.
Em Carta a Joaquim Pedro de Abreu (1760), médico da corte em Lisboa, acusava a
medicina praticada no reino de ser tosca e imprecisa ao compará-la com pedreiros que
erguiam prédios “sem riscos nem medidas”, incapazes de desempenhar seu ofício de forma
eficiente, e menos ainda de ensiná-lo, por desconhecerem os princípios da física, da
mecânica e da geometria prática.218 Tal percepção, o levaria a escrever em 1763
Apontamentos para a fundação de um tribunal e um colégio de medicina com o objetivo de
regular as atividades curativas em Portugal, evitando a disseminação de práticas ilegais e
nocivas à saúde da população219. O documento previa a regulamentação das atividades dos
médicos, cirurgiões e boticários no reino, e sugeria a criação de mecanismos institucionais
que aproximassem o Tribunal do cotidiano médico, obrigando-os a relatar as enfermidades
que trataram nas localidades em que atuavam, bem como suas condições de salubridade,
caso contrário estariam sujeitos a repreensões diversas.
Havia uma clara intenção de Ribeiro Sanches em fortalecer a identidade sócio-
profissional da corporação médica, não apenas diante das práticas curativas populares
longamente enraizadas nas tradições culturais lusas220 que se disseminavam por Portugal,
mas também como forma de dar suporte ao projeto que o autor tinha para a medicina na
sociedade reformada. De acordo com Ana Cristina Araújo, se por um lado, sua obra
apontava para o que chamou de autêntica “política do homem a serviço da vida” 221, por
218
SANCHES, Antonio Ribeiro. Carta a Joaquim Pedro de Abreu. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.05. 219 SANCHES, Antonio Ribeiro. Apontamentos para estabelecer-se um tribunal e colégio de medicina. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003. 220
Sobre essa questão ver: RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1997. . 221
ARAÚJO., op. cit. p.04.
83
outro, seu propósito de fazer da Medicina um dos pilares da racionalização da vida política
e social afinava-se com os avanços e as expectativas geradas pela filosofia natural
reformada no século XVIII, e “perpetuava a inspiração utópica da primeira fase do
experimentalismo moderno”.222 A conservação do corpo, desligada dos imperativos da
moral religiosa, é pensada em favor de um modelo de sociedade voltado para a criação de
homens sadios e equilibrados emocionalmente.223
Nesse sentido, a sugestão da criação de um Colégio de Medicina na Universidade
Real, conforme vimos acima, seria uma medida importante para garantir a formação de
quadros comprometidos com essa perspectiva. Em Método para aprender a estudar
medicina (1761), Sanches enfatiza que os estudantes de medicina, desde seu ingresso no
Colégio de Filosofia, Matemáticas e Humanidades, deveriam ser iniciados no estudo das
“matemáticas elementares”, consideradas a porta de entrada do “santuário da Filosofia”,
fundamental para a formação não apenas dos médicos, mas também de jurisconsultos,
políticos e militares, pois levaria ao desenvolvimento do pensamento lógico: “adquire-se
por este estudo um hábito de reflectir e decombinar, e uma certa paciência para inquirir, e
facilidade de perceber.”224 Em conjunto com os estudos matemáticos, os estudantes de
medicina deveriam ser iniciados na Cronologia, Geografia, História filosófica e na Filosofia
Racional. Essa última, constituída pela Psicologia, Ontologia e Metafísica, consistiria no
estudo das funções da alma racional. Sanches recomenda o estudo dessas ciências através
do livro Initia Doctrinae solidioris (1736) do teólogo e filologista racionalista alemão
Johann August Ernesti (1707-1781):
“Ali se notará como o Autor evitou as irregularidades,
contrárias ao Metodo de estudar, que seguiam os que ensinam nas
escolas vulgares. Nestas começavam os estudantes a aprender a
Dialéctica e a Lógica, antes de saber o que eram as operações da alma
222
Idem. 223
Idem. Araújo identifica as raízes deste projeto sanchesiano com o sistema sanitário pensado por Francis Bacon em New Atlantis (1627). 224
SANCHES, Antonio Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina op cit., p.06
84
racional, nem de que modo pelos actos do entendimento se separam as
propriedades dos corpos da mesma substância deles.”225
Não menos importante aos médicos, o domínio da Filosofia Moral deveria estender-
se também aos estudantes de Jurisprudência. Definida como o “conhecimento que temos da
conservação de cada indivíduo, de que se compõe a sociedade civil.” 226 Esta matéria
estaria baseada na solidariedade necessária aos indivíduos participantes de um mesmo
corpo social, como condição para a preservação da vida individual e coletiva. Ao que
parece, Sanches atribui a essa atitude uma função aglutinadora do tecido social, que,
portanto, precisaria estar na base da formação daqueles que desempenhariam ofícios
voltados para o planejamento e controle desse mesmo corpo, o que nos remete à sua
reivindicação de um modelo de formação profissional voltado para a utilidade de
conservação da estrutura social e do corpo civil, da qual tratamos acima.
Os conteúdos relativos à prática médica propriamente dita, deveriam ser sorvidos
dos aforismos de Hermann Boerhaave, o famoso professor de Leyden do qual Sanches foi
aluno no final da década de 1720. Sua admiração por seu mestre ficou registrada em várias
de suas obras, fazendo de Boerhaave uma de suas referências fundamentais. De acordo com
seu pupilo de Penamacor, o médico holandês teria organizado o conhecimento médico
europeu quando assumiu sua cadeira na Universidade de Leyden. Sanches afirma que, antes
dele, os médicos seguiam doutrinas as mais variadas, ficando divididos entre os
“Galenicos”, “Árabes”, “Químicos”, “Mecânicos”, entre outros. Assim, afirma que os
médicos europeus não passavam de “Empíricos, ou Pirrónicos” e a medicina não estava
“fundada na verdadeira física”, ficando perdida em “observações espalhadas” e explicadas
pelas mais diversas filosofias.227 Boerhaave teria alicerçado o ensino da medicina em
princípios demonstráveis pelas leis da física e da química médica e, “à imitação de um
Arquitecto”, teria estruturado o estudo das partes do corpo humano através da Geometria,
da Mecânica e da Perspectiva, unindo-as num “palácio com Simetria, Distribuição e
Elegância.” Assim, numa postura eclética, através da “aplicação do método”, o professor
225
Ibid. p.08 226
Ibid., p.10 227
Ibid., p.27
85
compôs seus aforismos baseados nas “observações espalhadas” entre os autores gregos,
árabes e latinos que julgou verdadeiras, através da crítica médica. Falaremos mais do papel
de Herman Boerhaave e de outros médicos setecentistas no próximos capítulo, quando
faremos um panorama geral dos caminhos tomados pela medicina setencentista que nos
ajudarão a compreender a medicina sanchesiana na obra Dissertação sobre as paixões da
alma.
Ao dissertar sobre temas relativos à fisiologia, Ribeiro Sanches se refere à outra
reivindicação cara a Boerhaave para o ensino médico: o estudo da anatomia humana a partir
das fibras, sua estrutura básica:
“O nosso corpo consta de fibras, ou fios: no princípio da sua
formação todas as partes são líquidas, de que consta a matéria seminal:
mas dela se formam os ossos, as cartilagens, os músculos, os tendões,
as artérias, as veias, e os nervos: os ossos constam de fibras, as
membranas, e as artérias; logo é necessário conhecer primeiro o que é
uma fibra, ou fio do corpo humano...” 228
Para compreender a natureza das doenças, o médico deveria conhecer as
enfermidades que afetam as fibras e os remédios indicados para curá-las. Dotadas, em seu
estado natural, de propriedades elásticas poderiam ser dobradas sem se “quebrarem ou
estalarem”, voltando à sua posição inicial quando findado o movimento. A doença
consistiria na alteração dessas propriedades naturais das fibras, causando alterações nas
funções vitais e gerando efeitos diversos no corpo e no ânimo do indivíduo, que deveriam
ser conhecidos pelos médicos.229
Como veremos no capítulo 3, boa parte das concepções utilizadas por Sanches sobre
as funcionalidades dessas estruturas na fisiologia humana estavam na ordem do dia de
diversas correntes de estudos fisiológicos setecentistas, tendo desdobramentos importantes
através de autores como Albrecht Von Haller (1708-1777). Elas também têm presença
fundamental no modelo de psicofisiologia das paixões proposto pelo médico na
228
Ibid., p.28. 229
Ibid., p.29.
86
Dissertação sobre as paixões da alma, também analisado no próximo capítulo. No entanto,
cabe destacar que, no Método para aprender a estudar medicina, o estudo das fibras para a
compreensão das enfermidades do corpo é indissociável da reivindicação de Sanches pelo
domínio da Química Médica, como requisito fundamental para a compreensão da fisiologia
humana. Nesse aspecto, os aforismos de Boerhaave seriam imprescindíveis, visto que,
segundo Sanches, nenhum outro autor teria estudado as “partes sólidas e fluídas” que
constituem o corpo humano à luz dos conhecimentos químicos melhor que o professor de
Leyden.230
Numa crítica aos adeptos dos grandes sistemas médicos, o autor afirma que muitos
praticantes da arte médica, considerados “metódicos”, ocuparam-se somente das partes
sólidas do corpo, ignorando as fluidas, entendidas como os humores. Outros, por sua vez,
ignoraram as partes sólidas em favor somente das fluidas, como foi o caso de Galeno e
Avicena. Tais equívocos impediam que esses praticantes da arte médica fossem capazes de
formular dietas adequadas para o tratamento das “queixas crônicas” e das “doenças febris”:
“Daqui vem aquele vício eterno de purgar e sangrar em todas as queixas indistintamente.” 231
Para o autor, a química de Boerhaave forneceria ao médico o conhecimento
necessário sobre as propriedades das substâncias presentes na natureza e seus efeitos sobre
as partes sólidas de fluidas do corpo, condicionando sua fisiologia. Sanches faz breve
distinção entre as características de diversos alimentos segundo suas propriedades de
fermentação (atribuídas, grosso modo, às plantas) e apodrecimento (atribuída às carnes).
Assim, esses saberes refinariam a terapêutica ao fornecerem os instrumentos necessários
para a formulação de uma dieta voltada especificamente para o restabelecimento da
tonicidade adequada das fibras.232
Em um homem saudável, “o vigor de seu estômago” impediria que os alimentos
fermentassem ou apodrecessem durante o processo digestivo. Porém, num homem
convalescente, que se alimenta exclusivamente de vegetais, por exemplo, as fibras do
estômago, excessivamente relaxadas, não seriam capazes de impedir a fermentação destas
mesmas substâncias, o que teria efeitos nocivos para sua saúde. Desse modo, o tratamento,
230 Ibid. p.28. 231
Ibid. p.30. 232
Idem
87
segundo Sanches, deveria orientar-se pela restituição da elasticidade das fibras, através de
uma dieta à base de alimentos que não azedassem, como “carnes tenras” e “peixes de fácil
digestão.” 233
O interesse de Sanches pelas fibras, como estruturas fundamentais para a
compreensão da fisiologia humana ajudam a revelar a relevância dos estudos anatômicos
para nosso personagem. Em consonância com os debates médicos de seu tempo, o antigo
aluno de Boerhaave era ferrenho defensor do ensino da anatomia pela prática e partidário
do fim da divisão entre Medicina e Cirurgia. Além do Método, esse posicionamento
aparece em diversos momentos da obra de nosso personagem, com destaque para Projecto
de instruções para um professor de cirurgia (1742) e a Carta a Joaquim Pedro de Abreu
(1760), onde afirma que os estudos da anatomia não poderiam restringir-se à leitura das
autoridades antigas, como era corrente em Portugal na época, mas sim, calcado na prática
em cadáveres, para depois ser estendida aos viventes234 pois, como atestava a fisiologia de
Boerhaave, ela constituiria a porta de entrada para o estudo do corpo são e doente.235 Ao
médico, seria tão importante ser versado em cirurgia quanto na própria medicina, pois se
essa era a responsável por tratar os males internos, enquanto aquela ficava a cargo dos
externos, nenhum médico seria capaz de exercer seu ofício “com inteligência” sem
conhecimento das enfermidades que assolavam a parte externa do corpo.236
No plano da higiene, essas concepções sobre o corpo e a doença fundamentariam
um discurso pedagógico voltado para o cultivo das potencialidades físicas e morais dos
indivíduos “desde a mais tenra idade”, como forma de garantir o melhor desempenho
possível de seus papéis cívicos. Através do que Ana Cristina Araújo chamou de “concepção
holística da natureza humana, traduzida numa compreensão global do homem em equilíbrio
com o meio”237, a medicina sanchesiana exerceria um papel central nesse projeto ao
garantir o equilíbrio físico e moral dos indivíduos tornando-os imunes aos desvios causados
pelas enfermidades tanto da alma quanto do corpo. Assim, a medicina revestia-se de caráter
233
Ibid. p.31. 234
SANCHES, Antonio Ribeiro. Projecto de instruções para um professor de cirurgia. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003., p.01 235
SANCHES, Antonio Ribeiro. Método para aprender e estudar a Medicina op cit. p.20. 236
Idem. 237
ARAÚJO., op cit. p.4
88
político e tornava-se motor privilegiado da reorganização cultural do reino, atribuindo-se
legitimidade para produzir discurso sobre a moralidade, tarefa antes adstrita à esfera da
Teologia e da Sermonística cristãs, do Direito e da Filosofia Moral.
Em Tratado da conservação da saúde dos povos (1756), Sanches afirma seu projeto
higiênico para Portugal. A obra, como colocou o próprio autor, tinha o objetivo de “mostrar
a necessidade que tem cada Estado de leis, e de regramentos para preservar-se de muitas
doenças, e conservar a Saúde dos súbditos.” 238 A higiene é colocada como fator
imprescindível ao sucesso da “Ciência Médica”, uma vez que seria impossível :
“aos Médicos, e aos Cirurgiões, ainda doutos, e
experimentados, curar uma Epidemia, ou outra qualquer doença, numa
cidade, onde o Ar for corrupto, e o seu terreno alagado. Nem a boa
dieta, nem os mais acertados conhecimentos nestas artes produzirão os
efeitos desejados; sem primeiro emendar-se a malignidade da
atmosfera, e impedir os seus estragos.” 239
A pertinência da obra era justificada pela negligência com que o assunto era tratado.
Sanches questiona que, até sua época, o tipo de “Medicina Política” que propunha, não
havia entrado na consideração dos “Tribunais da Europa”. As escolas de arquitetura,
mesmo que ensinassem como construir cidades e praças com perfeição, não faziam uso da
“física geral” para tratar da matéria. Do mesmo modo, procurava tratar também da
conservação da saúde dos soldados e dos marinheiros, visto a extensão do império
português pelas “três partes do mundo”. A crítica também se estendia à formação médica,
também distanciada dos princípios da higiene. Nesse caso, a situação era ainda mais grave,
pois, ao contrário de outras artes, um erro na medicina poderia levar à morte, e quando mal
administrada, essa ciência poderia tornar-se “a mais perniciosa de um Estado”. Assim:
“Como não somente pertence aos Magistrados conservarem a
salubridade dos quatro Elementos, mas ainda por todos os meios
238
SANCHES, Antonio Ribeiro. Tratado da conservação da saúde dos povos. op. cit., p.2 239
Idem.
89
velarem na Conservação da Saúde dos Povos, parece ser da sua
obrigação ordenarem o mais acertado, e efectivo método para que os
Médicos, e os Cirurgiões aprendam a curar as enfermidades.”
Portanto, a obra, à qual se refere como uma “ordem política, útil aos legisladores e
fundada nas leis da Natureza” e nos “incontestáveis” conhecimentos da “boa física”,240
pouparia o trabalho daqueles que quisessem se instruir na matéria e serviria tanto para
informar aos Prelados dos Conventos, abadessas, aos inspetores de hospitais e pais de
família, quanto para ser usada como base para a formulação de leis. Por isso, havia sido
escrita em “estilo claro” para ser útil a quem quisesse ler e retirar “toda utilidade.” 241
Nos primeiros capítulos, Sanches trata da natureza do ar e dos seus efeitos sobre o
corpo humano, revelando conhecimentos sobre pressão atmosférica, calorimetria e
dilatação dos sólidos. Fazendo citação do Dissertations sur la chaleur (1751) de M.
