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(DES)ALINHANDO ALGUNS FIOS DA MODERNIDADE PEDAGGICA: um estudo sobre as prticas discursivas em torno da educao infantil em Campina Grande - PB (1919-1945)

Paloma Porto Silva

Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Centro de Cincia Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraba UFPB, em cumprimento s exigncias para obteno do ttulo de Mestre em Histria, rea de Concentrao em Histria e Cultura Histrica.

Orientadora: Profa. Dra. Uyguaciara Velso Castelo Branco Linha de Pesquisa: Ensino de Histria e Saberes Histricos

Joo Pessoa - PB 2010

S586d

Silva, Paloma Porto. (Des)alinhando alguns fios da modernidade pedaggica: um estudo sobre as prticas discursivas em torno da educao infantil em Campina Grande-PB(19191945)/ Paloma Porto Silva.- - Joo Pessoa : [s.n.], 2010. 110f. Orientadora: Uyguaciara Velso Castelo Branco. Dissertao(Mestrado)UFPB/CCHLA. 1.Historiografia. 2. Educao- Sculo XX. 3.Modernidade pedaggica. 4.Educao Infantil-Campina Grande-PB. UFPB/BC CDU: 930.2(043)

(DES)ALINHANDO ALGUNS FIOS DA MODERNIDADE PEDAGGICA: um estudo sobre as prticas discursivas em torno da educao infantil em Campina Grande - PB (1919-1945)

Paloma Porto Silva

Dissertao de Mestrado avaliada em 19/02/2010 com conceito APROVADA

Banca Examinadora

____________________________________________________________Profa. Dra. Uyguaciara Velso Castelo Branco Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal da Paraba Orientadora

____________________________________________________________ Prof. Ps-Doutor Iranilson Buriti de Oliveira Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal de Campina Grande Examinador Externo

____________________________________________________________ Profa. Dra. Ana Maria Coutinho de Sales Programa de Ps-Graduao em Cincias das Religies Universidade Federal da Paraba Examinadora Interna

____________________________________________________________ Profa. Dr. Antnio Clarindo Barbosa de Souza Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal de Campina Grande Suplente Externo

_____________________________________________________________ Profa. Ps-Doutora Rosa Maria Godoy Silveira Programa de Ps-Graduao em Histria Universidade Federal da Paraba Suplente Interno

Dedico a Geraldo Incio da Silva, o meu amado Pai, que me ensinou a lutar na vida, a trilhar o meu rumo, procurando o sucesso com bastante prumo, nico jeito de quem busca um sonho faz.

AGRADECIMENTOSMemria daquilo que basta do bastante. Nem um segundo a mais, nem um segundo a menos. Apenas a medida certa. E como di a justa medida ser e viver o bastante. Aceitar o encerramento de uma etapa, de uma experincia, de um quadro, de um poema, por exemplo, e partir para outro (WILKE, 2000, p. 160).

O assunto importante!

um exerccio atravessado por lembranas e

esquecimentos, pelo falar e o calar, pela dor e pelo xtase! momento de agradecer! E como em todo ato de agradecer se faz valer de sentimentos, daquilo que nos mais ntimo, impossvel separar o que nos fere do que nos afaga, meu corao no linear, ele est em constante (des)alinho. Como no sentir dor ao se ver finalizar aquilo que tomei como referncia, como marco para minha vida profissional e pessoal? O meu to sonhado mestrado. Porm, meu corao um sujeito encruzilhada, que para seguir novas formas de ver, dizer, estar e sentir, lana mo da dor para alcanar novos horizontes. preciso agradecer s pessoas que foram importantes na minha caminhada acadmica. Pessoas que me conheceram na poca que eu usava cabelo bem vermelho, um All Star de salto, no largava do celular e imaginava a Histria apenas como cincia. Muita coisa mudou! Hoje o cabelo Borgonha, uso sapato scarpin e sandlias havaianas com a mesma dignidade, esqueo o celular no modo silencioso dentro da bolsa e a viso da Histria como arte faz mais a minha cabea. s pessoas que acompanharam estas mudanas e as pessoas que j me conheceram mudada, aqui vo meus sinceros votos de agradecimento. Quero agradecer s pessoas que, de uma forma ou de outra, entraram na minha vida, que compartilharam milhes de segredos, que fizeram que eu acordasse muito feliz e as que nem me deixaram dormir. s pessoas que me fizeram rir at a barriga doer, que me deixaram acreditar que tudo vai acabar bem e que as coisas vo sempre melhorar. Pessoas que souberam quando eu estava triste pelo primeiro oi do dia e que souberam entender que eu precisava ficar sozinha. Pessoas que me levaram pra danar, cantar e festejar, esquecendo que o mal existe e que a vida bela. Pessoas que me fizeram sonhar... Essa a minha histria. Meu corao tem asas e minha razo anda a p. Tenho minha coleo de lpis, nenhuma tatuagem, alguns textos publicados, um culos roxo,

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livros de Foucault e sentimentos flor da pele. Eu, nada objetiva, vejo na Histria o meu prazer. Palavras, documentos e hermenutica, o que preciso pra no me ver parar, pra me dar a olhar. Portanto, agradeo s pessoas que pude confessar meios maiores desejos, intensos amores, planos de vida, amnsias etlicas, aventuras na madrugada, promessas no cumpridas e paixes mal resolvidas. Agradeo s pessoas que me deixaram ouvir msica alta, a sentir frio na barriga e calor no peito. Agradeo a todos que, a partir dos meus defeitos e efeitos, entenderam que eu nunca quis ser uma pessoa normal, que sou da turma do improviso, que sou difcil de saber o que vou sentir daqui a cinco minutos ou daqui a um ano, pois preciso cogitar as vrias possibilidades de sentir para poder agir. s pessoas que me fizeram sentir abraada, pois preciso e mereo. Preciso porque me doei, mereo porque sofri. Sofrimento recompensado, pois meu maior prmio foi a aprendizagem, no por aprender a digerir decepes, mas por aprender a olhar pra dentro e dizer que sou transgressora de fronteiras sim! A Uyguaciara Velso castelo Branco, minha orientadora, que me deu a honra de ser sua orientanda e que apostou no meu fazer enquanto historiadora. Cludia Engler Cury, que me recebeu de braos abertos, com um caf na mesa, sorriso no rosto e olhar singular. Pois existem professores que marcam, o quo leve ela fez a Histria parecer! Regina Clia Gonalves, que me acolheu na UFPB e que deu um qu de lar, to importante para mim que vinha de fora. A essa pessoa eu digo e repito: o meu exemplo de historiadora! Colecionadora de virtudes, Regina Clia elegncia, sorriso, abrao, Edward Palmer Thompson, guerra, aucar, me, mulher, salto alto, trejeito, cara, boca, um dos meus pontos de referncia. Agradeo. Serioja Maiano, Antnio Carlos Pinheiro, Elio Flores e a Raimundo Barroso, que tanto me ensinaram. Carla Mary, que conduziu com sabedoria a coordenao do meu estgio de pesquisa na UFMG. Minha famlia, que por muitas vezes tiveram que compreender as minhas ausncias. Fernanda Pires da Costa, por voc ser, simplesmente, mil mulheres em uma. Sem fazer fora e nem perder a doura. Ao longo dos anos, Fernanda virou F. Uma F que encontrou seu caminho e cuidou, torceu e se espelhou no meu.

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George Silva do Nascimento, Aryana Costa, Jucieldo Alexandre e Priscilla Formiga, que formaram a minha famlia em Joo Pessoa, dedico o meu AMOR a vocs. Agradeo por vocs terem se inscrito na seleo do mestrado da UFPB, por terem ido fazer a prova, por terem passado, por terem se matriculado, e chegado no primeiro dia de aula com o corao aberto pra novas amizades.

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Resumo

Esta dissertao de mestrado tem por objetivo investigar as redes discursivas que tentaram construir uma identidade local, baseada na educao, no incio do sculo XX, na cidade de Campina Grande PB. O presente estudo sugere um interesse pela historicidade da emergncia de uma preocupao com o ensino e problematiza as condies de possibilidade do surgimento de uma noo de educao acoplada idia de modernidade. Apreendemos como os discursos de progresso associaram-se ao discurso pedaggico na tentativa de transformar Campina Grande em uma cidade moderna e civilizada. Investigamos, assim, as redes, os fios que (des)alinham e do visibilidade a tal questo a partir das prticas discursivas de Ronaldo Dino e dos jornais campinenses. Apropriamos, como referncia, a obra Memrias de Campina Grande e os vrios discursos publicados nos jornais impressos que circularam na cidade na poca, investigando como os enunciados elaboraram uma noo de educao articulada a uma necessidade de nome-la como a principal ferramenta para se alcanar a modernidade pedaggica. Assim, tentamos escapar de uma historicidade que privilegie apenas as configuraes materiais do desejo moderno, lanando um olhar mais subjetivo como possibilidade de abordagem da modernidade pedaggica, entendendo-a como um (des)alinho entre continuidades e descontinuidades, como ruptura e singularidade. Tomamos, como recorte temporal, os anos de 1919, respectivamente ao ano de fundao de um educandrio privado na cidade O Instituto Pedaggico Campinense e o ano que encerra a gesto do Tenente Alfredo Dantas no Instituto, em virtude de sua morte. Buscamos escriturar uma histria das prticas discursivas tendo a anlise de discurso como metodologia empregada. Palavras-chave: modernidade, educao, Campina Grande.

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Abstract

This dissertation has as objective to investigate the discursive networks that tried to build a local identity based on education in the beginning of the 20 th century in the city of Campina Grande/PB. This study suggests an interest on the historicity of the emergence of a preoccupation over teaching and problematizes the conditions in which the rising of an idea of education is possible attached to the idea of modernity. We apprehend how the discourses of progress were associated to the pedagogical discourse in the attempt to transform Campina Grande into a modern and civilized city. Thus, we investigate the networks, the strands that unravel and give visibility to such question from the discourse practices of Ronaldo Dino and the local newspapers. As a reference weve used the work Memories of Campina Grande and the many speeches published in the printed newspapers that circulated around the city at the time, investigating how the enunciations elaborated a notion of education articulated to a need of naming it as the main tool to reach the pedagogical modernity. So, we try to escape a historicity that privileges only the material configurations of the modern desire, casting a more subjective look as a possibility to approach the pedagogical modernity, understanding it as disarrangement between continuities and discontinuities, as rupture and singularities. We take the period between 1919 (year of the foundation of a private school in the city the Campinense Pedagogical Institute) and 1945, due to this one being the end of the term of Lieutenant Alfredo Dantas in that Institute, caused by his death. Weve tried to write the story of the discursive practices taking the discourse analysis as the method. Keywords: modernity, education, Campina Grande.

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SUMRIO

1 PRA COMEO DE CONVERSA: A HISTRIA DE UMA PESQUISA 1.1 Nosso lugar de fala............................................................................... 1.2 A historiografia.................................................................................... 1.3 Estruturao dos captulos....................................................................

