DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
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Juízo Federal da __ VF de Porto Alegre
Autos nº
PAJ (DPU) nº 2017/026-03808
PADAC (DPE/RS) nº 2493-3000/17-8
A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO e a DEFENSORIA PÚBLICA DO
ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, presentadas por seus Membros signatários, no
exercício das suas funções constitucionais (CRFB/1988, art. 134, caput) e legais (Lei
Complementar nº 80/1994), vêm, considerando o constante do PAJ e do PADAC
epigrafados, e com base no art. 1º, inciso IV, e art. 5º, inciso II, da Lei n. 7.347/1985; art.
4º, inciso VII, da Lei Complementar n. 80/1994; art. 6º, caput e art. 37, § 6º, da CRFB/88;
art. 927, parágrafo único do Código Civil, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA
em face:
da TRIUNFO PARTICIPAÇÕES E INVESTIMENTOS S.A. – CONCEPA,
pessoa jurídica de direito privado, a ser citada na Rua Voluntários da Pátria,
4813, Porto Alegre – RS;
da UNIÃO FEDERAL, a ser citada eletronicamente por meio da Advocacia-
Geral da União;
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do DEPARTAMENTO NACIONAL DE INFRAESTRUTURA DE
TRANSPORTES (DNIT), autarquia federal, a ser citado eletronicamente por
meio de sua Procuradoria Federal;
da AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES (ANTT),
autarquia federal, a ser citada eletronicamente por meio de sua Procuradoria
Federal;
do ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, a ser citado eletronicamente por
meio de sua Procuradoria; e
do MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE, a ser citado eletronicamente por meio
de sua Procuradoria, na forma já estabelecida pelo Juízo, pelos motivos de fato
e de direito a seguir expostos.
I. DO OBJETO
Por meio da presente ação coletiva, as Defensorias Públicas da União e do Estado
do Rio Grande do Sul, na tutela dos interesses individuais homogêneos de 36 famílias
violentamente desalojadas da Ilha do Pavão, em Porto Alegre, em agosto/2017, objetivam
provimento condenatório em face dos demandados, a fim de que indenizem os danos
materiais e reparem o dano moral coletivo e o dano social ocasionado.
Ainda, em tutela provisória de urgência, as demandantes objetivam sejam os
demandados compelidos a pagar valor mensal às famílias, para custeio provisório de
moradia, ou o fornecimento direto de moradia digna.
II. DOS FATOS
Em agosto de 2017, foi instaurado na Defensoria Pública da União o Processo de
Assistência Jurídica (PAJ) Coletivo nº 2017/026-03808, após atendimento realizado com
representantes de famílias que residiam na Ilha do Pavão, informando que, em
decorrência da disputa entre facções e de episódios de violência ocorridos no local, foram
forçados a se retirarem de suas casas. Durante o atendimento inicial, foi informado por
uma das representantes que de acordo com informações de vizinhos que ainda residiam
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na Ilha do Pavão, funcionários da empresa TRIUNFO CONCEPA estariam demolindo
suas casas, sem nenhuma notificação prévia aos moradores.
A Ilha do Pavão encontra-se situada na região do Arquipélago em Porto Alegre,
nas proximidades da BR-290, e possui uma situação urbanística diferenciada em relação
às outras regiões da capital. Considerando-se que o Arquipélago constitui uma região
formada com diversas ilhas ambientalmente sensíveis por sua característica alagadiça, a
proximidade ao centro urbano e outros pontos da cidade foram alguns dos fatores que
permitiram que diversas ocupações irregulares no local fossem se disseminando. Tais
ocupações são formadas por habitantes de baixa e alta renda, que, mesmo com as severas
restrições de moradia, historicamente permanecem no local1.
No caso das famílias afetadas, são todos de baix(íssim)a renda, que viviam
dentro da faixa de domínio da BR-290, por várias décadas, com total tolerância da
UNIÃO e da CONCEPA, esta última chegando a realizar intervenções de melhoria
social no local. Note-se que são famílias evidentemente hipossuficientes que em sua
maioria possuem referência nos equipamentos públicos e que acessam os benefícios
sociais disponibilizados.
Conforme relato da representante das famílias, bem como matérias jornalísticas
que retratam a situação em tela, cerca de trinta famílias haveriam se retirado de suas
residências em decorrência de episódios de violência e ameaças a que foram submetidas.