Martene, afirma que o corpo humano possui um calor maior do que o da atmosfera e, ao
longo da vida, esse mesmo calor tende a dissipar-se, de modo que “um moço de vinte e
cinco anos não tem tanto este calor elementar como um menino.”242 O ar muito aquecido
teria efeitos nocivos ao corpo humano, uma vez que dissiparia os humores mais sutis:
“saiem pela transpiração, pelo suor, e pela urina em
abundância: fica o sangue seco, térreo e espesso, geram-se
enfermidades melancólicas, lepra, vómitos pretos, câmaras de sangue;
e febres ardentes; se este calor demasiado se juntar com sufocação do
Ar então apodrecem todos os humores, e pode causar mesmo a peste.” 243
Portanto, era necessário que o ar tivesse temperatura adequada para a conservação
da saúde do homem, mas que também não fosse corrompido, pois o “ar podre” poderia ter
efeitos devastadores sobre a saúde. Apoiando-se nas experiências químico inglês Stephen
240
Idem. 241
Idem. 242
Ibid., p.5. 243
Idem.
90
Hales (1677-1761), Ribeiro Sanches afirma que a superfície interna dos pulmões seria
muito maior que a de todo o corpo e ali, desempenharia duas funções fundamentais: “a de
comunicar ao sangue aquele fogo elementar e aquela luz, aquela vitalidade com que anima
as plantas e os animais” e “absorver e embeber as exalações que saem do sangue, do
mesmo modo que ele absorve a transpiração insensível que sai pela superfície do nosso
corpo”.244 Desse modo, um homem confinado num ambiente sem ventilação devida e com
paredes e chão úmidos, seria exposto a humores nocivos produzidos pelas exalações das
paredes e de seu próprio corpo e, ao respirar ou ingerir essa constituição corrompida, os
humores de seu corpo obteriam essas mesmas qualidades nocivas, deixando-o privado da
vitalidade que constitui o ar limpo e ventilado e sujeitando-o a enfermidades.
A partir dessa exposição Sanches destaca no nono capítulo que jamais os médicos
haviam sido consultados pelos magistrados, e menos ainda pelos arquitetos, sobre os locais
mais sadios para a constituição de cidades. Tal negligência seria ainda mais danosa para o
Portugal, “porque tendo cada dia ocasião de fundar novas povoações nos seus dilatados
domínios poderá ser que evitaria por este meio muitos inconvenientes que necessariamente
redundaram na perda dos seus vassalos.”245 A moderação do clima deveria ser a orientação
geral para a escolha dos locais onde seriam fundadas cidades, nada poderia ocorrer em
excesso: frio, calor, umidade e “secura”, todos esses fatores deveriam estar de acordo com a
constituição do corpo, “gerada com tal harmonia que não consente excessos para conservar-
se.”246 Sanches lembra que Hipócrates, em seu texto Águas, ares e lugares, recomendava
que as povoações fossem “viradas para o Oriente antes que para o Norte, antes para o Sul
que para o Ocidente”, pois nessas localidades as temperaturas seriam mais moderadas e as
águas expostas ao Sol nascente, tornando-as mais claras, leves e suaves. Por consequência,
seus habitantes seriam de “boas cores” e de “bela estatura”, de voz clara e entoada. Além
disso, a fecundidade das mulheres seria maior e seus partos menos expostos a riscos.247
Citando o arquiteto italiano renascentista Leon Battista Alberti (1404-1472), Ribeiro
244
Ibid., p.14. 245
Ibid., p.18. 246
Ibid., p.20. 247
Idem.
91
Sanches defende que as cidades sejam erguidas de forma que possam ser “lavadas de todos
os ventos” e que sirva de “Atalaia para os campos férteis vizinhos.” 248
Desse modo, ele pregava que a interferência médica na higiene era mais que
necessária, uma vez que a constituição das cidades não afetaria apenas a saúde dos
habitantes, mas também seu ânimo. Nos locais infectados por “exalações malignas” e “ares
pútridos”, eles seriam afetados não penas por deformidades físicas e doenças diversas
como, “pernas tortas”, sarnas, lepra e cegueira, mas também poderiam ser induzidos pelo
ambiente a serem “cruéis a si e a seus semelhantes” e exemplifica: “No Japão mata-se pela
mínima afronta. Ali os castigos são os mais horrendos: houve já uma Epidemia na qual
todas as moças e raparigas se matavam sem causa manifesta.”249
Os ecos das concepções de Sanches sobre higiene ainda estariam presentes nas
obras produzidas nos seus últimos anos de vida. Em Mémoire sur les bains de vapeur de
Russie (1779), o médico disserta sobre as vantagens dos banhos, como eram praticados na
Rússia, para “aliviar incômodos” e manter a boa saúde:
«Si on considère attentivement les découvertes étonnantes
faites em Europe depuis deux cents cinquante ans, dans La littérature,
les arts & les sciences, comparées à celles de l’Asie, de la Gréce, de la
république Romaine ; il semble que, parmi ces nations, un des points
essenciels de la constituition de leurs états, étoit de rendre le corps
robuste, sain & vigoureux » 250
Assim como o Tratado para a Conservação da saúde dos povos, a obra prestava-se
à divulgação dos hábitos “sadios” de higiene entre a população leiga. O autor afirma, logo
nas primeiras linhas, que ela não era dedicada à “instrução dos médicos”, mas sim aos
habitantes dos campos, “destituídos dos socorros que encontramos nas cidades”. Portanto,
Sanches abdica, propositadamente, de recorrer a “pesquisas físicas, e menos ainda de
248 Idem. 249
Idem. 250
SANCHES, Antonio Ribeiro. Mémoire sur les bains de vapeur en Russie, considerés pour la conservations de la santé et pour la guérison de plusieurs maladies (1779). In. : Histoire de la societé royale de médecine..., avec les mémoires de médecine et de physique médicale...tirés des registres de cette société. Paris : imprimierie de Monsieur, 1782. p.234.
92
medicina”, e procura não citar muitos autores.251 A importância atribuída ao tema era
justificada, pois a negligência com os banhos enquanto prática higiênica teria contribuído,
na sua visão, para a fraqueza dos corpos dos homens de seu tempo em relação aos povos
antigos, para os quais os cuidados com o corpo constituíam uma prioridade, como
comprovava a construção de amplos ginásios por “todas as repúblicas da Grécia antiga”.
Assim, o abandono dos “banhos artificiais” pela cultura cristã após o domínio bárbaro na
Europa estaria na raiz da fraca constituição física dos homens de seu tempo, o que
configuraria mais um fator de impedimento à construção de uma nação “vigorosa e
saudável”.252
Sobre a constituição dos vapores originários dos banhos, Sanches afirma: “sabe-se
hoje em dia, por uma infinidade de experiências, que a água contém partículas de fogo e ar;
mas esse fogo é um fogo elementar, essas partículas fortemente unidas e encontram-se sob
forte pressão, mesmo em relação ao ar.” 253 Esses elementos se desprenderiam da água
através do calor transformando-se em vapor e ar, que seriam respirados diversas vezes
pelos indivíduos durante o banho. O médico afirma que na medicina não haveria “nenhum
remédio que possa igualar a força, a energia e a salubridade desses agentes combinados [ar,
vapor e fogo] para fortificar, mudar e vivificar o corpo humano.” 254 O individuo saudável
seria aquele que poderia exercer “todas as ações da vida humana com facilidade, prazer e
com alguma firmeza”, e os banhos russos, como considerados, seriam ferramentas úteis
para deixá-lo resistente aos fatores potencialmente causadores de desequilíbrios na saúde
como, trocas contínua de ar, variações abruptas de temperatura, os excessos diversos,
quedas, entre outros.255 Assim, na esteira de seu discurso higiênico, afirma que os banhos
russos teriam a virtude de serem capazes de manter a saúde da sociedade civil, não só ao
conservar “o estado de saúde” como também curar diversos males que flagelavam os
homens. 251
Ibid. p.233 252
Ibid. p.238-239. 253
No original em francês: « On sait aujoud’hui, par une infinité d’éxperiences, que l’eau contient des particules de feu & d’air ; mais ce feu est un feu élémentaire, ces particules sont extrêmement unies & pressées ; il en est de même par rapport à l’air. » Ibid. p.245. 254
No original em francês : « ... nous verrons que dans la médicine on ne trouve aucun remède qui puisse égaler la force, l’énergie & la salubrité de ces agens combinés, pour fortifier, changer & vivifier le corps humain » Ibid. p.245-246. 255
Ibid. p.246.
93
Dentre os temas abordados por Ribeiro Sanches ao longo de sua vida intelectual,
sua tentativa de estabelecer uma nosologia das doenças venéreas recebeu relativo destaque,
mesmo entre seus contemporâneos, o que pode ser comprovado pela solicitação de Diderot
para escrever o verbete Vérole grosse, publicado no quinto tomo da Encyclopédie ou
Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, conforme foi mencionado
anteriormente. Em suas duas obras mais conhecidas sobre o assunto, Dissertations sur le
maladie vénérienne (1750) e Observations sur les maladies vénériennes (1785), o médico
português procura mostrar que a sífilis já grassava na Europa muito antes da descoberta do
continente americano, contrariando a hipótese corrente na época de que o mal havia sido
trazido da América pelos colonizadores europeus. A autora portuguesa Ana Cristina Araújo
defende que suas teorias sobre as doenças venéreas não poderiam ter sido articuladas sem o
conhecimento de Vénus Physica (1745) de Maupertuis e a Histoire Naturelle (1749) de
Buffon, obras importantes dos debates sobre hereditariedade no século XVIII, além das
teses do Essai sur la manière de perfectioner l’espèce humaine (1756) de Vandermonde.256
Observations sur les maladies vénériennes é dividida em oito capítulos que
abordam temas diversos relativos ao tema, entre eles, os métodos empregados pelo autor
para tratar da doença ao longo de sua carreira, seus efeitos sobre as partes sólidas e nos
humores do corpo, as formas de tratamento de pacientes na infância e adolescência, as
formas de transmissão hereditária da sífilis, dentre outros. Na longa introdução, Sanches
descreve seu contato com o tratamento da sífilis ao longo de sua carreira e suas observações
sobre os vestígios de sua manifestação em cadáveres dissecados. Os efeitos da doença sobre
o corpo são descritos no capítulo 4, onde o considera que o “vírus” possa ser contraído pelo
contato com objetos infectados, como a cama onde dorme um sifilítico ou mesmo pelo ar
“infectado e abafado do quarto de um doente que tem as úlceras venéreas cujos humores
estão em estado de podridão.”257 No entanto, a forma mais violenta de se contrair a doença
seria através dos “atos venérios.” Dessa forma, os nervos e as partes sensíveis do corpo
256
ARAÚJO., op. cit., p.25. 257
SANCHES, Antonio Ribeiro. Observations sur les maladies vénériennes. Paris : Chez Théophile Barrois le jeune, 1785., p. 152.
94
seriam afetados, gerando espasmos; os humores se inflamariam e apodreceriam e o
movimento do sangue cessaria. 258
Mesmo diante de uma rápida análise de algumas obras publicadas por nosso
personagem, fica bem claro o papel reivindicado por Sanches para a medicina. Sua
jurisdição deveria extrapolar os limites do corpo abarcando também as questões relativas à
organização higiênica das cidades e o estudo da alma em conjunto com suas manifestações
no ânimo dos indivíduos. O estudo do comportamento humano deveria pertencer ao escopo
da atuação médica, e sua presença nos processos de organização e planejamento social
deveria ser imprescindível.
No próximo capítulo veremos como essa questão foi abordada em sua obra
Dissertação sobre as paixões da alma (1753). Visto a partir de uma perspectiva afinada
com os debates do campo médico setecentista relativos ao movimento de revisão da
fisiologia mecanicista e das relações entre o corpo e a alma, o tema acabaria por configurar
mais um ponto de embate com o discurso teológico ao também ser reivindicado como
objeto próprio ao discurso médico.
258
Ibid., p.153.
95
CAPÍTULO III
RIBEIRO SANCHES E A RETÓRICA MÉDICA SETECENTISTA SOBRE O FÍSICO E O MORAL.
Parte da historiografia costuma atribuir papel menor aos rumos tomados pelo
conhecimento médico nos setecentos. Localizada entre os desenvolvimentos da anatomia
do século XVII e as transformações terapêuticas do XIX, a medicina do século XVIII foi
definida por alguns como estéril e confusa. Nessa perspectiva, ao contrário de outras
ciências, como a física, a transformação radical da compreensão das leis da vida, da saúde e
da doença só viria no século seguinte, especialmente após o desenvolvimento da
microbiologia de matriz pasteuriana.259
De acordo com Renato Mazzolini, essa visão só faz sentido dentro de uma
perspectiva que procura compreender a medicina setencentista a partir dos critérios atuais
para a apreciação de realizações médicas. Se assim considerada, Mazzolini afirma que, de
fato, a medicina do século XVIII não apresentou teorias e descobertas tão profundas quanto
as do século precedente, e de um ponto de vista comparativo, houve algum arrefecimento
no uso da filosofia experimental em fisiologia e relativa estagnação nas pesquisas
microscópicas. No entanto, longe de reafirmá-las, o autor procura compreender essas
diferenciações a partir dos debates que se mostraram pertinentes para os médicos
setecentistas, em especial os conflitos agudos ocorridos entre diferentes correntes médicas
no final do século XVII e início do XVIII, motivadas pelas crescentes críticas à aplicação
259
PORTER, Roy. Le dix-huitième siècle. In. :PORTER, Roy; CONRAD, Lawrence; NEVE, Michael; et. al. Histoire de la lutte contre la maladie : la tradition médicale occidentale, de l’antiquité à la fin du siècle des lumières. Paris : Institut Synthélabo, 1999. p.391. Porter cita Charles Rosenberg, que situa a revolução terapêutica no século XIX e Michel Foucault (1925-1984) que, segundo o autor, defendia que a medicina só adquirira um “olhar científico” após a reforma dos hospitais durante a revolução, fazendo com que a doença saísse do domínio da caridade, para atingir sua maturidade nos anos de 1870 com a “pasteurização dos laboratórios”. Ibid. p..391-392.
96
da filosofia mecanicista para compreensão do corpo humano.260 Essa tensão ajudaria a
definir os caminhos tomados pelo conhecimento médico no período, marcado por forte
reação retórica aos sistemas médicos seiscentistas, especialmente ao ideal de uma medicina
infalível, erigido sobre as bases de um mecanicismo de matriz cartesiana. O modelo de
medicina defendido pelos críticos dizia-se mais afeito à observação que seus antecessores,
acusados de se pautarem demasiadamente em modelos teóricos concebidos a priori (a
exemplo da própria filosofia mecânica) que revelavam suas deficiências quando submetidos
à observação direta dos fenômenos.
Na esteira da filosofia eclética, tratada no primeiro capítulo, a atitude dos médicos
diante das manifestações clínicas passa a ser marcada pela modéstia, calcada na ideia de
que só seria legítimo produzir afirmações e asserções gerais sobre o corpo e seu
funcionamento após exaustivo trabalho de observação e julgamento racional do que era
visto. A razão, sozinha, poderia conduzir a equívocos através da produção de sistemas que,
embora logicamente coesos, poderiam turvar o olhar do filósofo sobre a realidade. Logo,
tornava-se pertinente conjugá-la com a percepção sensorial dos fenômenos naturais como
forma de evitar desvios.
Para Roy Porter, essa atitude está na raiz da forte ligação do conhecimento médico
setecentista com a ilustração. Segundo o autor, muitos dos mais destacados intelectuais
iluministas eram médicos ou tiveram contato com medicina ao longo de sua formação. John
Locke (1632-1704), um dois mais citados pensadores progressistas do período e um dos
baluartes do empirismo, com textos importantes no campo da epistemologia, pedagogia,
religião racional e política liberal, havia estudado e praticado medicina. Além dele, outros
intelectuais como Bernard Mandeville (1670-1733), David Hartley (1705-1757), Julien
Offray de la Mettrie (1709-1751), François Quesnay (1694-1774) e Pierre-Jean-Georges
Cabanis (1757-1808), não só eram médicos como formularam suas propostas de
transformação da sociedade a partir do conhecimento médico.261
260
MAZZOLINI, Renato. Les lumières de la raison : des systèmes médicaux à l’organologie naturaliste. In. : GRMEK, Mirko ; FANTINI, Bernardino. Histoire de la pensée médicale en occident. V. 2. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Éditions du Seulo, 1996.,p. 94. 261
PORTER. op. cit. p.392.