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2 EDUCAR CORAES E MENTES, ENTRE O NOVO E O VELHO: A 17 EDUCAO NO INCIO DO SCULO XX..................................................... 2.1 Cartografando uma geografia educacional na modernidade ............ 17

2.2 O Movimento dos Pioneiros da Escola Nova e os discursos na produo de encruzilhadas ........................................................................................... 35 3 ESPELHOS DAS PALAVRAS: O QUE DIZEM SER MODERNO E 45 PEDAGGICO NAS MEMRIAS E PERIDICOS CAMPINENSES.............. 3.1 Pelas pginas dos jornais campinenses..................................................... 58 3.2 Fogo sagrado da lareira da Ptria: a relao entre o discurso mdico e o discurso pedaggico........................................................................................... 61

4 CONSIDERAES FINAIS...................................................................................

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5 REFERNCIAS........................................................................................................ 78

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(DES)ALINHANDO ALGUNS FIOS DA MODERNIDADE PEDAGGICA:um estudo sobre as prticas discursivas em torno da educao infantil em Campina Grande - PB (1919-1945)

1 PRA COMEO DE CONVERSA: A HISTRIA DE UMA PESQUISA

No faz muito tempo que se apregoava aos quatro ventos a queda de Campina Grande. Havia uma forte divergncia de opinies. Uns afirmavam que isso succederia com a passagem da estrada de ferro. Outros prophetisavam o desvio do curso commercial para os Estados limitrophs (sic) e alguem afirmava ser a queda com a invaso no mercado algodoeiro das firmas estrangeiras espalhando suas formidveis usinas no interior do Estado. Enfim, uma saraivada de opinies derrotistas, atentava contra a Princeza da Borborema. Sempre fui optimista das incalculaveis possibilidades deste paraso do Norte. Tive acaloradas discusses defendendo enthusiasticamente taes ideias, primeiro, porque, jamais acreditei nas fraquesas dos pessimistas e segundo por um dever de gratido terra que me deu tudo. Recordo-me que em meio a esta phase nebulosa, tive a feliz lembrana de destribuir um boletim intitulado Predios em Campina Grande no qual chamei os fracos e descrentes para permutarem predios por automoveis, caminhes e etc. Tive a ventura de conseguir uma meia dzia de permutas. Lembro meu regresso do sul onde ouvi commentarios em torno dessa these. Tambem de um companheiro de viagem que reclamava a morosidade do navio porque tinha a necessidade de chegar logo Campina, para ainda conseguir bons preos nos seus predios. Qual no o meu prazer, vendo Campina sempre altaneira, debruada sobre este pedao da Borborema, rindo, progredindo e zombando da praga que lhe rogaram. Ella cada vez mais accentua seu valor e prova que jamais houve quem perdesse vintem num s palmo de suas terras [...] O padro de construes a cada passo se aperfeioa, como que em signal de protesto aos que deseriam do seu desenvolvimento. As industrias crescem e melhoram a todo momento. O commercio intensifica-se, melhorando sempre a sua feio material. Um ar de alegria ilumina o semblante do povo do moijera (sic) em Campina e recebe os fructos do seu desenvolvimento. Tudo melhora: Fabricas, Prensas, Bancos, Escriptorios, Estabelecimentos divercionaes, Educandarios, Asylos, Hospitaes, Transporte Pblico e etc. Os poderes pblicos cuidam de vrios problemas vitaes. Todos prximos a inaugurao: Agua, Saneamento, Luz, Telephone automatico, Hotel e Matadouro. Avenidas novas e contrues modernas surgem. Finalmente, Campina Grande, cada vex (sic) maior, cheia de vida e confiana nos dias futuros a nica cidade do Norte com ares de capital. A cada momento Ella sobe mais um degrau do progresso. Precisamos crescer na mentalidade do povo, tudo por Campina como fizeram os paulistas e Ella ser o S. Paulo do Norte. Deem-se a Campina os benefcios que uma cidade progressista exige, que ella compensara sobradamente o esforo. Ao meu ver, Ella esta na infncia. Cresceu precocemente e agora que se est educando, para formar um esprito solido capaz de reagir a qualquer tempestade. Os que aqui moirejam, precisam contribuir com o melhor dos seus esforos, para que Ella continue sendo digna de

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nossa admirao e resalte aos olhos dos adventicios convidando-os para cooperar nas suas atividades. O seu crescimento foi rpido como o relmpago e seu desenvolvimento material, industrial, moral, intellectual e econmico, precisa tambem ser veloz. Talvez que a quota de retribuio dos que recebem benefcios de Campina seja to pequena, que se surgisse nos quadros estatsticos, os envergonhariam. Vamos fazer tudo por Campina! (BARRETTO, 1937, p. 04). No discurso que abre este texto, as palavras de Barretto (1937) validam um lugar belicoso para as pginas dos jornais campinenses, no final da dcada de 1930. O artigo acima corrobora para a configurao dos jornais como espaos frteis em publicaes de discursos e enunciados em formas de metforas, apelos, ataques e textos pejorativos no que se refere ao desenvolvimento da cidade pelos ilustres homens pblicos da sociedade. , ainda, um indicativo de uma guerra de sentido elaborada pelas elites1 letradas, como polticos, mdicos, advogados, professores, engenheiros e intelectuais, na tentativa de construo da imagem de uma Campina moderna, progressista, desenvolvida, articulada com o que era considerado na ordem do dia. Desta forma, podemos dizer que os jornais de Campina Grande transformaramse em um grande campo de batalha, em uma guerra de palavras na construo de uma imagem de Campina como GRANDE, no s no nome. Ao olharmos para este campo de batalha, um jornal no poderia ter nome diferente: o jornal Voz da Borborema, dirio que circulou por pouco tempo, entre os anos de 1937 e 1938 e que abria espao para a guerra de palavras, materializando vozes vidas de progresso e desenvolvimento para a cidade. O jornal que se auto-denominava politicamente filiado ao

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Ao pensarmos o temo elites, de fundamental importncia inferir que no estamos pensando enquanto uma categoria fixa, enquanto classes sociais. No pensamos este termo a partir de uma dialtica de dominante ou dominado ou que se constituem enquanto tais. O termo elites por ns trabalhado refere-se a lugares de ajustamentos, enquadramentos discursivamente nomeados e identificados para serem ocupados pelos sujeitos. Os discursos determinam os sujeitos pertencentes a estes lugares. So lugares nos quais o poder exerce constante atividade e investidura como estratgia de sobrevivncia. Nesses lugares, o poder se exerce e se emana. Existe uma relao de fora na qual os sujeitos so deslocados pelos discursos de enquadramento para lugares privilegiados das redes de poder que, em cada momento histrico, predominante. A discursividade que enquadra, nomeia, institui e classifica os lugares a serem ocupados pelos sujeitos possui um exerccio atravessado pelas redes de saber/poder como tambm pelas redes de desejos. No existe passividade nas relaes sociais baseadas nos dispositivos de poder. De uma forma, ou de outra, todos so ativos, tanto estratgica como taticamente na guerra de sentido e no exerccio de fora. E, como em uma guerra, existe a mobilidade entre vrios lugares e sujeitos no campo de batalha, avanos e recuos fazem parte do cotidiano. Quem est em um determinado lugar considerado de elite em um determinado tempo, poder no estar mais em outro determinado tempo e os prprios lugares podem sofrer deslocamentos de sentido e valor, pois o que pode ser considerado estratgico e privilegiado em certo contexto se esvanece em detrimento a outro contexto, de acordo com as condies de possibilidades histricas. Portanto, o termo elites representa mobilidade e no fixidez, representa lugares discursivamente construdos, em uma batalha no interior dos campos da histria e posto como estratgico e privilegiado socialmente. uma engenhosidade discursiva que engendra prticas nodiscursivas. Para tanto, pensamos este conceito a partir de Certeau (1995; 2003) e de Foucault (2005; 1996; 1987; 1989).

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Partido Progressista da Parahyba, que apia a situao dominante do Estado2 (VOZ DA BORBOREMA, 1937, p. 06), parecia, a cada edio, operacionalizar um exerccio atravessado de combate, batalha, jogo de acomodaes e deslocamentos em torno do moderno. No entanto, outros jornais campinenses fizeram parte deste campo de batalha, como por exemplo, o jornal A Batalha (1934/1935), O Sculo (1928)3, Brasil Novo (1931), O Rebate (1932), Correio de Campina (1927), Correio Campinense (1949), neste ltimo o slogan era um jornal moderno para uma cidade moderna. Os mais variados assuntos eram pautas das edies desses jornais, como a questo da pasteurizao do leite, com brigas entre mdicos, jornalista e populao que divergiam na opinio do quo saudvel era esta nova tcnica (AGRA, 2008). Segundo narrativa acadmica e produo historiogrfica, as principais batalhas gravitavam em torno das sedues do moderno, ou tambm chamada de artefatos modernos (ARANHA, 2001), assim as remodelaes do espao urbano da cidade (SOUSA, 2001), que a cobriam de um semblante moderno. Toda a malha discursiva trabalhada pelas elites campinenses nos jornais representa uma Campina Grande enredada com os enunciados modernos, com o desejo e pretenso de tornar-se referncia de Cidade Dinheiro. Cidade Commercio. Cidade Industria. Cidade Rythmo. (O SCULO, 1928). Cidade que articulou e projetou uma busca incessante pelo moderno e que esteve em constante disputa pelas vrias opinies, discursos e prticas para alcan-lo. Harmonia era um termo que no caia bem aos nimos inflamados das elites, pois elaboraram seus prprios projetos para a modernidade, no diferente dos mais diversos espaos urbanos do Brasil, cada qual com suas especificidades, vontades e desejos singulares. O entusiasmado discurso de Barretto (1937), alm de ser uma apelao - Vamos fazer tudo por Campina! - , tambm neste movimento, um zelo com a memria, uma pequena amostra de uma coleo com inmeros casos que pudemos trazer a lume no nosso escolhido arsenal de fontes para a elaborao desse trabalho de dissertao de mestrado e que selecionamos, estrategicamente, para iniciar o texto, a nossa narrativa. Ao longo da primeira metade do sculo XX, os sujeitos que ocuparam os lugares de elite em Campina Grande desejavam contar a histria da cidade homogeneamente entrelaada2

O governador da Parahyba no ano de 1937 era Argemiro de Figueiredo. Governou o Estado dos anos de 1935 a 1940, natural de Campina Grande, foi o poltico que conseguiu duplicar a produo de algodo e sua gesto marcada pela modernizao da cultura agrcola no Estado. 3 Na edio inaugural do jornal O Sculo, datado em 14 de Julho de 1928, os editores acreditavam est presenteando os campinenses. Assim se referiam populao: Vives o enthusiasmo com que O Sculo emerge do nada para ser teu escudo guerreiro, para ser a voz da tua consciencia, para ser o defensor dos teus nobres ideaes. Que elle possa realisar a felicidade de te servir, na tragectoria que se traa hoje para a vida martyr do jornalismo brasileiro e ter conquistado o premio Maximo de sua ambio (O SCULO, 1928).

