Download - Dissertação Bruno Evangelista
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS
BRUNO EVANGELISTA DA SILVA
A REPRESENTAO DA MODERNIDADE EM DZIGA VERTOV
SALVADOR
2013
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BRUNO EVANGELISTA DA SILVA
A REPRESENTAO DA MODERNIDADE EM DZIGA VERTOV
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais. Orientador: Prof. Dr. Antnio da Silva Cmara
SALVADOR 2013
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_____________________________________________________________________________ Silva, Bruno Evangelista da S586 A representao da modernidade em Dziga Vertov / Bruno Evangelista da Silva. Salvador, 2013. 132f. : il. Orientador: Prof. Dr. Antnio da Silva Cmara Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2013.
1. Vertov, Dziga, 1896-1954. 2. Representao cinematogrfica. 3. Cinema
Produo e direo. 4. Modernidade. 5. Autonomia. 6. Esttica. I. Cmara, Antnio da Silva . II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDD 791.43
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Para Lidi, minha vida, meu sonho e
realizao.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a todos que direta ou indiretamente contriburam para a concluso de mais
uma etapa da minha passagem acadmica. Agradeo enfaticamente ao amigo e orientador
Antnio Cmara pela sensibilidade, pacincia, companheirismo e, sobretudo, por me
proporcionar um crescimento acadmico e pessoal.
Agradeo ao CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico) pelo financiamento da pesquisa atravs da bolsa acadmica.
Agradeo ao Programa de Ps-Graduao, aos professores que o compem e aos seus
funcionrios, em especial ao professor Clvis Zimmermann e a Dra, pelo apoio e respaldo
acadmico.
Agradeo aos companheiros do Grupo de Pesquisa do NUCLEAR pelo entusiasmo,
alegria e compartilhamento do conhecimento, principalmente ao Professor Srgio, ao amigo
Rodrigo Lessa pela riqueza e vivacidade nas nossas pesquisas e a Pedro Salles pela incrvel
ajuda na edio dos filmes.
Agradeo aos colegas do mestrado pelas trocas nas diversas disciplinas que
estudamos.
Agradeo a contribuio dos professores Milton Moura e Mahomed Bamba, sobretudo
pela leitura atenta do material da qualificao, sugestes e crticas. Agradeo a ateno e
disponibilidade dos professores Mahomed Bamba e Jair Batista em participar da defesa.
Agradeo ao brilhante amigo socilogo Tiago BAND pelos infindveis dilogos
sobre a academia e sobre a vida. Por extenso agradeo aos instantes de alegria dos amigos
Jess e Cleiton nos encontros de amigos, na UFBA e no estdio de futebol.
Agradeo com grande nfase a minha famlia. Ao meu pai Eliezer, a minha me
Ariadine, a minha irm, professora e Artista Plstica, Lorena a grande responsvel pela
minha iniciao arte e a minha companheira de vida e de luta, Lidiane. Tambm agradeo
a ajuda dos meus tios e primos durante o meu percurso acadmico.
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RESUMO
O presente trabalho visa investigar as representaes da modernidade em Dziga Vertov. Nesse
sentido, selecionamos trs pelculas emblemticas que manifestam o processo de
desenvolvimento das foras produtivas na Rssia Sovitica, a saber, A Sexta Parte do Mundo,
Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass. Esses filmes evocam o
processo de transformao moderna do perodo revolucionrio medida que associa
revoluo socialista e desenvolvimento produtivo numa espcie de modernidade socialista,
atravs da qual demonstra a incompatibilidade da nova realidade com a reproduo ampliada
do capital. Alm disso, representa a desconstruo de formas anacrnicas, tradicionais e
antigas atribudas ao perodo imperial em nome de expresses imagticas de racionalizao,
secularizao e, sobretudo, da edificao de um novo homem moderno, consciente,
produtivo e aliado dos instrumentos tecnolgicos considerados revolucionrios. Por outro
lado, a associao do cineasta com novas possibilidades estticas construdas na arte moderna
permitiu a composio flmica pautada em perspectivas crticas assentadas na perspectiva de
autonomia esttica, apesar do comprometimento ideolgico das construes imagticas com
a dinmica de superao das condies materiais da revoluo de 1917.
Palavras-Chave: Dziga Vertov. Representao. Cinema. Modernidade. Autonomia Esttica.
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ABSTRACT
This present study aims to investigate the representations of modernity according to
DzigaVertov. In order to accomplish it, we have selected three films that show the
emblematic process of development of productive forces in Soviet Russia, namely, The Sixth
Part of the World, Man with a Movie Camera and Enthusiasm or Dombass Symphony. These
movies evoke the process of modern transformation of the revolutionary period as they
associate socialist revolution and productive development in a kind of socialist modernity,
through which they demonstrate the incompatibility between the new reality and the capital
extended reproduction. Besides, they represent the deconstruction of anachronistic, traditional
and ancient forms assigned to the imperial period on behalf of imagistic expressions of
rationalization, secularization and above all the building of a modern, aware and productive
"new man", an ally of technological instruments considered as revolutionary. On the other
hand, the filmmaker association with new aesthetic possibilities built upon modern art, made
it possible a filmic composition guided by critical perspectives based on an aesthetic
autonomy perspective, despite ideological commitment of the imagery constructions with the
dynamics of overcoming the material conditions of the 1917 revolution.
Keywords: Dziga Vertov. Representation. Cinema. Modernity. Aesthetics Autonomy.
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SUMRIO
INTRODUO ...................................................................................................................... 08
CAPTULO 1: A MODERNIDADE E A POLTICA DE MODERNIDADE SOCIALISTA NA RSSIA SOVITICA: A RELAO HOMEM-MQUINA A SERVIO DA REVOLUO. ............................................................................................. 18
1.1 A complexidade do processo de modernidade ............................................................... 19
1.2 A modernidade na variante Sovitica ............................................................................. 29
CAPTULO 2: DA HETERONOMIA AUTONOMIA, DA REPRODUO REPRESENTAO: UMA DIALTICA QUE ENVOLVE ARTE, CINEMA E MODERNIDADE. .................................................................................................................. 45
2.1 O movimento para a autonomia...................................................................................... 46
2.2 O movimento para a Representao Flmica. ................................................................. 60
CAPTULO 3: A EXPERINCIA CINEMATOGRFICA DA MODERNIDADE EM REPRESENTAES NOS FILMES A SEXTA PARTE DO MUNDO, UM HOMEM COM UMA CMERA E ENTUSIASMO. ............................................................................. 73
3.1 A Sexta Parte do Mundo: a sinfonia ou cine-poema de um novo domnio da vida. ...... 74
3.1.1 Instante de superao: a diversidade para a modernidade ....................................... 77
3.1.2 Imagtica das contradies do processo revolucionrio: evidncias de autonomia esttica. ............................................................................................................................. 81
3.2 Um Homem com uma Cmera: a sinfonia visual urbano-industrial. .............................. 89
3.2.1 Da contramo aos impulsos modernos destruio criativa dos espaos. .......... 94
3.2.2 A constituio de um novo homem moderno e revolucionrio ............................. 101
3.3 Entusiasmo: secularizao e racionalizao numa sinfonia sonoro-visual. ................. 106
3.3.1 Metfora do czarismo: alienao e sujeio aos ditames da tradio.................... 110
3.3.2 Introjeo de cones revolucionrios associados transformao moderna ......... 113
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 123
REFERNCIAS ................................................................................................................... 128
REFERNCIAS AUDIOVISUAIS ..................................................................................... 132
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INTRODUO
O cinema desde a sua origem constituiu-se em uma mquina da modernidade que
captou as mudanas sociais preponderantes para o seu prprio surgimento. Nesse sentido, a
produo cinematogrfica corresponde esteticamente ao desenvolvimento das foras
produtivas e, mais precisamente, aos avanos tcnicos, ao uso de mquinas, busca
incessante pela velocidade e ao movimento de novos aparelhos tecnolgicos; por outro lado,
representa as novas concepes de espao/tempo, decorrentes da acelerao do
desenvolvimento das foras produtivas. O surgimento do cinema garantia a identificao
imediata do movimento dos fotogramas com o movimento da vida, na medida em que
fragmentos das relaes sociais eram apreendidos filmicamente no que tange s suas
manifestaes mais significativas. Nesse contexto, as transformaes sociais da modernidade
eram capturadas conforme a necessidade de evidenciar aspectos de sociabilidade imersos em
emergentes instrumentos funcionais.
A mquina o objeto de contemplao nas mais variadas correntes cinematogrficas.
Revela-se pelo grande entusiasmo em proporcionar imageticamente o aparecimento desses
novos instrumentos no cotidiano por uma mquina de captao. A relao homem e mquina
torna-se o mote composicional de pelculas que se deleitam com as experincias sociais de
usufruto de instrumentos modernos, de forma a reverberar a eficiente adequao das mquinas
ao meio social. A chegada de um comboio a estao mostrada pelos irmos Lumire; o
foguete de Melis em Viagem lua; ou at mesmo a narrativa ficcional de Fritz Lang em
Metrpolis, na qual um rob surpreende at os futuristas, evoca a dimenso cinematogrfica
do processo de transformao objetiva dos novos tempos. O cinema acompanha com
vivacidade e intensidade o processo de modernidade luz das condies tcnicas disponveis.
A corrente Construtivista no cinema no s persegue o resultado do desenvolvimento
das foras produtivas como tambm venera s suas transformaes. O Construtivismo uma
corrente alada pelas condicionantes propostas pelo modernismo na arte, segundo a qual a
esttica possui uma dimenso autnoma das relaes sociais existentes. Evidentemente, a arte
moderna no deixa de exprimir as condies objetivas de existncia, mas constri uma
fronteira da qual somente compete a ela interferir. O Construtivismo se desenvolve numa aura
de complexidade que envolve o comprometimento com o processo revolucionrio da Rssia
em 1917, o fascnio a aplicao de pressupostos modernos na conduo poltica do regime,
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entretanto, totalmente contagiado por possibilidades formais de transcender a incondicional
concordncia ideolgica com o regime bolchevique. O cineasta Dziga Vertov um exemplo
inconteste de representao efusiva das transformaes modernas, da defesa da autonomia
sustentada pelo construtivismo modernista e, sobretudo, de soerguimento do cinema enquanto
instrumento de percepo criativa do real.