97
Essas aproximações apontam um caminho alternativo para a compreensão dos
rumos tomados pelo conhecimento médico setecentista que, ao rejeitar julgamentos
baseados em critérios whiggistas262, como nos alertou Renato Mazzolini acima, desvia a
atenção de comparações inférteis entre números de “descobertas científicas” e “progressos”
do conhecimento médico, e revela uma orientação cada vez maior da medicina para a
intervenção direta na sociedade, visando estabelecer padrões de comportamento que
pudessem garantir a manutenção do estado de saúde físico e moral dos indivíduos,
deixando-os imunes aos desvios representados pelas paixões. Como veremos, essas
aspirações articularam-se com as mais diversas propostas de reforma política e cultural
preconizadas pelas ideias iluministas e deram origem a um vocabulário médico que, por
caminhos diversos, almejaria inscrever a intervenção social como parte da jurisdição da
medicina a despeito de outros discursos mais tradicionais, a exemplo do Direito e da
Teologia.
Em grande parte, esse discurso renovado deplorava tanto a psicologia a aristotélico-
tomista, quanto o tratado cartesiano Les passions de l’âme (1649) pela suposta fragilidade
com que retrataram a mente humana. Nessa perspectiva, os sistemas metafísicos e
teológicos eram acusados de terem tornado obscuro o estudo da moral. Em revisão a essas
tradições, emergem novas concepções sobre a fisiologia humana e sobre os elos entre esta e
as paixões, domínios que passam a ser defendidos como imprescindíveis para todos aqueles
que tivessem o comportamento humano como objeto de estudo.
Nesse contexto, o tema das relações entre Razão e paixões alcançou um
desenvolvimento particular no ambiente médico a partir de meados do século. O
entendimento das paixões - ou das emoções ou sentimentos – tornou-se central na tentativa
de definir os diferentes tipos humanos, o que, amalgamado com ideias ilustradas, acabaria
por forjar discussões acerca do modo adequado de garantir a ordem social e o governo dos
262
Aqui uso o termo na definição proposta por John Henry: “ponto de vista historiográfico, em geral lamentável, que julga a importância de eventos passados à luz dos padrões, preocupações etc., atuais, ou que se ocupa apenas daqueles acontecimentos passados que obviamente parecem ter conduzido ao atual estado de coisas.” HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p.142
98
homens.263 No ambiente intelectual francês, por exemplo, a retórica que articulava o
ambicioso projeto desses grupos insistia que a fisiologia - ou economia animal - e a análise
das idéias e das faculdades morais eram ramificações de uma mesma ciência, que deveria
chamar-se Science de l’Homme ou Medicina Antropológica.264 Como veremos mais
adiante, boa parte dessas concepções teve inspiração em referenciais empiristas e
racionalistas, por vezes articulados com alguns postulados da filosofia leibziniana e da
física newtoniana. Esses referenciais foram selecionados, apropriados e articulados de
maneiras diversas em longos debates que reuniram vertentes filosóficas vitalistas,
animistas, iatromecânicas e sensualistas.
3.1 As novas concepções médicas sobre o corpo e a alma.
No campo médico, a contestação da iatromecânica já era gestada, pelo menos, desde
o século anterior. De acordo com Sergio Moravia, mesmo ao longo do século XVII muitos
intelectuais de várias tendências expressaram reservas com as doutrinas iatromecânicas,
apresentando concepções da matéria viva alternativas às propostas pelos mecanicistas:
“In the second half of the seventeenth century, while
Leeuwenhoek was discovering the existence of spermatozoa and
Malpighi the complex properties of cellular tissue, Swammerdam was
demonstrating the disquieting capacity of the muscles to correspond to
nervous stimulus even after the severing of every connection with the
spinal cord. After studying them and other phenomena, an English
scientist Francis Glisson did not hesitate to attribute to the organism a
real force (vis insita in material) which he called ‘irritability’”265
263 MARCUS, George E. “Emotions in politics” in N. W. Polsby (Ed.) Annual Review in Political Science, Vol. 3, Palo Alto, Annual Reviewa, 2000, p. 221-50. 264
WILLIAMS, Elizabeth A. The physical and the moral: Anthropology, physiology, and philosophical medicine in France, 1750-1850. Cambridge, Cambridge University Press, 1994 265
MORAVIA, Sergio. From homme machine to homme sensible. Changing Eighteenth-Century models of man’s image, Journal of the history of ideas, vol. 39, n.1, p. 45-60, jan-mar.1978. p.48.
99
Nesse mesmo sentido, Jaques Roger cita as questões suscitadas pelo intelectual
suisso Jean Le Clerc (1657-1736) no início do século XVIII ao resgatar a obra “The
intelectual system of the universe” de Ralph Cudworth (1617-1688), antigo professor de
Hebreu em Cambridge. Le Clerc, baseado nas afirmações de Cudworth, defendia a idéia de
que Deus não poderia ter produzido todos os seres ao mesmo tempo e nem a criação
poderia ser resultado do acaso, sem qualquer interferência de uma inteligência superior. Era
necessário haver alguma autonomia da natureza na criação, regida sob as ordens de Deus,
como seu instrumento inferior e subordinado. Roger enxerga os debates suscitados por Le
Clerc como representativos de uma mudança no estado de coisas na ciência inglesa do
período, apontando para uma crescente contestação das afirmações mecanicistas a partir de
uma nova aproximação com os fatos da natureza. Isso acabaria por disseminar entre alguns
círculos intelectuais a convicção de que o homem não poderia compreender realmente todas
as coisas, e que só seria possível fazer suposições sobre as manifestações e forças naturais
das quais não temos idéia distinta.266
Essas convicções tomariam força ao longo do século XVIII, embalados por novos
questionamentos, como descreve Sergio Moravia:
“Could one really believe that life is nothing but the movement
of solid and liquid parts; that organic matter is identical with inert
matter; that de living being is really devoid of principles and forces
that are in some way active; in short, that the organism is really a
machine functioning according to processes and laws of an eclusively
physical an mechanical nature? As time passed, and the secte of
iatromechanists obsnately continued to defend their theses, a growing
number of scholars tended to give negative answers to these
questions.”267
Diante dessas renovações, a filosofia mecânica, que deu norteamentos importantes
para as teorias médicas seiscentistas, passou a ser alvo privilegiado das contestações de
266
ROGER, Jaques. Les sciences de la vie dans la pensée française au XVIIIe siècle. Paris : Albin Michel, 1993. p. 426. 267
MORAVIA., op. cit. p.49.
100
muitas das novas propostas de intervenção nos fenômenos do corpo, num processo que
tomaria força especialmente a partir da segunda metade do século. Não que as críticas
estivessem assentadas numa rejeição completa à concepção do corpo-máquina, mas sim na
recusa em aceitar que os seres vivos se reduzissem somente a isso. Os mecanicistas eram
acusados de terem se aferrado a “sistemas”, e com isso, teriam falhado em perceber as
peculiaridades da matéria viva em relação à inanimada. Nesse sentido, ao pensarem o corpo
como uma máquina, teriam ignorado as manifestações orgânicas que extrapolavam as
explicações mecânicas, explicitadas através de cuidadosa observação das funções corporais.
No entanto, segundo Renato Mazzolini, uma das contradições marcantes dos
médicos da primeira metade dos setecentos, defensores de uma nova visão do corpo
humano, é que, ao mesmo tempo em que condenavam os sistemas médicos que os
precederam, organizavam seu ensino e conhecimento de modo semelhante ao que
combatiam. Na prática, as críticas, veementes no campo discursivo, traduziam-se no
mesmo desejo mais ou menos generalizado de fornecer uma visão geral do conhecimento
médico e integrar as novas descobertas nesse mesmo esquema. Tal tendência teria se
tornado mais explícita nos círculos intelectuais da segunda metade do século, através dos
intelectuais enciclopedistas da geração de Diderot, D’Alembert, Buffon, Voltaire, dentre
outros.268
Sobre esse aspecto, talvez não seja exagerado tomar como indicativo a reverência
que muitos médicos do período destinavam a Herman Boerhaave (1668-1738) como sendo
o grande mestre “organizador do conhecimento médico”, a exemplo de Albrecht Von
Haller e do próprio Ribeiro Sanches, como vimos no capítulo 2. Segundo Harold Cook,
essa atitude foi apropriada por uma historiografia tradicional que tende a vê-lo como um
herói em meio ao emaranhado de teorias que supostamente marcaria o campo médico
setecentista.269 No entanto, o autor mostra que a característica que seus comentadores se
referiam era sua reivindicação de uma postura diante dos fenômenos naturais baseada na
observação e na experiência, em consonância com os postulados ecléticos. Segundo Cook,
a trajetória de Boerhaave foi marcada por um afastamento gradual da crença de que a razão
268
MAZZOLINI., op. cit. p.96. 269
COOK, Harold. Boerhaave and the flight from Reason in medicine. Bulletin of History of Medicine, n.74, pp. 221-240, 2000., p.222
101
seria capaz de desvendar as causas primeiras dos fenômenos naturais em favor de uma
aproximação da realidade calcada nos sentidos, que prezava mais o estudo dos efeitos do
que a busca por causalidades, vistas como inacessíveis à mente humana na maior parte dos
casos.270
Em meio a essas novas demandas teórico-metodológicas, as teorias de Newton e
Leibniz tiveram contribuição decisiva para o processo de reconsideração da existência de
forças inatas na matéria. Concepções como a gravitação e o magnetismo apontavam para
propriedades e funções da matéria cujas causas eram desconhecidas, só sendo possível
estudá-las através de seus efeitos. Tais questões dariam subsídios para os críticos da
passividade imposta à matéria implícita nos postulados da filosofia mecanicista, sobretudo
nos seus moldes cartesianos, cuja cisão entre res cogitans e res extensa subentendia a
possibilidade de se compreender o funcionamento dos corpos sem fazer referência a
qualquer princípio ou força imaterial.271 O empirismo lockeano, por sua vez, contribuiria
para a reorientação dos debates filosóficos a respeito das percepções sensoriais humanas, ao
reivindicar a substituição da lógica dedutiva tradicional e a análise das idéias inatas, que
Deus supostamente teria inscrito na alma humana, pelo estudo do sistema nervoso e dos
processos de aprendizagem.272
Desde já, é importante colocarmos que nunca houve homogeneidade nessas
propostas. Na verdade, como veremos, os modelos explicativos sugeridos seguiram
caminhos diversos, não raro gerando tensões e debates entre si. No entanto, diante das
incongruências apontadas nas concepções mecanicistas sobre o corpo, nota-se que as
discussões passaram a ser norteadas pela ambição de fornecer modelos explicativos
articulados em torno de questões que tomavam nova relevância, especialmente no que diz
respeito às relações entre a alma e o corpo no controle das funções vitais e às influências
das paixões sobre essa relação e seus efeitos sobre o moral dos indivíduos. Além disso,
muita atenção também foi dada ao estudo anatômico dos nervos enquanto produtores e
transmissores das sensações. Todas essas questões tomavam destaque ao tentarem dar
270
Ibid. p.229-234. 271
REY, Roseline. Psyche, soma and the vitalist philosophy of medicine. In.: John P. Wright & Paul Porter (Ed.) Psyche and Soma: physicians and metephysicians on the mind-body problem from Antiquity to Enlightenment. Oxford: Clarendom Press, 2000,. p.255. 272
PORTER. op. cit. p.393.
102
inteligibilidade às funções corporais que a perspectiva do corpo-máquina supostamente
falhara em explicar.
Nesse sentido, dentre os modelos explicativos que marcaram os debates médicos do
período, o animismo, sob a figura do professor da Universidade de Halle, Georg Ernst Stahl
(1660-1734), esteve entre os que desferiram ataques mais diretos ao mecanicismo
cartesiano. Como afirma Mazzolini, Stahl procurou substituir a noção de “mecanismo” pela
de “organismo”, baseando-se na recusa à ideia de que as funções vitais se reduzissem a
ações mecânicas. O corpo só se apresentaria como uma máquina para aqueles que
estudassem suas partes isoladas umas das outras e desconectadas do fim comum que as une,
pois, ao contrário da matéria inorgânica, composta de agregados estáveis de partículas
homogêneas ou heterogêneas, a matéria viva seria resultado de compostos instáveis de
partículas heterogêneas e, portanto, sujeita a processos de decomposição e putrefação.273
Tais processos teriam seu desenvolvimento impedido pela atuação da alma enquanto
princípio vital imaterial, responsável por dar forma, animar e coordenar de modo inteligente
as funções corpóreas. Assim, na concepção stahliana, o corpo seria literalmente o
instrumento construído pela alma para atender a seus objetivos, “como o relógio é
construído pelo artesão para marcar o tempo”,274 tornando-a o agente da consciência e o
regulador da fisiologia, encarregado de manter a saúde do corpo.
Essa centralidade da alma a colocaria no centro da proposta animista. Ela seria o
fator que confere inteligibilidade às funções corpóreas, não podendo de modo algum ser
dispensada em favor da anatomia ou da química, que na visão de Stahl, não seriam capazes
de fornecer grandes explicações.275 Radicalmente contra a perspectiva mecânica, essa
concepção rejeita a ideia de doença como distúrbio físico e a reivindica como resultado da
alteração dos movimentos vitais coordenados pela alma, o que deveria ser corrigido por um
modelo de terapêutica comprometido em provocar a ação da vis medicatrix naturae, ou o
princípio responsável por retomar, naturalmente, o equilíbrio vital.276
273
Ibid. p.102. 274
Idem. 275
PORTER, Roy. op. cit. p.403. 276
MAZZOLINI., op. cit. p.102-103.
103
A oposição radical de Stahl à filosofia mecânica suscitou um intenso debate com
Gottfried Wilhelm von Leibniz (1649-1716), também crítico do mecanicismo, mas que
procurou conciliá-la com a ideia de finalidade.277 Essa idéia também está presente no
animismo, mas é a alma que confere teleologia aos processos corporais ao dar forma e
animar a matéria, dispensando a necessidade de recorrer aos princípios mecânicos para
compreendê-los. Já a perspectiva leibniziana, que teve entre seus principais defensores o
também professor de Halle, Friedrich Hoffman (1660-1742), desconfia da possibilidade de
a alma intervir diretamente na matéria e reafirma os princípios mecânicos como os meios
através dos quais a natureza expressa suas necessidades. A filosofia natural, através da
matemática, seria então a disciplina capaz de desvendá-las e conferir-lhes
inteligibilidade.278 Nesse sentido, ao contrário de Stahl, a anatomia e a física teriam papel
preponderante na compreensão dessas manifestações vitais, visto que a matéria viva seria,
sim, regida por determinações mecânicas. No entanto, essas determinações estariam
subordinadas a um mesmo princípio organizador, não material, inerente aos organismos
vivos, constituído pelas mônadas. Também chamadas de enteléquias, as mônadas seriam
inerentes à matéria e seriam responsáveis por coordenar e dar finalidade aos processos
mecânicos. Em outras palavras, elas seriam o fator fundamental da diferenciação entre a
matéria viva e a inanimada.279
Como podemos ver, ambos os autores eram críticos dos postulados mecânicos
baseados numa matéria sem qualquer atividade para explicar os processos vitais, mas por
vias distintas, o que desde já indica as diferentes acepções tomadas pelos debates
filosóficos a respeito da questão alma-corpo no período. Na segunda metade do século, as
afirmações de Leibniz seriam retomadas pelos vitalistas, corrente médica vinculada à
faculdade de medicina de Monpellier, na França, que reformularia esses questionamentos
sob novas bases, tendo como alguns de seus mais destacados representantes Louis de
Lacaze, Jean-Joseph Ménuret de Chambaud, Henri Fouquet, Théophile Bordeu e Paul-
Joseph Barthez.
277
Os escritos trocados durante a longa controvérsia entre os dois no início do século XVIII foram publicados por Stahl em 1720, após a morte de Leibniz, com o título Negotium Otiosum. 278
MAZZOLINI., op. cit. p. 104. 279
DUCHESNEAU, François. Le príncipe de finalité et la science leibnizienne. Revue Philosophique de Louvain., v.94., n.3., p.387-414., 1996.
