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STRUCHINER, Noel . Posturas Interpretativas e Modelagem Institucional: A Dignidade (Contingente) do Formalismo Jurdico. In: Daniel Sarmento. (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contempornea. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2009, v. , p. -. (No prelo) No reproduzir nem citar sem autorizao do autor.

Posturas Interpretativas e Modelagem Institucional: A Dignidade1 (Contingente) do Formalismo Jurdico Noel Struchiner2

I. Introduo Atualmente no existe um uso pacfico da expresso formalismo jurdico3. Talvez o solo comum entre os tericos do direito, juristas prticos e os cidados de uma maneira geral, resida no fato de que todos concordam que ser taxado de formalista no pode ser considerado um elogio. O uso congratulatrio do adjetivo formalista considerado, nos dias de hoje, um erro lingstico (Schauer, 1988, p.510). Em funo da sua carga emotiva desfavorvel, o termo formalista tornou-se um termo guardachuva, utilizado pelo falante para classificar qualquer sistema jurdico, teoria jurdica, deciso jurdica, ou estilo de pensamento jurdico com o qual no concorda. Remando contra a mar, o presente artigo visa a resgatar a dignidade do formalismo. Para tanto, necessrio oferecer uma definio mais robusta do que significa ser formalista, para depois destacar as suas virtudes. S assim o termo deixa de ser um rtulo vazio de contedo, cuja nica funo operar como um carimbo que diz: Rejeitado!.

O termo dignidade inspirado no livro de Jeremy Waldron, The Dignity of Legislation, cujo objetivo, pelo menos um dos principais, resgatar a dignidade da legislao, fornecendo atividade legislativa o mesmo tipo de ateno e cuidado que tm sido dispensados atividade judiciria. Uma razo adicional para o uso do termo dignidade no ttulo que no mbito da teoria do direito brasileira tal expresso, junto com outra igualmente pop e que freqentemente a acompanha o termo princpio tem sido um dos termos mais usados e abusados por aqueles que se caracterizam justamente por no serem formalistas. Nos dias de hoje, qualquer coisa um princpio e um princpio serve para qualquer coisa, principalmente o princpio da dignidade da pessoa humana. A ironia do ttulo associar a palavra dignidade, termo de guerra dos particularistas (principais opositores dos formalistas), expresso formalismo jurdico. O objetivo sugerir, para comprovar no presente artigo, que existe algum mrito ou algum aspecto do conceito de justia sendo realizado quando somos formalistas em certas ocasies. Os particularistas se esquecem das virtudes do formalismo e, ao se esquecerem delas, ignoram aspectos importantes da justia. Isto posto, reconheo que um ttulo que carece de uma nota de rodap explicativa to espaosa, talvez no seja to bom e a explicao mastigada faz com que ele perca metade da sua graa. 2 Professor Adjunto do Departamento de Teoria do Direito da UFRJ. Agradeo FUJB, FAPERJ, ao MCT/CNPq e CAPES pelo apoio financeiro. A ltima Instituio financiou o meu doutorado sanduche junto ao Professor Frederick Schauer, um dos principais defensores do formalismo moderado (que ele chama de positivismo presumido), com quem aprendi boa parte das coisas que escrevo aqui. Agradeo ainda ao Professor Danilo Marcondes de Souza Filho, com quem tenho podido debater e desenvolver vrios pontos do presente artigo, e aos amigos Diego Werneck Arguelhes, Fernando Leal e Isabela Rossi, pela leitura atenta e pelas sugestes oferecidas. 3 Ver o verbete formalismo jurdico (Struchiner, 2006) no Dicionrio de Filosofia do Direito.

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STRUCHINER, Noel . Posturas Interpretativas e Modelagem Institucional: A Dignidade (Contingente) do Formalismo Jurdico. In: Daniel Sarmento. (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contempornea. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2009, v. , p. -. (No prelo) No reproduzir nem citar sem autorizao do autor.

Dessa forma, ofereo desde j a definio de formalismo4 que ser trabalhada ao longo do artigo. O formalismo a defesa de uma atitude ou disposio interpretativa segundo a qual o texto de uma formulao normativa, ou melhor, o texto da totalidade de formulaes normativas deve ser levado a srio pelos responsveis pela tomada de decises jurdicas. Tal defesa deriva da crena de que em certos cenrios ou ambientes de tomada de deciso a no-observncia das regras poderia ser mais prejudicial do que sua observncia, mesmo atentando para o fato de que regras, em funo de sua natureza como generalizaes prescritivas probabilsticas, so sempre imperfeitas, ou infelizes, na medida em que invariavelmente no so capazes de realizar as suas prprias justificaes. Trata-se, portanto, de um argumento substancialmente, mas no exclusivamente, conseqencialista a favor de um perfeccionismo de segunda ordem5 (Sunstein, 2007 e Sunstein e Vermeule, 2003). Reconhece-se que um cenrio de tomada de decises baseado em regras sempre subtimo quando comparado com um mundo alternativo ideal no qual as regras possam ser corrigidas, derrotadas ou afastadas na medida em que no sejam capazes de gerar o melhor resultado do ponto de vista moral, ou seja, o resultado mais justo. Entretanto, como no vivemos em um mundo ideal, como no nosso mundo h certos contextos em que a existncia de regras determinadas e a sua observao rigorosa so mais benficas do que um mundo possvel alternativo no qual as pessoas podem desconsiderar as regras ou trabalhar diretamente com aquilo que elas consideram como sendo a totalidade de razes relevantes, com o universo moral ou poltico na sua inteireza, ento um modelo de regras que devemos adotar. Ao longo do artigo, sero discutidos os pressupostos lingsticos do formalismo, o que so regras e como as mesmas invariavelmente se mostram infelizesWalter Sinnott-Armstrong (2000) fornece indicaes interessantes sobre o que seria ser formalista no mbito exclusivo da discusso sobre direitos constitucionais moralmente carregados. Diante de normas constitucionais apresentadas em uma linguagem moral, ser formalista deixar de utilizar a sua concepo moral subjetiva em troca da viso moral positiva dos legisladores originais ou da moral convencional da sociedade contempornea, mesmo em situaes em que o responsvel pela deciso acredita que uma ou outra esteja errada enquanto a sua a correta. Sinnott-Armstrong (2000), atentando para o fato de que Cortes Constitucionais so, entre outras coisas, mecanismos de proteo de direitos das minorias e que a aplicao reiterada seja da vontade da maioria dos legisladores, seja da maioria dos cidados pode funcionar como um obstculo para a proteo dos direitos das minorias, passa ento a discutir em que cenrios os juzes devem ou no abrir mo da sua prpria concepo moral na aplicao de direitos constitucionais fornecidos em uma roupagem moral (Sinnott-Armstrong, 2000). 5 Sobre estratgias de segunda ordem, ver, tambm nesta coletnea, o trabalho de Fernando Leal e Diego Werneck Arguelhes: Pragmatismo como [Meta]Teoria Normativa da Deciso Judicial: Caracterizao, Estratgias e Implicaes.4