A presente dissertao pretende investigar as representaes da modernidade no
cinema de Dziga Vertov. Como se trata de um cineasta produto da revoluo russa de 1917, a
pesquisa torna-se desafiadora na medida em que a representao da modernidade no seu
cinema passa pela aquisio de significados condizentes com a nova ordem instaurada. Com
efeito, so analisados os filmes mais emblemticos do cineasta sovitico no tocante
representao desses cones modernos caractersticos de uma nova poca histrica.
Dziga Vertov nasceu em Byalisto, na Polnia, no ano de 1896. Em 1915, passou a
morar em Moscou, onde se interessou pela captao de imagens. Com a revoluo de 1917
passou a trabalhar em revistas especializadas em cinema, tais quais a Kinodelia (cine-
semanal) e Kinopravda (cinema-verdade). A partir da captao de diversas tomadas em
lugares distintos da Rssia, comeou a se enveredar pelas atualidades cinematogrficas, isto ,
vdeos reportagens nos quais capturava momentos importantes do processo revolucionrio.
Com o acmulo de tomadas significativas, iniciou a sua jornada pela cinematografia conforme
as prerrogativas do cinema construtivista, ganhando notoriedade por execrar filmes ficcionais.
A sua filmografia constituda por vrias pelculas, dentre as quais, destacam-se: Histria da
Guerra Civil (1922), Cine-Olho(1924), Kino-Pravda(1925), A Sexta Parte do Mundo(1926),
O Homem com uma Cmera(1929), Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass(1930/31), Trs
Canes para Lnin(1934), Memrias de Sergo Ordjonikidze (1937).
Dziga Vertov como representante da corrente moderna construtivista estabeleceu uma
metodologia flmica calcada num processo contnuo e permanente de montagem. Preocupou-
se em evidenciar nas suas diversas pelculas o processo de modernizao das cidades
soviticas e, para isso, utilizou-se de forte apologia s mquinas e ao desenvolvimento
tecnolgico de uma modernidade sedenta por inovao, movimento e velocidade. Nesse
contexto, o presente trabalho buscou elucidar essas representaes da modernidade em trs
filmes emblemticos de Dziga Vertov, a saber, A Sexta Parte do Mundo, de 1926, Um homem
com uma cmera, de 1929, e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass, de 1930/311.
1 O filme fora lanado em duas oportunidades. Cada lanamento no seu respectivo ano.
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A Sexta Parte do Mundo explora diversos espaos da Rssia ps-revolucionria para
apresentar o que seria a sexta parte do mundo, um mundo no qual a lgica do capital de
apropriao e explorao do trabalho seria completamente suprimida. O filme evidencia
diversos locais onde o capital utiliza instrumentos modernos de explorao da classe
trabalhadora e, inversamente, espaos em que tais instrumentos esto a servio da revoluo.
Nesse sentido, a ideologia da esttica construtivista de Dziga Vertov apresenta sentidos de
modernidade para os soviticos distintos daqueles adotados pelo capitalismo.
Um homem com uma cmera, por seu turno, o filme mais conhecido de Dziga
Vertov. Constitui-se numa obra em que um operador de cmera percorre a cidade de Odessa,
na Ucrnia, com o intuito de captar as suas significativas mudanas. A introduo de trens a
vapor, bondes eltricos, redes complexas de comunicao e transporte, alm da evidncia de
um novo homem no processo de trabalho so representados a partir de uma cmera
avanada passvel de transcorrer por todos os espaos de captao.
Em Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass, Dziga Vertov reconstitui o processo de
secularizao pelo qual a Rssia passara aps a revoluo. A referncia venerao de
imagens que remetem a smbolos tradicionais eclesisticos substituda por imagens que
evocam o Estado Sovitico. Nesse sentido, o cineasta pretende contrapor o novo ao velho, e
necessidade de destruio de hbitos e crenas do passado; novamente, estes dois tempos so
mediados pela acelerao tecnolgica e, sobretudo, pelo uso racional das mquinas operadas
por novos trabalhadores.
O estudo dessas pelculas procurou responder questes acerca das representaes pelo
cinema num dado momento histrico em que a modernizao das estruturas produtivas
impunha diversas transformaes sociedade. Essas questes permitem estruturar uma
anlise pautada na representao da modernidade no cinema de Dziga Vertov, levando em
considerao alguns pontos de grande relevncia, dentre os quais se encontram: a
reinterpretao da modernidade pelo socialismo; a imbricao entre a esttica e modernidade
tpicas dessa conjuntura; a rejeio ao antigo atravs da apologia ao novo; a reorganizao do
tempo/espao face aos artifcios de montagem; a expresso de princpios racionais de conduta
e sociabilidade no mbito da relao com novas tecnologias; e a expresso idiossincrtica dos
trabalhadores em conformidade com uma nova conjuntura e com o apelo harmonia
ideolgica com as mquinas.
Tendo em vista a confluncia entre modernidade/modernismo, representao e
cinema, o presente trabalho visa contribuir substancialmente para os estudos atinentes
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Sociologia da Arte. A perspectiva de representao flmica a linha terica adotada no
mbito de uma Sociologia do Cinema. Segundo Casetti e Chio (1990), da mesma maneira
que a histria compreende o filme como um documento histrico passvel de investigao, a
lingstica preocupa-se com a semitica, e a psicanlise com o onrico no cinema, a sociologia
procura investigar as representaes do mundo no filme, na medida em que se constitui como
uma refigurao que tornam visveis processos sociais reveladores das condies materiais de
existncia. O entendimento do filme enquanto representao, nesse sentido, implica numa
postura sobre a qual o ponto de partida para a anlise sociolgica a prpria pelcula, tendo
em vista o seu carter singular e autnomo em relao realidade exterior. O filme, portanto,
realidade condensada e determinada, mas passa necessariamente por uma espcie de leitura
criativa que o situa na condio de uma moderna obra de arte. Isso no compromete o fato do
filme ser uma expresso paradigmtica do mundo.
Necessita-se utilizar os instrumentos da sociologia, revestindo o filme como uma representao mais ou menos completa do mundo em que vivemos, como um espelho e as vezes como um modelo (para alguns se tratar mais de um espelho e para outros de um modelo) do social (CASETTI E CHIO, 1990, p. 29, traduo nossa).
A Sociologia do Cinema envereda-se em investigar as experincias sociais objetivas
imersas em composies expressivas condicionadas ao tratamento criativo do real. Nesse
contexto, as contribuies de Lukcs (1982) face o entendimento do filme como uma
refigurao do real - de modo que a constituio da linguagem cinematogrfica a
confluncia do desenvolvimento tcnico com a atividade racional do pensar - evidencia a a
formao de uma linha terica pautada no pressuposto de representao flmica. Nichols
(2005), por seu turno, delimita a emergncia de uma perspectiva acerca do processo de
representao medida que o cineasta passa a manifestar a sua voz enquanto um processo em
que se permite exprimir argumentos e pontos de vista sobre o mundo histrico. Portanto, o
cinema segue o curso das provocaes modernistas de autonomia, destituindo a ferramenta do
imediato e absoluto registro objetivo e fotogrfico da realidade.
Com efeito, a proposta de um estudo calcado em representaes da modernidade no
cinema leva em considerao a maneira pela qual o objeto das tomadas passvel de uma
interveno criativa do sujeito da cmera2 (RAMOS, 2008) que produz uma refigurao da
realidade (LUKCS, 1982) com relativa autonomia em relao ao mundo objetivo. Falar em
2 O sujeito da cmera uma meno direta a subjetividade do idealizador da pelcula.
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autonomia artstica implica considerar a liberdade formal do sujeito criador em representar o
mundo circundante tal qual o concebe. No entanto, essa liberdade esttica relativa, visto que
a representao artstica no se constitui somente da subjetividade do sujeito criador, mas
evoca a realidade externa com o seu devido contedo de verdade. Assim, um estudo desse
gabarito envolve o entendimento imagtico atravs da articulao entre forma e contedo.
Para o presente objetivo, a saber, investigar as representaes da modernidade em
Dziga Vertov, as imerses tericas no se encerram na perspectiva de representao. Nesse
sentido, necessrio estabelecer uma articulao do objeto com pressupostos tericos acerca
da modernidade. Nesse quesito, a referncia a Habermas (2000) precisa e fundamental no
tocante a perspectiva de normatividade da vida social pautada por processos de
racionalizao; Harvey (2007), por sua vez, contribui para o entendimento de modernidade
associada a destruio criativa e a complexidade relativa s determinaes do
espao/tempo; e Sevcenko (2000), discorre sobre as transformaes sociais, econmicas e
urbansticas do desenvolvimento tecnolgico e do processo de transformao moderna dos
espaos Essas contribuies foram fundamentais no sentido de confrontar a teoria sociolgica
com as representaes da modernidade socialista em Dziga Vertov.
A presente dissertao tem a relevncia de buscar entender de modo mais aprofundado
a proposta esttica deste cineasta, sobretudo naquilo que apresenta de sociolgico, qual seja, a
de compreender essa imagtica enquanto expresso da racionalidade moderna em
determinado momento histrico. Essa pesquisa surge no mbito da pesquisa desenvolvida
pelo grupo Representaes Sociais: arte, cincia e ideologia, em projeto sobre as
representaes sociais no cinema documentrio O recorte de pesquisa sugerido foi abordar a
contribuio clssica de Dziga Vertov, resultando no meu trabalho monogrfico concludo em
2010 acerca das contribuies terico-metodolgicas de Dziga Vertov para o cinema
documentrio.