Com o intuito de preservar a integridade física de crianças e idosos que viviam no local,
algumas famílias deslocaram-se para a casa de familiares em diversos pontos da cidade,
e outras permaneceram em situação de rua. Todavia, tão logo os conflitos diminuíssem,
a intenção das pessoas era de que pudessem retornar ao seu local de origem para dar
seguimento normal ao fluxo de suas vidas.
No entanto, no dia 24/8/2017 foram surpreendidos com a notícia de que suas
casas estariam sendo derrubadas por funcionários da empresa TRIUNFO
CONCEPA, que se encontravam no local com máquinas retroescavadeiras praticando o
“desalojo”, sob a alegação de que as casas estariam vazias.
1 Informações coletadas no Observa POA – Observatório da Cidade de Porto Alegre.
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De acordo com a documentação produzida pela própria TRIUNFO CONCEPA, a
PMPA se fez presente durante a ação de demolição das casas (inclusive porque os
caminhões para recolhimento dos entulhos e escombros foram disponibilizados pelo
Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU)), assim como outros órgãos
públicos, como a Brigada Militar e a Polícia Rodoviária Federal.
No momento em que acontecia a ação da empresa TRIUNFO CONCEPA, cerca
de 20 famílias estavam alojadas em um galpão abandonado da região da Zona Norte de
Porto Alegre, sem nenhuma infraestrutura que permitisse condições de moradia daquelas
pessoas. Ao serem informados do que havia acontecido com suas casas, entenderam por
bem reivindicar junto à Prefeitura Municipal de Porto Alegre (PMPA) um local para
abrigamento2, assim como contataram as Defensorias Públicas da União e do Estado com
o intuito de solicitar assistência jurídica para a questão.
Os atendimentos prestados pela DPU e pela DPE geraram os procedimentos
administrativos PAJ nº 2017/026-03808 e PADAC nº 2493-3000/17-8, respectivamente.
A medida paliativa tomada pela PMPA na ocasião foi a oferta de abrigamento das
20 famílias que se encontravam em frente ao Paço Municipal, na Escola Estadual de
Ensino Fundamental Prof. Ernesto Tochetto, localizada nas imediações da Av. Sertório,
na região da Zona Norte. Foi ofertado, também, o recadastramento das famílias nos
equipamentos públicos de Assistência Social (CRAS) que atendem a região da escola, a
fim de identificar as demandas e encaminhá-las para os órgãos competentes.
Entrementes, diante da informação de que a pessoa jurídica TRIUNFO
CONCEPA havia demolido as residências na Ilha do Pavão, a Defensoria Pública da
União convocou uma reunião com representantes da empresa no dia 25/8/2017, na sede
da pessoa jurídica. À ocasião, foi levantado que, dias antes, haveria ocorrido um incêndio
na região, acontecimento que ensejou a ação de demolição das casas em nome de um
suposto iminente risco de novos episódios similares, considerando-se a proximidade das
casas à rodovia, assim como a tubulação de gás que perpassa o local. Alegou a CONCEPA
que teria atendido a uma solicitação dos moradores que permaneciam na comunidade,
2 Famílias removidas da Ilha do Pavão acampam em frente à Prefeitura por moradia. Sul21. Publicado em
24/8/2017. Disponível em <https://www.sul21.com.br/jornal/familias-removidas-da-ilha-do-pavao-
acampam-em-frente-prefeitura-por-moradia/>
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após uma reunião entre esses moradores, representantes da empresa e da PMPA, onde se
“deliberou” pela demolição das casas.
Após, no dia 29/8/2017 foi realizada reunião entre a DPU e representantes do
Departamento Municipal de Habitação (DEMHAB). Na ocasião, a Diretoria do
DEMHAB apresentou como alternativa a possibilidade de pleitear junto à empresa
TRIUNFO CONCEPA recurso para viabilizar a compra assistida de novas residências,
para as famílias que tiveram as casas removidas. Foi informado, ainda, que limites
orçamentários impossibilitariam que o órgão oferecesse alguma possibilidade mais
consistente, que não seja a inclusão das famílias na lista de pretendentes do Programa
Minha Casa Minha Vida.
