Artigo publicado na revista ENTRETEXTOS, Londrina, vol.9, p. 48 - 73, UEL.
DIMENSÃO SOCIAL E DIMENSÃO VERBAL DO ENUNCIADO: UM
ESTUDO COM O GÊNERO DISCURSIVO CRÔNICA
Sandra Regina Cecilio*
(Universidade Estadual de Londrina/Secretaria de Estado da Educação do Paraná)
Lilian Cristina Buzato Ritter**
(Universidade Estadual de Maringá/Universidade Estadual de Londrina)
RESUMO: Este artigo expõe resultados parciais do projeto de pesquisa “Análise lingu
ística: contextualização às práticas de leitura e de produção textual” (UEL), cujos dados
são análises do gênero discursivo crônica, produzidas em contexto de formação
continuada com professores do Ensino Médio, especificamente, crônicas de Luís
Fernando Verissimo. As bases teóricas estão ancoradas na noção bakhtiniana de
dialogismo e de gêneros discursivos e no estudo das relações dialógicas com o já-dito e
o pré-construído (RODRIGUES, 2005), com aportes também em Maingueneau (1989).
Primeiramente, analisamos o contexto de produção, o qual demonstra que a crônica
constitui-se tanto da natureza jornalística quanto da literária; o papel social do cronista é
apresentar uma visão recriada da realidade, via humor e ironia; o papel social do leitor é
buscar diversão aliada à reflexão; a finalidade é provocar no leitor primeiro o riso, e
depois, a reflexão; o horizonte temático refere-se às relações humanas instauradas nos
mais diversos ambientes sociais. Ao focalizarmos analiticamente a dimensão verbal da
crônica, temos como campo de análise a intersecção entre o material verbal e o social,
estabelecendo o vínculo indissociável entre essas duas dimensões constitutivas do gênero. Por
meio desse estudo empreendido, verificamos como as relações dialógicas com os enunciados
já-ditos e os pré-figurados colaboram na construção dos efeitos de sentidos das crônicas.
* Doutora em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina. Professora do Quadro
Próprio do Magistério da Secretaria de Educação do Estado do Paraná e pesquisadora no projeto de
pesquisa “Análise Linguística: contextualização às práticas de leitura e de produção textual”, da
Universidade Estadual de Londrina, como colaboradora externa. Endereço eletrônico:
**
Professora do Departamento de Letras na Universidade Estadual de Maringá; doutoranda em Estudos
da Linguagem, no Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Londrina, pesquisadora do Projeto de Pesquisa “Análise Linguística: contextualização às práticas de
leitura e de produção textual”, da Universidade Estadual de Londrina e do Grupo de Pesquisa “Interação e
Escrita”, da Universidade Estadual de Maringá. Endereço eletrônico: [email protected]
PALAVRAS-CHAVE: crônica; contexto de produção; relações dialógicas; análise
linguística.
ABSTRACT: This paper exposes partial results of the research project “Linguistic
analysis: contextualization to the reading and writing practices" (UEL), whose data are
analyses of the discursive genre chronicle, produced in context of continuous formation
with teachers of the Medium Teaching, specifically Luís Fernando Verissimo’s
chronicles. The theoretical bases are anchored in Bakhtin’s notions of polyphony and
discursive genre and in the study of the dialogic relationships (RODRIGUES, 2005),
with contributions of Maingueneau (1989). We focused on the analysis of the
production context, which demonstrates that: the chronicle is constituted by the
journalistic and the literary nature; the columnist's social paper is to present a reality
vision recreated, through humor and irony; the reader's social paper is looking for
amusement with the reflection; the purpose is to provoke in the reader, at first, the
laughter, and then, the reflection; the thematic horizon refers to the human relationships
established in the most several social atmospheres. In the verbal dimension, the paper
approaches the study of the dialogic movements of voices by linguistic-enunciatives
marks in narrative chronicles. We verified that voices arrivals of the fiction are
materialized through a light tone, humorous, ironic and the use of the direct speech; we
observed the manifestation of the dialogic movement with previous and subsequent
links.
KEYWORDS: chronicle; context of production ; dialogic relationships; linguistic
analyses
Introdução
Nos últimos anos, principalmente com a implementação dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, o Brasil, em especial no campo da Linguística Aplicada, passou
a dedicar estudos relacionados ao ensino de línguas, tendo os gêneros discursivos como
eixo de articulação e progressão curricular. Inseridos nesse contexto, este artigo expõe
resultados parciais do projeto de pesquisa “Análise linguística: contextualização às
práticas de leitura e de produção textual” (Universidade Estadual de Londrina - UEL),
cujos dados são análises de exemplares do gênero discursivo crônica, produzidas em
contexto de formação continuada com professores do Ensino Médio.
As bases teóricas para a análise do gênero crônica estão ancoradas na noção
bakhtiniana de dialogismo e de gêneros discursivos e no estudo das relações dialógicas
discutida por Rodrigues (2005), com aportes em Mangueneau (1989). Quanto às
estratégias metodológicas, a análise considera as dimensões social e verbal do
enunciado. A primeira dimensão orienta-se para o estudo do contexto de produção e a
segunda focaliza os movimentos dialógicos estabelecidos com os discursos já-ditos (elos
anteriores) e os pré-figurados (os elos posteriores) e suas relações com as marcas de
construção composicional e linguístico-enunciativas do gênero.
Participam do projeto de pesquisa professores e alunos de graduação e do
programa de pós-graduação em Estudos da Linguagem (UEL) e docentes de ensino
médio vinculados à rede pública paranaense de educação. A proposta é a de elaborar,
mais adiante, juntamente com os professores de língua portuguesa do ensino médio, o
processo de transposição didática para uma prática de análise lingüística a partir do
estudo do gênero em questão.
Em encontros com os professores participantes do projeto de pesquisa, foram
discutidas as implicações teórico-metodológicas de se assumir os gêneros discursivos
como eixo de articulação e de progressão curricular, enfatizando-se o ensino gramatical
contextualizado às práticas de leitura e de produção de texto. O gênero discursivo
crônica foi selecionado pelo grupo para a elaboração de um projeto didático. Chegou-se
ao consenso, devido à amplitude do gênero, de delimitar o estudo com crônicas
produzidas pelo autor Luís Fernando Verissimo (doravante LFV), por sua produção ser
conhecida pelos alunos, já que muitas de suas crônicas circulam em materiais didáticos.
Além disso, também optou-se por selecionar um corpus que circulasse em jornais, já
que, na maioria das vezes, essa é a situação primeira de produção do gênero.
Desse modo, nosso corpus de análise para este artigo são crônicas publicadas no
jornal O Estado de S. Paulo, entre os meses de maio e junho do ano de 2008.
Selecionamos duas crônicas do período: “Parados” e “Mordiscar não é morder”,
consideradas por nós como crônicas narrativas.
A fim de apresentarmos as análises dessas duas crônicas, organizamos o texto do
seguinte modo: primeiramente, discutimos sobre o contexto de produção, na visão de
Bakhtin; em seguida, apresentamos alguns aspectos teóricos do gênero discursivo
crônica; após, refletimos sobre sua dimensão social e dimensão verbal; na sequência,
analisamos as duas crônicas selecionadas para o estudo, abordando seus movimentos
dialógicos.
O Contexto de Produção na Visão Bakhtiniana
As ideias fundadoras do Círculo de Bakhtin, em específico, as presentes em
Marxismo e filosofia da linguagem, invertem valores da linguagem e da língua
cristalizados até aquele momento, ao argumentar que a língua é um signo ideológico,
cuja verdadeira substância da língua é constituída “pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui
assim a realidade fundamental da língua” (BAKHTIN/VOLOCHINOV 1992, p. 123).