104
Segundo Roselyne Rey, o vitalismo surge em oposição ao mecanicismo dominante
desde o século XVII e ao animismo de Stahl. Críticos dos pressupostos animistas na
fisiologia humana, acusam seus defensores de terem insistido no mesmo equívoco dos
mecanicistas: atribuir passividade à matéria na execução das funções vitais. Apesar de Stahl
ter formulado um modelo de fisiologia que faz referência a forças imateriais e que rejeita a
redução da fisiologia humana a princípios mecânicos, a matéria permanece totalmente
subordinada aos desígnios da alma. Rey afirma que o vitalismo cancelou a dualidade
corpo/alma e a substituiu pela oposição morto/vivente. Ao retomar alguns dos postulados
leibzinianos, eles evocavam a especificidade dos seres vivos, implícita na frase “tout
organisme est un mécanisme, mais tout mécanisme n’est pas un organisme”280
A reformulação dos questionamentos sobre a matéria viva a partir da dualidade
entre matéria viva e matéria inanimada não é exclusiva do vitalismo. Na verdade ela já
vinha sendo gestada no mesmo período com Buffon e a geração dos enciclopedistas, além
de fazer referências a outras tradições de pensamento sobre o assunto, como afirmou
Théophile de Bordeu:
« De ce nombre sont, par example, les idoles d’Hippocrate, les
atomes d’Épicure, les formes substantielles d’Aristotle, les monades de
Leibniz, les formes et les molécules organiques de Buffon. Quoi qu’il
en soit, il n’y a aucune raison de douter que les parties du corps ne
soient toutes douées de la faculté sensible. »281
Como já afirmamos, a concepção de que a matéria é dotada de propriedades
intrínsecas, e que, portanto, desempenharia papel ativo nos processos vitais, está na raiz
dessas inovações conceituais. A partir das diversas acepções que tomou, ajudaria a
reformular o vocabulário e a terapêutica médica, resultando na produção de um discurso
comprometido com a redefinição da jurisdição médica na sociedade.
280
Ibid., 120. 281
REY, Roseline. L’ame, le corps et le vivant. In. : GRMEK, Mirko ; FANTINI, Bernardino. Histoire de la pensée médicale en occident. V. 2. De la Renaissance aux Lumières. Paris: Éditions du Seulo, 1996., p. 117-55.
105
No caso específico dos vitalistas, a “força vital” seria o elemento responsável pelo
equilíbrio da chamada “economia animal.” Mas sua origem e os limites de sua atuação,
inclusive em relação à alma, era objeto de controvérsia até entre seus seguidores.282 Apesar
das divergências, Elizabeth Williams procura defini-la por meio de um enquadramento
mais geral e comum à maior parte dos médicos seguidores da doutrina. Assim a força vital
seria uma força não física e não espiritual, que agiria de forma semelhante ao magnetismo e
à gravidade, podendo ter seus efeitos observados empiricamente, mas sua origem ainda
seria desconhecida. Ela seria responsável pela harmonia e integração entre os organismos
vivos e conferiria o caráter teleológico das funções fisiológicas.283 Nesse sentido, a
fisiologia tornava-se a anatomia em ação, o que prescreveria o estudo dos corpos em vida,
pois esses efeitos seriam alterados após a morte284.
A interação da força vital com diversos de fatores tanto internos quanto externos aos
indivíduos constituiria “economia animal”, que se expressaria no estado físico e no moral
dos indivíduos. Dentre esses fatores estariam características como o clima e região em que
o indivíduo vivia, sexo, idade, alimentação, temperamento e conduta moral. Quando
perturbado, o equilíbrio resultante da interação dessas variáveis com a força vital intrínseca
ao organismo geraria a doença. Diante disso, o papel do médico seria restituir esse
equilíbrio, e para isso, ele precisaria ser capaz de compreender os meandros dessas
interações e atuar de acordo com as especificidades de cada indivíduo285.
Os vitalistas estão inscritos no processo de resgate do caráter holístico da natureza
humana ocorrido no século XVIII, ao propor uma postura da medicina diante do indivíduo
que remete à tradição hipocrático-galênica. Nesse período, diversas correntes de
pensamento médico apontam uma tendência em enxergar a saúde física e moral dos
indivíduos como resultado de um equilíbrio entre aspectos de sua constituição interna
(sexo, idade, tipo temperamento, alimentação, conduta moral) e externa (clima, lugar onde 282
Nota-se que mesmo dentro da Univerisdade de Montpellier, os vitalistas nunca foram um grupo coeso, existindo diversas vertentes de pensamento, que muitas vezes entravam em contradição. Para uma apresentação dessa discussão e dos debates sobre a definição da força vital, ver: WOLF, Charles; TERADA, Motoichi. The animal economy as object and program in Montpellier vitalism. Science in context., n. 21(4), p. 537-579, 2008; WILLIAMS, Elizabeth A. The physical and the moral: Anthropology, physiology, and philosophical medicine in France, 1750-1850. Cambridge, Cambridge University Press, 1994. 283
Ibid, p.31 284
Ibid., p.29-41. 285
Ibid., p.46-62.
106
nasceu, lugar onde vive), sem estabelecer limites claros entre um domínio e outro. No
contexto francês, essa perspectiva esteve na raiz da chamada science de l’homme286, que
teve entre os vitalistas da Faculdade de Medicina de Montpellier, número expressivo de
seguidores. Durante o período revulocionário, no final da década de 1780, seus postulados
fundamentariam as propostas dos médicos idéologues que, afinados com os ideais
revolucionários, reivindicariam uma nova jurisdição médica, que a legitimaria a intervir e
organizar a vida social segundo essas renovações.287 Além disso, Williams afirma que ela
permaneceria inscrita no pensamento médico francês até sua ruptura, a partir do século
XIX, quando sua fragmentação daria origem a diversas especialidades médicas, dentre elas,
o alienismo, a higiene e a medicina legal, que conservariam de forma indireta sua proposta
mais geral de intervenção médica na sociedade .288
Todas essas discussões, por caminhos variados, fazem referência a uma tendência
importante para a compreensão dos debates médicos e de diversas outras manifestações
culturais do século XVIII, conhecida como reabilitação das sensibilidades. A contestação
das concepções estritamente mecânicas da fisiologia humana em favor de uma abordagem
voltada para o “orgânico”, acabariam por resultar numa profusão de discursos sobre as
paixões e as emoções, tendo como ponto comum o estudo das suas influências sobre a
conduta moral dos indivíduos e da coletividade. Roselyne Rey ressalta que essa questão já
estava inscrita em diversas tradições filosóficas e teológicas ocidentais através da influência
platônica e aristotélico-tomista, que perpassaram o período medieval até a Renascença.
Nesse sentido, a reação à divisão entre os domínios do corpo e da alma nos moldes
cartesianos, no século XVIII, seria marcada pela retomada dessas questões como
286
De acordo com a autora, a science de l’homme não tem uma definição exata, mas poderiam ser caracterizadas por quatro fatores principais: em primeiro, elas enxergariam o homem a partir de uma concepção holística, o que implicaria, em segundo lugar, uma reciprocidade entre seus aspectos físicos e morais. Desse modo, essas duas características levariam a terceira, que subentende que a medicina deveria estar inscrita na sociedade, pois os fenômenos sociais teriam relação com o bem-estar do corpo. Em quarto lugar, os homens seriam separados em “tipos”, que seriam definidos a partir de aspectos como idade, sexo, clima, doenças, etc. Ibid., p.8-9. 287
Sobre os idéologues e suas propostas no contexto da revolução francesa, ver: WILLIAMS., op. cit. p. 67-78. 288
Ibid., p.11-17.
107
fundamento para novas correntes do pensamento médico, defensoras, como vimos, de um
novo papel para a medicina na sociedade.289
Nesse contexto, a “sensibilidade” foi recolocada como questão privilegiada no
interior das mais variadas correntes de pensamento médico. Atribuía-se às sensações a
origem da condição física e moral dos indivíduos, uma vez que elas seriam responsáveis
tanto pelo movimento do corpo quanto pelas manifestações do ânimo. O objetivo era
desvendar quais as estruturas, materiais ou imateriais, seriam responsáveis por esses
mecanismos e como elas poderiam alterar o estado geral do organismo. Como resposta,
diversas propostas foram formuladas no interior de diversas tradições, inclusive vitalistas,
animistas e iatromecânicas, dentre outras.
Albrecht Von Haller (1708-1777) foi um dos mais destacados autores de pesquisas
sobre essas questões. Em 1752, como professor da universidade de Göttingen, apresentou
diante da Sociedade Real de Ciências da mesma cidade o trabalho intitulado De partibus
corporis humani sensibilibus et irritabilibus290, no qual defende uma diferenciação entre
partes irritáveis e partes sensíveis do corpo humano. Por definição, as primeiras seriam as
partes que, após serem tocadas, ficariam mais curtas; já as partes sensíveis, quando tocadas,
transmitiriam impressões à alma. Segundo Marisa Russo, Haller valeu-se desses critérios
para produzir um inventário completo das partes do corpo humano segundo a ausência ou
manifestação dessas propriedades, oferecendo assim, o “esboço de uma anatomia capaz de
oferecer um ‘mapeamento sensitivo e motor’ do corpo animal” 291
Para Haller, irritabilidade e a sensibilidade seriam características intrínsecas às
fibras que compunham as partes de corpo humano. Como temos acompanhado, a ideia de
que a matéria orgânica poderia gerar movimento e sensação por si mesma era ponto em
comum entre muitas correntes de pensamento do período. No entanto, em boa parte dessas
vertentes, costumava-se atribuir essa característica a uma mesma propriedade da matéria
289
REY, Roseline. Hygiène et souci de soi dans la pensée médicale des Lumières. In.: Communications., n.56., p.25-39, 1993. 290 Segundo Marissa Russo, em 1755 o trabalho seria traduzido para o francês por Tissot, sob o título Dissertation sur les parties sensibles e irritables des animaux. LECOINTRE, Marisa Russo. Irritabilidade e sensibilidade: fisiologia e filosofia de Albrecht Von Haller. In.: MARTINS, R. A.; MARTINS, L. A. C. P.; SILVA, C.C.; FERREIRA, J. M. H. (eds.) Filosofia e História da Ciência no Cone Sul: 3º encontro: AFHIC, 2004. p. 310-319. 291
Ibid. p.315.
108
orgânica, a irritabilidade. Ao definir a sensibilidade e a irritabilidade como propriedades
distintas e classificá-las como propriedades específicas de certas partes do corpo, Haller
rompeu com uma longa tradição médico-filosófica e abriu nova perspectiva epistemológica
para analisar a anatomia humana:
“Os conceitos de irritabilidade e sensibilidade passam a
iluminar o corte do bisturi, e uma nova anatomia passa a redelimitar as
partes do corpo, tomando como referência não o limite espacial que
um certo olhar pode reconhecer na forma, mas o limite funcional, na
expressão mais íntima dessa máquina orgânica”292
Segundo Georges Rousseau, esses debates sobre as sensibilidades e as emoções são
parte de um processo mais amplo que teria marcado o século XVIII e o próprio iluminismo,
definido como a “secularização da cognição e da percepção por meio do cérebro e de seus
vassalos, os nervos.” 293 O autor procura mostrar como as concepções tradicionais da
relação alma-corpo, que remetem ao mundo grego e medieval, foram reformuladas pela
filosofia mecânica ao propor a materialização dos processos sensitivos e cognitivos, antes
relacionados diretamente à alma. Como resultado, os debates suscitados pelas correntes
filosóficas setecentistas (incluídas as críticas ao mecanicismo e à passividade da matéria)
não passariam de reflexos de um processo social mais geral que, segundo Rousseau,
“engoliu a própria teoria médica”, caracterizando as diversas tentativas de formular novos
modelos que pudessem dar explicações satisfatórias aos processos cognitivos e emocionais
humanos.294 O autor defende que essas discussões acabariam por naturalizar os nervos
como metáfora na linguagem utilizada em vários campos de discussão filosófica do
período. Na sua longa descrição, o século XVIII:
“os teologizou, tanto na teologia radical quanto na
conservadora, da época, pois dizia-se (os conservadores) que os nervos
292
Ibid. p.317. 293
ROUSSEAU, Georges. Para uma semiótica do nervo: a história social da linguagem em novo tom. In.: BURKE, Peter.; PORTER, Roy. (org.). Linguagem, indivíduo e sociedade. São Paulo: Unesp, 1993. p. 294. 294
Ibid. p.315.
109
eram a dádiva fisiológica de um Deus benevolente a um povo
perverso, que precisava deles para se modificar, e também (nas versões
radicais, como as das conferências de Boyle) a revelação da bondade
de Deus ao dotar suas criaturas com a unidade de organização de que
mais precisavam. Demonizou-os, na medida em que os empíricos e
espiritualistas continuaram a dotá-los de poderes mágicos e alquímicos
que ninguém nunca tinha visto. Mecanizou-os e vitalizou-os em
incontáveis debates médicos por toda a Europa. Taxonomizou-os em
nervos mais fortes e mais fracos, mais e menos importantes, maiores e
menores, pigmentados e não pigmentados, brancos e pretos, vermelhos
e amarelos, da forma que Lineu, Cullen, e muitos outros propuseram-
se a fazer seus esquemas nosológicos. ‘Darwinizou-os’, também,
quando Erasmus Darwin sugeriu que o sistema nervoso vinha
evoluindo (desenvolvendo-se em insetos e em animais mais
inteligentes) e acabaria evoluindo em algo muito maior do que era no
fim do século XVIII. Classificou-os, patologicamente, em estados
normais e anormais-condições gerais, por assim dizer, dos nervos que
davam o tom de toda saúde humana e determinavam a longevidade. E
‘biologizou-os’ nas discussões embriológicas sobre reprodução, pré-
formação e epigênese”295
Dando continuidade a sua tese, Georges Rousseau mostra como essa nova
linguagem gerou diversas ramificações sociais e, em determinados setores, passou a
295
Ibid. p.296. No interior dessa nova cultura dos nervos, Roy Porter também identifica a ascensão de um vocabulário sobre as fibras, entendidas como a unidade anatômica mínima das estruturas orgânicas e centro da capacidade de reação dos tecidos. Na esteira das investigações sobre as sensibilidades, o “tônus” das fibras constitui mais uma ferramenta linguística para representar estados físicos e morais dos indivíduos: “Entram em jogo novas metáforas, multiplicando as alusões às sensibilidades, evocando os ‘fios’ frouxos ou tensos para visar melhor ‘recuperar o tônus da fibra e colocá-la em harmonia com o resto do instrumento vital’”. Assim, o estado das fibras foi frequentemente relacionado à condição moral dos indivíduos. É nesse sentido, por exemplo, que muitos médicos passaram a receitar banhos frios ou quentes para seus pacientes, como forma de alterar seu ânimo. PORTER, Roy; VIGARELLO, Georges. Corpo, saúde e doenças. In.: VIGARELLO, Georges; CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jaques (org.). História do corpo (vol.1). Rio de Janeiro: Vozes, 2008. pp. 441-486.
110
determinar códigos sociais, dando origem ao que chamou de “mitologia nervosa” 296.
Indivíduos pertencentes ou recém-chegados à classe média, por exemplo, utilizavam-se do
vocabulário dos nervos como fator de diferenciação de sua posição social. Nesse período
tornou-se comum que o temperamento, estados emocionais e enfermidades de pessoas
ligadas às classes mais altas fossem descritos em termos da mitologia dos nervos, como
“neurastênico”, “nervoso”, “bilioso”, etc. Diante da necessidade de diferenciar-se
socialmente, as enfermidades nervosas ficaram tão relacionadas aos membros da elite
quanto a tuberculose para as classes mais baixas:
“O processo representa uma convivência calculada entre aqueles
que geraram (formularam e articularam) a teoria fisiológica e aqueles
(figuras políticas, negociantes, profissionais) que conduziam as
massas? Certamente não. Ainda assim, todos os grupos envolvidos
relacionaram-se a essa nova mitologia dos nervos, e portanto é
historicamente importante notar em que medida esta semiótica do
nervo estava limitada por classes e – é claro – limitada por gênero.” 297
É importante reforçarmos que essas renovações nos discursos e nas práticas de
diversos setores sociais, não significaram uma recusa generalizada à filosofia mecânica na
medicina, mas antes o surgimento de discursos alternativos ou que propunham sua revisão.
A iatromecânica, assim como os postulados mecanicistas solidistas, ainda estavam
presentes de forma significativa em círculos médicos proeminentes, inclusive nas propostas
de seus críticos. De acordo com Harold Cook, a fisiologia de Boerhaave, por exemplo,
entendia o funcionamento do corpo humano a partir do equilíbrio entre as partes sólidas e
líquidas que o compunham, evitando referência a forças imateriais para explicar processos
fisiológicos. 298 Os estudos de Stephen Hales sobre a circulação sanguínea, outra referência
importante para muitos autores da época, também devem muito aos princípios da
iatromecânica. Publicada em 1733, sua obra mais conhecida, a Haemastaticks, procurava
fornecer conclusões inovadoras sobre as relações entre a pressão sanguínea e o tamanho
296
ROUSSEAU. op. cit. p.303. 297
Ibid. p.305. 298
COOK., op. cit., p.221-240
111
dos animais; a velocidade da circulação em diferentes partes do corpo, além de fornecer
quadros estatísticos dos valores da pressão sanguínea de diferentes tipos de animais.299
Além desses, poderíamos também citar os esforços de François Boissier de
Sauvages de traçar quadros nosológicos, articulando a tradição de Sydenham e as propostas
de Linneu; as teorias da respirabilidade com Joseph Black, Lavoisier; ou até mesmos as
calorosas discussões sobre hereditariedade. Mas, como vem sendo apontado, nossos
interesses no presente trabalho estão voltados para as transformações filosóficas que
levaram a produção de um novo discurso médico, que procura redefinir a jurisdição da
medicina no contexto das inovações trazidas pelo iluminismo.