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com suas histrias em uma mesma direo e sentido. Aos forasteiros, a boa impresso de uma pujante cidade, cosmopolita, ousada, progressista, desenvolvida e anfitri; uns a chamavam de Rainha da Borborema, outros de Princesa, todos na tentativa de denominar a imponncia, generosidade e aconchego da cidade interiorana que mais crescia na regio Norte, depois dos anos 1920, chamada de Nordeste. Pensar toda a investidura discursiva em construir Campina como grande, na guerra de sentidos e significados atualizados a cada momento histrico, pens-la como produto de inmeras estratgias4, as quais so importantes em qualquer campo de batalha. Estratgias que marcam as disputas de interesses para a ocupao de lugares socialmente privilegiados pelos beligerantes vidos de status e sucesso em seus projetos em cada momento histrico. Mas, no s se preocupavam com a indstria, comrcio e economia os vrios projetos das elites campinenses. Mesmo com uma cidade ditada pelas perspectivas de bons postos de trabalho, Campina, tambm, era vida de uma experimentao moderna na educao. Os projetos em disputa e os interesses beligerantes estavam para alm de uma sociedade mecanicista e fiis s estruturas industriais. O contingente populacional aumentava juntamente com a necessidade de estimular as subjetividades do seu povo, educ-lo, investir na sua formao. Um problema se faz importante pensar na histria de Campina Grande, o que relaciona discursos e prticas educativas s transformaes que se do na construo de uma experincia histrica da cidade moderna. Existia a idia de que o futuro da cidade, como em vrios recantos do Brasil, estava intimamente ligado educao. Interessante que este pensamento nos acompanha h muito tempo e no nos d sinais de que vai nos abandonar: o desejo de instituir a escola como um espao de construo de uma modernidade. No entanto, pensar a escola conjugada com a idia do moderno do ponto de vista do historiador, implica em ir ao passado em busca de instantes, de momentos e de condies de possibilidades em que tais questes se mostraram mais evidentes, mais dramticas e mais intensas, pois acreditamos que a escola um palco simultneo de mudanas e de repeties. Calma, leitor! Voc deve estar se perguntando o que toda essa investidura discursiva, e em alguns momentos, no-discursiva, em torno do desejo de construo de uma Campina GRANDE no s no nome e no turbilho de vida moderna que se pretendia, como4

Ao pensarmos o conceito de estratgias, bebemos da acepo de Certeau (2003), ou seja, um exerccio de imprimir forma, preparar, manipular, engendrar, maquinar, ou mesmo forjar as relaes de fora e poder de um sujeito (no sentido amplo e global da palavra), que pode ser uma instituio, uma cidade, um exrcito, uma empresa, mas que contenha fora e desejo de querer algo de forma isolada. As estratgias demandam de um lugar prprio, uma base de que emana relaes de ameaas e alvos (CERTEAU, 2003, p. 99).

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tambm a questo educacional nesse processo histrico, tem a ver com o nosso objeto em estudo. Entretanto, antes de adentrarmos a nossa trama, consideramos importante talhar alguns conceitos e percursos de pesquisa para o desenvolvimento de nossa narrativa. O nosso interesse pela temtica foi impulsionado ainda no ambiente de graduao, no qual leituras das obras dos autores consagrados, correspondentes Terceira Gerao dos Annales, em especial a Histria Social da Infncia e da Famlia, de Aris (1981). O que mais nos chamou a ateno nesta obra a insero do tema da infncia como objeto para a histria na narrativa dos estudos de Aris (1981). So os novos temas no arsenal de objetos de estudos dos historiadores que nos fizeram repensar a viso positivista da histria arraigada desde o ensino mdio. Pensar a Histria, at a leitura do livro de Aris (1981), era interpretar a narrativa histrica como uma tarefa simples de apurao dos fatos verdicos, em que nada poderia escapar aos olhos investigativos do historiador e at mesmo nas obras de abordagem poltica e econmica ao estilo metdico, o que nos interessava era a verdade dos fatos e no as relaes de explorao dos trabalhadores, a luta de classes ou os modos de produo da economia. A leitura do livro Histria Social da Infncia e da Famlia (Aris, 1981) nos ps em contato com a dita revoluo historiogrfica, metodologicamente falando, conceitos como imaginrio e a produo de historicidade da trajetria da famlia e como essa categoria dita, vista e sentida at nos dias atuais despertaram-nos um encantamento e modificaram a nossa forma de ler e dizer a Histria. Nessa obra de Aris (1981), entramos em contato com a concepo do termo infncia originada do latim no qual significa in-fans, que quer dizer incapacidade de falar. No entanto, na sociedade ocidental, tal incapacidade est relacionada com a falta de racionalidade e de conhecimento, portanto, a criana digna de aprendizado, educao, adestramento por se constituir como um ser menor, uma miniatura do adulto que precisa ser instruda e que, at o sculo XII, no se encontram vestgios de referentes infncia dando a se pensar que at este momento histrico a infncia no existia, pelo menos conceitualmente. Aliado a isso, as fontes utilizadas por Aris como pinturas, testamentos, dirios de famlias, tmulos e documentos eclesisticos abriram-nos os olhos para a possibilidade de nova metodologia, no para a historiografia, que j se fazia valer dela, mas para ns que ainda estvamos acostumados com a viso positivista da Histria. A nossa viso de que a infncia possua uma ingenuidade nata e de que a relao entre pais e filhos era de amor fraterno foi posta com Aris como uma construo histrica cultural e social, localizvel no tempo e no espao e no uma viso universal e absoluta. Portanto, a obra de Aris causou-nos considerveis

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transformaes de ver e dizer as coisas, o mundo e a ns mesmos, fazendo-nos perceber a ns mesmos enquanto sujeitos histricos, em constante deslocamento, em constante construo e desconstruo, em movimentos de recuo e avanos, de fixidez e mobilidade, fazendo-nos e refazendo-nos no grande teatro da vida. Ao lanarmos mo da concepo de que os sujeitos histricos esto em constante deslocamento, a nossa viso atual da histria est bastante influenciada pela historiografia francesa, de modo mais especial, a partir do pensamento do filsofo Michel Foucault. Apreendemos o conhecimento histrico como uma ferramenta capaz de descosturar as linhas que a linguagem nos enreda, apregoa e nos dar um n em determinados lugares e categorias que difcil de desatar. A viso maniquesta e binria das relaes sociais vista como uma construo no campo da cultura, com recortes espaciais e temporais estabelecidos pelo jogo de interesse em cada momento histrico. As relaes culturais e sociais no so naturais, no so relaes que sempre existiram, como a separao entre o normal e o patolgico, entre o limpo e o sujo, entre o branco e o negro, entre o heterossexual e o homossexual, como outras formas de segregao estabelecidas entre as sociedades, mas sim uma inveno com o poder da linguagem ao longo dos tempos. A histria, para ns, no est preocupada em procurar as causas dos acontecimentos, pois no existe a naturalidade dos eventos, no acreditamos nas essncias, na idia de que nas origens as coisas se configuravam em perfeio (ALBUQUERQUE JNIOR, 2007, p. 168). Acreditamos na capacidade da histria de historicizar as condies de possibilidade que emergem determinados conceitos que enquadram, classificam e apreendem as coisas e o mundo. A histria se configura enquanto batalhas, jogos, disputas em torno do poder e da verdade, segundo Albuquerque Jnior (2007, p. 170):

Em suas aes os homens entrariam em disputas em torno de domnios, sejam polticos, sejam de conhecimento. Nestas disputas a linguagem representaria uma das principais armas; atravs dela que seriam demarcados espaos de poder, campos de atuao, identidades, lugares de sujeito, domnios de objetos; atravs dela que se estabeleceriam as aproximaes e os distanciamentos, os pactos e as excluses, os nomes e os silncios que instituem uma ordem social. Como um dos sentidos que guarda a palavra jogo, a sociedade seria um conjunto complexo de relaes, de funes, de tticas, de estratgias, de deslocamentos, um conjunto aberto e inumervel em qual a imprevisibilidade est presente.

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A desnaturalizao dos conceitos nos possibilita elaborar uma narrativa histrica em consonncia com as novas redes e fios que podero alinhavar novas relaes sociais menos estigmatizantes e que no excluam ou classifiquem os sujeitos histricos pelas suas diversidades de desejo, sentimento, cor, sexualidade, moradia, profisso e ocupao, pois a histria deve ser escrita por um historiador ativo, que se enxergue como um sujeito histrico, que do mesmo jeito possui desejos, vontades, aes e que isso interage na forma de ver o seu objeto, e no querer assistir o jogo da trama histrica apenas como espectador. Acreditamos que a principal funo do historiador, principalmente depois de ascenderem no cenrio acadmico mundial os novos paradigmas desenvolvidos pela Escola dos Annales, o de desconstruir as relaes de alteridade que nomeiam, classificam e excluem o outro, naturalizando esse exerccio, mas que no so mais do que construes sociais e culturais dignos de historicizao. funo social do historiador tornar o conhecimento histrico mais circulante, como um exerccio atravessado por mobilidades e socializaes, pois o conhecimento histrico, ao contrrio do que muitos pensam, no um conhecimento morto, do passado pelo passado, ao contrrio, o conhecimento histrico vivo, precisa ser circulante, deve servir a vida (NIETZSCHE, 2005, p. 67-178), e no ficar amontoado nas prateleiras acadmicas. A amplido de fontes que o historiador capaz de se munir, aliado a novas abordagens e temticas que ponham em cena o indivduo comum e o que a ele est relacionado, como por exemplo, a histria do cotidiano, da infncia, da doena, da sexualidade, da velhice, do amor, da morte e muitos outros temas que atravessam os sujeitos em qualquer momento da vida. Munida de tais concepes e pensamentos, com um novo olhar para a construo histrica, tivemos contato com imagens e palavras datadas de 1902 e 1917, sobre a interveno do discurso mdico-higienista no interior das escolas na cidade de So Paulo que nos chamaram a ateno. No ano de 1902, Mello publica o seu livro intitulado A Hygiene na Escola e, em 1917, publica outro livro chamado Hygiene Escolar e Pedaggica para uso de mdicos, educadores e estabelecimentos de ensino. Pela leitura que fizemos de Aris (1981), tivemos interesse em compreender como os saberes como a psicologia, a medicina, a sociologia ajudaram a construir o conceito de infncia e deram respaldo para as prticas de educao, disciplinarizao e normatizao das crianas. No entanto, at aquele momento, desconhecamos a interveno forte do poder poltico no mbito educacional, no Brasil, e questionamos: como tal interveno passou despercebida aos nossos olhos, na qualidade de sujeito histrico?