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(sobreinclusivas ou subinclusivas) em determinadas ocasies. Com base nessa anlise, ser defendida a posio de que, ainda assim, uma leitura mais prxima da superfcie das regras por parte daqueles que devem aplic-las isto , uma fidelidade ao significado convencional associado ao texto da regra uma boa coisa em certos cenrios de tomada de decises. Por trs de toda a empreitada aqui proposta reside a idia de que o formalismo jurdico no uma necessidade lgica derivada da natureza ou essncia do direito, mas sim uma opo prescritiva consciente por um modelo de tomada de decises, dentro de um ambiente onde as escolhas poderiam ter sido outras. As virtudes do formalismo saltam aos olhos na medida em que o comparamos com a adeso a uma postura oposta, que defende modelos de tomada de decises de carter mais particularista. justamente quando percebemos os problemas de implementar o particularismo em um mundo no ideal, constitudo por instituies que atuam sob condies de incerteza e, portanto com uma racionalidade circunscrita, que percebemos os mritos do formalismo enquanto a tentativa de realizar um perfeccionismo de segunda ordem.

II. Consideraes sobre a Linguagem e Prticas Sociais

Vejamos os seguintes exemplos: 1. Assim que chego casa, minha mulher, que est na sala, diz: Amor, tem uma barata no nosso quarto. Ao dizer isso, ela no est me informando que tem uma barata no nosso quarto, mas sim me dando uma ordem para que eu v at l e mate a barata. A fora ilocucionria6 de tal proferimento certamente diretiva, no obstante a linguagem utilizada ser informativa ou constatativa.De acordo com a teoria dos atos de fala de J. L. Austin (2005), dizer algo fazer algo. Para ser mais exato, todo proferimento lingstico, em um determinado contexto de comunicao, compreende o engajamento com diversas atividades. O ato de fala engloba o ato locucionrio, o ato ilocucionrio e o ato perlocucionrio. O ato locucionrio o ato de dizer algo. O ato ilocucionrio o ato levado a cabo ao dizer algo. Finalmente, o ato perlocucionrio o ato que levamos a cabo porque dizemos algo, isto , o ato de causar ou fazer acontecer alguma coisa porque se disse algo. Assim, quando certos agentes normativos realizam certos proferimentos, em certas circunstncias e seguindo certos procedimentos, realizam no s atos locucionrios, mas tambm atos ilocucionrios e perlocucionrios. Quando um policial diz: eu quero ver a sua habilitao, ele est dizendo que quer ver o documento, ele est ordenando algo (ele no est descrevendo a sua vontade, nem meramente fazendo uma sugesto) e est produzindo certos efeitos, como, por exemplo, o comportamento conforme a ordem ou a tentativa de fuga do sujeito passivo da ordem. O que fica evidenciado a partir da teoria dos atos de fala que o valor de verdade - verdade ou falsidade - no mais o nico critrio de avaliao da linguagem. O que importa so as condies de felicidade do proferimento lingstico. Proferimentos que possuem uma dimenso6

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2. O mesmo ocorre quando algum sentado mesa de jantar fala para a pessoa sentada ao seu lado: "Voc consegue alcanar o sal? Se a resposta fosse sim, mas o comportamento de passar o sal no acompanhasse a resposta, estaramos diante de uma situao bizarra. Mais uma vez, a fora ilocucionria do proferimento no garantida ou extrada da forma como a linguagem se apresenta. 3. Saindo do local onde trabalho, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, peguei o metr e notei duas placas diferentes: " proibido fumar" (claramente uma regra, apesar da sua linguagem informativa) e "Sorria. Voc est sendo filmado". Obviamente, no esperado que voc de fato sorria para a cmera. Trata-se de um jeito simptico de informar que algum est de olho em voc, e se voc est pensando em fazer algo de errado, a sentena sorria, voc est sendo filmado uma diretiva que pode ser traduzida como no faa nada de errado. Certamente, a ltima coisa que interessa se voc est sorrindo ou no. Se fizer algo de errado sorrindo, voc no vai se livrar ou atenuar as conseqncias do seu ato alegando que estava agindo de acordo com o que estava escrito. 4. A linguagem socialmente construda, assim como uma srie de coisas que so feitas com a linguagem. Searle (1997) costuma dar como exemplo de algo socialmente construdo o valor do dinheiro. No existe nada em termos de propriedades das notas de papel que confira o seu valor: o seu formato, o seu cheiro, a sua cor, a sua textura... Nada disso capaz de explicar, por si s, o valor do dinheiro. No livro The Construction of Social Reality (1997), Searle fala sobre a existncia de regras constitutivas. Certos fatos sociais s existem e podem ser explicados em funo de atitudes, de prticas de reconhecimento, de convenes. Dinheiro, linguagem e direito no so como nuvens, rochas e montanhas; so fatos sociais e no tipos naturais ou fatos brutos, e por isso dependem de algo externo, de comportamentos, atitudes, posturas. 5. Aproveitando o ponto anterior e caminhando mais na direo de exemplos prprios da teoria e filosofia do direito, temos, como exemplo paradigmtico de uma tentativa de explicar a existncia do direito, a regra de reconhecimento hartiana. A regra de reconhecimento (Hart, 1998) nada mais do que um conjunto de prticas sociais deilocucionria constatativa sero bem sucedidos na medida em que forem verdadeiros ou falsos. Porm, proferimentos normativos tpicos do mbito jurdico sero felizes quando forem entendidos como normas e levarem aos efeitos desejados, mostrando que o sucesso dever ocorrer tanto na dimenso ilocucionria quanto na dimenso perlocucionria.