Sobre essa questão, Roselyne Rey defende que os debates sobre as sensibilidades,
especialmente a partir da segunda metade do século, apontam para o surgimento de um
discurso higienista cada vez mais voltado para a esfera pública, nos moldes de uma “polícia
médica.” 300 O moralismo característico desse discurso emergente poderia ser representado
na afirmação de Ménuret de Chambaud na encilopédia de Diderot, transcrita pela autora:
“peut-être est-il vrai que, pour être un bon moraliste, il faut être excellent médecin.”301
Para a autora, essa retórica médica tenta redefinir a relação do sujeito com seu próprio
corpo. Este se torna um objeto de atenção, que não pode ser reduzido à conservação da
saúde, pois deixa de ser entendido como um “envelope carnal” para se tornar o meio pelo
qual o indivíduo se relaciona com o mundo.302
Segundo Rey, ao colocar as sensibilidades na ordem do dia, os debates filosóficos
desse período tenderam a deslocar o “eu” da alma humana e espalhá-lo por todo o corpo, de
modo que as sensações se tornassem parte dele.303 A sensibilidade deixa de ser apenas a
299
MAZZOLINI., op. cit. p.111. 300
ROSELYNE, Rey. Hygiène et souci de soi., op cit., p.25 301
Idem. 302
Ibid. p.26. 303
De acordo com Sergio Moravia, isso foi possível devido à ocorrência de dois processos ao longo desse período : a “destruição das essências” e a “captura do invisível”. O primeiro consistiria numa recusa à idéia do Ser como uma essência uniforme. No lugar, ele passaria a ser entendido como o resultado de conformações das percepções, que estão em constante movimento e transformação.
Moravia enfatiza o ataque que muitos intelectuais iluministas promoveram à idéia do Ser como uma essência a partir da segunda metade do século XVIII, especialmente na Inglaterra e na França: “The only way
to include it [self] and its higher functions within the realm of empirical knowledge seemed to many to be its
‘dissolution’ into the empirical phenomenology of the acts that it performed.”
112
centelha da vida, ela se torna a sua condição, porque é ela que mantém o corpo em
funcionamento, logo ela seria tão importante quanto o ar para a manutenção da vida: “sans
besoin, sans appétit, sans inquiétude, la machine animale, au sens propre, cesserait de
fonctionner.”304
Se os sentidos eram condições básicas para a vida, então era necessário educá-los,
controlá-los, como forma de garantir um equilíbrio saudável das funções vitais. Assim, a
felicidade e a saúde dependeriam de seu bom uso, enquanto a doença seria o resultado de
seu desregramento. Nesse sentido, torna-se aconselhável a busca por atividades de lazer e
diversificação das atividades intelectuais, numa articulação harmoniosa entre o cuidado
consigo e a vida social, indicativa de uma aproximação cada vez maior entre higiene e
moral.305
Tais transformações levaram ao fim da clivagem entre o meio interior e o exterior
dos indivíduos, tornando-os domínios contínuos. Em consonância com as afirmações de
Elizabeth Williams ao analisar as propostas vitalistas306, Rey conclui que a higiene privada
emerge em oposição à higiene pública ao particularizar os cuidados pessoais de acordo com
a constituição física e moral de cada indivíduo e da sua relação específica com o seu meio,
aspectos analisados a partir de cuidadosa observação dos hábitos, idade, sexo, alimentação,
clima, constituição do ar, dentre outros.307
Como foi colocado no início do capítulo, essas concepções inovadoras estão na raiz
da retórica médica renovada da segunda metade do século XVIII. O primado das sensações
enquanto condição para a vida possibilitou a laicização dos discursos sobre os sentimentos
Como desdobramento desses posicionamentos, a “captura do invisível”, se daria através de três
estratégias: a primeira seria a busca empírica pelos movimentos da alma e teria como base a concepção de que a ela se manifestaria através da linguagem corporal visível. Nesse sentido, mesmo as suas funções mais impalpáveis poderiam ser decifradas pelo conhecimento científico. A segunda estratégia consistiria na tradução de termos metafísicos para termos mais palpáveis, assim a concepção de “alma” se aproxima cada vez mais do “moral” para se referir às dimensões humanas que não teriam conotação teológica e seriam empiricamente verificáveis. Esse conceito tem íntima relação com o físico, constituindo a organização
corporal humana. A terceira estratégia é a mais radical das três e propõe a completa redução da alma ao corpo, assim, o homem moral seria essencialmente o homem físico. MORAVIA, Sergio. The capture of the invisible. For a (pre)history of psychology in eighteenth-century France, Journal of the History of the Behavioral Sciences, vol.19, pp. 370-378, out. 1983.. p.371-375. 304
REY, Roselyne. Hygiène et souci de soi dans la pensée médicale des Lumières., op. cit. p.27. 305
Ibid. p.28. 306
Ver página 10. 307
Ibid. p.32-33.
113
e as emoções humanas, abrindo espaço para a medicina propor seu modelo de intervenção
social, no qual ela se legitimaria como entidade produtora de padrões de conduta física e
moral. Já mencionamos que, tradicionalmente, essa tarefa era adstrita a outros discursos,
sobretudo o teológico. Mas a partir desse período, os remédios “morais” utilizados pela
Igreja, passaram a ser vistos como ineficazes, pelo menos nos casos em que os médicos
conseguissem identificar suas causas fisiológicas, subentendendo a subordinação do
conhecimento religioso ao médico.
Tal processo também ocorreu em Portugal durante as reformas ilustradas, iniciadas
durante o consulado pombalino e estendidas até o período mariano. Embora não tenham
deixado indícios de institucionalização mais efetiva, as reivindicações pelo tratamento das
paixões da alma pela via da psicofisiologia estiveram presentes em obras marginais
publicadas ao longo desses anos.
3.2 A psicofisiologia das paixões na medicina portuguesa: Ribeiro Sanches e Francisco
Melo Franco
Como temos mostrado, as concepções sobre a natureza humana originadas nos
amplos debates médico-filosóficos setecentistas tornaram possíveis o desenvolvimento e a
larga difusão do olhar médico sobre o comportamento transgressor. Tais debates
empolgaram segmentos da medicina lusitana que passaram a contestar a ortodoxia moral,
religiosa e política do Antigo Regime, enfeixada sob a batuta da Inquisição, dos órgãos
censores e da Intendência Geral de Polícia. Nesse sentido, de forma semelhante ao que
acontecia em outros contextos iluministas, parte da intelectualidade médica lusa procurou
ampliar sua esfera de intervenção profissional através de uma retórica baseada nas novas
formulações sobre a psicofisiologia das paixões. Essas formulações eram derivadas dos
estudos neurológicos desenvolvidos a partir de postulados mecanicistas, vitalistas,
animistas, que procuraram redefinir a antigo problema da interação entre corpo e alma, nos
homens.
No contexto do reformismo ilustrado em Portugal, as obras produzidas com essa
orientação, como afirmamos acima, foram raras e marginais, e não temos maiores indícios
de sua irradiação e institucionalização, mesmo no período posterior à reforma do currículo
114
médico da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em 1772. Em geral, elas
prezam pela laicização dos discursos sobre comportamentos tradicionalmente considerados
pecaminosos ou imorais pela Teologia e o Direito, e procuram redefini-los, total ou
parcialmente, como doentios, a partir de referenciais próprios ao discurso médico de matriz
racional-empirista. Seus autores também escreveram livros pedagógicos de higiene pública
e privada, e tiveram intensa participação nos círculos ilustrados lusitanos de suas
respectivas épocas.
Destacaremos duas dessas obras que, embora distantes 41 anos entre si e inseridas
em contextos distintos da ilustração portuguesa, contribuíram para a emergência dessas
formulações no campo intelectual português a partir da segunda metade do século XVIII.
Uma delas é a, já mencionada, Dissertação sobre as paixões da alma, escrita por Antonio
Ribeiro Sanches em 1753. A outra, foi publicada em Portugal no ano de 1794 pelo médico
brasileiro, Francisco Mello Franco (1757-1822), sob o longo título Medicina theologica ou
Súplica humilde feita a todos os senhores Confessores e Directores sobre o modo de
proceder com os seus penitentes na emenda dos peccados, principalmente da lascívia,
cólera e bebedice.
Já conhecemos a figura de Antonio Ribeiro Sanches, cuja trajetória e inserção na
intelectualidade ilustrada lusa, durante o período pombalino, foram objetos de nosso
segundo capítulo. A Dissertação sobre as paixões da alma, por sua vez, será analisada na
próxima seção deste capítulo.
O autor da Medicina Theologica, Francisco Mello Franco, nasceu em Paracatu,
Minas Gerais, em 1757, (portanto, quatro anos após Sanches ter concluído o manuscrito da
Dissertação) e faleceu em 1823, na cidade de Ubatuba, em São Paulo.308 Apesar de ter
começado e terminado seus dias na América portuguesa, o auge de sua carreira se deu em
Portugal, onde cursou medicina na Universidade de Coimbra e residiu por trinta anos,
adquirindo boa reputação como médico. Segundo Luiz Carlos Villalta, o médico mineiro
integrou a junta médica que declarou D. Maria I insana e, em 1808, foi nomeado médico
honorário da Real Câmara. Em 1817, seu prestígio como praticante da arte médica foi
reconhecido por D. João VI, que o nomeou médico da princesa Maria Leopoldina, o que
308
MASSIMI, Marina. As idéias psicológicas de Francisco Mello Franco, médico e iluminista brasileiro. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v.7, n.1, pp. 83-90., 1991., p.84.
115
levou o a fazer parte da comitiva que a acompanhou ao Brasil. De volta à América
Portuguesa, manteve-se como renomado médico no Rio de Janeiro até que, devido a
intrigas palacianas, foi considerado traidor por D. João VI e proibido de entrar na Corte.
Seus últimos dias foram marcados pela miséria devido à sua expulsão e a falência do banco
em que depositara toda a sua fortuna.309
Apesar da proximidade que teria com a Coroa portuguesa ao longo de sua trajetória,
a atividade intelectual de Mello Franco foi marcada por sua oposição às características que
considerava contraditórias na ilustração portuguesa, sobretudo durante o governo de Dona
Maria I e da regência de Dom João I, entre 1777 e 1816. Esse período, apesar de não ter
significado uma ruptura com as reformas ilustradas do consulado pombalino, foi marcado
pelo exílio de Pombal e pela ascensão ao poder de alguns de seus opositores e perseguidos.
Apesar disso, deu-se continuidade ao regalismo laicizante do consulado anterior, mas
dentro dos limites estabelecidos pela atividade inquisitorial, a Real Mesa Censória e a
Intendência Geral de Polícia.310
O médico mineiro foi um dos intelectuais formados na Universidade de Coimbra
reformada, assim como José Bonifácio de Andrada e Silva, Antônio de Morais Silva,
Vicente Seabra Telles e Manoel Joaquim Henriques de Paiva. De forma semelhante a
alguns desses intelectuais, seus posicionamentos políticos controversos o tornaram alvo da
atividade repressiva da Coroa.311 Formou-se em medicina após ter ficado preso durante
quatro anos sob a acusação de irreligiosidade pelo tribunal inquisitorial e, no ano de sua
formatura, publicou O Reino da Estupidez, poema satírico que ridiculariza a Universidade
de Coimbra no período mariano312. Em 1794, a Medicina teológica, publicada como obra
apócrifa, também seria também alvo da perseguição régia pelo seu conteúdo considerado
anti-clerical, através do intendente de polícia Pina Manique.
Segundo Marina Massimi, o referencial empirista é uma marca importante da obra
do autor, que na sua definição é uma “síntese feliz” entre iluminismo e medicina, de modo
que em seu trabalho fica “evidente o interesse pelo estudo científico da subjetividade e da
309
VILLALTA., op. cit., p.133 310
Ibid., p.128. 311
Sobre esse assunto ver: VILLALTA. op. cit. p. 128-148. 312
Ibid. p.133-135.
116
busca de modalidades adequadas para ele.” 313 Para Massimi, desde o seu Tratado para a
educação fysica dos meninos, para uso da nação portuguesa (1790), Franco,
comprometido com a primazia da razão conjugada com a observação para o
estabelecimento de um novo saber, procura formular um modelo educacional para a
juventude portuguesa voltado para o cultivo do corpo e dos sentidos. Essa orientação seria
fundamental, pois determinaria a formação moral dos cidadãos portugueses:
“Ninguém, refletido, deixará de conhecer o quanto importa à
perfeição dos homens a perfeição dos sentidos, pois, estando hoje em
dia assentado entre os filósofos que a primeira e única fonte dos nossos
conhecimentos são os sentidos, é manifesto que, quanto mais
aperfeiçoados forem, menos errôneas serão nossas idéias” 314
Os argumentos de Mello Franco em Medicina Theológica são uma amostra do tipo
de discurso médico que começa a ser forjado a partir do referencial empirista em Portugal.
Em linhas gerais, Franco afirma a inaptidão dos confessores para tratar das paixões da alma
por desconhecerem as ligações existentes entre a alma e o corpo, o que a legitimaria o tema
pertencente ao escopo da atuação médica. Paulo José Carvalho da Silva315 mostrou como o
médico mineiro reivindicou a intervenção da medicina na esfera religiosa ao procurar
instruir os confessores a tratar da alma. De acordo com a concepção de natureza humana
defendida por Franco, os remédios exclusivamente morais seriam inúteis:
“porque seria ineficiente agir apenas na alma. Orações, jejuns e
disciplinas de nada valem. Ao invés de considerar o corpo um mero
escravo rebelde da alma, o confessor deve aprender as leis que regem seu
funcionamento. Não basta apenas ser médico de almas, ele deve
necessariamente remediar o corpo.” 316
313 MASSIMI, Marina. As idéias psicológicas de Francisco Mello Franco, médico e iluminista brasileiro. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v.7, n.1, pp. 83-90., 1991 314
MASSIMI., op cit., p. 84 apud. FRANCO, 1946., p.233. 315
SILVA, Paulo José Carvalho da. A psicopatologia entre a alma e os nervos: a Medicina theologica (1784) de Francisco de Mello Franco. Filosofia e História da Biologia, v.3, pp. 335-345, 2008 316
Ibid., p.336.
117
Franco vai além dessa prescrição e afirma que a própria salvação da alma
dependeria da saúde do corpo, e assim tenta subordinar a teologia à medicina, pois o
conhecimento médico articulado com a teologia teria mais a oferecer para a Igreja que a
teologia em si, uma vez que os teólogos seriam “sobremaneira ascéticos e abstratos,
ocupados unicamente com ideias platônicas e aristotélicas”.317 Os teólogos deveriam
conhecer a natureza dos nervos, sua estrutura, disposição e seus usos para poder
compreender os vícios humanos, pois os acidentes da alma dependeriam do que acontece
com os nervos. Silva enxerga uma proximidade entre as ideias de Franco e alguns autores
ligados ao empiricismo, como Albrecht Von Haller e Antoine Le Camus (1722-1772), cuja
publicação de 1753 (reeditada em 1769) intitulada La médecine de l’esprit entendia a
origem das paixões nas sensibilidades de corpo, por meio dos efeitos das impressões
externas sobre as fibras animais
As críticas apresentadas por Franco têm calibre semelhante às de Sanches,
publicadas 41 anos antes. Embora não haja indícios claros de que Franco tenha se
apropriado das ideias do médico de Penamacor sobre a psicofisiologia das paixões, nota-se
que ambos apontam seus argumentos na direção de uma redefinição do papel da medicina
na sociedade portuguesa reformada ao denunciarem a suposta ilegitimidade dos teólogos
para tratar desse tema, e ampliarem a jurisdição médica sobre as questões relativas ao físico
e o moral dos indivíduos. Além disso, ambos estavam munidos de um referencial teórico-
metodológico que entende a natureza humana a partir do primado das sensibilidades, nos
moldes dos debates setecentistas sobre o assunto, como temos mostrado. No entanto, não
podemos ignorar o fato de que tratamos de duas obras médicas raras e marginais, e não
possuímos evidências de que tenham alcançado algum grau de institucionalização e
irradiação de forma efetiva nos círculos intelectuais lusos.