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Desenvolvemos uma pesquisa nos anos de 2006 e 2007 que analisou os discursos dos livros publicados por Mello (1902; 1917). A narrativa que tomamos como fonte nesta pesquisa compe um manual de receitas discursivas e no-discursivas expresso nos dois livros publicados pelo mdico-pedagogo. Elaboramos uma anlise dos discursos disseminados pelos livros, esquadrinhando a infncia e as prticas educacionais em torno dela, pois os discursos de Dr. Mello (1902; 1917) postulavam mtodos e formas adequadas de como a criana deveria de comportar e se higienizar, retirando-as das mulheres e mes. Pensando na construo de uma identidade nacional baseada na educao que os discursos do incio do sculo XX proferiam, pretendemos pensar tais discursos agindo na cidade de Campina Grande. nessa perspectiva que o presente texto sugere um interesse pela historicidade da emergncia de uma preocupao com educao em Campina Grande. O objetivo principal de nossa dissertao problematizar as condies de possibilidade do surgimento de uma noo de educao acoplada idia de modernidade na cidade de Campina Grande pelas prticas discursivas, a partir do Instituto Pedaggico. Pensar como o discurso de progresso associou-se ao discurso pedaggico na tentativa de transformar Campina numa cidade civilizada, moderna, saudvel e de um povo educado. Elegemos, como recorte temporal, por sua vez, os anos de 1919 a 1945, pois o ano de 1919 a fundao de um importante educandrio particular na cidade chamado Instituto Pedaggico5 e, posteriormente, Ginsio Alfredo Dantas; o ano de 1945 representa o final da gesto, devido morte do seu dono, o Tenente Alfredo Dantas, sujeito importante na configurao educacional naquela poca, marcando assim uma nova etapa nas pginas da histria da educao em Campina Grande. Ao passo que estamos problematizando a modernidade por dentro da educao, o Instituto Pedaggico se constitui como um bom marco cronolgico, por que a criao do educandrio justifica-se na necessidade da modernizao da educao para Campina se sentir moderna. Pode-se dizer, sem dvida, que a modernizao urbana que marcou a primeira metade do sculo XX em Campina Grande, apresentou, como uma de suas faces, uma crescente institucionalizao nos hbitos educacionais, o que se evidenciou no surgimento de vrios colgios na cidade, dentre os quais podemos destacar o j citado Colgio Tenente Alfredo Dantas, em 1919, o Colgio Diocesano Pio XI e o Colgio Imaculada Conceio - DAMAS, ambos em 1931. O recorte temporal aqui priorizado demarca, portanto, uma poca em que a

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O Instituto Pedaggico Campinense no foi o primeiro educandrio particular de Campina Grande, antes dele existiu o Colgio-Instituto Spencer, fundado em 1915 por Jos Otvio de Barros, mas que no ganhou tanta visibilidade nos jornais campinenses.

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cidade vivencia a chegada de seus principais colgios; dois dos quais ainda vigoram na sociedade campinense como tradicionais centros educacionais6. Abrimos para voc, prezado leitor, o espao da curiosidade: E por que estudar Campina Grande? Ora, se o movimento de construo de uma modernidade foi projeto de tantas cidades brasileiras, cada uma com suas especificidades em momentos distintos, por que inserir Campina em cenas acadmicas, por que dar o ensejo de ser ouvida em seus discursos, de ser tranada por nossas mos e sentidos? Eu, historiadora, campinense e mulher, desamarro do meu ntimo os laos de uma leitura formativa da cidade, uma leitura que foi me formando dia a dia (LAROSSA, 1999), construindo-me enquanto sujeito histrico deste lugar. Desprendo das minhas subjetividades imagens e palavras sobre uma possvel histria de Campina por me ver partcipe dela, por ver a mim mesma alinhada e desalinhada com suas tramas, construda e desconstruda atravs de seus enredos em terreno mvel. Eu, produto de uma sociedade descontnua, singular, (des)alinhada, vejo o sentido humano da produo historiogrfica por no me ver como uma simples espectadora da histria campinense e em conjunto com a bagagem de leituras, com o arsenal que me fiz valer de conhecimento, com o debate com minha orientadora, trato desta pesquisa a partir do ns. Portanto, no existir na narrativa desta dissertao, apenas o Eu, ou apenas o Ele (o fato acontecido), mas sim o Ns, um entrelace das subjetividades que fazem a histria ser humana, demasiadamente humana.

1.1 Nosso lugar de fala:

Ao passo que definimos a nossa problemtica e recortamos a nossa pesquisa em um determinado espao e tempo, vamos a partir de agora explicitar o nosso lugar de fala, identificar de quais lugares no aproximamos e dos quais nos afastamos. Faz-se necessrio, para poder escrever esta narrativa, uma dentre as muitas possveis, discutir alguns conceitos e categorias que ao longo da histria serviram como ferramentas para moldar a narrativa histrica, principalmente as narrativas calcadas nos princpios da verdade. Ao longo da nossa operao historiogrfica, nos apropriaremos e (re)significaremos idias e conceitos de vrios autores que trabalham com as temticas paralelas que atravessam todo esse texto e que serviram de ferramenta para compor o nosso objeto e a nossa problemtica. Produzir um texto, a partir do pensamento de autores pertencentes a uma nica corrente historiogrfica 6

Referimo-nos ao Colgio Tenente Alfredo Dantas, atual Colgio Alfredo Dantas (CAD) e o Colgio Imaculada Conceio DAMAS.

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encarcerar o conhecimento, aprision-lo, enquadr-lo em uma frma podando o seu potencial multifacetado, pois o conhecimento requer espao para circular, para ser livre. A construo de uma historiografia representa a polifonia de cada momento histrico vivido, plural e polissmico, pois a fala instaura uma prtica, que por sua vez, materializada atravs da escrita. Certeau (1982) estabelece uma trade de elementos que se configura como operao historiogrfica. Toda fala historiogrfica parte de algum lugar estabelecido, de um espao estratgico atravessado por relaes de fora atravs de tenses. A forma que o historiador trabalha uma temtica, que interfere em determinado objeto de estudo e infere maneiras de trabalhar, de enxergar o problema que se faz latente, um fazer de produo, de construo do corpus documental e de mold-lo, atravs de escolhas, recortes, eleio e da escrita. O fazer historiogrfico se faz perceber a partir de onde se fala, o que se fala, para quem se fala e o interesse de quem fala. Duas caractersticas se fazem importantes: o lugar de fala fruto do estabelecimento das condies de possibilidade para a emergncia desta fala, condies sociais e culturais em determinado momento histrico, e, por outro lado, pelo ambiente institucional que legitima e dar poder ao que se fala. Achamos importante revisitar a historiografia sobre determinado tema, pois nesta visita que se podem promover deslocamentos de idias, apontamentos para o que nos singular, desvio e contraste. O que se fala tem total fiscalizao pelos seus pares. Funciona como um tipo de categoria que reconhece o trabalho do outro. Uma obra de histria s se evidencia enquanto tal, quando os pares de quem escreveu a obra legitimam a produo do conhecimento histrico, levando-se em considerao a pertinncia atravs das demandas que esto em voga no interior dos debates historiogrficos, ou seja, um texto de histria escrito para o outro, numa relao dialgica com os que conferem credibilidade ao que se considera como novo, como ruptura com o que j foi dito at ento. a partir do pensamento de Certeau (1982) que as categorias que interessam ao historiador, ou seja, o passado e o presente, ganham novas significaes em sua relao. O passado no mais visto como algo estanque, morto, parado, suspenso no ar, um referencial para se explicar acontecimentos do presente. O passado contraste! aquilo que procuramos como inusitado, como diferente, como singular. Levando-se em considerao o pensamento de Certeau (1982), tendo a trade formada pelo lugar, prtica e escrita, nos propomos a revisitar produes historiogrficas sobre educao, produes tanto do mbito da educao, como tambm da histria. Ao passo que

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questionamos, desconstrumos, delineamos uma outra histria, dando um outro espao para o presente, um outro olhar para a histria de Campina Grande e sua modernidade pedaggica. O nosso principal objetivo nesta pesquisa tentar pensar como emergiu na sociedade campinense uma elaborao de discursos sobre educao e modernidade pedaggica e como foram construdas tentativas de modernizar a cidade e os hbitos da populao, atravs das prticas discursivas em torno do Instituto Pedaggico Campinense. Para tanto, a palavra modernidade nos transmite uma engenhosidade etimolgica que requer escritura. No compreendemos o termo modernidade apenas pela viso de Berman (1986) com o turbilho dos excessos que os os proporcionam (exploso da industrializao e da produo, urbanizao, conurbao, aglomerao de pessoas etc.), ou apenas pela viso de Giddens (2005), que procurou tecer uma anlise institucional da modernidade. O sentido atribudo por Le Goff (2003) modernidade como ruptura, como termo imbudo de complexidade e ambigidade e que variam de acordo com o tempo e espao, nos fez pensar que a modernidade est sim para a noo de ruptura, mas que no est posta num recorte bem selecionado pela historiografia tradicional, no qual teve incio em 1453, com a queda do mundo Bizntino e final em 1879 com a Revoluo Francesa7. Pensamos a modernidade como conjunto amplo de modificaes nas estruturas sociais do Ocidente, a partir de um processo longo de racionalizao da vida (SILVA, 2005, p. 297) cultural, poltica e econmica. No entanto, foi Foucault (1999) que nos fez apreender que o saber cientfico est totalmente presente nos discursos dos jornais campinenses, pois segundo o autor, se o sentido de modernidade est na ruptura entre o velho e o novo, entre uma fase e outra, o que existe a singularidade, epistemologicamente falando. Portanto, entendemos o conceito de modernidade pedaggica como uma forma do fazer educacional atravs da pedagogia moderna e que na juno de cinco elementos formam uma concepo ampla, quais sejam: prdio (organizao do espao escolar), leis (organizao do ensino), cientificidade (formao docente), integralidade (viso do educando), intuitividade (metodologia de ensino). Assim, pretendemos historiar como os discursos dos letrados campinenses instituram uma modernidade pedaggica em Campina Grande. Para tanto, usaremos basicamente dois tipos de fonte, no para apurar os fatos acontecidos, como smbolo nico da verdade, mas para construir uma narrativa possvel, como algo que foi construdo pelos discursos das fontes. Procederemos pesquisa em livros7

Ainda sobre a periodizao: A modernidade parece-nos menos um perodo cronologicamente definido do que uma idia reguladora (ou desreguladora), uma cultura, um estado de esprito (conjunto de aspiraes, de pesquisas e de valores) que se impe no final do sculo XVIII e que, deste modo, se inscreve na poca que os manuais de histria denominam de contempornea (DOMENACH, 2005).