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reconhecimento levadas a cabo por aqueles que esto inseridos na prtica jurdica, quando tm de identificar o que conta como direito vlido. a atitude ou disposio para adotar a Constituio Federativa do Brasil, do ponto de vista interno, como ponto de partida para reconhecer e identificar o direito, que explica a sua prpria existncia. Eu poderia, agora mesmo, tentar proferir uma nova constituio do Brasil. Eu poderia dar o ttulo de Constituio do Brasil de 2008. A linguagem encontrada nesta Constituio poderia colocar as suas prprias condies de existncia. O ponto que a fora normativa no vem da linguagem, mas vem de fora da mesma. O que faz com que a Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 88 seja a constituio no o fato de ela estabelecer as suas prprias condies de validade, mas sim o fato de que existe uma aceitao social, uma prtica convergente no sentido de encar-la como a norma suprema, enquanto o documento elaborado por mim, embora pudesse ser lgica e tecnicamente impecvel, simplesmente no seria reconhecido pelas pessoas inseridas na prtica jurdica, nem mesmo pelo seu autor, como sendo a norma maior. Porm, se os fatos sociais mudassem, se os cidados de uma maneira geral, os oficiais, os juristas prticos e os tericos do direito deixassem de lado a Constituio Federativa do Brasil de 88 e comeassem a procurar sistematicamente o direito a partir da Constituio confeccionada por mim, isto seria um sinal no s de uma mudana na regra de reconhecimento, mas de uma mudana no prprio direito (adaptao de um exemplo colocado por Schauer, 1995, p.152-153). 6. Finalmente, o ltimo exemplo trata da histria encontrada no Talmude, a Tor Oral do povo judeu, que narra uma discusso envolvendo o rabino Eliezer e outros rabinos sobre se um determinado forno, o forno de Akhnai (forno das serpentes), era do tipo que necessitava ser purificado ou no7 (Baba Metzia, 59b). A maioria dos rabinos disse que sim e o rabino Eliezer disse que no, oferecendo uma resposta a cada um dos argumentos contrrios com os quais se deparou. Como os outros rabinos no foram persuadidos, Eliezer ento invocou uma srie de milagres para comprovar o seu parecer. Disse Eliezer : Se a Tor est de acordo com a minha opinio, que a carobeira o demonstre. O arbusto se deslocou sessenta metros. Entretanto, seus colegas disseramSobre a histria do forno de Akhnai e como ela pode ser aproveitada para trabalhar uma srie de temas de teoria do direito, ver: o verbete Authority no Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy (Shapiro, 2004), o artigo The Coiled Serpent of Argument: Reason, Authority, and Law in a Talmudic Tale (Luban, 2004) e o artigo Is the Rule of Recognition a Rule? (Sebok, 1997).7

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que no aceitavam o acontecido como uma prova da veracidade de seu argumento. Eliezer ento rebateu: Se a Tor est de acordo com minha opinio, que a gua da fonte o demonstre. A gua ento inverteu seu curso. Novamente os seus colegas rejeitaram a inverso da correnteza como prova de que a sua interpretao da Lei era a correta. Nova tentativa de Eliezer: Se a Tor est de acordo com minha opinio, que as paredes deste Beit Midrash (casa de estudo) o demonstrem. As paredes comearam a inclinar-se. O rabino Yehoshua apoiou-se contra as paredes e disse : Quando estudiosos se engajam em uma disputa sobre a Lei, o que vocs tm a ver com isso? As paredes pararam onde estavam. Finalmente, esgotado e desapontado com a falta de vontade dos rabinos de aceitarem o seu ponto de vista, que alm de contar com argumentos, contava tambm com o apoio de milagres, o rabino Eliezer resolveu ser mais explcito e recorreu ao prprio Deus. Ele disse: Se a Tor est de acordo com minha opinio, que os cus se pronunciem. Uma voz celestial e divina (Bat-Qol) disse : Por que vocs no acatam a palavra de Eliezer, que sempre tem razo quando interpreta a Tor? Levantou-se, ento, o rabino Yehoshua e disse, citando uma passagem bblica: A Tor no est no cu (Deuteronmio 30:12). E o rabino Yirmiyah explicou a afirmao dizendo que uma vez que Deus deu a Tor a Moiss no Monte Sinai, nenhuma voz divina pode dizer ou interferir em questes legais8. O que esse rol de exemplos demonstra que o significado e a fora de um proferimento lingstico no podem ser reduzidos sua forma de apresentao. Da mesma maneira, o direito e outras prticas socialmente construdas, prticas estas constitudas lingisticamente e inseridas na linguagem, tambm tm o seu significado, a sua fora e at mesmo a sua existncia constitudos por disposies, atitudes e convenes que so externas prpria manifestao formalizada daquela prtica9. verdade que em uma cultura que leva a forma da linguagem a srio, a mesma faz diferena. Mas isso s corrobora o argumento de que a fora de um enunciado lingstico depende de certas posturas e atitudes externas prpria maneira como a linguagem se apresenta.

De acordo com a histria, o que Deus fez naquele momento foi sorrir e dizer: Vocs me venceram, filhos, vocs me venceram, filhos! 9 Nesse mesmo sentido, ver, alm dos j mencionados autores (Austin, Hart e Searle), Grice (1991) e Wittgenstein (1996).

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possvel caracterizar o direito, mesmo que no exaustivamente, como um conjunto ou sistema de proferimentos lingsticos, escritos ou no, com pretenses normativas. O direito pretende canalizar condutas, exercer uma presso no mundo. Entretanto, s ter essa pretenso realizada na medida em que as pessoas que lidam com esses proferimentos adotem certas posturas ou atitudes. um fato que as pretensas regras jurdicas so generalizaes probabilsticas em relao as suas consideraes subjacentes, propsitos ou justificativas. As regras, por serem gerais e por serem instanciaes simplificadas dos propsitos que pretendem alcanar, acabam sendo atualmente ou potencialmente sobreinclusivas ou subinclusivas. A sobreincluso ou subincluso das regras torna a prtica jurdica um campo de escolhas e nesse cenrio podemos destacar uma srie de modelos de tomada de decises que se diferenciam em funo da maneira pela qual lidam com o fenmeno da sobre e subincluso. Afinal, como trabalhar com o direito, com o chamado material normativo bruto, quando o mesmo incorpora mais coisas do que deveria incorporar de acordo com as razes que informaram a sua construo ou quando o mesmo deixa de incorporar casos que os seus propsitos certamente englobariam? Afinal, qual o grau de seriedade que deve ser conferido linguagem por meio da qual o direito se manifesta10?

III. Regras Infelizes

Vejamos como isso se traduz no caso de exemplos jurdicos especficos: Alguns anos atrs, mais especificamente, em 13 de julho de 2001, o Prefeito do Rio de Janeiro, Cesar Maia, criou o Decreto 20225, dispondo sobre os usos e atividades na orla martima do municpio, entre outras coisas. Tal decreto deu origem ao chamado Manual da Praia, uma cartilha explicando os direitos e deveres necessrios para ajudar a Cidade a manter a praia limpa e segura, amplamente distribudo nas praias do Rio deNesse sentido, o caso do forno de Akhnai descrito acima bastante ilustrativo. De acordo com os adversrios do rabino Eliezer, a Tor foi dada e entrincheirada no Monte Sinai. Trata-se, portanto, de uma vvida instanciao de uma justificao que ganha independncia e fecha o acesso sua prpria justificao. Em outras palavras, a justificativa para a Tor possibilitar o conhecimento dos mandamentos de Deus e seu seguimento por seus destinatrios. Entretanto, depois que as Leis de Deus se institucionalizam em um documento formal, toda deciso legal deve ser tomada apenas com base no raciocnio humano e na deduo lgica, partindo do texto legal, mesmo que o prprio Deus venha a dizer que fazer isso no seguir os seus mandamentos. importante perceber que isso uma opo prescritiva feita pelos rabinos sobre como encarar a prtica de interpretao da Tor. A escolha poderia ter sido outra. A questo que ser enfrentada no presente artigo por que ter uma atitude interpretativa mais prxima do rabino Eliezer ou dos outros rabinos.10