Dessa forma, observamos a importância das noções enunciado/enunciação na
concepção de linguagem que rege o pensamento bakhtiniano porque a linguagem é
concebida de um ponto de vista histórico, cultural e social que inclui, para efeito de
compreensão e análise, a comunicação efetiva e os sujeitos e discursos envolvidos
(BRAIT e MELO, 2005).
A partir dessa perspectiva, a linguagem não representa meramente a realidade,
mas cria no mundo estados de coisas novas. Passa a ser compreendida a partir de sua
natureza sócio-histórica, enfatizando-se sua ação interativa, uma vez que toda
enunciação é uma resposta a algo e por isso “Não passa de um elo da cadeia dos atos de
fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com ela,
conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as”
(BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p. 98).
Essa perspectiva enfatiza o caráter dialógico de toda enunciação. Ou seja, não
existe enunciado fora de um contexto de produção. De acordo com a visão bakhtiniana,
a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam a estrutura da
enunciação. Como contexto mais imediato pode-se inferir o meio social do micromundo
(por exemplo, a família, a cidade) e contexto social mais amplo como o sócio-histórico
(por exemplo, as relações sócio-econômicas, culturais de uma sociedade). Esses
contextos não se encontram justapostos, como se fossem independentes e indiferentes
uns aos outros, pelo contrário, se encontram em uma situação de interação e de conflito
ininterrupto.
Nesse contexto específico de interação, a escolha dos recursos expressivos no
processo de construção de um enunciado concreto se dá no rol de outros enunciados,
determinados por suas esferas de comunicação. Portanto, a fim de se evitar o caos
comunicativo, a sociedade “elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais
denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 262). Esses gêneros
discursivos funcionam como mediadores entre os interlocutores na situação de
interação, e apresentam três dimensões indissolúveis e interdependentes: conteúdo
temático, estilo e construção composicional.
Bakhtin (2003, p. 283) nos explica que os gêneros são aprendidos com a
linguagem, por meio de enunciados concretos:
Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (...). Os gêneros do discurso
organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais
(sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos
o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um
determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma
determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação
do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala.
Diante da enorme heterogeneidade dos gêneros, Bakhtin (2003) reconhece haver
uma dificuldade de se definir a natureza geral do enunciado. Propõe que se atente para a
diferença, que não é funcional, entre o que ele chama de gêneros discursivos primários e
secundários. Aos primários se refere aos gêneros que pertencem à esfera do cotidiano
(ideologia do cotidiano), que se formam nas condições da comunicação discursiva
imediata, principalmente, nas de oralidade. Os secundários são os que surgem nas
condições de um convívio cultural mais complexo, relativamente muito desenvolvido e
organizado, sobretudo na escrita, aqueles que pertencem às esferas dos sistemas
ideológicos constituídos da arte, religião, ciência, política. Na interpretação de Machado
(2005a, p.155), “nada impede que uma forma do mundo cotidiano possa entrar para a
esfera da arte, por exemplo. Em contatos como esses, ambas as esferas se modificam e
se complementam”.
Com essa classificação dos gêneros discursivos por esferas da atividade humana,
o autor postula haver um vínculo orgânico e indissolúvel entre o estilo e o gênero: “Em
cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições
específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos”
(BAKHTIN, 2003, p. 66). Assim, como já mencionamos, os gêneros discursivos se
materializam no que se denominou de enunciado concreto, que possui três
particularidades: a alternância dos sujeitos falantes (interlocutores); o acabamento do
enunciado e a condição de elo na cadeia da comunicação verbal.
A alternância dos interlocutores delimita as fronteiras de cada enunciado e as
réplicas dos diálogos, no sentido amplo, são os fins e os inícios absolutos. Se toda
enunciação é o produto da situação de interação de dois indivíduos socialmente
organizados (os interlocutores), temos, portanto, dois primeiros elementos constituintes
do contexto de produção: o interlocutor e o locutor. Esse interlocutor não é entendido
como mero ouvinte passivo, mas sim, como participante ativo da interação, uma vez
que todo locutor espera dele uma resposta, uma compreensão responsiva. Para
Bakthin/Volochinov (1992, p. 112), é necessário supor a existência de um “horizonte
social definido e estabelecido, que determina a criação ideológica do grupo social a que
pertencemos”. É por isso que se defende a ideia de não poder existir um interlocutor
abstrato, já que o interlocutor ideal encontra-se inserido em um horizonte social.
O acabamento do enunciado se concretiza no momento em que o locutor/autor
disse/escreveu “tudo” o que queria ou podia, em determinadas condições. A palavra
procede de alguém (locutor/falante/autor), contudo, esse locutor não é um “Adão
mítico” (BAKHTIN, 2003, p. 300), que nomeia as coisas pela primeira vez. Somos
sujeitos de uma relação sócio-histórica e se podemos pensar em “criação” na linguagem,
é só pelo viés da ressignificação à luz dos condicionamentos sociais.
Conforme Bakhtin (2003, p. 293), “as palavras podem entrar no nosso discurso a
partir de enunciações individuais alheias, mantendo em menor ou maior grau os tons e
ecos dessas enunciações individuais”. Em função dessa característica “individual-
contextual”, para o falante/locutor, a palavra existe em três aspectos: como palavra da
língua neutra, a que não pertence a ninguém; como palavra alheia dos outros, a cheia de
ecos de outros enunciados; como a minha palavra, a que está arraigada da minha
expressão. Assim, podemos descobrir no enunciado as palavras do outro, como palavras
explícitas, ocultas ou semiocultas, com graus diferentes de alteridade. É importante
ressaltarmos a ideia de que, nesse caso, a palavra atua como expressão de certa
apreciação valorativa do locutor/autor.
Por sua vez, o grau de acabamento de um enunciado que possibilita uma
resposta, a compreensão responsiva, é determinado por três aspectos interdependentes: o
tratamento exaustivo do tema; o querer dizer do locutor; as formas típicas de
estruturação do gênero. Nesse sentido, a apreciação valorativa do locutor a respeito do
tema e do(s) interlocutor(es) de seu discurso é que indica as diversas nuances
ideológicas refratadas no tratamento dado ao tema, refletidas na escolha das formas e do
estilo do enunciado.
A terceira particularidade do enunciado se constitui no seu estado permanente de
diálogo com outros enunciados, já comentado anteriormente, pois como elos da cadeia
de comunicação, os enunciados refletem-se uns aos outros, reluzem matizes dialógicos,
são sempre uma resposta a outros. Como se pode ver, os gêneros discursivos existem no
contexto do dialogismo, de vozes sociais que se põem em contato (concordam,
discordam, refutam) na produção dos enunciados. Nesse sentido, Rojo (2005, p. 199),
ao explicar a ordem metodológica para o estudo da língua na abordagem sociológica
bakhtiniana, defende que:
aqueles que adotam a perspectiva dos gêneros discursivos partirão sempre de uma análise em
detalhe dos aspectos sócio-históricos da situação enunciativa, privilegiando, sobretudo, a vontade
enunciativa do locutor – isto é, sua finalidade, mas também e principalmente sua apreciação
valorativa sobre seu(s) interlocutor(es) e temas discursivos - e, a partir desta análise, buscarão as
marcas lingüísticas (formas do texto/enunciado e da língua – composição e estilo que refletem,
no enunciado/texto, esses aspectos da situação.
Em vista disso, podemos depreender que qualquer análise envolvendo os
gêneros não pode preceder da análise das condições de produção, uma vez que o
texto/enunciado concreto, na visão bakhtiniana, é composto de uma dimensão verbal e
uma dimensão social, incluindo tempo e espaço históricos, os participantes da interação
e a orientação valorativa.
Assim, é à análise dos aspectos sócio-históricos (dimensão social) – denominada
aqui contexto de produção – e a das marcas linguístico-enunciativas (dimensão verbal)
do gênero discursivo crônica que nos engajamos mais adiante. Antes, porém,
apresentamos algumas considerações teóricas acerca do gênero crônica, ancoradas em
estudos linguísticos, discursivos/enunciativos, literários e jornalísticos.