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de memria, mais especificamente as Memrias reconstrudas por Ronaldo Dino8 e os jornais que circularam na cidade durante o recorte escolhido, pois, atravs da imprensa, muitos conflitos em nome da modernidade pedaggica eram expostos populao por meio de artigos e notcias. Lanaremos olhar, portanto, s edies de alguns peridicos que circulavam na cidade durante aquele recorte estabelecido, dentre os quais: O Sculo (1928), Brasil Novo (1931), O Rebate (1932), A Batalha (1934), Voz da Borborema (1938) e Correio Campinense (1949). Efetuando vrias leituras nos jornais campinenses na tentativa de apreender o movimento de construo do que era dito como pedaggico, de idias postas a circular na sociedade da poca, acompanhamos um jogo de interesses dos sujeitos imersos no seu tempo. O nosso trato com os jornais, que definimos como fonte histrica nos remeteu a concepo de Capelato, que nos contribui com a sugesto de que mudar o foco de olhar para os impressos, ao invs de questionarmos a veracidade dos discursos, se as idias contidas nas palavras escritas pela elite letrada eram ou no verdadeiras, deveramos nos perguntar sobre as condies de possibilidade da produo de tais discursos, pois os jornais enquanto documento/monumento9 so resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da sociedade que o produziu e tambm das pocas sucessivas durante as quais continuou a viver esquecido ou manipulado (CAPELATO, 1988, p. 34), j que os fatos so fabricados, possuem uma objetividade relativa. Praticamos o que Foucault (2005) chama de dissecar. Atitude inferida em um corpus documental que tem como caracterstica escriturar discursos de continuidade e rupturas alvo privilegiado para os historiadores que vem a histria como produes discursivas de aproximao de afastamento, entre cortes e alinhavados, em determinada poca. So aprendizagens significativas, que ao lanar um tema dentro do campo da histria da educao, nos questionamos qual o lugar do jornal de poca no cotidiano escolar de hoje? Esta pesquisa segue, tambm, como um estmulo aos professores da contemporaneidade a trabalharam com jornais de poca, para alm de inserir um novo jeito de se fazer histria, incutir nas sensibilidades dos alunos a possibilidade de aproximao com os temas estudados em sala de aula. um exerccio de fazer-los sentir como sujeito histrico da sua cidade.

1.2 A Historiografia8 9

Em captulo mais frente, mapearemos o sujeito Ronaldo Dino, sua vida e sua representao para a cidade. Consideramos os jornais como documento/monumento a partir da concepo de Le Goff (2003, p. 535-536) : o documento no qualquer coisa que ficou do passado, produto da sociedade que o fabricou segundo as relaes de foras que detinham o poder.

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Consideramos importante fazer referncia s obras que elegemos como significativas, pois se referem ao momento histrico e a temtica pertinentes ao nosso estudo. No que se refere a funo social que a escola desempenha na transio do sculo XIX para o sculo XX, a obra de Carvalho (1989) problematiza os deslocamentos que a questo educacional sofreu, a partir dos projeto poltico-educacional de Caetano de Campos, entre uma dcada e outra, at chegar nos anos de 1920. poca que se destaca a grande emergncia dizvel de um entusiasmo pela educao devido a emergncia de preocupaes com a educao do povo brasileiro, na tentativa de torn-lo civilizado e os maiores agenciadores desta empreitada foram as elites letradas do pas. A Repblica, em vrios momentos distintos, manuseia uma gama de saber-poder com o intuito de tornar a educao uma ferramenta regeneradora, a partir da dcada de 1920. No entanto, a obra de Carvalho (1989) no pe em voga a relao que o novo modelo de educao que estava surgindo estabelecia com o processo de modernizao do pas, a relao entre a escola e o meio em que eu vive, a cidade. Um estudo muito relevante o de Costa (1979). Em sua obra o autor busca problematizar a interveno da medicina na vida familiar, apontando as novas sensibilidades que so construdas para dar um novo lugar para o pai, a me, a mulher, o homem, os jovens e as crianas, enfim, um novo e higinico perfil para a famlia, em contraponto velha e suja face da famlia patriarcal. A medicina intervm para incutir nas subjetividades de homens, mulheres e crianas o medo preeminente da morte fsica e social. Subjetividades que aparecem imbricadas num mesmo objetivo: o de consolidar o saber mdico e assim justificar a sua interveno no mbito privado da famlia. Como base para a discusso da famlia, o autor lana mo dos conceitos de disciplina e norma para problematizar a passagem da famlia patriarcal para a burguesa, de como os novos ideais para homem, mulher e criana que o modelo de famlia nuclear desejara imprimir na mente, no corpo e na pele desses indivduos. Corazza (2000), por sua vez, problematiza como a infncia se configurou dentro de uma malha discursiva do saber/poder mdico a partir de novas prticas de biopoder, ligadas aos emergentes mecanismos de governamentalidade das populaes e dos indivduos (CORAZZA, 2000, p. 224). A infncia passa ser de utilidade poltica e econmica para o Estado, que se apia nos saberes cientficos para higieniz-las. Segundo a autora, o saber mdico/pedaggico estabelece um novo tipo de educao do corpo para possibilitar a constituio de um novo ser cidado, que atenta aos anseios da Repblica e a ordenao em nome de uma raa sadia.

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Sob os auspcios do movimento escolanovista, as primeiras dcadas do sculo XX foram alvos de mudanas nos sistemas escolar no que tange valorizao do discurso vindo da psicologia, na tentativa de compreender a criana que se pretende educar e na valorizao da disciplina. O saber mdico se faz presente em todas as temticas relacionadas infncia, estabelecendo padres de (a)normalidade, estabelecendo etapas evolutivas, tanto individuais, quanto do grupo familiar. Tecendo estudos sobre a infncia no mbito escolar, destacam-se as pesquisas de Rocha (2005), que analisa algumas estratgias agenciadas pelos mdico-higienistas durante o sculo XIX e XX. Prticas e representaes dos mdico-higienistas foram de fundamental importncia para a naturalizao de hbitos ditos saudveis, fisicamente e mentalmente, nas crianas. Segundo a autora, o campo poltico o que mais interessa elaborando uma abordagem do ponto de vista da inspeo mdica para uma melhor formao do cidado. So as dcadas de 1900 e 1910 que nutriam os frutos iminentes que germinavam desde o final do sculo XIX. Refirimo-nos s influncias dos discursos mdicos. Nesse ponto, as crianas foram enquadradas em dispositivos de disciplina, assegurando espaos especficos para as mesmas. Nessa perspectiva, a escola se materializa em lugar da sade. Sua organizao reveste-se de uma dada visibilidade, cujos espaos e a conduta de seus professores do testemunho de salubridade, de normalidade. No investimento mdico higienista na escola, professor e espao escolar tambm so agentes de vigilncia, de inspeo. Durante nossas pesquisas no estgio de mestrado sanduche na Universidade Federal de Minas Gerais, entramos em contato com pesquisadores que trabalham a Histria da Educao na perspectiva do olhar voltado para a cidade. A obra de Faria e Veiga (1999) questiona a relao da educao com os lugares de construo de uma Belo Horizonte moderna, na passagem do sculo XIX para o XX. As fontes pesquisadas pelos dois estudiosos so pronturios encontrados no sto da Secretaria de Justia de Minas Gerais. Apreendemos uma tentativa de construo de identidade para a infncia, em uma relao de alteridade entre as instituies e as crianas:

Ao darem entrada no Abrigo Afonso de Moraes os meninos eram imediatamente identificados. Nesse procedimento, simples e aparentemente burocrtico, criava-se seu passado e definia-se seu destino. Para registrar aquele menino que chegava era preciso criar uma representao de suas relaes como o coletivo, era preciso saber quem era ele. Uma representao da identidade dos meninos, elaborada por um outro, dentro de uma estratgia discursiva mdico-policial, como

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podemos perceber nos registros dos pronturios (GREIVE e FARIA, 1999, p. 79). Portanto, as crianas que tiveram suas memrias relegadas aos stos e pores foram trazidas a lume por Faria e Veiga (1999), escrevendo uma histria da infncia produzida pela modernidade, histria que se configura como um percurso entre o mundo dos mortos para o mundo dos vivos, uma nova trajetria sobre a infncia.

1.3 Estruturao dos captulos

Escriturar esta narrativa admitir que seja apenas uma das muitas possveis sobre a modernidade pedaggica, pois apropriamo-nos de pensamentos de diversos autores, disjuntos dos locais tericos de onde falam, visto que o conhecimento enquadrado em determinada corrente histrica, poda a fluidez das idias ao construir nosso objeto. Portanto, nos (re)apropriamos do pensamento das correntes de pensamento tanto da Histria Cultural como do Ps-estruturalismo, inferindo cautela para que as idias no se apresentem com incoerncia. Assim, nosso trabalho constitui-se pelo primeiro captulo presente, intitulado Pra comeo de conversa: a histria de uma pesquisa, no qual fizemos um itinerrio acadmico e subjetivo da nossa pesquisa, com formas de ver e dizer a histria, os desejos, angstias e inquietaes inerentes construo histrica. No segundo captulo, intitulado Educar coraes e mentes, entre o novo e o velho: a educao no incio do sculo XX, situaremos a questo da educao no cenrio brasileiro, o incio do sculo XX, abordando as condies de possibilidades de construo de discursos que articulavam a necessidade de nomear a educao como a principal ferramenta para se alcanar a modernidade. As principais capitais dos estados brasileiros, como So Paulo, Rio de janeiro e Belo Horizonte se transformaram em espaos de guerra e batalha entre os discursos em prol de uma sociedade civilizada. Para tanto, apropriamo-nos da produo intelectual da poca, elaborada pela elite letrada do pas que se julgava legtima na dianteira do pensamento de fundao de um novo pas. No terceiro captulo, nomeado como Espelhos das Palavras: o que dizem ser moderno e pedaggico nas memrias e peridicos campinenses, pretendemos construir um movimento inicial de interrogao, no sentido de que modernidade era essa to desejada pela sociedade campinense e como os discursos do moderno pensaram o educar na cidade de

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Campina Grande, no perodo selecionado. Analisaremos a emergncia de tais discursos e de como esses passaram a nomear, classificar e instituir Campina como uma cidade que deveria se educar. Para isso, elegemos, como fontes bsicas deste captulo, as memrias narradas na obra de Ronaldo Dino (1993) e os jornais escritos que circulavam na poca.