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Janeiro. Uma das regras l contidas estabelece que vedada na beira da gua, a prtica do denominado frescobol nas praias do municpio, no horrio compreendido entre oito e dezesseis horas, aos sbados, domingos e feriados, nos meses de dezembro, janeiro, fevereiro e maro. A regra, que tem como escopo preservar a segurana fsica dos banhistas e freqentadores da praia em geral, subinclusiva, na medida em que no incorpora outros esportes ou jogos que tambm poderiam causar acidentes, como uma pelada ou a prtica do altinho (uma espcie de embaixadinha, praticada em grupo), que rapidamente virou moda depois que a prtica do frescobol foi cerceada. Passemos para um caso de sobreincluso. O manual da praia determina que nos domingos e feriados as pistas fiquem fechadas para o trfego de veculos11. Podemos imaginar vrias razes para existncia desta regra, como evitar a poluio e preservar a segurana dos que passeiam pela pista. Porm, por trs da exigncia de limpeza e segurana, possvel atribuir regra um propsito ainda mais bsico: maximizar o prazer dos cidados que freqentam as praias do municpio. Em 2002 a seleo brasileira de futebol ganhou a Copa do Mundo, vencendo a Alemanha na final. O retorno da seleo se deu numa tera-feira, e os jogadores desfilaram pela orla do Rio de Janeiro em um trio eltrico. Agora imagine a seguinte situao contraftica, o seguinte mundo possvel: imagine que o retorno da seleo tivesse ocorrido no domingo ou em algum feriado. A prefeitura, responsvel pela existncia do manual da praia, da mesma forma que aconteceu na tera-feira 02/07/2002, contrata um trio eltrico para passar pela orla para que os jogadores possam ser reverenciados e festejados pelos cidados. O trio eltrico que carrega os jogadores nitidamente um veculo que est passando na pista no domingo. A passagem do caminho vai deixar a praia suja e nada impede que algum saia machucado na ocasio. Porm, certamente o que maximizaria o prazer dos que freqentam a praia seria ver os seus heris passando. A regra sobreinclusiva, j que incorpora mais casos do que deveria de acordo com o seu propsito mais bsico. O direito, por meio de suas normas, projeta as suas generalizaes do passado para o futuro. Quando um determinado caso novo aparece dentro dos contornos lingsticos da regra, mas fora dos seus propsitos subjacentes, surge a questo sobre como lidar com o fato de que as nossas decises de ontem no so adequadas paraTrata-se da melhor verso carioca da regra proibida a entrada de veculos no parque, utilizada por Hart (1998).11

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enfrentar os problemas de hoje12 (Schauer, 1998a). Diferentes modelos de tomada de decises esto disponveis, existindo boas razes para a aceitao e rejeio de cada um deles. Aqui, dois modelos que se encontram em plos opostos sero apresentados e cotejados. A minha percepo a de que a adoo de um ou outro modelo depende de consideraes contextuais e contingentes. A fora normativa das regras jurdicas vem de fora das mesmas. Assim como a compreenso de uma placa na qual figura uma seta envolve certas pressuposies, certas escolhas ou convenes sociais, para que se possa decifrar corretamente a direo representada pela seta, a fora de uma regra nunca conferida pela prpria regra. Assim, o que ser feito aqui investigar quais so as razes que justificam, principalmente do ponto de vista do responsvel por desenhar ou modelar as instituies, as diferentes posturas diante da linguagem do direito. No processo, alguns epifenmenos que brotam da discusso principal sero enfrentados.

IV. Dois Modelos de Tomada de Decises: Particularismo e Formalismo

O primeiro modelo de tomada de decises o modelo particularista. Neste modelo, nenhuma considerao do caso em jogo excluda a priori. Qualquer fato, argumento, ou razo que seja importante ou relevante para alcanar o melhor resultado includo dentro do clculo decisrio. As regras funcionam apenas como sugestes (rules of thumb13). Quando indicam resultados contrrios queles aos quais se chegaria caso se fizesse uma anlise que levasse em considerao todos os fatores relevantes, no necessrio aplic-las. O modelo particularista no s admite a possibilidade de correo, mas clama pela correo da regra sempre que a mesma no capaz de gerar o resultado correto. Deste modo, aquele que toma as decises um alfaiate que pode ajustar aEquacionando o problema em termos da tradicional distino type/token, pode-se dizer que o direito fala, pelo menos na maior parte do tempo, em termos de types e no de tokens. verdade que muitas vezes ficamos em dvida sobre o pertencimento de um determinado token a um determinado type. Quando isso acontece, normalmente estamos diante de um caso de indeterminao lingstica, como a vagueza, textura aberta, ambigidade ou qualquer outro tipo de intoxicao semntica. Entretanto, no esse o problema que interessa aqui. A questo que ser tratada o que fazer diante das situaes recalcitrantes, em que um determinado token se encontra nitidamente dentro dos contornos de um determinado type, gerando um resultado que no bem-vindo de acordo com os propsitos de quem elegeu aquele type como sendo relevante ou ainda, o que fazer quando o type eleito no abarca um determinado token que deveria, caso fossem levados em conta os propsitos subjacentes escolha do referido type. A constatao de que um caso ou situao recalcitrante pressupe a clareza da linguagem. Sendo assim, o problema da subincluso e da sobreincluso distinto do problema da indeterminao lingstica. 13 Sobre a noo de rules of thumb, ver: Schauer (1998b) e Rawls (1955).12

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linguagem da regra da maneira que desejar. O modelo particularista uma possibilidade enquanto modelo decisrio, porm ilusrio achar que a idia de regra compatvel com um modelo particularista. A prpria noo de regra fica perdida nesse contexto tomado por juzos salomnicos. O modelo particularista, que tambm pode ser apelidado de modelo Spike Lee (Alexander e Schauer, 2007), aquele que clama para que se faa a coisa certa. Dentro desse modelo, a prtica do direito no diferente da tomada de decises morais, em que toda e qualquer razo considerada relevante para se alcanar a deciso correta pode ser invocada. No outro extremo, possvel conceber um modelo radicalmente formalista de tomada de decises. Dentro deste modelo, toma-se uma deciso prvia, por atacado, no sentido de considerar a linguagem da regra o objeto ltimo de referncia dos atos de aplicao normativa. Aqui, as generalizaes e categorias previamente estabelecidas na regra no funcionam como janelas que podem ser abertas todas as vezes em que surge um caso novo, para avaliar quais so os propsitos da regra e se so estes ou outros que devem ser perseguidos naquela ocasio. feita uma opo prvia pelo entrincheiramento da linguagem contida nas regras. O modelo formalista baseado em regras considera que as regras so sempre opacas. As regras direcionam o foco do aplicador ou intrprete, que s pode procurar os fatos considerados relevantes pelas categorias engessadas das regras. Deve-se notar que o formalista que vale a pena estudar e enfrentar no aquele delineado por uma boa parte da literatura jusfilosfica, isto , aquele que acredita que nenhum tipo de intoxicao lingstica capaz de aplacar a linguagem das formulaes normativas. Os formalistas sofisticados no so aqueles que acreditam em um paraso conceitual, onde os conceitos so rgidos, estabelecendo categorias que so aplicadas de uma maneira tudo-ou-nada. A verso caricata dos formalistas os delineia como pessoas que defendem uma concepo ontolgica na qual toda palavra funciona como um tipo natural, mesmo aqueles termos que so radicalmente indeterminados, como certos termos morais, e aqueles termos que, embora possuam um ncleo de certeza, tambm apresentam uma penumbra de dvida diante dos casos fronteirios. Para eles no existiriam casos de penumbra (Hart, 1998). Todavia, o formalista mais instigante aquele, mais honesto e realista, que aceita que nem sempre a linguagem utilizada totalmente clara, livre de indeterminaes. Reconhecendo isso, o formalista aceita,