Dziga Vertov constri uma imagtica flmica pautada em aspectos terico-
metodolgicos fundamentais para o desenvolvimento esttico do cinema, os quais tem
ressonncia em correntes estticas significativas, tais quais o cinema-verit e nouvelle vague
que apesar de no se constituir em documentrio, possui uma veia documental expressiva -,
alm das contribuies substanciais montagem televisiva e da noo ainda corrente da
montagem em processo. A monografia permitiu perceber diversos elementos relativos
esttica de Dziga Vertov que puderam ser aprofundados e explorados na pesquisa de
mestrado, suscitando ainda questes mais amplas que dizem respeito apropriao e
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interpretao de Vertov de cones da modernidade no interior de uma sociedade que se
pretendia socialista. Logo, imps como necessrio entender, de modo mais preciso, como
aspectos da modernidade encontram-se representados no cinema de Dziga Vertov tomados
como referenciais de transformaes de ordem material e social.
Assim posto, o objetivo da presente dissertao foi delineado no sentido de investigar
as representaes da modernidade nos filmes do cineasta. Para tanto, selecionamos trs
pelculas emblemticas que exprimem imageticamente um sistemtico processo de
desenvolvimento das foras produtivas, a saber, os filmes A Sexta Parte do Mundo (1926),
Um Homem com uma Cmera (1929) e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass (1930/31).
Outros filmes do cineasta poderiam ser contemplados, tendo em vista que a sua filmografia
est concentrada em captaes que representam inovaes e transformaes sociais e
tecnolgicas de uma determinada conjuntura. No entanto, a escolha no foi aleatria. O
processo de seleo das pelculas seguiu um critrio histrico e esttico no sentido de
aambarcar diferentes contextos de representao concomitante a uma ntida transformao
esttica. Logo, a seleo das pelculas de Dziga Vertov percorreu a clarividncia de um
movimento transitrio do contexto sovitico e do desenvolvimento interno da sua
cinematografia.
No primeiro plano, os trs filmes decorrem de um momento histrico especfico de
afirmao da Rssia socialista que evoca circunstncias de auge - A Sexta Parte do Mundo -
, declnio - O Homem com uma Cmera - e desconstruo - Entusiasmo - do modelo NEP
(Nova Poltica Econmica), com a qual o regime buscava impulsionar o desenvolvimento da
dbil indstria russa, transformar as relaes de trabalho por intermdio de um sistema
pragmtico-racional e secular de eficincia, e modificar o espao a partir da introduo de
elementos tecnolgicos. Nesse contexto, a pesquisa deve apreender as representaes da
modernidade partindo de pelculas produzidas nos trs momentos sensveis da histria russa.
No segundo momento, a confluncia entre os filmes expressa um movimento interno
de desenvolvimento esttico da arte cinematografia. A sexta parte do mundo um filme
estritamente mudo e desprovido do som; Um homem com uma cmera, por sua vez, um
filme sonoro a partir da posterior introduo extra-diegtica de msica orquestrada luz de
indicaes do prprio cineasta; Entusiasmo, por ltimo, uma pelcula eminentemente sonora
e falada. Isto , a seleo dos filmes procurou tambm dar conta das transformaes tcnicas e
artsticas da mquina-cmera enquanto um produto da modernidade e que sofre das
transformaes propiciadas por esta.
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A compreenso esttica das obras de Dziga Vertov, outrossim, dependeu
inevitavelmente de um estudo acurado dos seus pressupostos terico-metodolgicos presentes
nos seus diversos manifestos e artigos. Ademais, o entendimento da sua concepo terico-
metodolgica foi fundamental para os processos subseqentes de apreciao da pelcula, uma
vez que suas teorias esto imersas nos filmes para uma representao auspiciosa dos
contedos imanentes realidade objetiva. Para efeito de registro, Dziga Vertov (1983) amplia
o entendimento do procedimento de montagem - enquanto organizao dos pedaos filmados
- em diversas estratgias terico-metodolgicas, entre as quais so destacadas:
Cine Olho: Aparece como uma perspectiva que demonstra as capacidades
infindveis da manipulao da cmera pela montagem e que difere do olho humano
pela sua perfeio em representar o que o limitado olho humano no pode perceber.
o eu vejo da cmera.
Rdio Ouvido: Funciona no meio sonoro da mesma forma que o cine-olho no
visual. Enquanto o primeiro tem a caracterstica do eu vejo, o segundo possui a
caracterstica do eu ouo.
Rdio Olho: a sincronia entre imagem e som. A sntese numa pelcula que exprime
a experincia imagtico-sonora no movimento entre as imagens.
Cinema Verdade: a verdade construda atravs da tomada da realidade ao natural
ou na vida tomada ao improviso. o produto cinematogrfico pronto, acabado e
objetivo.
Teoria dos Intervalos: A passagem adequada de um plano para o outro, de forma que a
intercesso destes traduz a essncia de uma idia.
Dentre uma gama de tcnicas de leitura e apreciao que podem ser operacionalizadas
nos filmes A Sexta Parte do Mundo, Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo, busca-se
um eixo centrado no aspecto da narratividade no sentido de selecionar o caminho mais
condizente com o contedo das representaes em Dziga Vertov. A montagem do cineasta
est pautada em choques entre planos produzindo efeitos de descontinuidade narrativa. Logo,
o filme no precipuamente narrativo. No entanto, a pelcula percorre um encadeamento
lgico que no suficiente para situ-la numa esfera anti-narrativa. Deste modo, os filmes do
cineasta se aproximam muito mais de um domnio semi-narrativo, de forma que tanto tcnicas
de anlise de narrativa como de banda de imagem no so exeqveis para a obteno de
resultados.
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Enquanto a anlise da narrativa aplicada ao filme considera o texto flmico em sua
unidade composicional respeito a linearidade e harmonia entre planos -, a tcnica de banda
de imagem visa apreender a essncia flmica a partir de alguns planos isolados, uma vez que
pressupe a inexistncia de lgica narrativa. Aumont e Marie (2004) chegaram a utilizar a
anlise de banda de imagem em Um homem com uma cmera, considerando o filme como
anti-narrativo. No entanto, ambos no conseguiram visualizar no filme um interno movimento
lgico de uma narrativa permeada por tenses, dissonncias e descontinuidades. Esses
elementos, inclusive, perpassam toda a sua cinematografia. Nesse sentido, consideramos a
estratgia metodolgica mais adequada assentar as pelculas na condio de semi-narrativas.
A semi-narratividade dos filmes de Dziga Vertov conduz o discurso analtico ao
usufruto de uma tcnica bastante eficaz para a leitura flmica: a decupagem. Essa tcnica
respeita as particularidades de uma pelcula que se impe pela complexidade das suas
representaes. Deste modo, a pesquisa utilizou esse recurso cuja ao permitir desnudar as
estratgias sintticas e analticas de apreenso de uma realidade movida por transformaes e,
sobretudo, evidenciar os efeitos produzidos no sentido de refigurar uma realidade dada e
historicamente determinada.
Segundo Casetti e Chio (1990) decupar um filme implica num conjunto de operaes
permeado por processos de decomposio e recomposio. efetivamente uma maneira
slida de desfrutar de um conhecimento pleno do objeto medida que esmia a sua estrutura
interna. De maneira que se obtm uma maior inteligibilidade conforme todos os componentes
do objeto investigado sejam isolados do vetor de movimento dos fotogramas. Portanto, a
decupagem o princpio analtico que d visibilidade s engrenagens que produzem o efeito
de realidade.
No primeiro momento, a pesquisa decomps o material flmico em edies
fragmentadas, permitindo a apreciao de elementos que evidenciam a proposta esttica, os
princpios ideolgicos explcitos e escamoteados, os recursos tcnicos que propiciam a
explanao, a expresso e a representao artstica do cineasta. Constituiu-se como o
momento de seleo e descrio do material editado do filme atravs do agrupamento dos
objetos representados (contedo) associados aos elementos formais de movimento de cmera,
ngulos, enquadramento, planos e as elipses.
Martin (2003) acredita que o entendimento desses aspectos formais especficos do
filme fundamental para a compreenso da linguagem cinematogrfica e do papel criador da
cmera. Nesse sentido, a pesquisa no negligenciou os eventuais movimentos de cmera
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(travelling, trajetria ou panormica) enquanto definidores de relaes espaciais entre cmera
e objeto de captao; os ngulos (plonge e contra-plonge) enquanto significados valorativos
dados aos sujeitos e aos elementos plsticos; os enquadramentos como determinados pontos
de vista da ao cinematogrfica; os planos (plano geral, plano mdio, plano conjunto, plano
americano, primeiro plano e close-up) enquanto definidores da distncia da cmera para com
o objeto; e, sobretudo, as elipses, pois se tratam de instrumentos que o cineasta recorre para
sugerir e aludir determinados acontecimentos que no esto ao seu alcance ou passaram
despercebidos durante a filmagem. A importncia deste ltimo recurso recrudescida pelo
fato de ser a estratgia de decupagem utilizada pelo prprio idealizador da pelcula na medida
em que oferece a audincia um material submetido a diversos cortes temporais. Inclusive a
carga ideolgica e idiossincrtica do cineasta geralmente percebida atravs das elipses.
O estgio seguinte constituiu-se na reagregao do material editado a partir da
recomposio do produto numa espcie de sntese. efetivamente essa atividade que propicia
o incio de uma anlise e interpretao do documento condensado (CASETTI e CHIO, 1990),
possibilitando estabelecer uma linha narrativa, de modo a reconstituir o filme visando uma
lgica adequada ao recorte da pesquisa. O trabalho de interpretao na recomposio um
dilogo sistemtico com o texto flmico com o objetivo de captar com exatido o sentido do
texto. Nesse processo de recomposio, a reagregao dos elementos mais significativos
numa estrutura editada permitiu desvelar a lgica que os une. Todo o material precedente de
descrio foi confrontado, interpretado e analisado. A grade de interpretao desse material
imagtico cuidou do resto, apresentando um formato inteligvel dos resultados atinentes a
investigao do fenmeno.
No contexto da sociologia da arte, o cinema carrega a mediao entre a arte e a
sociedade. Desse modo, a produo dos captulos seguiu o critrio do movimento condizente
esttica e histria, permeado por teorias sociolgicas acerca da modernidade no mbito
dos processos sociais e nos desdobramentos intra-estticos. Essa conduo postulou uma
articulao imediata com a anlise flmica das pelculas trabalhadas, uma vez que a sua leitura
dependeu inexoravelmente da compreenso de fragmentos significativos da histria e das
caractersticas de consolidao da arte moderna.