Aspectos Teóricos sobre o Gênero Discursivo Crônica
Em sua dissertação de mestrado, Madeira (2005) avalia a crônica como um
“gênero brasileiro” – uma vez que foi aqui que se estabeleceu com as características
atuais –, e por isso mesmo traz consigo algumas peculiaridades próprias do povo que a
consagrou. Entre essas peculiaridades, nesse momento, encontra-se o fato de poder ser
definida tanto com o rigor teórico dos pesquisadores quanto com a descontração e a
criatividade dos escritores, ótica que, segundo a visão da autora, parece ter sido mais
tratada.
Dessa forma, explica que a crônica é hoje reconhecida como um gênero literário
estreitamente ligado ao jornalismo, pois foi a partir do desenvolvimento da imprensa no
Brasil, em meados do século XIX, que ela começou a assumir a sua configuração atual.
Referindo-se aos estudos de Afrânio Coutinho sobre a crônica, a autora destaca o fato
de que, ainda nesse período, os jornais publicavam um artigo de rodapé, o folhetim, que
tratava das questões do dia, abordando os mais diversos assuntos, entre eles: literatura,
política, artes, sociedade. Posteriormente, essa denominação passou a ser dada à seção
do jornal em que se publicavam todas as formas literárias, e o texto, antes assim
chamado, recebeu o nome de crônica e o seu autor, o de cronista.
Em relação às peculiaridades da crônica moderna, Neves (1995, p. 20) destaca a
importância do jornal para a configuração desse gênero, uma vez que, na maioria das
vezes, seu primeiro suporte são as efêmeras folhas de um jornal, e não as perenes
páginas de um livro. Daí, ela funcionar como comentário quase impressionista sobre o
real vivido e apresentar um tom leve, em busca sempre de ser acessível a todos os
leitores. Ainda na visão dessa autora, a questão temática é supostamente arbitrária e sua
forma é “caleidoscópica, fragmentária e eminentemente subjetiva”.
Sá (1985, p. 10-11) ressalta a natureza jornalística da crônica, argumentando que
o seu estilo aligeirado, simples, decorre do fato de que ela surge primeiro no jornal, e,
portanto, assume o caráter transitório desse suporte. Muito interessante é a explicação
fornecida pelo autor sobre seu perfil estilístico, como podemos observar na citação
abaixo:
(...) esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o
dia, no instante em que o leitor transforma as páginas (do jornal) em papel de embrulho, ou
guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal. O jornal, portanto, nasce,
envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse contexto, a crônica também assume essa
transitoriedade, dirigindo-se inicialmente a leitores apressados, que lêem nos pequenos intervalos
da luta diária, no transporte ou raro momento de trégua que a televisão lhes permite. Sua
elaboração também se prende a essa urgência: o cronista dispõe de pouco tempo para preparar
seu texto, criando-o, muitas vezes, na sala enfumaçada de uma redação. Mesmo quando trabalha
no conforto e no silêncio de sua casa, ele é premido pela correria com que se faz um jornal, (...).
À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos, e o
cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por isso a sua sintaxe lembra
alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que
propriamente do texto escrito.
Esse caráter transitório, na visão jornalística de Melo (2002, p. 147), é
manifestado porque ela situa-se na fronteira entre a informação de atualidades e a
narração literária, configurando-se como “um relato poético do real”. Nesse sentido, o
cronista empresta o lirismo ao resgate de nuanças do cotidiano, contendo ingredientes
de crítica social. De acordo com esse autor, é o palpite descompromissado do cronista
que fornece ao leitor a dimensão sutil dos acontecimentos nem sempre revelada
claramente pelo repórter ou articulista. É por essa razão que a crônica exerce um
fascínio em seu público leitor.
Em Coutinho (1986) essa atitude “descompromissada” do cronista é entendida
como uma estratégia discursiva, já que, para o cronista, o tom de conversa e de bate-
papo se apresenta como garantia de um diálogo mais ou menos permanente com o seu
leitor. Ainda que suas opiniões não devam assumir um caráter de verdades
incontestáveis, para não afugentar os leitores que delas discordam, será a sua habilidade
a responsável por fazer o leitor assimilar, sem que o perceba, as ideias defendidas.
Já Letria e Goulão (apud Melo, 2002, p. 151) acrescentam a ideia de que a partir
dos fatos, o cronista dá vazão aos seus sentimentos e com legitimidade pode entrar no
domínio da ficção. Dessa forma, o real e o imaginário misturam-se por meio da
associação de ideias, do jogo de palavras e conceitos, das contraposições, realçando o
mundo real. Ainda segundo esses teóricos, a crônica exerce uma influência na formação
de correntes de opinião porque ela aligeira os jornais, muitas vezes sobrecarregados
com fatos. Os leitores se identificam com a reação pessoal contida na crônica, que se
configura pelo humor, ironia, elogio emocionado, enfim, por todas as formas de
sentimentos.
Contudo, essa proximidade da crônica com a literatura nem sempre lhe confere o
status dos gêneros literários e a avaliação de ser um gênero menor dentro da literatura é
sustentada por muitos críticos literários. Para Melo (2002, p. 152), essa avaliação não
deve significar a sua desvalorização, mas sim, a identificação como um gênero
eminentemente jornalístico que se configura pela ligeireza, superficialidade,
simplicidade, coloquialismo e efemeridade.
Essas visões teóricas apresentadas até aqui nos fazem constatar o quanto é
amplo, flexível, e até mesmo, ainda, indefinido o conceito e a caracterização do gênero
crônica.
Dimensão Social: Contexto de Produção
Em busca de uma metodologia para analisar e configurar o contexto de produção
do gênero selecionado, adaptamos a proposta de Rodrigues (2005), que, ao apresentar
análise de um gênero jornalístico (artigo de opinião), baseando-se no método
sociológico para o estudo do enunciado (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992), propõe
momentos diferenciados – mas indissociáveis – de análise para a interpretação do
processo de constituição e de funcionamento do gênero. O primeiro consiste no estudo
da sua esfera comunicativa, observando-se o modo de constituição e de funcionamento
do gênero em estudo. O segundo momento centra-se no estudo do gênero em si, por
meio da análise de suas dimensões social e verbal.
Quando nos voltamos para a dimensão social da crônica, incluímos os seguintes
aspectos: a relação entre a esfera jornalística e a crônica; o locutor, o interlocutor e suas
apreciações valorativas sobre o tema e a sua parceria, seus papéis sociais, suas relações
hierárquicas e interpessoais; o horizonte temático; a vontade enunciativa do locutor.
Como vimos, há teóricos que consideram a crônica como um gênero jornalístico,
outros, um gênero literário. No caso deste trabalho, por considerar que ela nasce no
jornalismo, somos levados a refletir sobre alguns aspectos dessa esfera comunicativa.
Bussarello (2004, p. 65) trata disso ao fazer um panorama do modo de
constituição e de funcionamento da comunicação jornalística em meio a nossa
sociedade. Após tratar de alguns aspectos históricos da evolução desse tipo de prática
social, afirma que “o jornalismo passa a ser, na era da globalização, mais um produto de
consumo cuja ideologia serve ao capitalismo”. Nessa perspectiva, a função social do
jornalismo dilui-se em meio ao caráter comercial assumido. Atualmente, diante desse
perfil comercial, ideológico e político da grande maioria dos jornais, a formação de
leitores críticos não estaria garantida com o fato da leitura assídua de jornal, uma vez
que esse leitor pode se tornar alienado por conhecer somente o que a ideologia
defendida pelo jornal deseja que ele pense. Muito mais do que informação, a empresa
jornal vende interesses ideológicos.