2 EDUCAR CORAES E MENTES, ENTRE O NOVO E O VELHO: A EDUCAO NO INCIO DO SCULO XX

2.1 Cartografando uma geografia educacional na modernidade

No Brasil, as primeiras dcadas do sculo XX, mais precisamente a dcada de 1920, assistiram a grandes aventuras sociais, econmicas, polticas e culturais10, dentre elas, as que lutavam por uma remodelao da educao. O Movimento da Escola Nova ganha grande visibilidade e dizibilidade no debates pedaggicos educacionais, e mesmo com a proposta de nova em seu nome, retoma discusses j empreendidas ainda no final do sculo XIX, deslocando-as com uma nova roupagem, como a obedincia aos ditames da higiene e da disciplinarizao de corpos e mentes de meninos e meninas, o respeito pelo mtodo intuitivo na construo do conhecimento do aluno, a centralidade no educando das relaes de aprendizagem e o carter racional da escolarizao (VIDAL, 2000, p. 497-517), pondo essas discusses a desfile, como estilistas de uma nova coleo que utilizam retalhos da coleo passada. O discurso escolanovista entendido por ns como representante de valores, apontadores de batalhas entre o novo e o velho, pois materializam desejos e assinalam a transio de uma educao tradicional para uma educao moderna. Contudo, segundo estudos mais recentes no campo da Histria da Educao, as crticas do movimento escolanovista educao tradicional, aproximam-se mais de um exerccio de retrica, no sentido de que muito do que era visto e dito como tradicional1110

Podemos destacar, por exemplo, a construo de uma nova identidade brasileira, bastante nacionalista, atravs do movimento modernista e das elites intelectuais do pas; os protestos e manifestaes operrias, culminando na criao do partido comunista; a insatisfao, por uma parte da sociedade brasileira, com as estruturas do poder, manifestada com o movimento tenentista; a crise do caf, como desdobramento da quebra da Bolsa de Nova York causando uma grave crise poltica, econmica e social. E o que entendemos por um modelo de educao tradicional? Diga-se de passagem, que acreditamos que os processos de educao e de subjetivao da mesma so descontnuos, heterogneos, plural e que atendem ao momento histrico vivido, em cada espao especfico arrolado com as condies de possibilidade de sua efetivao variante. Mas, pensaremos a educao tradicional como uma experincia vivida nos espaos de Brasil a dentro, pertencedora de algumas caractersticas comuns, como por exemplo a admoestao sofrida pelos educandos. Mesmo sabido da burla com que alguns alunos escapavam de tal prtica, o carter vexatrio era comum em algumas situaes. A alfabetizao obedecia aos primeiros acordes com a educao dos gestos, alternando momentos suaves e de extrema fora (palmatria e castigo fsico). A disposio dentro de sala de aula, guardando-se as devidas

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foi ressignificado e reapropriado, o que se negava em material e mtodo, foi reaproveitado sob o signo do novo (VIDAL, 2000, p. 497-517). No entanto, achamos de fundamental importncia tecer uma amostra do contexto histrico, para uma melhor compreenso do cenrio favorvel que contribuiu para a construo de uma discursividade sobre educao e modernidade no Brasil. A modernidade caracteriza-se como terreno frtil na formao de espaos de dizibilidade de novas leituras e novos conceitos de educao e escola12. Faz-se necessrio interrogar: quais modelos de educao a ascendente Repblica do Brasil estava querendo, gestando e articulando? Em que condies de possibilidade histrica se produziram os discursos referentes educao brasileira, no incio do sculo XX? Quais formas de construir uma educao ideal, a partir de tais discursos emergem nesse momento? A experincia histrica vivenciada, neste momento, no s fecunda para o estudo sobre a Histria da Educao, como tambm para uma anlise das condies de possibilidade discursiva na Paraba, mas especificamente em Campina Grande (problematizada nos prximos captulos), sobre educao, que descontinuamente, de maneira particular e em certas propores, interagem, aproximando e/ou afastando, em alguns momentos, os discursos de ordem mais geral, de um debate mais amplo. Os

especificidades, organizava-se de forma clssica: do outro lado da sala, frente aos alunos, onde estava a sua banca de mestre-escola, montada sobre um tosco estrado [...] observava a turma com olhar severo e vigilante (ALMEIDA, 1962, p. 62). No entanto, a educao tradicional, no final do sculo XIX e incio do XX, ainda funcionava em residncias, dividindo espao no cenrio educacional com as poucas escolas existentes. Segundo Faria Filho (FARIA FILHO, 2007, p. 144): [...] escolas cujos professores eram reconhecidos ou nomeados pelos rgos de governo responsveis pela instruo e funcionavam em espaos improvisados, geralmente na casa de professores, os quais, algumas vezes, recebiam uma pequena ajuda para o pagamento do aluguel. 12 Data do sculo XIX as primeiras discusses sobre a dilatao e desenvolvimento da instruo no Brasil, discusses essas tecidas nas Provncias referentes mais especificamente a instruo pblica (FARIA FILHO, 2007, 135-138). A partir do contexto histrico em questo, a escola privada, como tambm a pblica, passaram por um gradual processo de organizao escolar. Um dos sinais de modernizao da educao no pas foi o deslocamento do modelo das cadeiras isoladas para modelo de grupos escolares, ou mesmo para educandrios particulares. Ao que se refere ao modelo de grupos escolares, especificamente, Pinheiro (2002) analisa a experincia da origem dos grupos escolares na Paraba e, em linhas mais gerais, tece comentrios sobre o surgimento de tal modelo no Brasil. Segundo Pinheiro (2002), o novo tipo de instituio surge primeiramente em So Paulo (1894), no qual passa a ser modelar para o resto do pas, que se espalha de forma descontnua e desigual atendendo as necessidades e momentos histricos especficos de cada localidade, como o primeiro grupo escolar em Minas Gerais, na cidade de Belo Horizonte (1906); no Rio Grande do Norte, na cidade de Natal (1908); no Esprito Santo, na cidade de Vitria (1908); em Santa Catarina, na cidade de Lages (1911); e, na Paraba, as idias de criao de grupos escolares datam de 1908, com pedido de reforma educacional, em 1911, pela diretoria-geral de Instruo Pblica que almejava, prioritariamente, a diviso do ensino em elementar e complementar, que o ensino seria ministrado em escolas isoladas e grupos escolares, e que as disciplinas professadas nas escolas seriam distribudas por quatro anos. O modelo de cadeiras isoladas representaria o modelo tradicional de educao e as escolas reunidas e grupos escolares representariam o moderno, o modelo que viria a suplantar o atraso educacional que perdurou por muito tempo no pas. Para uma melhor visualizao do tema, conferir: PINHEIRO (2002).

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discursos esto alinhavados em uma rede de relaes histricas descontnuas, na qual os enunciados sobre educao esto imersos em acontecimentos e contextos que o historiador deve indagar em sua singularidade13. No final do sculo XIX, o grande questionamento que se infligia elite letrada do Brasil era como inserir o pas na modernidade. Arrolado a isso, outras inquietudes diagnosticavam uma sensvel crise de identidade nacional por no pertencer ao mstico convvio, em p de igualdade, com os pases considerados modernos, progressistas e evoludos. Inquietudes que podemos denominar de desencanto com a situao em que o Brasil se encontrava, naquele momento de transio da Monarquia para a Repblica. Nas primeiras dcadas do sculo XX, alguns anos se passaram desde a proclamao da Repblica e os intelectuais que se viam desencantados com a situao de pobreza, atraso, inferioridade, tambm se questionavam sobre o caminho que o pas deveria percorrer para alcanar a to desejada modernidade, viam em si, os responsveis por trilhar esse caminho; enxergavam em seus ofcios, um espao legtimo enquanto um lcus de construo de uma nova identidade para Brasil; cabia a eles fazer crescer o pas de maioria analfabeta, pois para eles, naquele momento, o Brazil um paiz que possue os requintes das civilizaes decadentes sem nunca lhes haver conseguido o prestigio e a imponncia (CARNEIRO LEO, 1917, p. 198). A idia de crise nacional proliferava nas conversas e debates entre os letrados; os partidrios de defesa do modelo poltico monrquico culpavam a Repblica pela desordem e instabilidade que o pas se encontrava. O Imprio era visto e dito como o tempo do equilbrio, ordem e tranquilidade, enquanto que, na Repblica, a desordem, o anarquismo e a instabilidade decretam o caos urbano, os movimentos de trabalhadores e suas reivindicaes (boicotes, sabotagens, destruio de equipamentos das fbricas), de forma direta e indireta, solaparam o novo regime. Multides de analfabetos foram formadas atravs dos desdobramentos da transio da Monarquia para a Repblica e o desamparo ao trabalho foi elencado como um dos principais motivos. O analfabetismo foi considerado como um grande entrave ao progresso e, tambm, nomeado e classificado como o possvel causador da degenerao do povo brasileiro.

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Segundo Fischer (1995, p. 31), no que se refere ao estudo das singularidades dos discursos, a pergunta que se deve fazer porque essa singularidade acontece ali, naquele lugar, e no em outras condies?.

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No entanto, mesmo com a perplexidade diante do que se considerava como grave crise, importantes modificaes no setor poltico e econmico pintaram imagens para novos valores capitalistas que, neste momento, atravessam o cenrio brasileiro. Prticas capitalistas foram estabelecidas entre o Brasil e outros pases da Europa e com os Estados Unidos, no apenas no sentido etimolgico da palavra, mas tambm, no sentido de intercmbio simblico em via de mo dupla. O Brasil ganha destaque como um grande exportador de matrias-primas, como algodo, acar e caf, e como importador de valores, costumes, hbitos e estilos de vida estrangeira (OLIVEIRA, 2002). Neste contexto, o Brasil constri um espao propcio para o desenvolvimento dos ideais de modernidade, progresso e civilizao. Para se alcanar tais ideais, era preciso extinguir tudo que expressasse o atraso, o antigo e o arcaico. Uma batalha entre o velho e o novo foi travada em nome de um anseio progressista e se configurando enquanto uma das condies de possibilidade para a emergncia dos discursos sobre a educao. Era preciso esquecer o passado colonial como condio para a construo de um pas moderno como se desejava. Esquecer o passado e edificar o futuro adotando modelos de civilidade europia14. O crescimento das cidades e, consequentemente, as transformaes dos espaos urbanos pem em voga novas prticas de higienizao e sanitarizao, limpando e varrendo o que poderia denegrir a imagem de uma repblica limpa, fomentando-se, assim, um movimento histrico de construo e experimentao de uma certa modernidade. A gestao de um pas moderno est relacionada com a construo de prticas educativas. A educao torna-se, nos discursos dos intelectuais da poca, um dos elementos mais importantes nesta constituio, no por outro motivo, que os intelectuais14

Mesmo no final do sculo XIX, intelectuais brasileiros que iam para a Europa, tanto para estudo, como tambm para lazer, acabavam por trazer modelos de civilidade influenciados pelas correntes cientficas em voga na poca, como o positivismo francs e o evolucionismo ingls. Sobre isso, Carvalho (1987) nos mostra como os ideais europeus foram utilizados no Brasil de maneira estratgica por determinado setor da sociedade. Segundo o autor, o grupo social representado pelos militares se sentiu atrado pela viso positivista da sociedade e da repblica, configurando-se em uma controvrsia, uma vez que para os positivistas um governo militar no era bem visto. Entretanto, ocorre uma adaptao das idias positivistas, os militares apropriam-se do vis cientificista (Cf. CARVALHO, 1987, p. 27-8). Ainda sobre a influncia das correntes cientficas no Brasil, segundo Schwarcz (1993, p. 18), as elites intelectuais locais no s consumiram esse tipo de literatura, como a adotaram de forma original. Diferentes eram os modelos, diversas eram as decorrncias tericas. Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e final da escravido e pela realizao de um novo projeto poltico para o pas, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo terico vivel na justificao do complicado jogo de interesses que se montava.