No primeiro captulo, as discusses tericas acerca da modernidade so confrontadas
com o processo histrico de conformao a uma espcie de modernidade socialista pelos
revolucionrios de 1917. Com efeito, o regime bolchevique ao utilizar-se de um prisma
moderno de desenvolvimento da indstria, dos espaos e de socializao de um novo cidado
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sovitico, buscou reproduzir uma ideologia moderna transmutada ideologicamente conforme
as convenincias do regime. O segundo captulo, por sua vez, recorre a relao entre a arte, o
cinema e a modernidade no sentido de evocar a constituio de uma teoria da sociologia da
arte centrada nas representaes flmicas medida que o cinema se aproxima de pressupostos
modernos de autonomia esttica. O terceiro captulo, por fim, analisa as representaes da
modernidade em A Sexta Parte do Mundo, Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo ou
Sinfonia de Dombass, considerando o momento especfico de cada produo cinematogrfica
e o desenvolvimento esttico interno a sua cinematografia, de maneira a visualizar em que
medida o cineasta sovitico desenvolve um tratamento imagtico dos elementos atinentes a
modernidade luz das condies ideolgicas concernentes s produes clssicas na Unio
Sovitica.
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CAPTULO 1: A MODERNIDADE E A POLTICA DE MODERNIDADE SOCIALISTA NA RSSIA SOVITICA: A RELAO HOMEM-MQUINA A SERVIO DA REVOLUO As discusses sobre a modernidade referem-se sempre s mudanas profundas
ocorridas ou ainda em curso na sociedade na era capitalista. O desenvolvimento das foras
produtivas determina novas diretrizes de socializao de indivduos sujeitos s imposies de
um mercado sedento pela apropriao dos excedentes do trabalho. O indivduo considerado
livre submetido s instncias verticais de produo e controle, cuja reproduo ampliada do
capital se desdobra em modificaes estruturais, espaciais e tecnolgicas. De maneira que a
modernidade compele o indivduo a uma aproximao imediata com instrumentos modernos e
racionais, mediante os quais se sustentam a ideologia de normatizao da vida social. A
relao homem/mquina uma confluncia caracterstica dos tempos modernos que se
apresenta socialmente no bojo das transformaes sistemticas da realidade objetiva,
escamoteando princpios ideolgicos de dominao subjacentes ao sistema.
O caso sovitico fora emblemtico em funo da sustentao de pressupostos
instrumentais utilizados com o fito de consolidar o processo revolucionrio. Para tanto, o
desenvolvimento das foras produtivas tornava-se uma obsesso na medida em que o pas
passava por um processo de debilidade industrial, dependncia agrria e formas
idiossincrticas do regime czarista. No entanto, o estabelecimento de instrumentos modernos
na vida cotidiana preconizava a consolidao do regime socialista, de modo que o Estado
passou a reinterpretar elementos tcnicos e ideolgicos oriundos do desenvolvimento do
capitalismo. A execrao de smbolos tradicionais, a construo de mquinas a servio da
revoluo e a emergncia de um novo homem voltado para o trabalho, aparecem no Estado
Sovitico sob um discurso oficial pautado numa gide revolucionria, cujo significado visava
dissoci-los dos parmetros estabelecidos pelo sistema capitalista de produo. Nesse sentido,
tendo em vista que o presente trabalho procura investigar as representaes da modernidade
no cinema do sovitico Dziga Vertov, o captulo em questo visa mostrar como o regime ao
utilizar-se de um prisma moderno de desenvolvimento da indstria, dos espaos e de
socializao de um novo cidado sovitico, pretende construir uma moderna concepo
socialista; no entanto, se utiliza de noes ideolgicas oriundas do prprio capitalismo, que
aqui adquirem a conformao necessria para justificar as convenincias do novo regime
social.
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1.1 A complexidade do processo de modernidade
As transformaes sociais implicadas pelo fluxo da modernidade reverberam
substancialmente nas instncias do saber. As novas caractersticas de conduta, dos jogos
simblicos de sociabilidade e das relaes sociais e de poder, estabelecem contornos precisos
das variantes do sistema. Este emana como um elemento expressivo que agrilhoa
ideologicamente indivduos submetidos a um processo de reproduo social. O saber
cientificamente sistematizado desvela as constituies imanentes da era moderna, apropria-se
fundamentalmente da dinmica instrumental de um novo tempo, cujo clculo racional das
experimentaes sustenta a caracterstica de uma nova sociedade e de um novo saber
cientfico. Por outro lado, a configurao de um saber pautado pelos condicionantes
ideolgicos do sistema, provoca, indiretamente, a assuno de um plo oposto, no qual a
cincia aparece como livre e desinteressada dos domnios instrumentais. Desse modo, tanto
nas relaes sociais como na produo do conhecimento, a profuso do moderno implica
numa nova dinmica de transformao. O movimento de um processo calcado na
variabilidade e complexificao da vida e do saber constitudo, representa traos exponenciais
de experincias modernas.
Habermas (2000) evidencia que a modernidade tornara-se tema filosfico desde os
fins do sculo XVIII. O destaque discusso do processo de desencantamento do mundo em
Weber, possibilita uma resposta analtica crescente secularizao e laicizao do Estado. A
substituio de formas de vida tradicionais por crculos burocrticos traduz em parte o
processo de desenvolvimento das sociedades modernas. Habermas resgata Hegel enquanto o
primeiro filsofo a estabelecer a relao entre modernidade e racionalidade, na medida em
que desenvolve um conceito claro do processo emergente e o emprega luz da definio de
tempos modernos. De maneira que a questo do tempo torna-se a estrutura basilar de
entendimento da velocidade dos acontecimentos. [...] o tempo experenciado como um
recurso escasso para a resoluo dos problemas que surgem, isto , como presso do tempo
(HABERMAS, 2000, p.10).
o mundo novo, o mundo moderno para o qual provoca a ateno da produo do
saber filosfico. Abre-se uma janela para o futuro e o presente ganha destaque no raio da
poca moderna. A relao costumeira com o esttico conduz a modernidade a questionar
valores tradicionais, distanciando-se dos problemas relativos aos modelos antigos. Habermas
evoca esses elementos que remontam s discusses acerca da racionalidade presentes em
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Weber at os debates em torno do conhecimento e interesse. Portanto, diversos elementos
novos emergem dos domnios modernos para as condies objetivas de existncia. Ademais,
o autor enfatiza as instncias de relaes comunicativas que no esto presentes no mtodo de
compreenso weberiano, tampouco no interesse do agir teleolgico. Deste modo,
problematiza as implicaes sociais e ideolgicas do prprio fazer cientfico no escopo de
produes advindas da modernidade.
Habermas (2009) - numa outra obra de grande relevncia - levanta o conceito de
racionalidade nos moldes definidos por Weber, segundo o qual a racionalidade est
relacionada forma da atividade econmica capitalista, aos caminhos estabelecidos pelo
direito privado burgus, da dominao burocrtica e, sobretudo, o trabalho social luz dos
critrios da ao instrumental. De maneira que a difuso da racionalizao depende
exclusivamente da institucionalizao do progresso cientfico e tcnico, desmoronando as
antigas legitimaes e as bases de dominao de outrora. O dilogo com Marcuse
importante no sentido de ponderar que o conceito de racionalidade assume uma forma
ideolgica de dominao poltica oculta, cujo emprego da tcnica exige um tipo de dominao
que abarca a natureza e a sociedade. Em nome do aspecto racional do capitalismo avanado, a
dominao escamoteia o cunho explorador e opressor, possibilitando elementos econmicos
de crescimento pela produtividade e o deleite de uma vida mais cmoda. A modernidade
ambienta-se na sustentao ideolgica da produo e da reproduo do avano burgus de
imposio da tcnica e do discurso.
No que tange ao modelo de cincia moderna, Habermas (2009) devassa a dominao
perpetrada pelas cincias empricas. Segundo ele, a dominao eterniza-se e ganha dimenses
incomensurveis mediante e como tecnologia, de forma que a racionalidade protege a
legalidade do processo de dominao luz de uma razo eminentemente instrumental.
Portanto, h uma confluncia evidente entre tcnica e dominao, na medida em que no
interior do empreendimento cientfico se esconde um projeto ideolgico determinado, no qual
interesses de classe interferem sistematicamente na sua produo. Com efeito, a cincia de
base teleolgica uma via instrumental e ideolgica de manuteno do estado de coisas; o
interesse em torno do conhecimento, por fim, desvia-se das suas condies ontolgicas de
emancipao.
Em Conhecimento e interesse, Habermas (1982) argumenta que todo conhecimento
produzido mobilizado por interesses que o orientam. Para tanto, ele recorre a historia do
conhecimento positivista para analisar as relaes de interesse pautadas na ao instrumental -
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para a qual a confluncia entre as cincias naturais e as cincias sociais produziria um saber
tecnicamente explorvel e como a emergncia da hermenutica movimenta o conhecimento
em torno da ao comunicativa na qual os interesses esto voltados para a emancipao. Isto
, parmetros fundamentais para compreender um eventual dualismo do saber na
modernidade.
A ao comunicativa o elemento substancial de reviso do conceito de
racionalizao em Weber. Isso permite ponderar que o agir instrumental no corresponde na
sua plenitude s relaes desencadeadas na modernidade. Assim posto, Habermas sugere
outro enquadramento categorial, partindo da distino fundamental entre trabalho e interao.
O trabalho estaria situado na ao teleolgica, impulsionado por regras tcnicas de
sustentao do saber emprico, ao passo que a interao apoiada por instncias
simbolicamente mediadas da comunicao, cujo processo de auto-reflexo fundamental para
o estabelecimento de acordos e consensos intersubjetivos.
Desse modo, a auto-reflexo cientfica um componente essencial para
consubstanciar o interesse de transformao para um saber que possui o germe da autonomia.