Também deve ser levado em consideração o significativo distanciamento temporal
entre os dois textos. Quando Sanches publicou sua Dissertação sobre as paixões da alma o
discurso higiênico derivado de matriz filosófica empirista tinha contornos menos definidos
do que possuía em fins do século, sobretudo com a ascensão do discurso vitalista e das
317
Ibid., p.337.
118
propostas dos idéologues, dentre outros fatores. Por outro lado, ambas as obras têm sentido
no interior do mesmo processo de construção de um novo discurso médico voltado para a
reforma das instituições sociais, em afinação com as propostas iluministas. Tal afirmação é
comprovada pela publicação póstuma da Dissertação sobre as paixões da alma na
Encyclopédie Méthodique em 1787, pelo médico francês e amigo de Ribeiro Sanches,
Charles Andry. Para além de um ato de consideração do médico com seu amigo português
de longa data, a publicação pode ser tomada como indício da pertinência da obra 44 anos
depois de ter sido escrita, no calor dos debates médicos franceses das últimas décadas do
século XVIII.
Ao longo deste capítulo, procuramos fornecer uma ideia geral dos debates médico-
filosóficos setecentistas sobre a natureza e a fisiologia humana, buscando também salientar
o surgimento de um vocabulário médico renovado, que foi progressivamente formulado e
apropriado por uma medicina cada vez mais comprometida em ampliar sua jurisdição e
seus objetos de estudo. Nas próximas páginas, veremos em que medida esses debates foram
apropriados por Ribeiro Sanches na Dissertação sobre as paixões da alma como suporte
para suas reivindicações no contexto das reformas ilustradas em Portugal.
3.3 “O ânimo tem sumo poder de alterar o corpo”: a Dissertação sobre as paixões da alma e a proposta de uma nova jurisdição médica.
De uma forma geral, a Dissertação sobre as paixões da alma se alinha com as obras
posteriores de Ribeiro Sanches no que diz respeito à redefinição do papel da ciência médica
na sociedade portuguesa. A Igreja, um dos principais alvos da intelectualidade ilustrada no
período, e o Direito, aparecem como usurpadores da jurisdição médica sobre a alma e o
ânimo. Assim, como em outras obras analisadas no capítulo 2, Sanches argumenta que se
trata de devolver à medicina um objeto que já lhe pertenceu. Nesse sentido, a obra está
inserida na proposta mais geral do médico de Penamacor para a sociedade portuguesa
reformada, que procura colocar a medicina na linha de frente de um discurso higiênico que
perpassa os âmbitos privado e coletivo da vida social lusa.
119
Desse modo, a psicofisiologia das paixões proposta pelo autor confere a
legitimidade necessária para justificar a intervenção médica nos domínios do moral,
justificada pela raridade com que as paixões, tomadas como causa de muitas enfermidades,
tinham sido abordadas pela medicina. Ainda mais incomuns, seriam os trabalhos médicos
que indagavam sobre as causas delas:
“Enfim tratarei aqui as paixões da alma como causa de muitas
doenças e enfermidades, o que pertence essencialmente à Patologia, e
ainda que não seja deste lugar, tratarei de passo mas não confusamente
da causa das paixões da alma, o que pertence tanto ao teólogo [e ao]
jurisconsulto como ao médico prático ou terapêutico.”318
Desse modo, num plano imediatamente político, Ribeiro Sanches apela para uma
reforma do saber médico que deveria incidir diretamente na ampliação de seu alcance
jurisdicional. Ao questionar as fronteiras do exercício profissional, ele interpelava tanto
seus pares, quanto a esfera do Direito e da Teologia.
Ao longo da obra, recuso erudito aos exemplos extraídos de autoridades médicas
antigas e modernas ligadas aos diferentes sistemas médicos, pode ser entendido como uma
estratégia retórica. Por um lado, demonstra sua observância às regras de um discurso
racional, desprovido de preconceitos e estritamente informado por observações empíricas
verossímeis; por outro, ao expor suas idéias como imersas na venerável linhagem médica
iniciada por Hipócrates, apresentando-se, inclusive como um compilador, ou, em suas
palavras, “mero coletor de escritos”319, evitava vincular-se explicitamente a uma corrente
teórica específica. Assim, seu vocabulário faz referência tanto a categorias que emergiam
nos debates médicos de sua época como também remete a tradições médicas antigas,
especialmente concepções hipocráticas e galênicas.
Esse aspecto, longe de tornar Ribeiro Sanches um autor “confuso” ou “transitório”
entre diferentes paradigmas filosóficos, revela sua fidelidade ao espírito eclético
318
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da Alma. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2003.. p.01 319
Ibid., p.13.
120
característico da intelectualidade ilustrada. Nesse sentido, as filiações a teorias e sistemas
filosóficos dos autores citados eram consideradas irrelevantes diante da plausibilidade dos
fenômenos observados na natureza, pois acreditava-se que tal plausibilidade era atemporal,
e, portanto, válida compor para novas explicações.
Como já vimos, essa atitude é resultado da crítica ilustrada à suposta supremacia da
razão para a compreensão da realidade, assentada na concepção de que a razão, quando não
conjugada com a observação, pode conduzir ao erro. Daí a importância dada por Sanches às
alterações causadas pelas paixões nos sentidos e no juízo, pois esses seriam os meios
através dos quais os indivíduos se relacionariam com o meio exterior.
Segundo Ribeiro Sanches, o “homem civilizado” seria composto de alma e corpo e
teria a capacidade de “conceber, julgar e discorrer ações distintas totalmente das corporais
que se reduzem ao sentimento e ao movimento.” 320 Na antiguidade, os médicos, além de se
ocuparem dos cuidados do corpo, dividiam jurisdição sobre a “parte inteligente” com
filósofos e legisladores. Os filósofos cuidariam dos regramentos das consciências através da
instrução pública e particular, de modo que os legisladores seriam responsáveis por:
“curar os males que causam as paixões desordenadas; não
ensinavam nem persuadiam mas castigavam as faltas daquela parte
inteligente que eram prejudiciais à sociedade. Castigando induziam o
medo nos ânimos desregrados e atemorizavam os inocentes para não
ousarem cometer delitos e é o que fazem ainda hoje os nossos
legisladores e jurisconsultos.” 321
Esse modelo de organização da vida social teria sido alterado pela “Revelação da
Santíssima religião,” que trouxe dogmas direcionados tanto à conservação da alma como do
corpo. Com isso, os médicos deixaram de tratar o ânimo, deixando-o a cargo dos teólogos:
“Pitágoras, Demócrito e Empédocles não somente foram filósofos
mas também médicos. Estes meditando e ensinando como se havia de
320
Idem. 321
Idem.
121
conservar o corpo são, livre tanto de males como de moléstias,
regravam ao mesmo tempo o ânimo. Todos sabem a dieta pitagórica e
a Filosofia desta seita que consistia muita parte dela na Medicina
chamada Higicne. Todos os médicos gentílicos até Galeno observaram
e praticaram nos seus enfermos esta parte da Medicina incluindo nela
regrar o ânimo; mas depois que os médicos cristãos viram que os
teólogos tomaram à sua conta esta parte, pouco a pouco largaram esta
incumbência a que eram obrigados depois dos primeiros médicos e
filósofos.” 322
Sanches fundamenta sua reivindicação pela retomada do ânimo como objeto da
medicina através uma descrição naturalística da economia das paixões, que prescinde de
qualquer referência ao modelo cristão de virtude. Ao mesmo tempo, como veremos, o autor
se afasta das descrições universalistas do homem, presentes na iatromecânica, ao relacionar
determinadas paixões da alma, tanto com disposições corporais hereditárias – base dos
temperamentos -, quanto por inclinações adquiridas, pela dieta, pelo clima, pelos hábitos e
pela idade, numa clara identificação com o neo-hipocratismo.
No entanto, logo na introdução, revela postura cautelosa e procura esquivar-se de
questões filosóficas controversas de seu tempo e, provavelmente por querer manter-se
equidistante das soluções apresentadas pelo aristotelismo escolástico e pelo racionalismo
metafísico de Descartes, recusa-se a perscrutar os meandros da ligação entre alma e corpo:
“Não entrarei na discussão de que modo a alma, sendo
espiritual, move o nosso corpo, nem porque razão o corpo variamente
disposto faça pensar, discorrer, e querer, ou aborrecer a alma racional.
Contentar-me-ei em relatar as aparências destas duas substâncias
distintas por natureza uma da outra, mas ligadas de um modo que é
impossível a natureza humana compreendê-las.” 323
322
Idem. 323
Idem.
122
Apesar de a origem desse “imperscrutável vínculo” ser desconhecida, as variações
das expressões, da fisiologia e do comportamento no homem, afetado pelos mais diversos
sentimentos comprovariam que o “ânimo tem sumo poder de alterar o corpo.”324 Isso
porque a alma e o corpo, quando ligados entre si, obedecem um ao outro, de modo que suas
ações busquem a sua conservação, que é o “estado da saúde”.325 Assim, essa união é dotada
de propriedades que dependem da harmonia entre os dois domínios para conservar a vida.
São elas: 1) a faculdade de perceber os objetos que entram pelos cinco sentidos; 2) a
memória, definida como a faculdade de conservar no sensório comum as ideas ou
impressões que apresentam os sentidos. Vale notar que, para Sanches, a memória tem
origem material, pois ela poderia se extinguir por meio de várias doenças326; 3) a terceira
propriedade seria a Faculdade de perceber cada objeto de três modos distintos: ideia
agradável, ideia desagradável, ideia indiferente; 4) a quarta propriedade seria a própria
obediência mútua entre corpo e alma quando em “união natural e perfeita saúde”; 5) seriam
os movimentos involuntários, aqueles produzidos sem que “se aperceba a vontade”; 6) por
último, viria a faculdade de perceber as sensações agradáveis ou desagradáveis não só
causadas pelos objetos imediatos, mas também por aquelas impressões que ficaram
registradas no sensório comum.327
Aparentemente, essa última propriedade se alinha com o próprio entendimento do
autor sobre as sensações. Sanches afirma que essa propriedade “é a origem de toda a
metafísica”, e se estende com “inumeráveis ramos por todas as ciências”328. No entanto, na
sua perspectiva, a medicina teria abdicado do tema. Por isso o médico português se propõe
324
Idem. 325 Ibid. p.2 326
Sobre essa característica da memória, na edição da Encyclopédie Méthodique há uma longa nota na qual Sanches descreve casos de pessoas que perderam a memória por causas diversas, como o caso registrado na Histoire de l’académie des Sciences do menino de oito anos que se esquecia de tudo o que havia aprendido nos dias mais quentes de verão, ao passo que, nos dias de temperatura mais amena recobrava a memória. Em seguida, o autor aconselha o leitor interessado no assunto a ler o que diz Hipócrates sobre as influências das estações do ano e do ar no Tratado dos ares, águas e lugares. Dentre outros casos, Sanches também relata o de Hermógenes Tarse, que viveu no século II. Professor de retórica aos 15 anos, esqueceu tudo o que sabia aos 24. Após sua morte, constatou-se que seu coração estava consideravelmente aumentado. Ao fim da nota, o autor também sugere a leitura de textos de Montaigne e Plínio, dentre outros. SANCHES, Antonio Ribeiro. Affections de l’âme. In. : Encyclopédie Méthodique. Paris: Panckoucke, 1787., p. 249. 327
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da alma., op. cit., p.2. 328
Idem.
123
a mostrar para seu interlocutor a pertinência de seu estudo para “sermos mais úteis aos
homens por cujo bem devemos pensar como parte deles.” 329
Na fisiologia sanchesiana o corpo humano é dotado de duas sortes de canais: o
sistema circulatório e o sistema nervoso. Essa divisão, tomada da obra Nevrologia do
anatomista francês Raymond Vieussens (1641-1715), entende o sistema circulatório como
o conjunto de artérias que tem como início e fim o coração. Do mesmo modo, o sistema
nervoso é composto pelos nervos, e tem na medula oblonga seu início e o fim, incluindo
também o cérebro e o cerebelo.330 A partir dessa tipologia, Sanches baseia-se em Thomas
Sydenham (1624-1689) para distinguir o homem sanguíneo e o homem nervoso: o homem
sanguíneo seria responsável por nutrir, animar e conservar o corpo, ao passo que o homem
nervoso teria a função de tudo mover por meio dos músculos e das sensações. Ambos
dependem intimamente um do outro tal “como um círculo dentado com outro
semelhantemente armado”.331
As sensações seriam geradas nos nervos, no modo como descreve o autor abaixo:
“Ponhamos o exemplo naquele par de nervos mais avultado
que forma o sentido da vista. Estes são os chamados ópticos[;] estes
nervos não exercitam o seu ofício de ver senão depois que largaram a
túnica da pia e dura madre com que saem forrados como em bainhas.
Logo que fica o nervo nu, dele se forma a retina dos olhos nos quais se
faz a vista de tal modo que nenhum nervo dentro do crânio nem fora
dele, enquanto está forrado com as ditas túnicas da pia e da dura
madre, não sente nem representa o objecto que o toca. Distribui-se
V.g. o nono par de nervos e o oitavo na língua ao coração e ao
diafragma, tanto que chegam àquelas partes as túnicas de que vinham
forrados se espalmam e se estendem na língua ou no coração e formam
túnicas mui subtis; fica a polpa do nervo nu e se formam em
pequeninos pontos como cabeças de alfinete. Nesta polpa ou papilas de
que se faz o sentimento, nestas papilas ou polpa é que se faz a vista;
329
Idem. 330
Idem. 331
Ibid. p.3
124
nesta polpa no ouvido se faz o ouvir; nesta polpa coberta da epidermis
se faz o sentido do tacto, mas com tal artifício que logo que aquela
polpa sente continua aquela sensação grata, ou ingrata, ou indiferente
até [a]o sensório comum ou medula oblongata, ali termina a sua
impressão. Esta impressão se conserva ali e esta é a memória.”332
Ao ser excitado, cada nervo geraria sensações distintas que poderiam variar
conforme o tipo e o grau de estímulo. Alguns nervos responsáveis por “dar gosto”, por
exemplo, gerariam sensações agradáveis ao serem tocados brandamente, ao passo que, ao
serem “esfregados” ou “roçados” gerariam dor, e quando tocados de forma violenta
corresponderiam com dor intensa. No entanto, alguns nervos, mesmo estimulados dessa
forma, jamais gerariam dor, e sim outras sensações como ansiedade, aflição, tormento e
inquietação. Esse seria o caso dos “nervos do par oitavo e intercostal”, distribuídos no
coração, diafragma, ventrículo, duodeno e fígado até o mesentério.333
Nesse trecho, Faustino Cordeiro, relata que no manuscrito De Animi
Perturbationibus há um longo parágrafo em que Sanches descreve algumas outras
propriedades dos nervos, mas que por motivos desconhecidos foi suprimido da versão final
da Dissertação sobre as paixões da alma. Nele, Sanches afirma que nem sempre a origem
do estímulo nervoso está no local onde ele é sentido:
“picaram a um homem na planta do pé, ou uma orelha ali sente
a dor. Mas em muitas enfermidades observamos que o nervo se ofende
em um lugar, e que percebemos a dor, não no lugar aonde o nervo se
mudou, ou destruiu, mas em outro lugar diferente, ou que não existe,
ou que mesmo está são.” 334
Além disso, cada nervo teria a propriedade de “excitar, e fazer sentir, várias e mui
diferentes idéias umas das outras”. Por último, Sanches afirma que no caso da medula
332
Idem. 333
Idem. 334
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da alma. Introdução e notas de Faustino Cordeiro. Penamacor: Câmara Municipal de Penamacor, 1999.
125
oblonga ser destruída, por enfermidade ou por violência externa, todo o movimento e o
sentimento se perde. No entanto, em estado de saúde, todos os nervos sentem e transmitem
ao sensório comum os mais distintos tipos de sensações.