Como um bem de consumo de nossa sociedade capitalista, o jornalismo tem que
desenvolver estratégias que garantam sua venda. Entre elas, Bussarello (2004, p. 67)
comenta sobre a existência de gêneros jornalísticos, assim como na época dos folhetins,
que são o entretenimento, a diversão, necessários para a comercialização dos periódicos,
e nessa linha de argumentação, conclui que essa interação com o leitor como um
mecanismo de persuasão para a venda do jornal “pode representar, na pretensão de
divertir, ou na despretensão aparente do discurso, uma abertura antes para a reflexão
sobre a ideologia dominante do que para diversão”.
Entre esses gêneros, como vimos anteriormente, a crônica cumpre com essa
função jornalística de entretenimento, e é por isso que também apresenta uma natureza
literária, pois o cronista recria o fato cotidiano por meio da leveza, da beleza, da poesia,
da crítica, do humor. Assim, consideramos que esse caráter híbrido constitui a crônica.
Diante disso, é importante lembrarmos a especificidade da crônica que circula
em coletâneas literárias, porque esse espaço de circulação não é mais o jornalístico, e,
por isso, nessa situação se aproxima mais da esfera literária. Myszak e Teixeira (2008)
assinalam que a crônica deixa de ser jornalística e se torna literária quando, ao
sobreviver ao tempo, se torna atual mesmo anos mais tarde de sua publicação em
jornais. Contudo, neste trabalho não tratamos dessa situação, uma vez que as crônicas
selecionadas circularam em um jornal.
De forma geral, a crônica, assim como os outros gêneros jornalísticos, ocupa um
lugar fixo no interior do jornal. Em relação às crônicas de LFV publicadas no O Estado
de S. Paulo, há uma sistematicidade quanto a sua “topografia”. É relevante observar que
elas ocupam um espaço do Caderno 2 Cultura, destinado, como o título indica, aos
textos sobre literatura, cinema, teatro. Quanto ao espaço de publicação, se localizam na
parte superior da última página desse caderno, lugar de grande importância no jornal,
por ser a parte da página que recebe primeiramente a atenção do leitor, de acordo com
informações obtidas com profissionais do jornalismo. Tal localização garante às
crônicas um status relevante quanto a sua capacidade de mobilização do leitor.
Quanto à forma de apresentação, mantém-se sempre em destaque a identificação
da autoria por meio de letras em “caixa-alta” – VERISSIMO – na parte superior
esquerda, acima do título da crônica, acompanhadas de uma foto do autor e de citações
entre aspas, retiradas da crônica. Esses elementos espaciais são constitutivos do gênero,
porque indicam o lugar da sua ancoragem ideológica, delimitando a que parte do
universo temático do jornalismo ele se refere, qual o seu horizonte temático, sua
finalidade de interação.
Nessa seção Cultura, a crônica de LFV ocupa o lugar de um gênero que
historicamente tem seu horizonte temático e axiológico orientado para a manifestação
da expressão valorativa a respeito de acontecimentos sociais do cotidiano que,
normalmente, são vistos como cenas corriqueiras. Os participantes da interação
assumem e reconhecem esse trabalho criativo, ficcional e sensível do autor.
O horizonte temático das crônicas de LFV refere-se às relações humanas, como
o próprio autor assume em uma entrevista: “A principal matéria-prima para a crônica
são as relações humanas. O modo como as pessoas se amam, se enganam, se
aproximam ou se afastam num ambiente social definido” (PEREIRA JR, 2005). Nesse
sentido, podemos observar que as crônicas do corpus apresentam temas relacionados às
relações humanas instauradas nos mais diversos ambientes sociais.
Refletindo sobre as relações dialógicas desse processo discursivo, podemos
considerar que a emergência dessas crônicas constitui uma reação-resposta a enunciados
do discurso hegemônico instaurado em nossa sociedade neoliberal que, em termos
gerais, desvaloriza a humanização do Homem (o já-dito). De forma a contemplar a
dupla orientação desse gênero, o cronista busca a reação-resposta ativa de seu
interlocutor, construindo o seu acento de valor a partir da imagem de um leitor que
ainda busca/acredita em tal humanização.
A concepção de autoria do gênero crônica está articulada com a posição
privilegiada que o autor ocupa tanto no cenário sociopolítico quanto no artístico-
literário. Tratando-se da figura social de LFV, essa imagem é construída no cenário
artístico-literário, onde ele é legitimado socialmente como “O autor que é uma paixão
nacional. A arte de fazer uma radiografia bem-humorada da alma do brasileiro
transformou LFV num campeão da literatura” (Revista Veja, 12/03/2003).
Quanto ao estilo de LFV, Machado (2005b, p. 10) enfatiza que ele possui um
magistral domínio da linguagem e do ritmo da narração, com uma admirável economia
no uso das palavras, com diálogos que “dão até impressão de que saíram de uma fita
gravada”. Diante dessas considerações, pontuamos que Verissimo, ao tratar com humor
e refinada ironia sobre temas do cotidiano que enfocam as diversas relações humanas, é
reconhecido e legitimado socialmente como o autor da ironia e do humor.
A autoria não diz respeito à pessoa física, mas sim, a uma posição de autoria
inscrita no próprio gênero. A crônica é redigida por um cronista convidado pelo jornal,
que representa a figura de um escritor que fala sério brincando ou que brinca quando
fala sério. No caso de nosso corpus, o lugar social que LFV representa é a de um
cronista que apresenta uma visão recriada da realidade tanto por parte de sua capacidade
ficcional e/ou de comentarista, via humor e ironia.
Machado (2005, p. 10), pontua que os temas de LFV são o cotidiano, em
especial na intimidade. Mas a autora assinala que os temas não são o mais importante
em suas crônicas e sim o modo como elas são construídas:
Sobre qualquer assunto e a qualquer pretexto, o autor revela suas obsessões, fala das mesmas
coisas, preocupa-se com o social e o ético, despreza solenemente o econômico... e encontra
sempre uma maneira nova de fazer isso, como se nunca o tivesse feito antes. As situações podem
ser cotidianas, mas os ângulos geralmente são insólitos e inesperados. Ou então, reforçam o já
esperado, mas com tão exatas pitadas de exagero que a caricatura até parece um retrato realista
pelo avesso, em que o lado cômico é revelado em sua verdadeira grandeza e o sentido profundo
aparece com nitidez.
Na crônica, o tom humorístico, irônico e despretensioso do autor funciona como
o lugar do estabelecimento e da ancoragem da entonação do gênero (um tom
autorizado) e da sua atitude valorativa. Como sabemos, por trás da ironia existe um jogo
político e ideológico em que se permite que as críticas sociais, as depreciações, as
difamações sejam feitas sem causar muita tensão entre os interlocutores. Assim,
podemos considerar que a finalidade discursiva se orienta para a reflexão do
interlocutor, via provocação do riso.
O uso dessa estratégia discursiva institui nessa situação de interação um leitor
que deve “des-cobrir” as surpresas presentes nos textos. Assim, o interlocutor é o leitor
da classe letrada, um público-alvo específico e reduzido, considerando as condições
financeiras da classe assalariada. Bussarello (2004, p.79), a esse respeito, argumenta que
“escreve-se para uma cultura letrada, por isso, o discurso irônico presente na
despretensão pode ser muito mais sarcástico e mordaz que se dito com todas as
palavras. Talvez justamente aí esteja a riqueza da crônica, porque trabalha
essencialmente com a contra-palavra do interlocutor”.
Dimensão Verbal e Movimentos Dialógicos
Em estudo acerca das relações dialógicas com outros enunciados, Rodrigues
(2005), a partir da discussão da dimensão verbal do gênero artigo de opinião, apresenta
uma proposta de análise da incorporação de outras vozes ao discurso do autor,
subdividindo-a em dois movimentos: relação dialógica com elos anteriores (enunciados
já-ditos) e relação dialógica com elos posteriores (enunciados pré-figurados). Em
função das especificidades de cada gênero, fazemos uma adaptação do estudo de
Rodrigues (2005), conforme já exposto.