Segundo Habermas (1982), as cincias hermenuticas interpretam a realidade conforme a
gramtica que desvela o mundo e da prxis que lhe correspondente, enquanto as cincias
emprico-analticas apreendem a realidade de acordo com a possvel disponibilidade tcnica.
Nesse contexto, a lgica instrumental subsume o carter emancipatrio do conhecimento
pautado na ao comunicativa.
O conceito de interesse no deve ser conclusivo no tocante s redues empricas, uma
vez que so os interesses que orientam o saber, seja na promoo reflexiva da emancipao ou
no carter teleolgico de dominao. Chamo de interesses as orientaes bsicas que aderem
a certas condies fundamentais da reproduo e da autoconstituio possveis da espcie
humana: trabalho e interao (HABERMAS, 1982, p. 217). Nesse sentido, assim como a
problematizao do conceito de racionalidade, a noo de interesse evoca tambm a
contribuio acerca do dualismo presente na modernidade, a saber, razo instrumental e razo
comunicativa ou, simplesmente, sistema e mundo da vida.
Na contramo do processo de plenitude da racionalizao moderna, faz-se necessrio
ter a compreenso de instncias de relaes que ocorrem independentemente das imposies
do sistema. A ao instrumental um recurso nos parmetros do sistema que se desdobra em
posies teleolgicas, submetendo os indivduos aos ditames normativos na realidade
objetiva. No entanto, o sistema convive com uma ao e um espao voltado para o
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entendimento e a busca intermitente do consenso nas interaes dialgicas: a ao
comunicativa e o mundo da vida.
Embora ganhem ares de convivncia e complementaridade dentro de uma estrutura
social, sistema e mundo da vida so antinomias pautadas pela distino do uso racional da
ao. Habermas3 (1987) discute a relao trabalho e interao luz das condies empricas
existentes entre as etapas da diferenciao sistmica e as bases de integrao social. O
primeiro se realiza pela conduo normativa de formas impositivas s objetividades
condicionadas ao sustentculo de relaes de produo no sistema. Habermas resgata,
inclusive, Durkheim para evocar a externalidade dessas relaes coercitivas. O segundo, por
seu turno, compreende elementos cujo uso da linguagem oferece recursos compelidos por
uma autoconscincia.
El analisis de esas relaciones solo s posible si se distingue entre los mecanismos de coordinacin de la accin que harmonizan entre s las orientaciones de accin de los participantes y aquellos otros mecanismos que a travs de un entrelaziamento funcional de las consecuencias agregadas de la accin estabilizan plexos de accin no-pretendidos (HABERMAS, 1987, p. 163).
A razo instrumental a expresso no-comunicativa de um saber arraigado. Este visa
produo meio-fim de uma determinada ao subjacente a uma lgica determinada pelo
sistema. A eficcia de sua ao possui uma ntima relao com os pressupostos de
racionalidade implicadas, de modo que a ao cotidianamente deve cumprir os atributos
instrumentais para os quais os esforos so mensurados. A razo instrumental , portanto, a
manifestao teleolgica diante dos caracteres sistemticos de ao na vida cotidiana
enquanto modos de reproduo do sistema social vigente.
A razo comunicativa, por sua vez, consiste num processo solidrio de interpretao
do mundo objetivo, cujo entendimento e obteno de acordos e consensos so consequncias
da eficincia da ao. Os participantes perseguem insistentemente o comum acordo luz de
uma definio de situao. Logo, so instncias de relaes que se distanciam de uma viso
instrumental do mundo. Os conflitos latentes do sistema so dirimidos por meio de
argumentaes calcadas em situaes ideais da fala. Desse modo, a ao comunicativa
compele o sujeito autoconscincia, determinando os caminhos ideais para o processo de
emancipao.
Trata-se do segundo volume da obra Teoria da Ao Comunicativa. No existe edio em portugus desse trabalho.
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No que tange ao processo da modernidade, Habermas evidencia uma dicotomia que
no se estabelece nos termos de interdependncia de categorias. Sistema e mundo da vida
convivem, mas dialeticamente se opem em torno de premissas definidoras das aes para as
quais esto voltadas. Enquanto o sistema reverbera aes instrumentais que submetem os
indivduos s engrenagens sistmicas da sociedade e das implicaes do mundo capitalista, o
mundo da vida emerge para conceber a comunicao como o fator de integrao e
emancipao da sociedade.
Nesse sentido, as consideraes de Habermas acerca da modernidade no tocante a
dinmica inerente ao sistema e mundo da vida, possui, portanto, um grande interesse
sociolgico, uma vez que exprime um movimento calcado em rupturas, cises, dissensos e
submisses a um novo em detrimento de um todo superado. Essas postulaes so
significativas para as reflexes a respeito do presente objeto. O moderno desconstri o
anterior, transforma-o em tradicional e segue um curso de demandas aambarcadas pelos
impulsos totalizantes do capital. A evidncia da razo instrumental manifesta a ideologia
totalizante do sistema, dialeticamente sujeita aos impulsos emancipatrios, os quais desvelam
a desconstruo e a superao de estruturas antigas, tradicionais e anteriores s pulses do
capital.
O sistema e mundo da vida provocam a complexificao das relaes sociais e das
instncias do saber, a determinao e consolidao dos tempos modernos. O dualismo de
Habermas coloca em evidncia novas categorias sociais caractersticas do desenvolvimento
do capitalismo, tais quais a tcnica, racionalizao, secularizao e emancipao. Imprime
marcas indelveis a revoluo e destaca a conservao reacionria; impe a classe
trabalhadora a condio de sujeito histrico e evoca a dominao atravs da ideologia. Nada
to significativo para um objeto permeado por representaes pautadas em mudanas
objetivas concernentes s inovaes trazidas por ocasio das profuses modernas.
A modernidade um sistema global, temporal e espacial. Desenvolve-se luz das
necessidades de um novo sistema que tangencia as transformaes. Condies de mobilidade
continental, comunicao global, velocidade dos acontecimentos, controle das manifestaes
e a construo ou renascimento de um novo homem, sustentam as transformaes advindas do
desenvolvimento das foras produtivas. A modernidade produz o amlgama entre homem e
mquina num contexto de produo, consumo e sustentao ideolgica dos emergentes
processos de sociabilidade.
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O vetor de uma chamada ideolgica de progresso est condicionado s transformaes
tecnolgicas. Na modernidade as foras produtivas atuam como espinhas dorsais de um
sistema aberto a produo massiva de riquezas. A mquina resultado e princpio ativo da
produo; a redefinio da configurao das classes sociais implicar no surgimento do
proletariado, engrenagem de sustentao de um sistema, cujas mudanas histricas
expressivas desencadeiam o recrudescimento dos potenciais produtivos e os fluxos de
recursos.
Segundo Sevcenko (2001), a ebulio moderna acarreta em diversas pulses
estruturais provocadas pelas correlaes entre mquinas, massas, percepes e mentes.
Transformaes estruturais tm correspondncia direta com a formao gradativa de
conglomerados econmicos, concentrao de trabalhadores, exploso demogrfica, de modo
que uma organizao de demandas administra e controla recursos tecnolgicos de servios
essenciais. As necessidades impostas pelo capital so determinantes para a alterao da vida
em sociedade. O processo de modernidade cria uma nova ambincia e um novo ritmo para o
qual as pessoas devem se adaptar.
Toda essa vasta populao, portanto, tem sua vida administrada por uma complexa engenharia de fluxos, que controla os sistemas de abastecimento de gua corrente, esgotos, fornecimento de eletricidade, gs, telefonia e transportes, alm de planejar as vias de comunicao, trnsito e sistemas de distribuio de gneros alimentcios, de servios de sade, educao e segurana pblica. [...]. Esse controle tecnolgico pleno do ambiente em que vivem as pessoas acaba, por conseqncia, alterando seus comportamentos. Nessa sociedade altamente mecanizada, so os homens e mulheres que devem se adaptar ao ritmo e acelerao das mquinas, e no o contrrio (SEVCENKO, 2001, p. 62).
O soerguimento das mquinas nas mudanas de comportamento implica numa
fetichizao do olhar. As qualidades inerentes aos indivduos so substitudas pelo potencial
de consumo. O olhar dominante impe maneiras habituais e elegantes de exibio publica, da
escolha da indumentria e das formas de se vestir. Cria uma afluncia (SALLINS, 1978) e
uma necessidade pelo desejo de obteno. A lgica sistmica direciona as pessoas a
passividade do ato produtivo, no qual a reproduo social acompanhada por sonhos de
consumo, isto , desejos pautados pela inconscincia oferecida pelo capital. Segundo
Sevcenko (2001), as condies de aproximao e a comunicao que antecedem a fala so
construdas por smbolos exteriores, de forma que o carter pessoal definido por aquilo que
consumido.
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Os ritmos acelerados na modernidade permitem conceber pelo olhar a dicotomia entre
o movimento moderno e o esttico tradicional. O ritmo desenfreado estimula uma
sensibilidade atinente s novas transformaes sociais, desenvolvendo uma ruptura entre
formas convencionais, tradicionais e buclicas de sociabilidade, a uma pulso temporal do
clculo racional do contato entre os indivduos em plena acelerao da vida. A modernidade
promove uma reao absoluta aos aspectos que remontem um passado considerado deletrio
aos ritmos acelerados do desenvolvimento fabril, da linearidade temporal, da explorao dos
espaos e do novo papel do cidado e da classe trabalhadora.
Nesse contexto, Harvey (2007) acredita que a modernidade caracterizada por uma
destruio criativa, na medida em que se afirma a partir da destruio de modos de vida de
outrora. Criativa por se configurar como uma arte das cidades, convicta da potencialidade
da esttica no rearranjo estrutural e da fora simblica da arte moderna emergente, a qual
reivindicava autonomia, mas que poderia, concomitantemente, experimentar funcionalidades
extra-estticas4. A destruio criativa sustentada como um dilema prtico da modernidade
no enfrentamento das novas diretrizes modernistas nas cidades.