STRUCHINER, Noel . Posturas Interpretativas e Modelagem Institucional: A Dignidade (Contingente) do Formalismo Jurdico. In: Daniel Sarmento. (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional Contempornea. Rio de Janeiro: Lumen Jris, 2009, v. , p. -. (No prelo) No reproduzir nem citar sem autorizao do autor.

tambm, que nos casos em que a linguagem no determina um nico resultado de forma inequvoca, no existe alternativa seno procurar a fundamentao da soluo em critrios que esto alm das regras14. O formalista sofisticado aquele que est compromissado com o resultado gerado pela regra, isto , pelo significado convencional das categorias empregadas na regra, sempre que ela aponta claramente para uma resposta, mesmo que o resultado seja contrrio quele que seria produzido se fosse aplicada a justificativa da regra ou a totalidade de razes relevantes para a deciso15. O formalista, portanto, ao cristalizar ou entrincheirar as categorias que compem a regra, entende o direito como um domnio limitado de informaes para a tomada de decises (Schauer, 1991b). O direito se distingue de outras esferas normativas na medida em que uma regra de reconhecimento identifica aquilo que conta como direito. O conjunto de regras identificadas como jurdicas pela regra de reconhecimento, sendo entrincheiradas, formam um domnio truncado de informaes para a tomada de decises, excluindo a possibilidade de o direito se confundir com mbitos como a poltica e a moral. O conjunto de decises geradas pela totalidade de generalizaes prescritivas encontradas no direito extensionalmente divergente do conjunto de decises geradas em um mundo jurdico possvel alternativo, onde as justificativas subjacentes s regras realizam todo o trabalho prescritivo. Colocando em outros termos, uma regra jurdica funciona como aquilo que Raz intitula como uma razo protegida (Raz, 1983 e 1999). Afinal, se o direito possui uma pretenso de autoridade, ento ele necessariamente tem que excluir a possibilidade de se levar em conta outras razes que no so razes jurdicas. Uma razo protegida exerce ao mesmo tempo o papel de uma razo primria para a ao e de uma razo secundria, que exclui a possibilidade de se levar em considerao, no clculo decisrio final, outras razes possveis. Sendo o direito, na viso formalista, a totalidade dessas regras que fornecem razes peremptrias, excludentes ou protegidas, ento o sistema jurdico como um todo diferente de outras esferas normativas e exclui a possibilidade de acesso s razes que seriam perfeitamente plausveis em outros mbitos de tomada de decises.

De acordo com Sorensen, diante dos casos de indeterminao, a atividade de descobrir cede espao para a atividade de inventar (Sorensen, 2001). 15 Aqui assumida uma postura segundo a qual possvel que uma regra apresente uma autonomia semntica em relao aos seus propsitos. Se esse no fosse o caso, seria impossvel falar que a regra gera um resultado incompatvel com os resultados que seriam alcanados pela aplicao das suas razes subjacentes.

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Aqui uma comparao pode ser bastante esclarecedora. Imagine uma partida de futebol entre uma equipe cujos torcedores so pessoas pacatas e pacficas e uma equipe tradicionalmente conhecida pelos seus torcedores baderneiros, agressivos e violentos (pense nos hooligans ingleses ou na torcida Mancha Verde). Sempre que ocorresse um jogo configurado dessa maneira, talvez o rbitro, por razes morais conseqencialistas, devesse dar a vitria para o time cuja torcida violenta, tentando, assim, evitar desdobramentos catastrficos. Pense agora que o jogo envolve uma equipe com centenas de torcedores e outra equipe com milhares deles. Fazendo uso de um raciocnio utilitarista, talvez o juiz da partida devesse atribuir a vitria para o time que tem a maior torcida, para maximizar o prazer da maior quantidade de pessoas. O ponto que as regras do futebol fornecem razes excludentes ou protegidas. As regras de futebol tiram da jogada outras razes que seriam consideradas boas razes em contextos diferentes. Para os formalistas, as regras jurdicas desempenham a mesma funo, ao mesmo tempo estabelecendo solues e fechando as portas para a considerao de outras razes que em outras circunstncias seriam bem-vindas. So estes formalistas que identificam os seus principais opositores como sendo os realistas jurdicos norte-americanos (como Jerome Frank e Karl Llwellyn), os adeptos do critical legal studies (como Duncan Kennedy e Roberto Mangabeira Unger), as feministas (como Martha Minow), Dworkin, e os pragmatistas (como Richard Posner16). O que este grupo diverso de pensadores tem em comum defender que o direito no um domnio limitado de informaes para a deciso, ou muito menos limitado do que imaginam os formalistas. Para Dworkin, o domnio dos princpios tambm faz parte do direito. Sendo assim, diante de todo e qualquer caso, a soluo correta, do ponto de vista jurdico, aquela que informada pela melhor leitura moral do direito. Para certos pragmatistas, o direito nada mais seria do que uma arena na qual certas decises so tomadas invocando todas as razes relevantes, sem que nada possa ser excludo a priori. Para algumas verses de feminismo, as decises jurdicas deveriam ser sensveis ao contexto do caso particular e das pessoas envolvidas com ele, e os julgadores deveriam ser capazes de se colocar no lugar do outro, demonstrando e

Para uma anlise da posio mais atual de Posner, que se aproxima do tipo de formalismo descrito aqui, ver o j mencionado trabalho de Fernando Leal e Diego Werneck Arguelhes: Pragmatismo como [Meta]Teoria Normativa da Deciso Judicial: Caracterizao, Estratgias e Implicaes.