Ao falar sobre a relação dialógica com enunciados já-ditos, Rodrigues (2005)
discute o movimento dialógico de assimilação e movimento dialógico de
distanciamento, que segundo a autora, “’marcam-se’ pelas diferentes estratégias de
enquadramento e de citação do discurso do outro” (RODRIGUES, 2005, p. 175). O
termo assimilação é utilizado pela pesquisadora para identificar a incorporação de
outras vozes orientadas para a posição valorativa do autor. Geralmente, são falas
autorizadas de representantes legitimados, com alta credibilidade; é também a presença
de vozes da esfera cotidiana como vozes do senso comum, da opinião pública e vozes
das esferas da ciência, da política, da religião, da literatura, entre outras. As marcas
linguísticas que colaboram na criação de efeitos de sentido de tais vozes são, por
exemplo, o uso de determinadas palavras e expressões avaliativas, uso de verbos ou
grupos proposicionais introdutórios do discurso citado, sobretudo do discurso direto
que, segundo Maingueneau (2001), denota autenticidade ao discurso enunciado.
No movimento dialógico de distanciamento ou de apagamento, Rodrigues
(2005) cita os casos de desqualificação da palavra do outro, por meio do enquadramento
ou vozes com menos credibilidade, com o uso de palavras ou expressões avaliativas
como a negação, as aspas, os operadores argumentativos, a ironia, o chamamento do
discurso de um outro, os pronomes demonstrativos.
Nesse movimento, normalmente não há a identificação de determinado livro, mas uma referência
difusa, como em “os livros”, um ministro não afirma, mas “sugere”. Em lugar de o renomado
cientista fulano de tal, alguns cientistas. A oposição ao governo e o povo podem ser qualificados
como “coro de pessimistas”; ou se indetermina a origem discursiva do enunciado (“logo se
pensa”, “alguns temem”) (RODRIGUES, 2005, p. 175).
Na relação dialógica com elos posteriores (pré-figurados) referentes ao modo de
orientação ao interlocutor, Rodrigues (2005) aborda a relação dialógica entre autor e
leitor, ao discutir: o movimento de engajamento do leitor ao discurso do autor, o
movimento de refutação da possível contrapalavra do leitor e o movimento de
interpelação do leitor ao horizonte axiológico do autor.
No movimento dialógico de engajamento, o leitor é elevado à posição de aliado;
o discurso é construído como se autor e leitor falassem da mesma posição valorativa. As
marcas linguísticas mais frequentes são o uso de verbos e pronomes de primeira pessoa
do plural, uso do pronome indefinido de afirmação plena (“todos”), perguntas retóricas
como questionamentos possíveis do leitor.
Em relação ao movimento dialógico de refutação, a autora assinala que este
ocorre quando o autor antecipa possíveis reações-resposta de objeção que o leitor
poderia contrapor a seu discurso. Desse modo, há o silenciamento de enunciados pré-
figurados (possível contrapalavra), “que ou incorpora no seu discurso ou leva em conta
na construção do seu enunciado” (RODRIGUES, 2005, p. 178-179). Os indicadores
modais são um exemplo que impõem a posição do autor e antecipam a atitude
responsiva do leitor.
O último movimento dialógico com elos posteriores é o movimento dialógico de
interpelação. Nele, o ponto de vista do autor é imposto para o leitor quando
“determinado ponto de vista é apresentado como o ponto de vista, como a verdade à
qual o leitor deve se sentir compelido, persuadido a aderir” (RODRIGUES, 2005, p.
179, grifos da autora). Essa relação de imposição sobre o leitor pode ser marcada
linguisticamente pelo uso de indicadores modais como “é preciso”, “é necessário”,
“deve ser”, pelo uso de interlocução direta como “você, “seu, “sua”, verbos no
imperativo e de certos operadores argumentativos.
Ao focalizarmos analiticamente a dimensão verbal do gênero temos como
campo de análise a intersecção entre o verbal e o social, estabelecendo o vínculo
indissociável entre essas duas dimensões constitutivas do gênero. Muito produtivo para
esse estudo, em termos metodológicos, são questões elaboradas por Rodrigues (2005),
por nós adaptadas, que orientam a reflexão sobre alguns aspectos referentes a esse
momento da análise: o que motiva o acontecimento dessa crônica, ou seja, ela é uma
reação-resposta a quê, a quem?; como essa reação se manifesta na crônica?; de que
lugar social o autor se posiciona?; o que ele diz?; qual sua orientação valorativa diante
do que diz?; como e a partir de quem constrói sua orientação axiológica?; como o autor
se orienta para e percebe o seu interlocutor e suas possíveis reações-respotas?; como
tudo isso se inscreve materialmente na crônica?.
Para exemplificar essas dimensões de análise apresentamos duas crônicas de
LFV, veiculadas no jornal Estado de S. Paulo entre os meses de maio e junho de 2008:
“Parados” e “Mordiscar não é morder”. Além da publicação nesse jornal verificamos,
via pesquisa na rede mundial de computadores, a veiculação das crônicas em outros
jornais brasileiros (Zero Hora, Diário Catarinense) e um de Portugal (Expresso).
Análise da Crônica “Parados”
Em “Parados”, publicada no dia dezoito de maio de 2008, temos um motorista
de táxi, que durante um engarrafamento, atua como “psicólogo” de seu passageiro. O
motorista tenta persuadir o passageiro a não fazer a viagem para o local de destino,
justificando que o trânsito está muito consgestionado naquela região. Usa como
argumento o fato de as pessoas estarem tão presas à correria do dia a dia que acabam
dando importância a situações que poderiam esperar, não tendo, assim, qualidade de
vida. Portanto, podemos afirmar que essa crônica aborda a relação do homem com o
uso que faz do tempo.
Quanto à construção composicional da crônica “Parados” verificamos apenas o
primeiro e o terceiro parágrafos com a voz do narrador para situar o leitor na história.
Após, inicia-se um diálogo entre taxista e passageiro com trinta e seis parágrafos nos
quais o taxista tenta persuadir o passageiro a não levar uma vida tão assoberbada. O
diálogo, conforme discussão feita por Bussarello (2004), no gênero crônica, é indício da
presença de um gênero intercalado, no caso, a conversa cotidiana. Rodrigues (2005, p.
180) analisa que os “gêneros intercalados são um modo de introdução do discurso do
outro no gênero artigo, (...) pois permite ao autor refratar a sua fala”. No caso da crônica
de LFV, a conversa cotidiana se materializa na representação das vozes das
personagens, que assumem posições discursivas incorporadas na crônica.
Do ponto de vista das marcas linguístico-enunciativas, segundo Savioli e Fiorin
(1997), no discurso direto a fala das personagens é anunciada por verbos de dizer, ou
pode ficar subtendida: “depois da fala de uma personagem, o simples fato de aparecer
outro travessão indica que outra personagem tomou a palavra” (SAVIOLI e FIORIN,
1997, p. 45); ainda, os autores apontam que o discurso direto é uma espécie de
teatralização da fala dos outros e por esse motivo cria um efeito de verdade. Em
“Parados”, temos apenas dois verbos de dizer no início da crônica - “pediu (primeiro
parágrafo) e perguntou (terceiro parágrafo). Consideramos que os demais parágrafos
que constituem o diálogo entre taxista e passageiro criam o efeito de sentido de
dinamicidade no texto; além de entendermos como uma característica (estilo) de LFV
que escreve textos curtos, rápidos, ágeis, numa linguagem clara e parecida com a que a
gente fala todo dia, conforme aponta Machado (2005b).
Em relação aos movimentos dialógicos, temos a negação do discurso perpassado
na sociedade neoliberal que sugere que todo o tempo do cidadão deve ser dedicado ao
trabalho, a fim de que os sujeitos, vivendo em uma sociedade consumista, estejam
sempre à busca de dinheiro.