Afinal, como poderia um novo mundo ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes? Simplesmente no se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos, como o observou toda uma linhagem de pensadores modernistas de Goethe a Mao. O arqutipo literrio desse dilema como Berman (1982) e Lukcs (1969) assinalam, o Fausto de Goethe. Um heri pico preparado para destruir mitos religiosos, valores tradicionais e modos de vida costumeiros para construir um admirvel mundo novo a partir das cinzas do antigo, Fausto , em ltima anlise, uma figura trgica (HARVEY, 2007, p.26).
A funo herica de criar destruindo apresentada acima por Harvey sob a tica de
Goethe, compartilhada por Benjamin (2000) face leitura de Baudelaire. A preocupao da
literatura com os novos tempos uma resposta esttica a profuso de novos valores
estabelecidos na sociedade. Para Benjamin (2000), o poeta sublima a sua personalidade
sujeio herica de viver na modernidade, de modo que a formao desse heri perpassa a
constituio de um ser social no sistema capitalista. A modernidade rompe com o mundo da
ociosidade, revelando a fatalidade do heri. Ideologicamente, o heri romanceado da
literatura, subvertido na materialidade pela reconstruo herica operada pelo Estado. O
planejamento racional, a padronizao das formas e condutas e a reorganizao dos espaos
4 No foi sem fundamento que Habermas (2000) ponderou que o discurso filosfico da modernidade cruza-se frequentemente com o esttico.
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sobretudo no perodo ps-guerras mundiais consolidam a destruio criativa enquanto
projeto de subsuno do antigo pelo moderno.
O moderno impe pela manipulao racional e estruturada das cidades novas
concepes de tempo e espao. O desenvolvimento das foras produtivas possibilitou uma
integrao instrumental dos espaos em detrimento da certeza do espao absoluto. A incerteza
espacial implica na insegurana de um espao permanentemente passvel de mudana.
Segundo Harvey (2007), a modernidade impele o indivduo a se adaptar a uma espcie de
espao relativo no qual inovaes nos transportes e nas comunicaes so acompanhadas por
uma reorganizao do lugar do homem, dos objetos e das estruturas urbanas. De maneira que
o aperfeioamento dos sistemas de comunicao agiliza a troca e o consumo.
Nesses moldes, a reproduo ampliada do capital conduz o tempo linearidade
convergente com as progresses tcnicas em detrimento do tradicional tempo cclico. O
movimento atinente reproduo social tende a acelerar o ritmo de vida, comprimindo a
relao tempo-espao. Nesse sentido, o homem moderno para no capitular diante das
necessidades dos novos tempos, precisa tambm se adaptar acelerao das inmeras
possibilidades apresentadas pela modernidade. Harvey (2007) em dilogo permanente com
diversos autores salienta que a modernidade uma forma peculiar de experenciar o espao e o
tempo, cuja relao fundamental para o processo de reproduo da vida social. Logo,
concepes de tempo e espao modificam-se com as necessidades de reproduo, provocando
a apropriao dessas condies modernas pelo homem.
O tempo acelerado serve to somente para maximizar o fluxo produtivo, isto , uma
necessidade premente do capital. Desmoronam-se antigas representaes do mundo
substitudas por projees do vindouro luz das transformaes do presente. A racionalizao
da relao espao-tempo determina novas convergncias de territrios, expressiva mobilidade
e excedentes de produtos; a condio de inspito torna o lugar um retrocesso, o bucolismo
passa a ser um pernicioso resgate da tradio. Com efeito, a modernidade se satisfaz com o
controle racional das pulses sociais, seja em qualquer esfera, categoria ou instituio.
Harvey (2007, p. 227) explicita de forma inequvoca o movimento gradativo de
desmoronamento de antigas legitimaes na modernidade em paralelo as convulses estticas
modernistas:
A revoluo renascentista dos conceitos de espao e de tempo assentou os alicerces conceituais em muitos aspectos para o projeto do Iluminismo. Aquilo que muitos encaram hoje como a primeira grande manifestao do pensamento modernista considerava o domnio da natureza uma condio necessria da emancipao
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humana. Sendo o espao um fato da natureza, a conquista e organizao racional do espao se tornaram parte integrante do projeto modernizador. A diferena, desta vez, era que o espao e o tempo tinham de ser organizados no para refletir a glria de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertao do homem como indivduo livre e ativo, dotado de conscincia e vontade.
Os tempos modernos inauguram uma nova relao entre o Estado e a religio. A
modernidade concede s estruturas formais e jurdicas desse estado moderno um impulso
necessrio a laicizao. Todos os esforos se dirigem para estabelecer um campo livre de
avano do capitalismo contra o qual no haja interferncia dos dogmas cerceadores da
religio. A tradio do pecado ser substituda pela aquiescncia do consumo, de tal modo
que um novo cidado e uma nova classe trabalhadora devem ser socializados para enfrentar os
dilemas, os embates e a dinmica produtiva capitalista.
Com efeito, no processo histrico de desenvolvimento do capitalismo, meios foram
sistematicamente pensados para conformar o cidado considerado livre na condio de fora
produtiva. Rompe-se, nesse sentido, com estruturas anteriores das relaes de trabalho
sobretudo servis para a constituio de um trabalhador moderno, com contrato de trabalho,
dispondo de vigor e fora para mover com segurana as engrenagens do sistema. Mercadoria
preciosa para os intentos capitalistas de acumulao, motivando uma suposta necessidade de
regulao. Harvey (2007) enftico ao ponderar que as intensas modificaes internas do
capitalismo reverberam diretamente nas relaes de trabalho, haja vista que o lucro sempre foi
o seu princpio bsico na vida econmica.
H duas amplas reas de dificuldades num sistema econmico capitalista que tm de ser negociadas com sucesso para que o sistema permanea vivel. A primeira advm das qualidades anrquicas dos mercados de fixao de preos, e a segunda deriva da necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da fora de trabalho para garantir a adio de valor na produo e, portanto, lucros positivos para o maior nmero possvel de capitalistas (HARVEY, 2007, p. 117-118).
Percebe-se o quo fundamental para a sustentao do sistema, o estabelecimento de
contornos e controles no processo de constituio e reconstituio da classe trabalhadora.
Desse modo, conveniente, sobretudo em termos ideolgicos, que a classe trabalhadora esteja
imersa numa dinmica normativa de produo, cuja conscincia da situao seja determinada
pela base das relaes de produo. Evidentemente que a estrutura instrumental no retira a
condio do homem de sujeito histrico e sua busca inerente pela emancipao. O fato que
se sentir trabalhador na modernidade implica, necessariamente, em assumir a postura de um
novo homem em uma nova poca. Para o capital, isto significa um homem produtivo, alheio
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ao objeto de sua produo, no reconhecendo o resultado do trabalho como fruto de sua
atividade, no percebendo a totalidade do processo produtivo. Isto , o controle indelvel das
relaes de trabalho que desfiguraria a organizao em torno de relaes comunicativas entre
trabalhadores.
Harvey (2007) sublinha os componentes significativos da acumulao de capital, a
saber, a mistura expressiva de represso, familiarizao, cooptao institucionalizada que se
espraia em toda sociedade, ou seja, elementos idealizados dominantes na modernidade que se
tornam dominantes para todo o corpo social. Nesse sentido, a constituio desse novo homem
depende de uma severa socializao, cujas condies de produo compreendam o domnio e
o controle das capacidades fsicas e mentais do trabalhador. Segundo o autor, a identidade
pelo trabalho construda paulatinamente luz da educao, do treinamento e da
internalizao de valores que dignificam o processo de explorao, consubstanciando a
formao de ideologias pelo aparelho de Estado. Tambm aqui o modo de regulamentao
se torna uma maneira til de conceituar o tratamento dado aos problemas de organizao da
fora de trabalho para propsitos de acumulao do capital em pocas e lugares particulares
(HARVEY, 2007, p. 119).
Na modernidade, o desenvolvimento das foras produtivas depende da convergncia
dos homens com as mquinas e os meios tecnolgicos, reproduzindo e movimentando um
sistema complexo, pautado em contradies explcitas que so escamoteadas por uma
ideologia reinante. A racionalizao do processo de trabalho concedeu um ingrediente
adicional a uma dinmica de disciplinarizao moderna do corpo de trabalho a partir dos
intentos fordistas. A discusso mais emblemtica sobre o Fordismo est em Cadernos do
Crcere de Gramsci, com o qual Harvey (2011) tambm dialogou. Gramsci (2001), no
captulo intitulado Americanismo e Fordismo, revela que esse modelo uma necessidade
imanente do capital para alcanar uma economia programtica. Isto se daria pela manipulao
e racionalizao das foras subalternas, organizando metas para desenvolver um novo tipo de
trabalhador. Com efeito, combina-se a fora repressiva, persuaso, interferncias na
sexualidade e na famlia, centrando o capital social todo na produo.
Forjar um novo tipo de trabalhador tornou-se uma ambio moderna do capital para a
sobrevivncia do sistema, evitando as possibilidades anrquicas que poderiam provocar seu
eventual fracasso. O capital criou as condies de valncia de um modelo que proporcionou a
organizao cientfica do trabalho operada pelo taylorismo. A conduo de ambos os modelos
transformava o trabalhador num harmnico cidado consumidor, dava supostas condies de
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dignidade do trabalho, alm de se preocupar com a postura do operrio nos diversos
crculos de sociabilidade externos ao ambiente da empresa capitalista.
A modernidade se espraia em diversas frentes face transformaes tecnolgicas,
manipulao dos espaos, modificao nas relaes sociais e na reconfigurao de um
trabalhador, reverberando inclusive em experincias socialistas da Rssia Sovitica. A
modernidade socialista apresentou-se enquanto uma maneira instrumental de
desenvolvimento das foras produtivas russas a partir de iniciativas da fora do Estado, de
modo que o vis planificado das transformaes enredou-se em polticas sui generis de
imposio de singulares pulses modernas nas dinmicas de sociabilidade e socializao, nos
modos de vida, no trato com as indstrias e tecnologia e, sobretudo, na formao de um
homem voltado para o trabalho. A modernidade pelo vis socialista emerge como uma
adaptao das concentraes burguesas de transformao pela mxima do mercado e da
propriedade, cujo protagonismo estatal consolidou uma ideologia modernizante a luz de um
discurso revolucionrio.