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exercitando empatia e uma tica do cuidado17. Para os realistas, os juzes no decidem invocando as regras jurdicas, mas decidem de acordo com fatores extrajurdicos. Em seguida, operando uma racionalizao ex post facto, colocariam essa deciso, que no foi realizada recorrendo ao domnio truncado do direito, em uma roupagem jurdica. De acordo com os realistas, tomar uma deciso e depois traduzi-la em termos jurdicos sempre possvel. como traduzir algo do portugus para o ingls: voc sempre encontra alguma forma de transmitir aquele significado (Schauer, 2004, p.1936). como se o direito fosse um cardpio variado que satisfaz qualquer gosto ou um teste de Rorschach, no qual se projeta livremente qualquer contedo. Finalmente, os adeptos do Critical Legal Studies Movement, os chamados Crits, seguem na esteira dos realistas, afirmando a indeterminao do direito e destacando a sua real dimenso polticoideolgica (Schauer, 2004, p.1925). At aqui ainda no se fez nenhuma considerao normativa sobre qual o melhor modelo de tomada de decises. Por enquanto, a preocupao tem sido nica e exclusivamente apontar, do ponto de vista terico, quais so alguns modelos possveis18. Algumas consideraes normativas sero analisadas agora.

V. Decidindo sobre como Decidir: Levando em Conta as Virtudes do Formalismo

A questo naturalmente a ser formulada neste momento a seguinte: Por que optar por um modelo formalista que exclui de antemo a possibilidade de se alcanar o melhor resultado para cada caso? Os adeptos do modelo formalista aceitam, conscientemente, que a sua opo por entrincheirar regras, que so apenas generalizaes prescritivas probabilsticas, gera, necessariamente, uma certa quantidade

Sobre a abordagem feminista e suas virtudes na resoluo de problemas morais, ver: Gilligan (1993). Sobre a importncia do contexto no campo das decises jurdicas, ver: Minow e Spellman (1990). Uma imagem que captura de uma forma interessante a proposta das feministas o logo do peridico Yale Journal of Law and Feminism. O desenho feito por Jacqueline Coy Charlesworth muda a tradicional imagem da Justia, vendada e carregando uma balana. Na figura alternativa proposta por Charlesworth, a Justia representa pelo desenho de trs mulheres de etnias diferentes, cada uma carregando uma balana e cada uma no ato de retirar a sua venda. O ponto que as decises jurdicas no devem ser cegas, mas devem levar em conta a totalidade da riqueza do contexto e todas as diferenas relevantes ali presentes. Ver: http://www.yale.edu/lawnfem/law&fem.html 18 importante lembrar que o particularismo e o formalismo so dois pontos diametralmente opostos dentro de uma escala que funciona em uma espcie de continuum. Entre as posies mais extremadas, encontramos alguns modelos de tomada de decises mais moderados, como o particularismo sensvel s regras e o positivismo presumido (Schauer, 1998b e Struchiner, 2005).

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de resultados subtimos. O modelo formalista, diferentemente do modelo particularista, um modelo que frustra os responsveis pela tomada de decises, truncando o domnio de elementos que podem ser levados em considerao. Apenas as propriedades destacadas como relevantes nas regras que direcionam as decises. Isso no ocorre no modelo particularista, onde qualquer aspecto considerado importante pode fazer parte do clculo decisrio final. Nas palavras de Schauer: regras condenam o processo de tomada de decises mediocridade exigindo a inacessibilidade da excelncia (Schauer, 1988, p.539). Ento por que aceitar esse pacto de mediocridade? Em um mundo ideal, o modelo particularista seria o melhor modelo possvel, j que permite ao responsvel pela deciso ser totalmente sensvel ao contexto e encontrar a resposta adequada para o caso em questo. As virtudes do modelo Spike Lee saltam aos olhos e no precisam ser discutidas. A sua diretriz simplesmente: faa a coisa certa. Infelizmente, o nosso mundo no um mundo ideal. Os responsveis por decidir no nosso mundo no esto livres de errar19, livres de ser ignorantes e livres de abusar do poder por motivaes pessoais. claro que quando o foco o melhor juiz imaginvel um juiz Hrcules de Dworkin, por exemplo ento a exigncia de que ele siga um modelo de regras parece ser extremamente cruel, na medida em que obsta a possibilidade de se alcanar o melhor resultado possvel em certos casos. Entretanto, canalizar a ateno apenas para a situao do melhor juiz (aquele com um grau de conhecimento mpar e uma sensibilidade aguada) diante de um caso em que se v incapacitado de fornecer a melhor soluo possvel (em funo da existncia de regras que impedem o acesso a todos os fatores contextuais da situao em jogo), e colocar isso como uma imagem da prtica decisria no mbito jurdico como um todo seria construir uma viso deturpada20. Uma viso mais condizente com a realidade das nossas prticas decisrias enxerga que existem vrios tipos de pessoas que devem decidir uma

Tenho em mente, principalmente, erros heursticos, iluses cognitivas, ou preconceitos cognitivos. Tais erros tm sido explicados pela psicologia cognitiva. Alguns deles esto relacionados com os seguintes processos: percepo seletiva, dissonncia cognitiva, heurstica da disponibilidade (availability heuristic), etc... Sobre os mencionados erros, ver: Plous (1993), Schwartz (2005), Tavris e Aronson (2007). Para aplicaes no campo especfico do direito, ver: Sharp (1995), Vermeule (2006), Farnsworth (2007). 20 Na linguagem wittgensteiniana (Investigaes Filosficas, 593), seria incorrer naquilo que ele qualifica como sendo uma causa principal das doenas filosficas, uma dieta unilateral: quando nutrimos o nosso pensamento apenas com um tipo de exemplo. A cura para a doena apontada seria olhar para uma pluralidade de exemplos.

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gama muito ampla de casos. Dentro desse contexto, a adeso a um modelo de regras pode ser explicada em termos de alocao de poder. Alm dos argumentos tradicionalmente associados a um modelo de regras, como a busca e preservao da previsibilidade, da certeza e da segurana jurdica, assim como o argumento em prol da eficincia21, a escolha por um modelo formalista forte pode se dar em funo de argumentos relacionados alocao de poder. Dentro da categoria argumentos relacionados alocao de poder possvel destacar duas linhas mestras de raciocnio. De acordo com a primeira linha de argumentao, se o caso que se acredita que os responsveis pela tomada de decises tm mais chances de errar quando tm o poder jurisdicional de escolher se vo aplicar a regra entrincheirada ou afastar o resultado gerado por ela em funo daquilo que acreditam ser o resultado produzido pela justificao subjacente regra, ou pela totalidade de razes que o julgador considera relevante, ento existem bons motivos, do ponto de vista do responsvel pelo desenho institucional, para no disponibilizar essa alternativa ao agente decisrio. Em outras palavras, a existncia de erros em um modelo de regras inevitvel em funo do carter sobreinclusivo ou subinclusivo das mesmas. Porm, se existissem indicaes slidas de que os agentes decisrios cometeriam mais erros se recebessem o poder jurisdicional de olhar atravs das regras na busca de suas justificaes subjacentes, ento o desenho das nossas instituies deveria ser feito de tal forma que os responsveis pela tomada de decises tivessem boas razes prudenciais para entrincheirar as regras. Em relao a essa primeira linha argumentativa, dois pontos devem ser destacados. Em primeiro lugar, no existe nenhum motivo para acreditar que o modelo formalista o modelo mais adequado para todas as esferas ou ambientes de tomada de decises jurdicas. possvel, por exemplo, que uma sociedade no queira que osOs argumentos relacionados previsibilidade, segurana e certeza so mais do que conhecidos. Apesar de j terem se tornado triviais, tal trivialidade no diminui o fato de que so verdadeiros. Entretanto, a trivialidade nos permite optar por deixar um pouco de lado esses argumentos. A opo feita neste artigo por focar as dimenses do argumento relacionado com a alocao de poder, j que este argumento parece ser o mais importante e o mais raramente explorado. Entre o lugar comum dos argumentos ligados previsibilidade, certeza e segurana, e a raridade do argumento ligado alocao de poder, temos o argumento da eficincia, para o qual destino algumas palavras nesta nota de rodap: As regras so instanciaes simplificadas de justificaes subjacentes. A aplicao direta das justificaes, sem a mediao de regras, envolve, na esmagadora maioria dos casos imaginveis, mais custos em termos de tempo, esforo e dinheiro (com peritos, por exemplo). Leva menos tempo, exige menos esforo mental e representa uma despesa menor para o Estado determinar se algo um veculo ou no do que qualquer tentativa de aplicar a justificativa por trs da regra: proibida a passagem de veculos na pista.21