- Eu sei. O senhor precisa ganhar dinheiro. Tem que sustentar a família. É casado?
- Estou me separando...
- Então. Precisa de dinheiro. Eu também. Não posso ficar parado. Mas o dinheiro não compra
vida. Pelo contrário, a gente gasta vida para ter dinheiro. É uma troca em que sempre se sai
perdendo. Qual foi o problema?
Tal discurso, presente na sociedade atual, é alçado pelo cronista, na figura do
taxista, como objeto de crítica e questionamento para levar o passageiro (e o leitor) à
reflexão, constituindo-se como uma reação-resposta a esses enunciados da atualidade,
chamados por Rodrigues (2005) de já-ditos. Assim, a finalidade discursiva orienta-se
para a apreciação valorativa, tanto do taxista, quanto do passageiro e,
consequentemente, do leitor, pois o objetivo é desautorizar esse ponto de vista ao
refletir sobre a validade da vida do modo como tem sido levada e sobre a não existência
de qualidade de vida no “corre-corre” diário. Temos, então, relações dialógicas com
enunciados já-ditos, com o movimento dialógico com elos anteriores, denominado de
movimento dialógico de distanciamento (RODRIGUES, 2005), pois enunciados atuais
presentes no discurso (já-dito) são usados para desqualificar a voz da sociedade
neoliberal a qual o cronista/taxista se opõe.
Em síntese, “Parados” é uma reação-resposta irônica do cronista, via
personagem – o taxista – à correria cotidiana. Temos um enunciado da atualidade e,
com isso, a crônica busca a reação-resposta ativa do passageiro e do leitor. Com essa
voz do discurso neoliberal que circula atualmente, o cronista/taxista quer a adesão do
leitor/passageiro ao seu ponto de vista de que “a única coisa vital de nossa vida é a
nossa vida”.
Considerando que muitas relações dialógicas encontradas se dão em razão do
interlocutor, já que é em função dele que se constrói o discurso, verificamos também
nesta crônica, relações dialógicas com elos posteriores, com o movimento dialógico de
interpelação. O taxista tenta impor seu ponto de vista, a começar com as perguntas que
faz ao passageiro quando este insiste em fazer a corrida e desse modo, direciona o
passageiro a compreender o fato, a partir de seu posicionamento.
O taxista, na crônica, representa a posição social do locutor, assume socialmente
o papel de terapeuta, se opondo à voz da sociedade neoliberal. Deese modo, constrói a
orientação axiológica de oposição aos enunciados atuais que asseveram que as pessoas
não devem “desligar-se” do trabalho e das preocupações, fato que pode deixar o lado
pessoal e a família em segundo plano. Ele alerta a sociedade para que dê uma parada e
reflita sobre a vida.
Identificamos, ainda, o movimento dialógico de refutação (com elos posteriores)
quando o taxista antecipa possíveis respostas do passageiro. Mediante Rodrigues
(2005), é um modo de o autor abafar uma possível objeção do leitor, provocando o
silenciamento de enunciados pré-figurados (possível contrapalavra). O taxista consegue
a adesão do passageiro, pois este não argumenta, apenas ouve os “conselhos” do taxista
aceitando-os, por fim.
- A única coisa vital da nossa vida é a nossa vida. O senhor concorda?
- Não sei se eu...
- Tome o seu caso. Correndo para ir a uma reunião importante que não é tão importante assim.
Enfrentando trânsito que não anda, se irritando, enfim, se matando. Transformando uma questão
que não é vital numa questão de vida e morte. É ou não é?
- É, mas...
- Eu sei. O senhor precisa ganhar dinheiro. Tem que sustentar a família. É casado?
- Estou me separando...
- Então. Precisa de dinheiro. Eu também. Não posso ficar parado. Mas o dinheiro não compra
vida. Pelo contrário, a gente gasta vida para ter dinheiro. É uma troca em que sempre se sai
perdendo. [...]
Faz-se importante discutirmos a ironia presente nesta crônica, pois LFV é
legitimado socialmente como o autor da ironia. Madeira (2005) considera que a ironia
está presente em toda a obra do autor, sendo reconhecida com uma característica de seu
estilo.
Em uma primeira acepção, o sentido de ironia expressa significado oposto ao
que está dito literalmente. Tal característica permite considerá-la uma marca da
“heterogeneidade discursiva mostrada”, que, segundo Maingueneau (1989, p. 98),
“subverte a fronteira entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor”. Tal recurso
coloca em cena um discurso outro, uma outra voz que se faz presente no enunciado,
expressando um discurso contrário ao do sujeito enunciador e que pode ser considerado
como uma estratégia para atrair a atenção do leitor, a fim de que este se dê conta da
verdadeira intenção do que é proferido.
A segunda acepção de ironia é compreendida como um gesto de zombaria, de
sarcasmo, e, nesse sentido, Madeira (2005) ressalta sua presença nos enunciados
humorísticos, nos quais a apreciação valorativa orienta-se pelo desejo de, afastando-se
da seriedade, e até, provocando o riso, levar o interlocutor à reflexão e ao
convencimento.
Em nosso corpus, há um misto das duas acepções. No caso específico dessa
crônica, de forma predominante, o humor e a ironia materializam-se enquanto
zombaria. As relações dialógicas manifestam-se não só no conteúdo temático, mas
também no plano estilístico-composicional. Por isso o uso dessa estratégia discursiva
não incide sobre o dito do autor, mas na recriação da cena, perpassando por todo enredo.
As personagens funcionam como caricaturas do modo de vida de nossa sociedade
neoliberal. Se pensarmos que a profissão de taxista se mantém somente com veículo em
movimento, pois o taxímetro só pode marcar se o carro estiver trafegando, a ironia está
no fato de o taxista persuadir o passageiro a ficar “parado”, e poder cobrar por isso. Para
o passageiro, não interessa mais a corrida de táxi, na medida em que ouve e reflete
sobre o que o taxista tem a dizer sobre o comportamento atual da sociedade e dos
relacionamentos humanos; sobre como viver com qualidade de vida e ao pedido de
ajuda para resolver outro problema.
Por trás da ironia existe um jogo político e ideológico em que se permite que as
críticas sociais, as depreciações, as difamações sejam feitas sem causar muita tensão
entre os interlocutores. Nesse caso, o autor desqualifica enunciados já-ditos, portanto, é
uma marca do movimento dialógico de distanciamento, ironizando a situação caótica
em que a sociedade capitalista e neoliberal se encontra, por meio da representação de
um taxista que ganha sua vida “parado”. A ironia, como marca de heterogeneidade
discursiva, também se faz presente no próprio título, “Parados”, porque a cena recriada
– um táxi parado no engarrafamento – acentua o valor positivo de se parar para pensar
sobre a vida. Por conseguinte, as personagens não estavam paradas, mas sim,
estabeleceram um movimento de reflexão sobre a própria vida.
Há um jogo de sentidos que constroem a orientação axiológica , nos levando a
afirmar que a finalidade discursiva se orienta para a reflexão do interlocutor, via
provocação do riso. Em outras palavras, o cronista, ao mobilizar a ironia, não o faz
apenas para instituir o humor, mas o faz também para levar o leitor a uma reflexão e
análise sobre as relações humanas. No caso específico de “Parados”, faz-se uma
reflexão sobre o que é realmente importante em nossas vidas. Desse modo, entendemos,
especificamente nessa crônica, que a ironia perpassa toda a crônica, pois ao criar uma
cena em que a personagem taxista consegue a adesão do passageiro para ficarem
parados, sugere-se, ironicamente, que existe algo de errado nesse modo frenético de se
viver .