Por outro lado, nem todas as sensações e sentimentos seriam da mesma natureza. Há
sentidos que não entram pelos mecanismos sensórios, e portanto, seriam resultado das
impressões da alma racional. O autor credita seu conhecimento sobre a matéria aos
ensinamentos do Padre Manuel Baptista, seu professor de filosofia durante o período em
que foi aluno do Colégio das Artes entre 1716 e 1718.335 Seria através da alma que o
homem concebe coisas como “Espírito, Anjo, Glória, Deus” e todos os nomes abstratos e
seus significados. Essas abstrações seriam o resultado da intervenção divina, que teria
implantado na alma humana “aquele sumo desejo de conservar-se e de produzir seu
semelhante.” A origem das paixões da alma está no uso indevido desses sentimentos, o que
em certa medida significaria o mau uso da própria alma racional: “se o vivente racional
usar dela com a moderação que requer o seu natural e o seu estado satisfará o objecto para
que lhe foram dadas; mas se os desejos ou a aversão passarem além da medida de se
conservar, servirão à sua destruição.”336
Para Sanches, essa sorte de sentimentos inatos ao homem seria fundamental para a
vida civil: “Somos instrumentos temperados ao uníssono, tocada que for uma corda as mais
vibrarão um tom semelhante.” 337 Nesse sentido, a propriedade da imitação, comum a todos
os homens, teria papel fundamental para a manutenção da ordem social, ao mesmo tempo
em que representaria riscos se usada para ações contrárias à conservação. O autor cita um
exemplo dos Comentários das Epidemias de Galeno da mãe que ensina seu filho a mastigar
ao demonstrar os movimentos em seu próprio corpo, ou mesmo no aspecto lúgubre que
adquirem todos os presentes durante a um sermão na Igreja. Por outro lado, há exemplos
dramáticos retirados de escritos de Boerhaave, Montagne, Nicholao Pechelino e até Robert
Boyle, de pessoas que contraíram epilepsia e histeria somente por assistirem outras pessoas
336
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da alma., op. cit. p.03. 337
Ibid. p.5
126
sofrerem desses males, além de casos de pessoas que “morrem por ver morrer” durante
epidemias de peste.338
A questão da imitação parece ser subjacente às reivindicações de Sanches pelo
tratamento das paixões pela medicina, pois um número reduzido de indivíduos afetados por
qualquer paixão nociva representaria um risco potencial para toda a população. Desse
modo, tornava-se fundamental que a medicina, enquanto discurso organizador da vida
social, as tivesse entre seus objetos de forma a possibilitar a manutenção efetiva da saúde
do corpo civil.
A origem da fragilidade humana diante das paixões estaria na sua própria natureza.
O homem nasce destituído da maior parte dos instintos que servem à conservação dos
animais desde o início da vida, o que o faz mais suscetível a tudo o que é nocivo à sua
própria preservação. Para suprir essa fragilidade, desenvolveu sentimentos diversos, mas
devido à sua “ganância”, tais sentimentos geraram “apetites desordenados” que os deixaram
ainda mais vulnerável às mais fortes e intensas paixões da alma. Essa seria a origem
primeira das enfermidades do ânimo, que surtiriam efeitos também no corpo. A correlação
entre alterações nesses dois domínios constitui uma das linhas argumentativas importantes
de nosso personagem, já que seu efeito último seria o comprometimento da capacidade de
julgar racionalmente, levando o indivíduo a agir contra a sua conservação.
É a partir dessa premissa que Sanches procura analisar os diferentes tipos de paixões
da alma, que considera como “atos repetidos do mesmo objeto agradável ou
desagradável” 339. Elas poderiam ter uma origem material, através das sucessivas
sensações registradas no sensório comum , como o caso de uma criança que, encantada com
a chama de uma vela, a toca e após queimar-se, mantém registrada em sua memória a
sensação desagradável e a conseqüente aversão ao toque da chama. Do mesmo modo,
sensações agradáveis podem ficar registradas de forma positiva na memória e reforçar seu
caráter benéfico para a conservação do corpo. Por outro lado, há outra sorte de paixões, que
afeta mais diretamente a alma. Segundo Sanches, essas seriam resultado da combinação de
sensações presentes com sensações passadas. Tal tarefa dependeria do uso da razão pela
alma racional, e portanto, seria exclusiva do homem:
338
Ibid. p.4 339
Ibid. p.5
127
“Deste modo a alma produz conceitos ou ideias, enuncia, e
explica este conceito por muitas palavras que chamamos julgar e
discorrer; além disso o homem inteligente e dotado de razão não só
compara as ideias presentes com as passadas mas ainda as combina
com o futuro. Estas combinações fazem-se pela reminiscência, e não
pela memória.”340
Ao expor as bases de uma pedagogia esclarecida, o autor defende que o homem só
poderia gozar da propriedade de julgar e discorrer sobre conceitos caso estivesse com o
“ânimo pacato” e o “corpo são”. Sem esse equilíbrio, quanto mais ideias e conceitos o
indivíduo adquirisse, “tanto pela educação quanto pela força das leis políticas”, maior
seria sua sujeição às paixões da alma. Elas se formariam através as reminiscências e da
combinação desordenada de sensações “presentes, passadas e futuras”, gerando uma vida
“contenciosa e turbulenta”, capaz de levar “muitos racionais à sepultura”.341 Em outras
palavras, as paixões seriam uma doença da alma, que tem a razão como sua principal
vítima:
“Chamamos maníaco não aquele que não discorre mas aquele
que com ferocidade discorre de um só objecto sem ordem e sem
comparação do verdadeiro, do honesto, nem do útil. Este é o estado do
cativo da paixão da alma violenta e este é o que chamamos doença”.342
No plano fisiológico, é significativa a apropriação de Sanches do vocabulário
psicofisiológico que estava em plena gestação na época da publicação da Dissertação. De
acordo com o médico, essas manifestações se refletiriam na alteração dos movimentos
vitais, especialmente através dos efeitos do ânimo sobre os nervos. Apoiando-se na obra De
nervorum in artérias imperio de Albrecht Von Haller, Sanches concebe que os nervos se
“abraçavam e se enrodavam” por todos os órgãos do corpo e, através de sua propriedade de
340
Ibid. p.6. 341
Idem. 342
Ibid. p.7.
128
“encolher e cerrar ou estender e alongar”, alterariam as funções vitais.343 Essa seria a
origem dos sintomas característicos manifestados pelos indivíduos acometidos de paixões
da alma, como respiração interrompida e lenta, coloração do rosto, insônia, dores de
cabeça, ânsias, sufocações, desmaios, dentre outros.
Assim as paixões teriam a capacidade de alterar os movimentos involuntários do
corpo e mudar o estado geral do ânimo do indivíduo, afetando suas faculdades racionais e
determinando suas ações. Alinhado com a “cultura dos nervos” setecentista, à qual fizemos
referência anteriormente, o médico português defende que a propensão e a intensidade das
paixões nos indivíduos poderia ser determinada pelo tônus natural de suas fibras que,
segundo a obra Hemostaticks de Stephen Hales, sendo mais ou menos “tenras ou laxas”
determinariam o ritmo da circulação sanguínea, alterando toda a fisiologia corporal.
Nesse sentido, a “boca do estômago” é identificada como o ponteiro indicativo das
alterações do ânimo, já que o diafragma seria o ponto de convergência entre os principais
nervos responsáveis pela produção das sensações no corpo. Tal afirmação foi objeto de
pesquisas anatômicas do próprio Ribeiro Sanches, que afirma ter confrontado suas
experiências com diversos autores e ter confirmado que apenas Hipócrates esteve certo ao
dissertar sobre essa matéria: “Ali [boca do estômago] parece que deve existir visivelmente
aquele impetum faciens de Hipócrates como no coração existe a força de mover todas as
artérias.” 344
Os efeitos dessas manifestações do corpo no moral individual teriam consequências
de grau variado em função da intensidade da enfermidade. O médico cita casos de pessoas
que ficaram enfermas do estômago após terem comido e bebido em demasia em uma única
ocasião, além de mulheres que, acometidas por paixões violentas durante o tempo em que
“correm os mênstruos”, ficaram histéricas por toda a vida. A causa estaria na alteração na
elasticidade das fibras que compõem os nervos, em decorrência da intensidade e do tempo
pelo qual o indivíduo permaneceu sob efeito da paixão. Em casos extremos, paixões
violentas poderiam enfraquecer as funções vitais, levando o indivíduo a desequilíbrios
permanentes ou até mesmo à morte:
343
Ibid. p.8 344
Ibid. p.9
129
“Refere Marcello Donatto Lib.3. Cap.13. que um menino indo
pela madrugada à escola vira dous homens vestidos de negro e que se
assustara tanto com este medonho aspecto que morrera subitamente.
Miguel de Montaigne nos seus Ensaios, Lib.l Cap.20 refere
que um criminoso se atemorizara de tal modo ouvindo ler a sentença
de morte que o acharam morto aqueles que lhe traziam a nova do
perdão de EI-Rei.”345
Por outro lado, as paixões também poderiam ser úteis para combater males, desde
que não fossem intensas e ministradas com cautela. Sanches cita episódios retirados de
diversos autores antigos e modernos em que paixões inesperadas ou sustos curaram
reumatismos, paralisias, hidrofobia e febres:
“Helmontis (trat. Demens idea, no47) refere que muitos
hidrofóbicos se curaram mergulhando-se na água fria descuidados, que
o terror súbito e aquele medo de morte muda o sensório comum e
ficam curados daquela ideia falsa que tinham de antes. Os maníacos,
por semelhante operação, e os enamorados ou [com] delírio amoroso,
se podem curar por semelhante método ainda que depois seja
necessário curar o corpo.”346
Após fazer longa introdução de sua psicofisiologia das paixões, o médico passa a se
ocupar de uma tipologia mais específica das paixões da alma, segundo suas características
próprias. Em linhas gerais o autor adota a divisão proposta por Galeno entre dois tipos
primordiais de paixões: as que relaxam e enfraquecem o sistema nervoso, com o
movimento da circunferência para dentro (zelo, vergonha, temor, tristeza); as paixões que
servem para a nossa conservação, com o movimento do centro para a circunferência
(contentamento, alegria, amizade, e esperança).
345
Ibid. p.9-10. 346
Ibid. 11.
130
No primeiro grupo estaria a vergonha, entendida como a “dificuldade de olhar para
o objecto que se quer ver” 347 Seus efeitos fisiológicos se manifestariam através de
“Uma ansiosa angústia na boca do estômago, um como nó na
garganta, não respiram por alguns momentos, fica o ar dentro do bofe,
adquire aí maior raridade, estende-se, comprime as veias pulmonais
que levam o sangue ao ventrículo esquerdo; não se esvaziando o
ventrículo direito, não pode entrar no sinus do mesmo lado o sangue da
veia cava superior que traz o sangue da cabeça.”
As alterações na circulação, potencializadas pelo encolhimento dos nervos, fariam
com que o sangue se espalhasse pelo rosto, dando-lhe aspecto avermelhado e deixando o
pulso “vazio e irregular”, assim como os olhos turvos. Esses sintomas comprometeriam a
memória e o pensamento, deixando todo “o ânimo com todo o corpo alterado.” 348 Para o
médico, todos os remédios seriam praticamente inúteis para tratar a vergonha, o mais
apropriado era que, logo que começarem os enfermos a sentir aquela opressão, que
escarrassem e tossissem. Isso faria com que o ar saísse do pulmão e acelerasse a circulação,
impedindo que o cérebro se enchesse de sangue, causa de alterações no pensamento.
Sanches confessa a seu interlocutor sofrer da paixão da vergonha há pelo menos 14
anos. Essa teria sido a causa de seu afastamento da atividade médica, já que os sintomas da
referida paixão se manifestavam assim que seus pacientes começavam a relatar a história de
suas enfermidades, o que o impossibilitava de formar juízos claros como médico. Sanches
alega ter se afastado de pessoas que prezava e até mesmo de familiares e pessoas de
convívio doméstico: “Assim aqueles enfermos deste mal evitam a familiaridade e os
consolos públicos, sempre temem, sempre se acanham diante dos homens e são incapazes
de exercitar cargos públicos e mesmo ofícios honestos.” 349 Sua causa estaria na debilidade
dos nervos ou do ânimo, o que descreve como uma fraqueza do homem interno de
Sydenham, ou “sistema de nervos”. Assim, homens fortes e destemidos desconheceriam
347
Idem. 348
Idem. 349
Idem.
131
seus sintomas, pois seus nervos fortes o impediriam de ceder às manifestações da vergonha
mesmo diante de situações mais intensas.
Em seguida, Sanches aborda a segunda paixão que classificou como do primeiro
grupo: a paixão dos zelos. Ela se manifesta quando o amante “vê que o objecto amado é
possuído por outro e que ele fica destruído” e tem potencial para “causar a morte e todos os
males do cérebro.” 350 Assim como a vergonha, a paixão dos zelos dependeria da fraqueza e
da lassidão do sistema nervoso. Nas suas manifestações mais violentas, alteraria os
movimentos do coração e comprometeria o juízo.
É interessante notar que, para Sanches, o corpo não seria passivo diante das
manifestações das paixões maléficas ao sistema nervoso. Há uma batalha fisiológica entre o
ímpeto de conservação da vida característico do organismo humano e os efeitos nocivos das
paixões, que procuram se sobrepor:
“Mas as paixões violentas de zelos, temor, tristeza, como já
dissemos que deprimem, e destroem o sensório comum, causam
maiores males; quando ficam forças bastantes para vencer o mal que
fez a paixão então se seguem as lágrimas, os suspiros, e os lamentos, e
fazem o ofício que faz a febre.”351
Mas nem todos os tipos de paixão teriam efeitos negativos sobre o corpo e o ânimo.
A segunda sorte de paixões analisadas por Ribeiro Sanches são úteis à conservação da vida:
“são a alma da Sociedade e da perpetuidade do género humano; além disso, servem de
remédio às paixões da queixa que tratamos acima.” 352 Entre elas estariam o contentamento,
a alegria, a amizade e a esperança. Quando moderadas, os indivíduos acometidos dessas
paixões sentem “um bem como em névoa que goza sem o distinguir perfeitamente.” Essas
pessoas, “de tão feliz constituição”, que pudessem se manter nesse estado teriam remédio
para a cura de diversos.353
350
Ibid. 12. 351
Ibid. p.13. 352
Idem. 353
Ibid. p.14
132
Nesse sentido, o potencial de cura dessas paixões é sua principal vantagem. Sanches
faz longos relatos de casos de pessoas que foram curadas por meio de seus efeitos
benéficos. A alegria, por exemplo, é descrita como “um grande segredo na mão do médico
prático”, através de sua ação positiva na fortificação dos nervos, fazendo-os adquirir mais
elasticidade, e no restabelecimento da regularidade da circulação sanguínea. Nesse sentido,
o doutor Bernardo Pinho, tutor de Sanches em sua juventude na cidade de Guarda, teria
sido hábil em fazer curar através de sua boa relação com seus pacientes. Sanches relata que
seus pacientes o recebiam sempre alegres e tal estado contagiava até aqueles que sofressem
dos males mais graves, graças à sua decência e cordialidade.354
No entanto, mesmo as paixões que servem à conservação também poderiam ser
maléficas quando utilizadas de forma desmesurada, podendo até levar à morte. Utilizando
uma descrição de Cícero, Sanches descreve esse descontrole como “terremotos do ânimo
destituído da razão pensando que goza do que bem deseja”. A alegria em demasia poderia
dissipar os espíritos vitais, fazendo relaxar todos os nervos e levando à total paralisia.
Citando a Monita Medica Londini do médico inglês Richard Mead, o médico português
afirma que essa paixão, quando atuante por tempo prolongado, deixa sangue “destituído de
seus licores”, formando a atrabílis. Ao fim, sentencia: “Não fomos feitos para sofrer
excessos ainda que sejam de contentamento.”355
O “amor desordenado” teria efeitos semelhantes, ao fazer sentir um “peso
desagradável na boca do estômago”, o pulso lânguido e a cara descorada, com olhos
encovados. Esse processo também consumiria os espíritos vitais , enfraquecendo a memória
e o raciocínio, deixando o indivíduo melancólico. Seus efeitos poderiam gerar toda sorte de
enfermidades do cérebro, que matam “como o mais violento veneno” e deixar vestígios no
corpo de sua vítima.356 As pessoas naturais de climas austrais, por exemplo, teriam maior
propensão a apresentar cânceres, cirros e enfermidades atrabiliárias. Como tratamento, ele
seguia as orientações de Hipócrates ao aconselhar “mudanças de ar” e “variedade de
354
Idem. 355
Ibid. p.15. 356
Idem.
133
objetos”. Vômitos também seriam aconselháveis por limparem o estômago e darem “maior
elasticidade ao diafragma e às vísceras”.357
Como temos acompanhado, Sanches apresenta uma psicofisiologia das paixões que
submete sua compreensão ao conhecimento aprofundado dos meandros das funções vitais
humanas. Diante da complexidade das relações existentes entre o corpo e as patologias da
alma, só a medicina seria capaz de desvendar as causalidades e formular profilaxias
eficazes. Nesse sentido, na esteira dos discursos laicizantes sobre o comportamento
humano, nos quais a medicina tenta forjar seu papel de entidade produtora de padrões de
normalidade, há uma interpelação mais direta nos discursos tradicionais. A
responsabilidade do indivíduo pela sua constituição moral é relativizada em favor de uma
análise detida de sua constituição física, seus costumes e o ambiente em que se insere.