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teceram vrios projetos para a educao brasileira em um momento em que o Brasil estava sendo reinventado pela elite letrada, refundando um novo pas, um novo povo 15 e uma nova nao. Segundo Couto16: A educao do povo o nosso primeiro problema nacional, primeiro porque o mais urgente; primeiro, porque salve todos os outros; primeiro porque resolvido, collocar o Brasil em par das naes mais cultas, dando-lhe proventos e honrarias e lhe afianando a prosperidade e segurana; e se assim fez o primeiro, na verdade se torna o nico (COUTO, 1927, p. 19). Ser moderno, no Brasil do incio da Repblica, aceitar que impossvel permanecer com a situao em que se encontrava o pas, uma situao de pobreza gritante e a falta de reconhecimento frente a outros pases de referncia no mundo, pensar moderno pensar em medidas imperativas para regenerar a Ptria. Ento, como promover a regenerao do povo brasileiro, fazer uma revoluo dentro da ordem? A resposta foi dada da seguinte forma por Carneiro Leo: preciso uma agitao nacional. Que todas as foras inuteis se movimentem e actuem e marchem para o progresso. Como obter esse prodigio? Sacudindo o povo, tirando-o da inrcia, dandolhe possibilidades de movimento, educando-o, preparando-o para a civilizao e para a vida. Que elle se torne uma fora productora (CARNEIRO LEO, 1917, p. 199-200).

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Para alguns intelectuais do incio do sculo XX, o Brasil no poderia prosperar com um regime de governo caucado na Repblica, pois a prpria palavra remete a um regime de participao popular e como obter uma participao do povo se a massa populacional do Brasil analfabeta? Desejava-se um povo aos moldes do modelo europeu, engajado com revolues, culto e bem-comportado. No entanto, o que se via, era um pas extenso, com realidades culturais diversas, ento era preciso primeiro, unificar o Brasil culturalmente, homogeneizar, elaborando assim, um projeto de nao baseado na unidade. Para um estudo mais refinado, conferir: ROCHA (1995). 16 Miguel de Oliveira Couto foi um mdico bastante conceituado no incio do sculo XX, no Brasil, catedrtico na Faculdade de Medicina do Rio de janeiro e presidente da Academia Nacional de Medicina. Exerceu grande influncia aos estudos sobre a sade e a educao por se preocupar com o rumo do pas e por considerar que No Brasil s h um problema: a educao do povo (COUTO, 1927). Seus escritos tornaram-se lema da Academia Brasileira de Medicina. Suas publicaes nos Boletins da Academia Brasileira de Medicina dar a ver e a dizer o quanto era urgente a necessidade em pensar a educao e por em prtica novas medidas de remodelao dos hbitos da populao. Uma publicao, em especial, tornou-se folheto, ato institudo pelo Conselho Municipal do Distrito Federal em meados de 1927. Houve uma ampla divulgao do folheto na imprensa e principalmente nas escolas pblicas, seus escritos ecoaram durante anos, visto que seis anos aps a publicao dos folhetos, o servio de Publicidade do Ministrio da Educao e Sade, no ano de 1933, distribuiu cem mil exemplares no pas. Cf. Rocha (1995, p. 28-29).

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O povo brasileiro, massa analphabeta, ignorante e incapaz de trazer o mnimo de desenvolvimento, a mnima vantagem ao progresso nacional (CARNEIRO LEO, 1917, p. 22-23), passou a ser dito e visto como aptico, indolente, doente e degenerado, como algum que estava amarrado a atuao dos vrios profissionais, como um ser que precisava de cuidados especficos para se constituir enquanto cidado brasileiro. Modelar o brasileiro em cidado sadio era um investimento em longo prazo para os governantes. A elite intelectual do incio do sculo XX, formada por mdicos, engenheiros, professores, entre outros, constitua-se de conhecimentos especializados e tomou para si a tarefa de intervir, racionalmente, na construo de uma moderna nao, rumo civilizao. Trs palavras configuram-se no bojo das condies de emergncia para uma discursividade sobre educao e modernidade como salvadoras da ptria, quais sejam: moderno, modernidade e modernizao. Cada qual, com seu sentido e significado especfico, desenha uma conformao singular e descontnua nas relaes que se estabelecem entre si. O moderno traz consigo conotaes, inicialmente, de batalha, conflito, combate, enfrentamento entre o que nomeado de tradicional, de razes culturais com um novo modelo, uma nova forma de pensamento, com o que est na ordem do dia. Ser moderno, na dcada de 1920, viver com uma ameaa de perda de referncias histricas e a tentativa de aceitao do que posto como mais adequado, a partir daquele momento. Ser moderno, como j disse o historiador Oliveira (2002), adquirir conotaes simblicas associadas ao extico, ao revolucionrio, ao mstico, ao alumbramento, ao encantamento (OLIVEIRA, 2002, p. 21). Ou, ainda, como disse Rezende (1997, p. 16), ser moderno quase uma necessidade de sobrevivncia, uma imposio, ser avanado, embora, claro, o seu contedo no expresse, na maioria das vezes, a aceitao do novo como ruptura/revoluo, mas o novo enquanto simulacro, fetichizado. A modernidade envolve dois aspectos importantes: a individualizao do sujeito, com sua emancipao e a idia de liberdade, como tambm, envolve aspectos do progresso socioeconmico. A busca pela novidade, pelos novos modelos de organizao do mercado, novas tcnicas de trabalho que acelerassem a produo em larga escala, novas condutas higinicas, racionais e a cientificidade das relaes sociais, marcam um espao de vislumbramento, venerao e desejo ao progresso. A modernidade encanta e desencanta ao mesmo tempo, em um jogo de dualidade constante, catalisador de sensaes e de sentimentos controversos. Em uma trama moderna, vrios gneros se

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confundem em sua encenao: o trgico, o cmico e a fico habitam o mesmo cenrio, mas a trama da modernidade , na verdade, um drama: a inquietude, o sentimento de solido, a super-organizao, o controle e angstia diante de muitas faces e dissonncias do moderno (REZENDE, 1997, p. 110). A modernidade aclama a mudana, os deslocamentos, as remodelaes e se atemoriza pelo que tais modificaes podem causar na sociedade. Os centros urbanos passam a se compor como espaos de estranhamento e de seduo, todos os sentidos humanos se inebriam com o espetculo citadino, luz e escurido, som e silncio, cheiros e aromas, sabores e dissabores, texturas lisas e estriadas se misturam em um exerccio cotidiano de afloramento das subjetividades humanas. O sagrado e o profano convivem com os smbolos do progresso e da runa. Era preciso a materializao do sentimento de modernidade para pr em prtica formas objetivas de se adquirir o progresso. Entra em cena a modernizao com equipamentos modernos, com a burocratizao dos aparelhos do Estado, seus projetos arquitetnicos, educacionais, sanitrios, de razo prtica e a reorganizao das cidades e seus espaos. A expanso industrial nas grandes cidades ps em cena um contingente expressivo de forasteiros em busca de novos postos de trabalho, a massa de migrantes estabelece relaes que viabilizam o fenmeno capitalista, deslocando o sentido da relao do indivduo com a natureza. A emergncia de novos grupos sociais na paisagem brasileira, como bacharis, mdicos, jornalistas, advogados e engenheiros, por muito, modificou as formas de viver da populao atravs de normas de condutas, regras de comportamento e cdigos a serem seguidos em vrios mbitos da sociedade como um todo, seja na sade, como tambm na educao, economia, poltica etc. importante chamar a ateno para esse momento porque aparece no em cena, mas sim nos bastidores, uma categoria regente que o poder, mas no o poder em forma centralizada, mas sim multifacetada nas relaes que estabelece na formao de sujeitos civilizados, comedidos, normatizados, trabalhadores e obedientes aos cdigos da boa civilidade, vlido tambm para alunos bem comportados e docilizados nas escolas e fora delas, marcando suas formas de ser, pensar e agir. A sociedade moderna uma sociedade disciplinar, modeladora e controladora de corpo e mente. A sistematizao dos saberes e a normatizao social se produzem enquanto relao, pois o poder no algo que disseminado a partir de um lugar unitrio, no estvel ou mesmo aproprivel, mas sim fugidio, efmero, fluido,

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bem malevel que atravessa os corpos e transpassa todas as relaes sociais17, polticas, econmicas e afetiva. (FOUCAULT, 1987, p. 117-119). O poder to inapreensvel que se exerce atravs dos saber-poderes, a partir de construes histricas de discursos institudos18. No incio do sculo XX, todas as transformaes ocorridas nos setores econmico, poltico e social propiciam remodelaes e deslocamentos para ordens liberais e burguesas dos costumes educacionais no pas. Novos comportamentos so gerados, evidenciando, naquele momento, a entrada em cena do ambiente urbano nos interesses pessoais de cada sujeito, as ruas e as instituies de ensino das grandes cidades do vazo para as transformaes que curariam o Brasil do atraso face modernidade, ensejados por novos discursos convidando os sujeitos a subjetivarem as novas prticas. A elite letrada do Brasil utilizava dos procedimentos, argumentos e mtodos cientficos como a principal arma contra a situao de atraso que julgava permear o pas. Detentores da verdade por acreditarem nos preceitos cientficos, os discursos desta elite produzem uma srie de prticas que disciplinam os sujeitos e a interao entre si, para uma boa convivncia harmoniosa, seguindo condutas consideradas cientificamente saudveis e verdadeiras. O maquinrio discursivo produzido pelos letrados filho da consonncia do desejo particular em narrar as necessidades de sua sociedade e a preciso desta sociedade de ser maestrada, decantada, cirurgiada e salva do que ainda havia de rural, atravs da cincia. Torna-se imprescindvel que a sociedade brasileira seja articulada com todas as formas de saber especializado, como o saber mdico, jurdico e pedaggico, apresentando aos cidados um modelo de sociabilidade e sensibilidade a ser seguido. O sentimento de vida aos padres ntegros, higinicos e salutares se apresenta, em uma relao de alteridade, como o novo eu diante do sentimento de morte dos ideais ditos atrasados, o outro. A racionalidade tcnico-cientfica moldando a realidade poltica, econmica e social era considerada sinnimo de progresso pela elite urbana, que passou a construir17

Segundo Foucault (1989, p. XIV), o poder funciona como uma mquina social que no est situada em um lugar privilegiado, ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. No um objeto, uma coisa, mas uma relao. Importante conferir o estudo de Foucault (1987, p. 117-119) em Corpos Dceis, em que o autor realiza toda uma historicidade de como nasce a sociedade disciplinar a partir da fomentao capitalistaindustrial; de como nasce o estudo do corpo como objeto e alvo do poder.