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policiais tenham a capacidade de deliberar acerca das justificativas subjacentes s regras em cada momento de aplicao das mesmas, porque no teriam condies de entender as razes que explicam a sua existncia, ou porque, em funo do cargo que ocupam, no teriam a iseno necessria para avaliar essas razes. Por outro lado, possvel que a mesma sociedade confie amplamente nos juzes das cortes superiores. Nesse caso, a existncia de um modelo particularista seria mais adequada22. O ponto que a escolha por um ou outro modelo contextual. A escolha por um modelo de regras, isto , um modelo acontextual (que no avalia todos os aspectos do contexto, mas apenas os fatores previamente estabelecidos e destacados como relevantes pelas regras) , em si mesma, uma escolha feita contextualmente e depende principalmente do grau de (des)confiana que existe em relao aos responsveis pela tomada de decises. A escolha por um modelo de regras ou um modelo particularista tambm contextual em um outro sentido. Em ltima anlise, a escolha por um modelo ou por outro depende daquilo que considerado o bem maior ou o mal maior. Se considerado que colocar obstculos no caminho da deciso correta o mal maior, ento a melhor opo a adoo de um modelo particularista. Se, ao contrrio, acredita-se que o mal maior consiste na possibilidade de abusos e erros na avaliao das justificaes, ento o modelo mais adequado o modelo formalista. Como ressalta Schauer (1987a), o dilema se d porque o ser humano ainda no foi capaz de desenvolver um sistema de governo que no coloca obstculos no caminho do bem, isto , da deciso correta e, ao mesmo tempo, apto para vigiar e evitar o mal, isto , os erros e abusos que podem ser cometidos (Schauer, 1987a, p.50). O filtro que evita os abusos e os erros quando so consideradas as justificaes o mesmo que faz com que necessariamente existam resultados subtimos. Em suma: Juzos sobre quando empregar um modelo formalistaUma das formas de tentar garantir que o modelo desejado vai ser empregado pode ser por meio da colocao de mecanismos de punio ou recompensa para as aes dos agentes decisrios. Para ter um ambiente particularista, basta no punir de nenhuma forma os responsveis pelas decises, mesmo quando os mesmos erram nos seus clculos decisrios. Para evitar um modelo particularista, pode-se criar um mecanismo de punio ou de no recompensa para aqueles que no decidem de acordo com as regras (por exemplo: um programa de promoo interna apenas para os que aplicam as regras). Um dos grandes desafios para a teoria do direito contempornea se tornar um pouco menos terica e mais emprica, desenvolvendo e testando desenhos institucionais que visam a criar uma estrutura de incentivos e obrigaes para que os responsveis pela tomada de decises freiem os seus impulsos no sentido de realizar uma standardizao de regras, quando um modelo de regras mais desejvel, ou uma regrificao de standards, quando um modelo particularista for mais desejvel. Sobre o fenmeno da convergncia entre regras e standards, ver: Schauer (2003). Sobre a teoria dos desenhos institucionais em geral e os diferentes mecanismos existentes para calibrar comportamentos de agentes pblicos ou privados (tcnicas de incentivos ou sanes e tcnicas de filtragem [screening]), ver: Pettit (1998).22

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so contextuais e no inexorveis, polticos e no lgicos, psicolgicos e econmicos e no conceituais (Schauer, 1988, p.544). O segundo ponto que deve ser mencionado a questo da assimetria da autoridade. A questo acerca da imposio de autoridade muda conforme a perspectiva de quem faz a anlise. J foi visto que em certos contextos racional e moralmente desejvel desenhar um sistema de regras de tal forma que elas sejam levadas a srio, fechando as portas de forma a priori, ou seja, tomando uma deciso antecipada e no atacado, para que as justificaes subjacentes s regras no sejam analisadas no momento de aplicao. Se os responsveis pelo desenho institucional acreditam que ao permitir uma deciso caso a caso, sensvel ao contexto e aberta para a avaliao de todas as razes consideradas relevantes pelo julgador, mais resultados errados, abusivos e preconceituosos sero produzidos, ento eles devem, do ponto de vista moral e racional, exigir que os responsveis pela deciso acatem a sua autoridade, aplicando as regras sem incluir no clculo decisrio as justificaes das mesmas. Por outro lado, do ponto de vista daquele que deve julgar, se ele estiver totalmente convencido de que a aplicao da regra vai gerar um resultado errado, ento para ele no racional nem moralmente requerido que siga a regra. De acordo com o argumento da autonomia moral e da soberania de conscincia, seguir uma regra que se sabe ser errada no faz sentido e uma mera obedincia cega sem fundamento. Levando em considerao o fenmeno da assimetria da autoridade, o responsvel pelo desenho institucional deve colocar mecanismos capazes de aumentar as razes prudenciais para que os juzes levem as regras a srio. Por outro lado, cabe aos juzes evitarem a aplicao de resultados que tm certeza de serem errados23. A outra linha de raciocnio pertinente ao tema da alocao de poder no aposta, pelo menos no exclusivamente, que o poder jurisdicional deve ser atribudo a certas pessoas e no a outras para minimizar os erros e abusos na avaliao das razes que devem efetivamente informar as decises. De acordo com essa linha de raciocnio, as regras so importantes porque alocam poder para aqueles que esto realmente legitimados a decidir, mesmo que as suas decises no sejam sempre corretas. Trata-seDe acordo com Alexander e Sherwin (2001), o problema da assimetria de autoridade, que ele chama de gap, intransponvel. A racionalidade est sempre atrelada a uma perspectiva. O que racional para os que desenham as instituies e colocam as regras pode no ser racional para os que so os destinatrios das mesmas. Os autores enfrentam diversas estratgias para superar o problema da assimetria de autoridade, mas chegam concluso de que a tarefa simplesmente impossvel.23