Análise da Crônica “Mordiscar não é morder”
Em “Mordiscar não é morder”, publicada em 15 de junho de 2008, portanto, três
dias após o dia dos namorados no Brasil, LFV aborda as relações amorosas.
A crônica é iniciada com um narrador falando sobre os inimigos do amor,
emitindo comentários sobre as condições necessárias para um bom relacionamento
amoroso entre os casais e apontando que o tempo é um fator de desgate nos
relacionamentos. Para ilustrar tais comentários, é iniciada, na crônica, uma narrativa
contando a história do casal Odivar e Leonor que, após um tempo depois do namoro e
do casamento, encontram-se na delegacia: “[…] O Odivar com uma orelha sangrando, a
Leonor com um hematoma no rosto onde o cotovelo do Odivar a acertara”.
Essa crônica pode ser considerada uma reação-resposta ao que nossa sociedade
neoliberal comemora como “O Dia dos Namorados”, em 12 de junho, ironizando
enunciados dessa atualidade (o já-dito), como, por exemplo, “casados são eternos
namorados”. Aqui, verificamos o movimento dialógico de distanciamento, pois vemos
uma desqualificação da voz a qual o autor se opõe (que são enunciados já-ditos, como
“casados são eternos namorados”). Em sua visão, o amor possui inimigos e sofre
deformações pela ação do ódio, do tédio, do desequilíbrio; sofre as consequências de
enfraquecimento pela ação do tempo, do mau hálito, da falta de senso de proporção, da
falta de equilíbrio, do descontrole.
O amor, sabem todos, tem muito inimigos. O mau hálito, por exemplo
[...]
O amor também requer, para ser perfeito, um senso de proporção. Pouco amor não é amor, é
amizade ou apenas simpatia. Amor demais pode virar obsessão ou tara. O verdadeiro amor está
no equilíbrio. Mas como reconhecer esse equilíbrio ideal? Como mantê-lo, através dos anos,
evitando que despenque para um simples convívio resignado ou evolua para a loucura e o crime
passional? O descontrole também é um dos inimigos do amor.
O início da crônica é construído por meio de sete parágrafos com comentários
afirmativos sobre o tema em questão: os inimigos do amor. Há um suposto diálogo entre
as personagens shakespeareanas Romeu e Julieta (ícones do amor universal), caso
Romeu tivesse mau hálito. No sétimo parágrafo, há o comentário do narrador sobre as
condições necessárias para um bom relacionamento amoroso. Em seguida, inicia-se uma
narrativa curta, ágil, com predomínio do diálogo, apresentando os elementos básicos da
narrativa (fatos, personagens, tempo e lugar), organizados na estrutura básica da
narrativa: um momento de harmonia em que as personagens são apresentadas em um
tempo e espaço; um conflito que surge para desequilibrar a situação inicial; um
momento máximo de tensão (clímax) e, por fim, a resolução do conflito.
Observamos a manifestação do movimento dialógico de distanciamento de
vozes, pelo uso da ironia, traço discursivo já explicado anteriormente. O narrador ao
trazer para o texto a voz da literatura quando cita a maior história de amor de todos os
tempos – Romeu e Julieta – o faz de modo subversivo. Em uma das falas usa linguagem
rebuscada, erudita “- Meus lábios são dois peregrinos rubicundos que buscam o
santuário dos seus...”; e, em seguida, traz a linguagem oral, fazendo uso de gíria “- Pô,
Julieta!”. Essa estratégia discursiva dá à crônica o tom de humor e ironia.
Já, o movimento dialógico de engajamento com o leitor pode ser observado no
início da crônica, com o uso da primeira pessoa do plural: “O amor, sabem todos, tem
muito inimigos”. Nesse contexto, o termo em destaque é uma marca linguística que
convoca o leitor e coloca leitor e narrador compartilhando dos mesmos conhecimentos,
do mesmo ponto de vista. O uso de verbos na primeira pessoa do plural como em
“Tomemos o caso” também acarreta o efeito de sentido de engajamento do leitor no
texto.
Outra materialização do movimento dialógico de engajamento do leitor pode ser
verificada no trecho: “Mas como reconhecer esse equilíbrio ideal? Como mantê-lo,
através dos anos, evitando que despenque para um simples convívio resignado ou
evolua para a loucura ou o crime passional?”. O uso de perguntas retóricas pelo
narrador funciona como uma forma de antecipar um possível questionamento do leitor.
As respostas a essas perguntas vêm com o comentário: “E o descontrole também é um
dos inimigos do amor” e a narrativa que conta o caso do casal Odivar e Leonor.
Uma estratégia discursiva-argumentativa mais explorada nessa crônica se
comparada à anterior é a figura do narrador em terceira pessoa. Já no início da narrativa,
esse narrador constrói a orientação axiológica que pretende de seu leitor, elegendo a
perspectiva de Leonor para narrar os fatos: “Uma coisa que Leonor fazia e que deixava
o Odivar todo arrepiado era mordiscar a sua orelha”. Parece-nos que esse movimento
dialógico com o leitor configura-se como uma interpelação a sua reação-resposta, pois o
narrador deseja persuadi-lo sobre a inocência de Leonor a respeito de seu descontrole,
ao ter mordido a orelha do marido até sangrar.
Há certas características estilístico-composionais que sugerem esse desejo do
narrador, marcado na crônica com o uso de expressões temporais (advérbios ou orações
adverbias), que circunscrevem na linha cronológica do tempo transcorrido do namoro ao
casamento a deformação do amor; e a utilização de expressões ampliadoras de sentido
entre hífens: “Começara durante o namoro.(...) Mesmo depois de casado, ficava
arrepiado. Até que – o tempo sendo, também, um terrível inimigo do amor –
começou a não ficar.” Além dessas marcas, o uso do operador argumentativo mas
também é indício dessa interpelação ao leitor: “Tinha uma: ele não ficava mais todo
arrepiado, como antes. Mas isso Odivar não disse.”
Quando a personagem do delegado diz “Não mordisque mais, dona Leonor”, por
meio de uma ordem negativa e de um tom irônico, e na resposta de aceitação dessa
ordem, por parte da personagem Leonor: ”Nunca mais”, temos o movimento dialógico
de distanciamento de vozes. São enunciados que perpassam nossa sociedade,
principalmente as presentes na mídia de marketing sobre a comemoração do “Dia dos
Namorados”, que vendem uma visão “adocicada” e “romanesca” da relação amorosa.
Na cena recriada na delegacia, a mulher ao admitir seu descontrole e assumir perante
essa autoridade que “nunca mais” mordiscará a orelha de seu marido, o autor
desqualifica essa visão idealizada de um relacionamento amoroso, e ao mesmo tempo,
dialogizando com o leitor, mais uma vez o interpela sobre o seu ponto de vista: o amor
tem muitos inimigos.
O humor recai nessa crônica pela caricatura exagerada, representada na cena de
marido e mulher adentrando a delegacia: “O Odivar com uma orelha sangrando, a
Leonor com um hematoma no rosto onde o cotovelo de Odivar a acertara.”
A ironia, como marca de heterogeneidade discursiva mostrada, materializa-se na
última oração do texto: “outro inimigo do amor é a semântica”, sugerindo que o que
está em jogo não é uma diferença semântica, mas a deformação do amor na relação
marido-mulher.
Considerações Finais
Após o estudo realizado do corpus, ressaltamos que o papel social assumido pelo
cronista é o de divertir seu leitor, provocar primeiramente seu riso e depois sua reflexão.
Portanto, não cai nem na banalidade e nem no superficialismo barato. Revela ser um
conhecedor da “alma do povo brasileiro”, como é reconhecido socialmente, pois brinca
com o assunto sem deixar de abordá-lo de uma maneira envolvente e profunda.