Assim, do mesmo modo que as paixões poderiam alterar o físico e o moral individual,
deixando, inclusive, vestígios de sua presença em sua anatomia, o caminho inverso também
se tornava legítimo. A constituição moral poderia ser determinada pela constituição física e
anatômica do indivíduo:
“Falta-me agora tratar daquelas disposições corporais ou
hereditárias ou adquiridas que induzem a gerar as paixões da alma. Se
até agora foi incompreensível como a alma racional sendo espiritual
pode mover um corpo, agora tocaremos outra dificuldade não menos
insuperável. É esta: que as disposições do corpo possam afectar a
mesma alma.” 358
Assim, as “disposições cérebro” e o temperamento poderiam inclinar as faculdades
da alma a “amarem ou aborrecerem certos objetos com maior eficácia.” Do mesmo modo, o
clima do local de nascença e os ventos característicos da região não teriam efeitos menos
importantes. Sobre esse aspecto, o médico refere-se à leitura do Tratado do ar, das águas e
lugares de Hipócrates como fonte de informações acerca dos efeitos desses elementos sobre
357
Ibid. P.16. 358
Ibid. p.19.
134
o corpo e o temperamento individual. A alimentação também aparece como fator
importante nessas relações:
“Ninguém poderá negar que as nossas inclinações, juÍzo, modo
de obrar e tratar na sociedade civil se altera e perverte pelos alimentos
e bebidas, e modo de usar deles. Depois de um jantar abundante nosso
juízo é totalmente diferente daquele estado quando estamos em jejum.
O mais prudente e o mais sisudo homem se beber uma porção de vinho
sem ser acostumado a bebê-lo, sentirá todas as potências da alma
mudadas”.
Essa concepção é condensada por Sanches na seguinte citação de Galeno: “os
modos do espírito acompanham o temperamento do corpo.” Segundo esta autoridade
médica da antiguidade, a alimentação seria um instrumento eficaz de aprimoramento do
ânimo e dos modos dos homens, quando manipulada acordo com as necessidades impostas
por seu temperamento. Sanches, então, condena de forma veemente a dissolução dessa
prática em seu tempo, no qual o temperamento havia se tornado objeto dos teólogos e dos
jurisconsultos:
“Este modo de curar e de fazer de maus naturais, bons e
prudentes, e de estúpidos, espertos e inteligentes, se perdeu totalmente.
Toda a cura são açoutes e pancadas e o medo é o que serve a reprimir-
lhes aqueles maus ímpetos mas jamais a mudar-lhes a natureza. Já
notei no princípio desta dissertação a causa porque os médicos
largaram este método de curar. Seria utilíssimo à Religião e à
República que houvessem médicos que soubessem curar tão bem as
enfermidades do ânimo e terem uma Farmacopeia a propósito para
mudarem as constituições como a têm para curar as enfermidades.”359
Tal estado de coisas, em sua opinião, gerava toda sorte de injustiças:
359
Idem.
135
“Acusamos temerariamente de viciosos aqueles que não
podem corrigir-se da frequência dos actos luxuriosos, da bebedice, de
jogar as cartas e furtar. São estes vícios enfermidades, na verdade, do
ânimo e que têm a sua origem na conformação e nos humores do
corpo.” 360
O médico cita um exemplo retirado de obras de Nicolau Túlpio no qual um homem,
“acusado de medroso por extremo e estúpido”, teve seu corpo aberto após sua morte, onde
se pôde “verificar os ventrículos anteriores do cérebro cheios de água” e no “coração
esquerdo um grande pólipo que tapava a metade da capacidade da aorta.”361 Em outro caso,
um homem “extremamente melancólico, temendo dia e noute as almas dos defuntos que o
atormentavam” viveu sua vida entre “religiosos de vida exemplar”. Após sua morte, seu
fígado apresentava aspecto negro e enrijecido, com o “bote do mesmo tão mole como se
fosse endematoso.”362 Do mesmo modo, um menino “muito engenhoso, com juízo
extremamente agudo e temporão” começou a sofrer “acidentes epilépticos” e veio a falecer
aos 27 anos de idade. A dissecação de seu corpo revelou grande quantidade de pequenos
ossos na “fouce da duramadre”.363
Diante dessas e de várias outras incidências citadas na obra, Sanches é enfático ao
afirmar que
“Se até agora os Autores que deram a história das dissecações
dos cadáveres notassem as paixões da vida de cada um e ao mesmo
tempo notassem as irregularidades da conformação e do que acharam
de extraordinário neles, é certo pudera nesta ocasião provar mais
distintamente que todos aqueles vícios dominantes que temos que não
dependem só da má criação nem do costume.”364
360
Ibid. p.21. Esse trecho não aparece na versão francesa do texto publicada na Encyclopédie Méthodique. 361
Ibid. p.22 362
Idem. 363
Idem. 364
Ibid. p.22.
136
Desse modo, se o moral poderia ser determinado pelo físico, através de causalidades
que passam ao largo dos pressupostos teológicos e jurídicos. Caberia à medicina, identificá-
las e intervir de modo a restabelecer o equilíbrio devido entre as disposições do corpo e da
alma. Nesse sentido, ela seria o único campo do conhecimento com legitimidade para
definir os limites discursivos da Teologia e do Direito nos assuntos relativos ao ânimo, o
que subjaz um novo modelo de organização jurisdicional entre essas esferas e o discurso
médico:
“Nestes casos pertence ao teólogo decretar a consciência e instruir
como se pode alcançar a graça divina para curar aquele ânimo e aos
legisladores retê-lo pelo medo, e pelo terror dos castigos públicos, mas
ao médico pertence ou curar o corpo ou induzir outra enfermidade que
produza paixões diferentes.”
O médico de Penamacor era ciente do possível impacto de seus argumentos no
interior de uma sociedade portuguesa em processo de reforma, mas ainda hesitante no que
dizia respeito a uma profunda reorganização da vida intelectual. Vimos no primeiro
capítulo que, apesar do espírito regalista das reivindicações reformistas, a Religião Católica
foi mantida como um dos pilares estruturantes mundo sócio-cultural luso, o que se
comprova pelo amplo esforço pombalino e mariano para censurar obras consideradas de
vertente materialista.365 Assim, ao final da obra, Sanches demonstra certa preocupação com
a recepção de seu manuscrito e afirma que apesar de ainda ter “muitas coisas para colocar
sobre o assunto”, preferia terminar a dissertação, tendo em vista que escrevia em língua
vulgar e o texto poderia cair nas mãos de outras pessoas que não fossem o seu interlocutor,
pois não queria ofender “quem não está inteirado dos verdadeiros princípios da Física e da
Metafísica como VM.”366
Sanches temia que seu texto fosse alvo da censura pombalina por conta de seus
argumentos controversos (do mesmo modo que, quarenta e um anos mais tarde, a Medicina
Theologica de Francisco Mello Franco seria alvo da censura mariana por defender
365
VILLALTA. op. cit. 366
SANCHES, Antonio Ribeiro. Dissertação sobre as paixões da alma., op. cit.. p. 24.
137
argumentos muito semelhantes). Por isso, recomendava a seu interlocutor que caso achasse
algo no trabalho que pudesse “dar alguma matéria e murmúrio ou de escândalo aos
ignorantes da Verdadeira e Santa Religião ou dos princípios políticos de como se deve
regrar a Sociedade Cristã, que somente VM use dele e que lhe seja útil na sua prática.”367
De resto, alega se dar por satisfeito se sua obra viesse a ter alguma utilidade para a sua
pátria e mostrasse “a necessidade que tem a sociedade que os males e enfermidades do
ânimo ou paixões da alma venham a cair na consideração dos médicos.”368
O potencial polêmico da Dissertação talvez explique o fato de ela ter sido mantida
como manuscrito durante toda a vida de Sanches, só sendo publicada na França por Charles
Andry em 1787, no auge dos debates vitalistas. No entanto, o temor do autor com a
recepção de sua obra pela censura merece algumas outras considerações.
Aparentemente, para além das questões de ordem prática, relativas à distribuição e
circulação da obra em si, nosso autor não teria muito que temer, visto que estava a salvo da
prisão em Paris. Já sabemos, inclusive, que essa salvaguarda no estrangeiro foi uma das
motivações de sua saída definitiva do reino décadas antes, quando fora denunciado à
inquisição por práticas judaicas. No entanto, é possível que já no início da década de 1750,
Sanches tentasse articular uma aproximação com o governo português em troca de
financiamento para sua produção intelectual. Como vimos no capítulo 2, suas boas relações
com o meio diplomático luso lhe renderiam uma pensão anual paga pela corte a partir de
1756, após a publicação do Tratado da conservação da saúde dos povos. Não temos
maiores indícios documentais para confirmar essas hipóteses, mas se Sanches já acalentava
o desejo de contar com a ajuda financeira do reino para se manter, indispor-se com a
censura pombalina seria totalmente indesejável.
367
Idem. 368
Idem.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso percurso até aqui corrobora a postura crítica de Renato Mazzolini em relação
à visão tradicionalmente atribuída ao século XVIII, como um período estéril no campo
médico. Como afirmou o autor, um olhar mais detido sobre as orientações tomadas pelos
debates travados entre variadas correntes médicas setecentistas, revela uma complexidade
muito maior do que uma abordagem voltada para “descobertas” poderia mostrar. 369 Nesse
sentido, vimos como a crítica à fisiologia mecanicista de orientação cartesiana esteve na
base da formulação de uma nova retórica médica por parte de vitalistas, animistas e
sensualistas, engajados na reivindicação de uma arte médica orientada para a manutenção
da ordem social.
Antonio Nunes Ribeiro Sanches foi um dos intelectuais que procuraram traduzir
essas inovações retóricas para o contexto das reformas ilustradas em Portugal, a partir de
meados do século. Para tanto, o médico de Penamacor fez amplo uso de sua posição
privilegiada no interior das diversas redes de contato que teceu ao longo de sua extensa e
produtiva trajetória.
Nesse sentido, em consonância com a citada postura de indeterminação
epistemológica proposta por François Dosse370, vimos como as relações de Sanches, tanto
de interesse filosófico quanto pessoal e político, foram habilmente articuladas visando
corresponder a seus interesses e convicções. Por outro lado, isso não nos permite
estabelecer endereçamentos precisos entre suas crenças e os eventos que as determinaram,
pois, como afirmou o próprio Dosse, processos dessa natureza ocorrem numa dimensão
subjetiva e, portanto, devem ser apontados de forma não menos subjetiva, ou seja, através
de hipóteses, correlações e vínculos possíveis.
A partir dessas premissas, procuramos apresentar as teses defendidas por Sanches,
no conjunto de suas obras, como reflexo de um longo processo de produção, acomodação e
articulação de seu projeto de reforma para Portugal, o que também diz respeito, não
podemos deixar de salientar, a sua condição de sábio engajado em diversos círculos
369
MAZZOLINI. op. cit., p.83-84. Retomar o primeiro parágrafo do terceiro capítulo deste trabalho. 370
DOSSE., op. cit. p.299.
139
intelectuais ilustrados, em pleno século das luzes. Tais aspectos, longe de apontarem
especificidades do personagem, nos ajudam, pelo contrário, a entendê-lo como um homem
de seu tempo, que se ocupou de questões pertinentes para os campos de debate dos quais
participava.
No que diz respeito à intelectualidade reformista lusitana, essas questões orbitavam
em torno da necessidade de redefinir os contornos da atuação do Estado, sobretudo, através
do fortalecimento do poder régio diante da Igreja em amplas reformas nas esferas
econômica e educacional. Assim, vimos que, ao reivindicar o tratamento da alma como
objeto da medicina na Dissertação sobre as paixões da alma, Sanches propunha um
modelo de reforma calcado na ampliação jurisdicional da atividade médica, apresentada
como alternativa legítima ao discurso teológico, no que dizia respeito ao estabelecimento
de padrões para avaliar condutas e comportamentos dos indivíduos.
Em um sentido mais amplo, essa reivindicação está intimamente integrada ao
projeto pedagógico sanchesiano que, conforme mencionamos, procurava afirmar a arte
médica como a mais indicada para preparar os súditos portugueses, nos âmbitos físico e
moral, para corresponder aos imperativos da sociedade portuguesa reformada. Só a
medicina poderia garantir a necessária formação de um corpo civil comprometido com sua
própria perpetuação e com a conservação do Estado, tarefa que, segundo Sanches, o
preparo oferecido pela educação inaciana seria incapaz de realizar, por estar comprometida,
em primeiro lugar, com a manutenção do poder eclesiástico.
No entanto, se por um lado a psicofisiologia das paixões da alma formulada por
Sanches segue os contornos de suas propostas de reforma para o Portugal pombalino, é
fundamental destacarmos os limites impostos pelas características específicas das reformas
e pelo próprio ambiente cultural lusitano ao seu projeto. Nesse sentido, notamos que os
postulados defendidos por Ribeiro Sanches na Dissertação se aproximam do mesmo
organicismo de caráter moralista que Paulo José Carvalho da Silva identificou na Medicina
Theológica de Francisco Melo Franco. Ambos podem ser entendidos como representantes
de “uma nova perspectiva de pesquisa sobre o humano, mas nem por isso o tratamento nele
proposto foi menos moralista do que a abordagem propriamente teológica das paixões da
140
alma.”371 Mesmo dentro de um horizonte mais laicizante, o discurso moral não pretendia
subverter os valores morais vigentes. O que estava em jogo, na verdade, era somente a
construção de vias alternativas ao discurso teológico para dar conta das determinações do
comportamento e do moral nos indivíduos.
Como já foi afirmado anteriormente, não temos maiores indícios da disseminação
dessas concepções no ambiente intelectual português setecentista. Pelo contrário, nota-se
claro temor por parte dos autores no que diz respeito à possibilidade de suas ideias serem
consideradas anti-clericais. De fato, vimos que a obra Melo Franco foi alvo da perseguição
do governo mariano, mas a de Sanches, muito possivelmente pelos mesmos motivos,
permaneceria como manuscrito até 1787, quando foi publicada não em Portugal, mas na
França, em um contexto intelectual mais receptivos à ideias de mesma natureza.
Seja como for, uma das características mais originais da Dissertação sobre as
paixões da alma, além de seu argumento principal, é claro, reside no fato de Sanches
propor um modelo de organização da vida intelectual portuguesa que se baseava em
perspectivas sobre o físico e o moral articuladas com questões que estavam na linha de
frente dos debates de alguns dos mais importantes círculos médicos europeus da época.
Enquanto parte da historiografia celebra o setecentos como o período da afirmação da
iatromecânica na medicina luso-brasileira372, temos aqui uma obra que procurou intervir no
mesmo contexto a partir de discussões críticas aos postulados mecanicistas, em
consonância com a efervescência intelectual ilustrada no campo médico, sobretudo no seu
contexto francês. Já vimos que o vocabulário médico mobilizado por Sanches se
aproximava muito do que seria utilizado pelos médicos idéologues, por exemplo, no
período revolucionário, para fundamentar suas propostas de reforma social.
É esse tipo de discurso que projetava a medicina como sabre imprescindível para o
controle e manutenção da ordem social, a qual Sanches fazia referência quando afirmava
fazer uma “medicina política” no Tratado da conservação da saúde dos povos. No interior
desse modelo de higiene, não há mais tanto espaço para a sermonística cristã e nem para os
julgamentos dos juristas, pois só a medicina teria domínio amplo dos mecanismos
371
SILVA. op. cit. p. 343. 372
Nos referimos aqui, em especial, à obra de Jean Abreu. ABREU, Jean Luiz Neves. Nos domínios do corpo: o saber medico luso-brasileiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011.
141
determinantes da condição física e moral humana, e portanto, seria detentora da
legitimidade para definir com precisão a culpabilidade dos indivíduos sobre seus atos.
Assim, as concepções de Sanches indicam, no contexto intelectual português do século
XVIII, a presença das inovações discursivas que seriam responsáveis por inscrever o
comportamento humano na alçada médica, fornecendo os alicerces para as diversas
configurações que elas viriam a tomar no século XIX, sobretudo, em torno dos problemas
relativos à natureza da mente, da sensibilidade e das paixões; o papel dos médicos na
sociedade; as possibilidades do aperfeiçoamento higiênico da sociedade.
142
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