1.2 A modernidade na variante Sovitica
Encarar os tempos modernos foi uma dificuldade russa desde o czarismo.
Possibilitar mudanas sociais e econmicas que interviessem no real estado de coisas do
imprio do czar tornou-se um tabu do qual o regime no queria superar. A Rssia Czarista
era formada fundamentalmente por quatro aparelhos - a burocracia civil, a polcia poltica, as
foras armadas e a igreja ortodoxa - de sustentao do sistema poltico, os quais exprimiam a
manuteno de recursos tradicionais na conduo do pas. A burocracia civil constitua a
referncia poltica do regime. Segundo Reis Filho (2003), esta funcionava com uma fora
simblica das tradies conservadoras da sociedade russa, sobretudo em torno da resistncia
aos processos de modernizao. A polcia poltica e as foras armadas funcionavam como
instrumentos de represso e intimidao, alm de entusiastas de ambies expansionistas. A
igreja ortodoxa, por fim, servia como uma ferramenta transcendental do regime para a
manuteno da ordem, de modo que no interessava politicamente um emergente processo de
modernidade com sopros de secularizao. No mbito do objeto da pesquisa5 e das pretenses
5 Objeto flmico exaustivamente trabalhado em Entusiasmo de Vertov.
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do captulo, mostra-se necessria uma imerso mais cuidadosa acerca da importncia da igreja
ortodoxa para o czarismo.
Segundo Reis Filho (2003), a igreja ortodoxa russa auxiliava a manuteno do
controle sobre a populao baseada numa religiosidade conformista e resignada, condicionada
estritamente ao poder do czar. De tal maneira que a religio oficial situava o czar na condio
de um soberano de direito divino. Isto , o czar legitimava a sua autoridade conforme as
prerrogativas concedidas por uma estrutura que reivindicava a excelncia da mediao do
sagrado no plano material.
A divisa oficial do imprio um Tsar, uma nao, uma f e a convico de que Moscou era a encarnao da Terceira Roma, sede de um cristianismo ntegro, ainda no corrompido pelas tentaes do mundo fazia da Ortodoxia uma religio oficial, mesmo porque o tsar era um soberano de direito divino, o que trazia bvias implicaes nas relaes entre o Poder e a Religio (REIS FILHO, 2003, p.18).
No entanto, esse jogo de relaes de poder solidamente construdo no se deu numa
esfera harmnica, sendo resultado de uma histrica ligao movida por instabilidades,
conflitos e de um jogo de poder reciprocamente fortalecido para uma estrutura slida de
dominao. O cristianismo chega Rssia no sculo X em perodo de intensificadas relaes
militares, polticas e comerciais com Bizncio. Segundo Tragtemberg (2007), a introduo do
cristianismo na Rssia inicia-se como um assunto de prncipes, doravante espraiados pela
populao eslava que, pelo fato de no possurem uma tradio ao sacerdcio, aceitaram a
penetrao da nova religio. O fato que a maior resistncia para a consolidao da igreja
estava na vaidade dos prncipes e nos diversos conflitos gerados entre eles. Um campo frtil
de fortalecimento do papel poltico da igreja que passou a mediar esses embates, tornando-se
porta-voz de uma suposta harmonia e prosperidade russa. Para Tragtemberg (2007), os
tribunais eclesisticos que serviam como severos observadores da moral e dos bons costumes
garantiram a fora poltica necessria da igreja entre os povos eslavos.
A poltica de servido do sculo XVII outro fator que evidencia o poder
desempenhado pela igreja ortodoxa. A sua influncia e nmero de servos ultrapassava a
quantidade dos latifundirios leigos. Alm disso, Tragtemberg (2007) pondera a dependncia
cultural da Rssia construda luz das tradies da bblia e dos compndios religiosos. A
religio passou a dar contornos significativos aos desenhos arquitetnicos, s pinturas de
cavalete e aos traos literrios, combatendo eventuais desvios pagos.
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A intensificao do nacionalismo da igreja acontece com o Conclio de Florena. Esse
o momento caracterstico de ligao da igreja com o Estado a partir da figura do czar, de
forma que Moscou se torna a Terceira Roma, a Santa Rssia. O poder poltico da Igreja
recrudesce em conformidade com o poderio econmico. A igreja dava sustentao ao regime
do czar na mesma medida em que era agraciada com facilidades advindas de relaes
consistentes com o imprio.
Um antigo crente via a Igreja russa nos seguintes termos: A chamada f ortodoxa uma extenso da coroa e do Tesouro, um smbolo oficial. No est fundada em sincera convico, mas limita-se a cumprir com seu dever como um instrumento do Estado para preservao da ordem. A partir de 1824 o Snodo ser dirigido por um produtor-chefe do Estado que era na realidade o ministro do czar para assuntos religiosos. A igreja identificou-se com a autocracia e o nacionalismo russos. Os povos no-russos que antes dispunham de liberdade religiosa, a partir de Nicolau I (1825-55) foram obrigados a adotar a ortodoxia russa como religio, tanto quanto os ucranianos (TRAGTEMBERG, 2007, p. 81).
As decises dos bolcheviques durante o processo revolucionrio de 1917 em proibir a
prtica da religio e a atuao das escolas religiosas no se reduzem aos motivos obviamente
ideolgicos. A substituio de smbolos da tradio religiosa por materiais que representam a
revoluo6 evoca a capitulao do regime czarista que tinha a igreja como sustentao e fora
poltica. Trotsky (2006) sublinhou as dificuldades enfrentadas pela revoluo em desconstruir
costumes internalizados pela igreja ortodoxa. A relao do cidado russo com a igreja foi
garantida pelo hbito e pela reproduo de prticas que no condiziam com os novos tempos.
[...] a igreja atrai devido toda uma srie de motivos scio-estticos, que nem a fbrica, nem a
famlia, nem a rua oferecem (TROTSKY, 2006, p. 44).
Com efeito, percebe-se o importante papel desempenhado pela igreja na manuteno
de um sistema movido pelos aspectos da tradio e na imobilidade de um estado de coisas
bastante convenientes aos interesses do czar. Na Rssia imperial, havia uma discrepncia
entre o seu modelo semi-feudal com o nvel de desenvolvimento das foras produtivas em
vrios pases da Europa. Segundo Reis Filho (2003), o que havia de moderno na conduo
poltica dos czares era apenas a ganncia de lucratividade em torno de uma dbil burguesia
russa. No interessava ao poder imperial a aceitao de uma modernidade e um processo de
modernizao, cujos domnios estivessem entregues s leis de mercado e alheios as vontades
do soberano.
6 Entusiasmo de Dziga Vertov representa o processo de transio do czarismo para o socialismo a partir da retirada de objetos dos templos que se transformam em prdios a servio da revoluo.
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Desse modo, reproduzia-se um modelo servil distinto da relao senhor-vassalo, no
qual as decises tinham o crivo absoluto do czar. A servido manifestava-se como um
instrumento lucrativo que assegurava uma arrecadao estvel. Em contrapartida, os meios de
produo no campo exprimiam simbolicamente o contexto scio-econmico de dependncia
agrria. As tcnicas de produo eram ineficientes, os instrumentos de trabalho impediam a
produtividade e ainda havia uma instabilidade na posse de terras, ou seja, elementos que
trariam ojeriza a um sistema capitalista de produo, sobretudo no que se refere ao direito
inalienvel de propriedade.
Introduzira-se naquelas quatro dcadas, entre 1815 e 1855, um descompasso que se tornara histrico entre a Rssia Tsarista e as potncias capitalistas mais dinmicas da Europa. Como se a Rssia no tivesse sido capaz de acompanhar o processo de modernizao (a Revoluo Industrial) que estava mudando a paisagem econmica e social da Europa ocidental desde os fins do sculo XVIII (REIS FILHO, 2003, p. 22).
A guerra da Crimia de 1855 possibilitou um caminho de reformas e inquietudes em
relao s polticas do czar. Reis Filho (2003) chama de modernidade alternativa as
mudanas operadas pela corte no sentido de conter os nimos dos vidos entusiastas da
modernidade. O programa reformista pretendia mexer na concepo do papel da servido sem
mudar a perspectiva de recusa modernizante. As reformas parciais tiveram impactos em
articulaes comerciais globalizantes, subordinando um relativo desenvolvimento do
capitalismo aos interesses estatais.
No entanto, alm de no resolver problemas histricos, contribuiu para
descontentamentos de diversos setores da sociedade russa. As rebelies camponesas
tornaram-se mais freqentes, o dbil industrialismo carecia de estmulos desenvolvimentistas
e grupos polticos se formaram para combater as condies vigentes. No que concerne a
proposta do presente captulo, apresentar o antagonismo entre o populismo revolucionrio
russo e a social democracia russa interessante no que diz respeito apropriao das
concepes de modernidade para grupos que reivindicavam o papel de vanguarda na
construo de conscincia de classe entre os trabalhadores. Tendo em vista, obviamente, a
resistncia do sistema czarista em implantar transformaes modernas que fugissem ao seu
controle.
O Populismo Revolucionrio Russo emerge do desejo de sublevao do czarismo
russo. O movimento se afirmou mediante a propaganda revolucionria, a organizao, greves
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e atentados a prepostos do imprio. No entanto, no se diferenciava da ordem vigente no que
concerne a recusa do fluxo da modernidade na sociedade russa. Segundo Reis Filho (2003), os
populistas procuravam arregimentar uma nova modernidade luz de uma recusa ao
capitalismo, de forma que a superao das condies objetivas dar-se-ia pela adoo do
socialismo sem o desenvolvimento do capitalismo. A base poltica da transformao
revolucionria estaria calcada no comunitarismo campons. No entanto, a contradio da
promoo de uma impondervel modernidade sem o desenvolvimento das foras produtivas
se estabeleceu rapidamente face o conflito com teses marxistas, uma vez que ainda no havia
o prenncio de uma revoluo internacional que resgataria a Rssia do passado servil e de
uma dbil industrializao. Ou seja, uma das poucas possibilidades admitidas por Marx de
uma revoluo socialista desprovida das superaes atinentes a um capitalismo desenvolvido.