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regimes de verdade em combate a atitudes desviantes que ameaasse a ordem e a imagem que se estava lapidando para o Brasil. Ao Estado, caberia o dever de afastar o obscurantismo e promover um grande projeto, tendo por base a racionalidade para a sociedade brasileira. rgos e instituies de comando e ordem precisam ser arregimentados no sentido de ordenar o que os seres humanos tm de prprio, a sua singularidade, as suas paixes e desejos mais irracionais; o humano passa a ser demasiadamente humano para uma sociedade homognea e mecanicista que se pretendia. As diferenas e contradies humanas so alvejadas pelo o que se constitui como regimes de verdade, no qual estimulam, ou mesmo inventam, os pontos sensveis de cada cidado na prtica de bons hbitos. A noo do educar parece ganhar um sentido civilizatrio, nomeando e classificando os velhos hbitos de sensibilidade e sociabilidade educacional como negativos e atribuindo obrigao educacional aos gestores: [...] o dever mximo dos polticos em um pas, como o nosso, em que as realidades sociais esto abaixo das instituies, exercer justamente essa tutela, essa ditadura mental que Jos Bonifcio quis exercer e no o pde, infelizmente, para o Brasil, seno por to curto prazo (CARDOSO, 1981a, p. 57). A ditadura mental que se pretendia instituir no Brasil se insere em um mar de subjetividades capitalistas, a reorganizao da sociedade, a prtica da revoluo dentro da ordem, mergulha-se no oceano da democracia em busca da organizao social do trabalho, incorporando a massa inculta aos ditames de um projeto civilizatrio: organizao, trabalho e ordem. Era preciso educar os menos providos de cultura, pois instruir formar cidados, sanear mentalmente, fundamentar os laos da coletividade dentro da unidade da Ptria (CARDOSO, 1981b, p. 109). A educao sofrer um deslocamento de sentido, na qual deixar apenas de exercer suas funes meramente pedaggicas para atuar, efetivamente, na educao nacional, em questes mais globais referente Ptria. O Brasil precisava ser redimido do atraso, pecado que s a educao o salvaria, e, como em um purgatrio, as novas geraes brasileiras teriam que reconhecer, trabalhar e operacionalizar a entrada do pas no reino da modernidade: [...] nesta poca de civilizao de base cientfica, onde tudo se procura fazer pela cultura, a educao a maior necessidade do Brasil. No nosso pas precisamos de cultura, por toda a parte, e

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para tudo: cultura fsica, higinica, profissional, mental, moral, social, poltica e cvica (CARDOSO, 1981a, p. 57). Polticas de controle social como reforma sanitria em combate s epidemias e endemias eram proporcionadas por uma educao higinica dos indivduos; vrios projetos com base na eugenia configuram-se em estratgia do governo para que a sociedade alcance a regenerao e a edificao. A escolarizao passa ser um procedimento legitimado pelo poder como arma poderosa, rica e respeitada a favor do progresso, e em nome desse progresso que a identidade nacional vai sendo inventada para equiparar o Brasil aos pases mais desenvolvidos da poca. As escolas tornam-se vnculos para a implantao dos ideais republicanos e tambm para produzir discursos de verdade. A noo de educao, nesse momento, est dicotomicamente frgil, controversa no caminho percorrido entre o discurso e a prtica, pois as imagens construdas na malha discursiva da poca ao que se referem aos sujeitos homens, mulheres e crianas modernos destoam das condies de vida de muitos destes. Mais especificamente s crianas, existe um contraste entre a criana limpa, polida, dcil, disciplinada e educada, daquelas que viviam da prpria sorte nas ruas. Aos que no atendem s demandas modernas, por no terem condies financeiras para terem acesso aos espaos de educao, sociabilidade, salubridade e moralidade, resta construir novas identidades. Novas identidades com a nomenclatura marginal, como o menor delinquente, o criminoso, o mendicante e at a prostituio infantil (MOURA, 1999). A rua, como ambiente poliformo que , torna-se palco para deslocamentos de cenas que contrapem as representaes inventadas de como ser criana nos discursos dos letrados, pois a identidade da criana e do adolescente construda, [...], a partir de elementos que incorporam o idlico e a relao com o sagrado, a partir de caractersticas como temeridade, imprudncia, fraqueza e fragilidade, bem como a partir da idia de futuro da ptria em gestao (MOURA, 1999, p. 5). A dicotomia presente na discursividade acerca da identidade infantil entre a rua enquanto espao poliformo e at mesmo perverso, e a infncia, visto como um estgio da vida frgil, sagrado e idlico, leva os intelectuais da poca a elaborarem e instituirem polticas de interveno. Ora, seria bem mais conveniente estipular uma fragilidade e uma corrupo inerente natureza da criana para legitimar polticas de normatizao e

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disciplinarizao advindos do Estado para classificar, controlar e confinar os menores tidos como desviantes.

A identidade da criana e do adolescente recorta-se no mundo dos adultos e nele se revela em seu significado pleno: no interior das relaes de idade, o idlico e o sagrado se perdem, enquanto temeridade, impudncia, fraqueza e fragilidade que remetem para a necessidade de proteo, tutela e cuidados permanentes, emanados do mundo dos adultos e mesmo a idia de futuro da ptria em gestao por meio da qual o menor se define sob o ngulo das determinaes capitalistas legitimam o teor das relaes de poder que se reproduzem no universo as famlia, no mundo do trabalho, no mundo visto como socialmente marginal, que freqentemente tm, na violncia, um denominador comum. Construo social, a identidade da criana e do adolescente aponta muito mais para um significativo fechar de olhos diante dos termos nos quais se reproduzem as relaes de idade nas primeiras dcadas republicanas, quer no mundo do trabalho, quer fora dele (MOURA, 1999, p. 10).

Educao era um termo que indicava um sentido respeitvel aos que o detinha; exalava um certo grau de civilidade e estava na ordem do dia ser polido, refinado, no qual o corpo no se permitisse aos excessos e os gestos fossem comedidos, objetivos e precisos em suas finalidades. Postura ao sentar-se, o bem falar, o bem vestir, o uso racional do tempo era visto como sinnimo de proeza e prestgio. Estava se configurando todo um arsenal de civilidade e de bom gosto, constituindo-se, assim, como um capital simblico que solapava o estilo tradicional de sociabilidade. O cenrio brasileiro tornou-se propcio para a fomentao de uma trade caucada na sade, moral e trabalho. Vivia-se, no Brasil, um entusiasmo pela educao (CARVALHO, 1989), vrios setores da sociedade e os diversos profissionais que o constitua viam a educao como ferramenta capaz de formular uma concepo otimista de se construir uma nao saudvel; a educao passa a ser um grande instrumento de regenerao social, deslocando-se da viso pessimista do sculo XIX com suas teorias raciais que tatuaram na pele e no destino da populao brasileira uma quase total descrena no progresso do pas. Para uma nao se constituir e se firmar enquanto moderna, precisava incutir na mente e nos hbitos das pessoas, por meio da educao, as noes de higiene. Sade,

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moral e trabalho apresentavam-se enquanto elementos indissociveis na campanha educacional e mostravam-se como: uma espcie de jogo de espelhos: hbitos saudveis que moralizam; uma vida virtuosa e saudvel; moralidade e sade so condio e decorrncia de hbitos de trabalho; uma vida laboriosa uma vida essencialmente moral e saudvel etc. Nesse espelhamento, o trabalho aparece como sntese da sociedade que se pretende instaurar. Sinnimo de vitalidade, o trabalho metdico, adequado, remunerador e salutar era, nesse jogo de espelhos, o antdoto para os males do pas, condensados em representaes das populaes brasileiras como indolentes e doentias. [...]. Regenerar as populaes brasileiras, por meio da higiene e da educao, era soluo que descobriram como alternativa aos impasses postos pelos deterministas sociais (CARVALHO, 2002, p. 284).

O saber manuseado de diversas formas nos diferentes momentos da Repblica, mas podemos dizer que neste movimento histrico de construo de uma certa modernidade houve um investimento no saber/poder e entre os elementos mais importantes nesse cenrio, a educao foi um alvo bastante visualizado como um saber regenerador, a partir da dcada de 1920, e a escola como uma das instituies mais destacadas. Ainda no final do sculo XIX, a cidade de So Paulo dar, a saber, uma proposta de reforma do sistema educacional, proposta por Caetano de Campos, solicitando uma escola modelar. E, afinal, o que se entendia como escola modelar naquela poca? Seria a escola que se d a ver, um corpo institucional dotado de visibilidade e dizibilidade, ou seja, as escolas, a partir daquele momento, teriam que se municiar de uma dada notoriedade que divergia do modelo escolar do Imprio. Era preciso blasonar o imponente modelo de governo da nao; a escola republicana deveria assumir o papel de disseminar a suntuosidade e disciplina do Estado brasileiro. Para tanto, a arquitetura escolar com seus edifcios magistrais indicavam a altura em que a Repblica colocou desde o incio o problema da instruo (CARVALHO, 1989, p. 24). Outro aspecto da proposta de reforma do sistema educacional de Caetano de Campos diz respeito metodologia que a escola deveria utilizar. A visibilidade tambm lana olhar nas prticas educativas no interior das escolas. O bom exemplo das prticas era visto e dito por e para mestres e alunos e a intuio era o mtodo

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pedaggico a ser seguido, com seus aspectos e elementos cientficos da disciplina mental. Os discursos cientficos19 em voga na poca disseminavam uma imagem ruim da nao brasileira, pois consideravam os elementos negros e mestios como freio ao ideal moderno e progressista. A predominncia de populao negra e mestia20 no ajudaria na caminhada rumo civilizao, ento, era preciso branquear a populao, introduzir elementos brancos na formao da nao brasileira, incentivando a imigrao europia em grande escala. A eugenia foi um dos pressupostos norteadores na construo de laos sociais regeneradores, como tambm a educao, como instrumento de disseminao de cdigos que valorizassem a atividade do corpo e da mente, a disciplina como mtodo para alcanar a regularidade e homogeneidade de hbitos salutares. O combate ao que fosse considerado anti-moderno recaa atravs dos discursos dos letrados no final do sculo XIX, uma preocupao com a massa de analfabetos que compunha o cenrio urbano das grandes cidades e, na dcada de 1910, com responsabilidade dos cientistas sociais de regenerar a populao brasileira. Contudo, nos anos da dcada de 1920, h um novo deslocamento de preocupao com a educao atravs da com a fundao da Associao Brasileira de Educao (ABE), no Rio de Janeiro. O enfoque nos discursos, nesse momento, a educao integral e no mais o fetichismo pela alfabetizao intensiva. A educao ganha novas vozes na pretenso de educar corpo e mente, fsico e alma, sentidos e significados da subjetividade do educando e deixa para trs a forma de decorar o b-a-b. Ao passo que entendemos a modernidade brasileira, no perodo compreendido nas dcadas de 1920 e 1930, como um momento em que a educao torna-se o principal vnculo para a remodelao social, deslocando o sentido de educar, de negar o lugar ocupado anteriormente e subjetivar novas formas de viver e pensar, disciplinadas pelos novos regimes de verdade, indissocivel imaginar as redes de saber-poderes como mecanismos criados para intervir, normatizar e regrar o social e o


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