O papel social do leitor revelado discursivamente é aquele que, por não se
contentar apenas com a informação, quer sobre ela refletir, e por isso busca outras
opiniões que com as suas dialoguem. Nesse âmbito, as crônicas têm um público
específico, determinado pelo enunciado, não só quanto a sua maior ou menor
complexidade, mas, ainda, pelas temáticas variadas de que trata e que demandam tal
diversidade de conhecimentos.
Como afirmamos, na crônica, o tom humorístico, irônico e despretensioso do
autor funciona como o lugar do estabelecimento e da ancoragem da entonação do
gênero (um tom autorizado) e da sua atitude valorativa. Dessa forma, o uso da ironia
revela discursivamente uma atitude ousada do autor, uma vez ser símbolo do risco que
ele se dispõe a correr na defesa de seus pontos de vista, ou ainda na intenção de
despertar criticamente o leitor, prevendo um leitor não apenas desejoso de com ele
interagir, mas suficientemente competente para fazê-lo.
Pela análise empreendida, verificamos que as relações dialógicas com outros
enunciados (os já-ditos e os pré-figurados) colaboram na construção dos efeitos de
sentidos das crônicas, compondo estratégias de valorações apreciativas nos textos.
Entendemos que o estudo do contexto de produção do gênero em foco é condição
necessária para a produção de sentidos ao discurso materializado nos textos. Sendo
assim, essa análise de nível sociológico dos textos parece ser fundamental para a
formação do professor de língua materna.
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Anexo 1
Parados
Entrou no táxi parado no ponto e pediu:
- Rua tal, número tal.
O motorista virou-se para encará-lo e perguntou:
- Tem certeza?
- Como, "tem certeza"? Tenho sim. Vamos lá.
- O senhor sabe como está o trânsito naquela zona?
- Muito ruim, é?
- Péssimo. E não é só naquela zona. É em toda a cidade. Tudo parado.
- Eu sei, eu sei. Mas eu preciso ir.
- Precisa mesmo?
- Olha aqui, meu amigo, se você não quer me levar...
- Não, pense bem. Precisa mesmo? Certeza absoluta?
- Claro. Tenho uma reunião importantíssima.
- Importantíssima?
- Bom... Importante.
- Importante?
- Está certo. Não é questão de vida ou morte. Pensando bem, nada é uma questão de vida ou
morte. A não ser a morte.
- E a vida.
- Como assim?
- A única coisa vital da nossa vida é a nossa vida. O senhor concorda?
- Não sei se eu...
- Tome o seu caso. Correndo para ir a uma reunião importante que não é tão importante assim.
Enfrentando trânsito que não anda, se irritando, enfim, se matando. Transformando uma questão
que não é vital numa questão de vida e morte. É ou não é?
- É, mas...
- Eu sei. O senhor precisa ganhar dinheiro. Tem que sustentar a família. É casado?
- Estou me separando...
- Então. Precisa de dinheiro. Eu também. Não posso ficar parado. Mas o dinheiro não compra
vida. Pelo contrário, a gente gasta vida para ter dinheiro. É uma troca em que sempre se sai
perdendo. Qual foi o problema?
- Como?
- A separação.
- Ah. Pois é. Foi isso. Eu vivo irritado com essa loucura toda, ela vive irritada, nós acabamos só
nos irritando mais um ao outro. Mas foi ela que quis se separar.
- E não tem jeito mesmo?
- Sei lá. Por mim, teria. Mas ela diz que eu não consigo me desligar do meu trabalho e das
minhas preocupações. Que eu estou sempre ligado, que viver comigo é como viver com uma
caixa 24 horas.
- Faça o seguinte. Quando chegar em casa hoje, gire um botão imaginário, ou torça o seu
próprio nariz, e diga que está se desligando. Que nada é mais importante na sua vida do que o
amor dela, e do que ficar com ela.
- É, pode dar certo.
- Eu sei que vai dar.
- De onde você tirou tanta sabedoria?
- Dos engarrafamentos. Trancados no trânsito o dia inteiro, temos duas opções. Ou nos
transformamos em neuróticos com fantasias assassinas, ou aproveitarmos o tempo parado para
filosofar. Eu escolhi a filosofia.
- Talvez você possa me ajudar com outro problema...
- Só um instante. Se o senhor não se importar, vou ligar o taxímetro durante a sessão.
- Tudo bem.
In: O Estado de S. Paulo, 18/05/2008.
Anexo 2
Mordiscar não é morder
O amor, sabem todos, tem muito inimigos. O mau hálito, por exemplo. A maior história de amor
de todos os tempos teria sido outra se Romeu tivesse mau hálito, e nem toda a poesia de
Shakespeare o ajudaria.
- Meus lábios são dois peregrinos rubicundos que buscam o santuário dos seus...
- Terão eles queixa se eu lhes oferecer, em troca...
- O quê?
- Uma bochecha?
- Pô, Julieta!
O amor também requer, para ser perfeito, um senso de proporção. Pouco amor não é amor, é
amizade ou apenas simpatia. Amor demais pode virar obsessão ou tara. O verdadeiro amor está
no equilíbrio. Mas como reconhecer esse equilíbrio ideal? Como mantê-lo, através dos anos,
evitando que despenque para um simples convívio resignado ou evolua para a loucura e o crime
passional? O descontrole também é um dos inimigos do amor.
Tomemos o caso do Odivar e da Leonor. Ele representante farmacêutico, ela funcionária
pública. Uma coisa que a Leonor fazia e que deixava o Odivar todo arrepiado era mordiscar a
sua orelha. Começara durante o namoro. Primeiro no cinema, no escuro. Depois, com o namoro
assumido, em qualquer lugar. Volta e meia a Leonor mordiscava a orelha de Odivar. Às vezes
fazia "rmm, rmm", grunhia como um cachorrinho, para acompanhar a mordiscada, mas quase
sempre era em silêncio. Leonor puxava o lóbulo da orelha do Odivar com os dentes e Odivar
ficava todo arrepiado. Mesmo depois de casado, ficava arrepiado. Até que - o tempo sendo,
também, um terrível inimigo do amor - começou a não ficar. E um dia...
Quando entraram na delegacia, o quadro era o seguinte. O Odivar com uma orelha sangrando, a
Leonor com um hematoma no rosto onde o cotovelo do Odivar a acertara. Os dois falando ao
mesmo tempo, até o delegado mandar que parassem e passar a interrogá-los separadamente.
Começando com a Leonor. O que acontecera?
- Eu estava mordiscando a orelha dele e...
- Mordiscar não é morder! - interrompeu Odivar.
O delegado mandou-o esperar sua vez. E mandou Leonor continuar.
- Eu estava mordiscando a orelha dele, doutor, como sempre faço, e ele me acertou uma
cotovelada. É uma coisa carinhosa que eu faço doutor, e que ele sempre gostou. Mas desta vez
me deu uma cotovelada.
Odivar começou seu depoimento dramaticamente. Mostrando a orelha ensangüentada.
- Eu vou levar pontos! Isto aqui é uma mordiscada? É uma coisa carinhosa? Mordiscar não é
morder! Se eu não tivesse dado a cotovelada ela tinha arrancado a minha orelha!
O delegado filosofou. Mordiscar não é morder, e é. É uma mordida metafórica. Uma mordida
mitigada. Isso. O delegado gostava de "mitigada". A fronteira entre a mordida mitigada e a
mordida real era a fronteira entre o amor e as suas deformações pelo tempo: o ódio, o tédio, o
desequilíbrio. A Leonor tinha alguma razão para morder a orelha do Odivar até sangrar?
- Nenhuma! Nenhuma! - gritou o Odivar.
Tinha uma: ele não ficava mais todo arrepiado, como antes. Mas isso Odivar não disse.
- E então, dona Leonor?
- Não mordi. Mordisquei. E, sei lá, me descontrolei.
- Não mordisque mais, dona Leonor.
- Nunca mais.
Outro inimigo do amor é a semântica.
In: O Estado de S. Paulo, 15/06/2008.