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de um argumento de fundamento poltico ou moral. Dois exemplos podem ser utilizados para esclarecer esse argumento. Em primeiro lugar, possvel imaginar a seguinte situao: um psiclogo infantil se depara com uma cena na qual um pai est em um ambiente pblico, um restaurante talvez, aos berros com o seu filho de trs anos de idade dizendo que ele um imbecil que no faz nada direito. O psiclogo sabe que isso no est certo e que a atitude do pai provavelmente no vai produzir o comportamento que o prprio espera de seu filho. Entretanto, o mais provvel que o expert no se intrometa na deciso. A razo da sua no-intromisso no por ele no saber o melhor mtodo de abordar e chamar a ateno da criana, mas simplesmente porque considera que se trata de uma deciso que no cabe a ele, mas ao pai (Schauer, 1998b, p.159). Outro exemplo para ilustrar o mesmo ponto pode ser montado dizendo que talvez os professores da disciplina de tica do Departamento de Filosofia da PUC-Rio sejam mais indicados para fornecer as diretrizes morais na construo de polticas pblicas. Porm, eles no foram eleitos por ns e no so os nossos representantes e, sendo assim, a construo de leis e a determinao de nfases em matria de polticas pblicas simplesmente no cabem a eles (Schauer, 1988, p.541). possvel que o mesmo acontea no mbito do direito. Certas pessoas podem reconhecer a autoridade de outras mesmo quando acreditam que estejam erradas. A prpria noo de separao de poderes pressupe o uso de regras. A diferenciao de funes pressupe a existncia de regras. Se regras nunca fossem levadas a srio, nenhum tipo de deciso poderia ser tomada previamente por um outro rgo qualquer, cabendo, na verdade, sempre quele que desse a ltima palavra. Assim, a escolha do rgo decisrio por aplicar regras (ou a escolha dos responsveis pelos desenhos institucionais por criar uma estrutura de incentivos e obrigaes que levam os rgos decisrios a terem boas razes prudenciais para aplicar regras) pode ser racional se acredita que aqueles que as elaboraram conhecem melhor o assunto tratado, se reconhece que freqentemente superestima a sua prpria capacidade de decidir corretamente sempre que invoca a totalidade de razes que considera relevantes, e se acredita que mesmo nos casos em que conhece a melhor soluo, a autoridade ltima sobre a deciso no dele. A aplicao de regras elaboradas por outros pode em certos casos significar uma escusa de responsabilidade pessoal pelas conseqncias da deciso. Porm, nem sempre se trata de uma omisso de

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responsabilidade s vezes pode ser um sinal de modstia. Algum que faz sempre aquilo que acha certo, afastando as decises tomadas previamente por outros rgos, pode estar assumindo a responsabilidade da deciso para si, mas tambm pode estar se revelando extremamente arrogante24. Para concluir e, correndo o risco de ficar um pouco redundante, a opo por um ou outro modelo certamente uma opo poltica ou moral. Porm, a opo por um modelo de regras forte, onde os aplicadores das regras no fogem dos significados encontrados perto da superfcie do texto uma escolha moral por no deixar aqueles que tomaro as decises realizarem avaliaes morais adicionais em cada momento de deliberao25. A opo por um sistema de regras forte provm de uma exigncia moral para que se evite os custos morais da falta de certeza, segurana, previsibilidade, possibilidade maior de erros e para que as decises sejam tomadas pelos agentes corretos. A escolha deve passar necessariamente por uma investigao emprica das capacidades institucionais daqueles que criam e aplicam regras, pelo reconhecimento de que aqueles rgos responsveis por tomar decises trabalham, no mundo real, dentro de um cenrio de racionalidade circunscrita. Uma teoria preservadora de regras , mais do que qualquer outra coisa, uma teoria acerca da confiabilidade comparada. Em certos ambientes de tomada de decises, ns podemos confiar mais naqueles que

Assim, possvel concluir que um modelo formalista, ou um modelo de regras, nem sempre um modelo machista e autoritrio, como apontam certos autores feministas. Pelo contrrio, trata-se de um modelo no qual as pessoas tm que apresentar uma certa humildade e sensibilidade, reconhecendo as suas fraquezas e insuficincias como agentes decisrios. Porm, o outro lado da moeda bem explicado por Shapiro (2004), que diz: claro, existe tal coisa como a confiana excessiva em uma autoridade. Ceder excessivamente as decises para os outros ao mesmo tempo precipitado e moralmente irresponsvel. Alm disso, quanto mais algum depende do juzo de outro, maior a chance de que perder a habilidade de formar juzos por conta prpria e de que se tornar vulnervel manipulao. Finalmente, as faculdades do juzo e auto-reflexo configuram uma capacidade distintivamente humana, cujo exerccio contribui de uma forma essencial para o florescimento humano. Sacrific-las , na realidade, abrir mo da sua humanidade (Shapiro 2004, p.388). O prprio Shapiro, porm, faz a seguinte ressalva: A idia de que uma pessoa deve sopesar o balano de razes toda vez que surge a necessidade de uma deciso moral no somente perigosa nos casos de assimetrias acerca de informaes ou incapacidades cognitivas, mas tambm um grande desperdcio. Certamente possvel canalizar a energia para algo mais produtivo (Shapiro, 2004, p.388). E, um pouco adiante, continua: Apesar de serem reais os perigos envolvidos quando se confia nas autoridades, devemos tomar cuidado para no exager-los. O mundo simplesmente complexo demais para que qualquer pessoa possa viver sua vida sem contar com o auxlio de qualquer tipo de expert (Shapiro, 2004, p.388). 25 Segundo Kent Greenawalt: As pessoas s vezes partem, explcita ou implicitamente, da premissa verdadeira de que toda abordagem interpretativa reside na teoria poltica, para a proposio errnea segundo a qual todas as abordagens so iguais na quantidade de teoria poltica que elas requerem dos juzes (Greenawalt, 1999, p.10). Mais uma vez, o formalismo uma opo poltica ou moral que caminha no sentido de excluir a possibilidade de invocar razes polticas e morais adicionais por parte dos responsveis pelas tomadas de decises diante de cada caso novo com o qual se deparam.

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criaram as regras do que naqueles que tm que aplicar a deciso. Isso pode variar de tempos em tempos e de domnio de deciso para domnio de deciso26.

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Essa foi a concluso do Professor Frederick Schauer no Seminrio Acadmico Ibmec sobre Direito e Razo, organizado por mim e ocorrido nos dias 8, 9 e 10 de maio de 2006. As palestras foram traduzidas e sero publicadas em 2008.

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