A SocialDemocracia Russa aparece com propostas que divergem dos populistas
revolucionrios, pois tinha a convico de que o socialismo seria o resultado do progresso
urbano e da atividade da classe operria na fbrica. A derrubada da autocracia czarista
decorreria do desenvolvimento do capitalismo, da burguesia e da classe operria, respeitando
um movimento dialtico de constituio de uma repblica democrtica, a luta de classes e do
socialismo. Desse modo, as pulses modernas de transformao seriam apropriadas no mbito
de um projeto do qual o socialismo emergiria das condies materiais da conscincia de
classe de superao do sistema capitalista de produo. Portanto, mesmo com a posterior
separao dos social-democratas nas alas bolchevique e menchevique, as concepes relativas
ao processo de modernidade continuavam distintas do populismo revolucionrio.
As teses da revoluo em duas etapas demarcaram os campos entre populistas e marxistas. Para os primeiros, os marxistas no passavam de mais uma verso da tradio ocidentalizante. Fantasiados de revolucionrios, iriam, de fato, paralisar as energias revolucionrias e induzir ao conformismo histrico, espera da consecuo da primeira etapa. Para Plekhanov e seus discpulos, em contraste, os populistas no passavam de socialistas utpicos, abnegados, sem dvida, mas incapazes de compreender as novas circunstncias histricas. Queriam fazer a roda da histria voltar para trs. Nesse sentido, eram reacionrios, no sentido prprio da palavra (REIS FILHO, 2003, p. 37)
Ademais, concepes modernas de liberdade jurdica e poltica, constituio de uma
classe operria homognea, eleies e assemblias democrticas ganhavam corpo no bojo das
inquietaes em torno do retrocesso da poltica dos czares. O aparecimento dos sovietes
remonta esse cenrio. O processo revolucionrio deflagrado pelos bolcheviques propunha a
adoo de uma severa modernidade apoiada no proletariado industrial. No entanto, rejeitava
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os princpios de uma modernidade pautada nos preceitos do capital, oferecendo, assim, uma
modernidade alternativa, com polticas, discursos e prticas peculiares para recrudescer o
processo revolucionrio em vista da socializao da concepo de um novo homem.
Como foi amplamente discutido acima, a modernidade se constitui num processo
histrico de destruio criativa (HARVEY, 2007), no qual aspectos da tradio so
superados pelo impulso transformador das variantes modernas a partir de um processo
imanente de desenvolvimento das foras produtivas. Logo, a modernidade se afirma nesse
contexto de reproduo ampliada do capital. Os revolucionrios de 1917 apelam para um
radical processo de destruio criativa do escopo de sociedade deixado pelos czares,
manifestando a clara inteno modernizante da estrutura social russa. Por outro lado, em razo
dos seus manifestos princpios, revelava a clarividncia da superao do modo de produo
capitalista traduzido na busca incessante do lucro, de excedentes, do princpio de propriedade,
e da explorao do trabalho.
A superao para um sistema essencialmente socialista s seria possvel a partir do
desenvolvimento da dbil indstria sovitica. Aps o Comunismo de Guerra, a constituio
da NEP7 (Nova Poltica Econmica) aparece para estimular o desenvolvimento das indstrias
e o fomento a transformao tecnolgica. Alm disso, a adoo das pulses modernas j
implica na compreenso da classe trabalhadora ou operria enquanto sujeito revolucionrio.
No sentido de no confundir a modernidade capitalista com a modernidade instrumental dos
revolucionrios, os soviticos classificam as mquinas8 e os trabalhadores sob a gide da
transformao socialista de produo. Nesse contexto, a mquina sovitica considerada um
instrumento da revoluo por no estar a servio da explorao da classe trabalhadora, da
mesma maneira que o cidado sovitico deve emergir convicto da condio de um trabalhador
ativo e consciente do processo de produo. A fuso do trabalhador com as mquinas o
dispositivo ideolgico de formao da sociedade sovitica.
A NEP foraria uma espcie de acumulao socialista primitiva a partir da taxao dos
campesinos. O contexto de dificuldades abarcava um extenso desemprego e a atividade dos
execrados comerciantes especuladores9. Ademais, forou o aparecimento de grupos com
7 Converge com o incio da produo da pelcula A Sexta Parte do Mundo de Dziga Vertov. 8 A Sexta Parte do mundo evoca uma suposta distino entre as mquinas socialistas com as mquinas do capitalismo. 9 Objeto de um filme de Dziga Vertov chamado Cine-Olho (1924) que no est presente na pesquisa. Nesse filme, crianas intituladas como pioneiras da revoluo devassam as reas de especuladores, combatendo o intenso comrcio contra-revolucionrio.
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mentalidades comerciais chamados de nepmen10. A ascenso de Stlin aps a morte de Lnin
envolve um amplo processo de debates em torno dos investimentos em planejamento
urbanstico das cidades e da acelerao da industrializao. A idia constante de superar os
pases capitalistas avanados pairava nas posies polticas evidenciadas nos diversos
Congressos do Partido Comunista. Segundo Reis Filho (2003), o avano estaria condicionado
aos investimentos nas indstrias pesadas e na ampla publicidade de ter um domnio mais
incisivo na anarquia campesina. A modernidade sovitica tambm fora organizada face
hostilizao dos kulaks e das ameaas freqentes de coletivizao de um espao sobre o qual
o regime entendeu ser fundamental para a captao de recursos para a industrializao.
Nessa atmosfera carregada, em abril de 1929, o Comit Central do Partido aprovou o I Plano Qinqenal, na verso mxima. Em cinco anos, a partir de outubro de 1928, os investimentos cresceriam 237%, a renda nacional, 506%, a produo industrial, 136%, a produo da energia eltrica, 335%, a de carvo, 111%, a de petrleo, 88%, a de ao, 160%. As previses, embora altas, caam sintomaticamente, em relao aos bens de consumo, 104 %, e a produo agrcola, 55% (REIS FILHO, 2003, p. 85).
As dificuldades em torno da consolidao da NEP em virtude das relaes com o
campo foram superadas com os planos qinqenais. A modernidade sovitica se afirmava
com base na imposio estatal. Para Reis Filho (2003), a URSS funda um modelo singular a
partir dos anos 30 de transformao moderna da mquina pblica, manifestando a plenitude
do vis socialista da mudana, mesmo que na essncia no o fosse. O processo de
modernizao, proposto desde Pedro, O Grande, em fins do sculo XVII, e impulsionado
pelas reformas do sculo XIX, sempre oscilando entre a cpia do ocidente e a formulao de
uma modernidade alternativa, seria agora retomado de uma forma decisiva e numa escala
inaudita (REIS FILHO, 2003, p. 86). Obviamente que no se deve ignorar todo o processo
revolucionrio, de modo a associar inextricavelmente as formulaes de Pedro, O Grande
com a posteridade, mas perceber com exatido a paralisia revolucionria do stalinismo em
nome do aparato burocrtico.
O fato que os paradigmas ocidentais das pulses modernas seriam incorporados no
s de uma maneira instrumental, como tambm sob uma apropriao em cujo significado
tornar-se-ia conveniente ideologicamente para o regime. Nesse sentido, as incurses
modernas seriam pautadas no suposto de descontaminao de princpios e hbitos
burgueses, envolvendo o produto das riquezas produzidas na economia planificada em 10 De maneira geral, so os homens da NEP. Empresrios e grandes executivos que ganharam terreno na esteira do comrcio planificado da URSS.
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tradues socialistas e revolucionrias. Logo, o desenvolvimento das foras produtivas era
essencialmente tratado conforme o contexto profcuo ao regime, de modo que a coletivizao
forada e a industrializao acelerada contriburam decisivamente para o seu estabelecimento.
O controle do Estado sob a produo provocou o pagamento de altos tributos do
campons ao processo de acumulao socialista primitiva. A obsesso de Stlin pelo
desenvolvimento planejado das cidades atrelado a um padro de crescimento acentuado da
produo industrial11 se deu pela insistncia nas cooperativas (kolkhozes) e nas fazendas
coletivas (sovkhozes). A anarquia camponesa de boicote a sustentao da NEP fora
substituda por uma dinmica de entregas obrigatrias, independente de um eventual sucesso
ou fracasso da produo.
Entre os mujiks acorrentados s unidades coletivas de produo, os que logravam migrar para as cidades, empregados nos trabalhos mais pesados e rudes das indstrias, e os Zeks nos campos de trabalho forado, formou-se uma estranha simbiose: a da construo da modernidade socialista com base na radicalizao de formas de explorao que faziam pensar no Antigo Regime (REIS FILHO, 2003, p. 91).
O crescimento industrial repercutiu diretamente no processo de transformao das
cidades, sobretudo com o vertiginoso povoamento dos centros urbanos. A mobilidade espacial
construiu novos hbitos de sociabilidade pelos quais o regime procurou acompanhar. No
bastava somente introduzir formas de desenvolvimento capitalista, mas tambm fortalecer o
Estado a partir de reformas na formao do cidado sovitico em consonncia com as
transformaes operadas. O ideal socialista deveria ser evocado na construo de um novo
homem, moderno, contudo, diferente do homem moderno dos pases capitalistas. Um homem
que pensasse na socializao dos meios de produo e na ditadura do proletariado, e no na
superao individual da ideologia do capital; um homem cujo modo de vida o modo de vida
do seu companheiro revolucionrio, execrando as particularidades das desigualdades de
classe.
O regime, deste modo, forma um cidado movido pela ebulio de uma modernidade
sob o vis do socialismo. O suposto de liberdade do homem moderno no capital redefinido
para o homem sovitico em comprometimento com o ideal revolucionrio. A modernidade
molda um comportamento social adequado s novas contingncias sociais, sobretudo no que
se refere ao avano da reproduo ampliada do capital. Os soviticos, neste sentido,
apreendem os pressupostos modernos de sociabilidade, dando contornos singulares a
11 Obsesso flmica de Dziga Vertov em O homem com uma Cmera no qual a cidade ucraniana de Odessa representada.
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formao de um novo cidado i