No dia 1º/9/2017, na Promotoria de Justiça de Habitação e Ordem Urbanística, foi
realizada reunião na sede do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, em que
participaram o Promotor de Justiça, Exmo. Dr. Claudio Ari Mello, representantes da
empresa TRIUNFO CONCEPA e da DPU/RS. Na oportunidade, o Promotor de Justiça,
solicitou que a empresa TRIUNFO CONCEPA disponibilizasse colchões para as famílias
que tiveram as casas derrubadas e se encontravam alojadas na escola Ernesto Tochetto,
tratando-se de cerca de 121 pessoas. Os representantes da empresa tiveram acordo com a
doação, e afirmaram que disponibilizariam o mais breve possível. Durante a reunião, foi
sugerida a realização de um levantamento da quantidade exata de moradores da escola,
sua atividade laboral e a identificação da pretensão das famílias para seu destino, tão logo
se retirassem do alojamento.
Esse levantamento foi efetivado pela DPU no início do mês de outubro de 2017.
A tanto, foram realizadas entrevistas com as chefias de cada família visando identificar o
perfil socioeconômico das pessoas alojadas.
De acordo com o mapeamento feito pela DPU, estavam no local 33 núcleos
familiares, em situação de multivulnerabilidade3.
3 O conceito de (multi)vulnerabilidade pode ser extraído das 100 Regras de Brasília sobre o Acesso à Justiça
das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, cuja Seção 2ª assim estabelece:
“Secção 2ª.- Beneficiários das Regras
1.- Conceito das pessoas em situação de vulnerabilidade
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, género,
estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, económicas, étnicas e/ou culturais, encontram
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Durante a realização do atendimento, verificou-se um fator agravante na situação
vivida pelas famílias, tendo em vista a existência de grande quantidade de resíduos sólidos
espalhados pelo local. Ainda que constatado que a principal atividade laboral das pessoas
fosse a reciclagem, ficou evidente que os resíduos coletados permaneciam pelas áreas
coletivas da escola, expondo todos que circulavam no local à diversas doenças e contato
com insetos.
Após o levantamento, mais três famílias compareceram à DPU para informar seus
dados, do que se conclui haver 36 núcleos familiares afetados.
Os resultados desse levantamento se encontram nos relatórios anexos a este
petitório inicial.
Ressalte-se que o número de famílias discrepou entre os diversos levantamentos
realizados pelas Defensorias Públicas, Município de Porto Alegre e CONCEPA. Isso,
contudo, se deve à peculiar dinâmica social local, sobretudo ao fato de que havia
residências multifamiliares, questões nem sempre consideradas pelos demandados. De
toda sorte, eventual controvérsia poderá ser dirimida via regular instrução probatória.
No decorrer das instruções procedimentais, as famílias relataram situações de
ameaça dos vizinhos que vivem no entorno da Escola Estadual de Ensino Fundamental
Prof. Ernesto Tochetto, e que não admitiram a convivência com catadores e pessoas de
condições econômicas inferiores, questão que chegou a se tornar pública, em postagens
em redes sociais.
Ainda no mês de outubro de 2017, foi realizada reunião na sede da Defensoria
Pública do Estado do Rio Grande do Sul, em que participaram novamente representantes
da empresa TRIUNFO CONCEPA, ocasião em que foi questionado sobre a possibilidade
de a empresa indenizar as famílias que tiveram as casas demolidas. No entanto, após
reunião realizada com representantes de diversos órgãos pertencentes à Prefeitura
especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos
pelo ordenamento jurídico.
(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a
pertença a comunidades indígenas ou a minorias, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a
pobreza, o género e a privação de liberdade. A concreta determinação das pessoas em condição de
vulnerabilidade em cada país dependerá das suas características específicas, ou inclusive do seu nível de
desenvolvimento social e económico”.
Disponível em < https://www.anadep.org.br/wtksite/100-Regras-de-Brasilia-versao-reduzida.pdf>
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Municipal de Porto Alegre, a possibilidade foi descartada, uma vez que a Prefeitura alega
que não possuiria imóvel disponível para reassentar as famílias.
Mais uma reunião foi realizada no dia 9/11/2017, na Prefeitura Municipal de Porto
Alegre, com a presença de representantes da Secretaria Municipal de Relações
Institucionais, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, FASC e CRAS
Noroeste, DPE/RS e DPU. Para a Prefeitura, o principal ponto de preocupação seria a
questão da violência que envolve as famílias, afirmando que estas foram alojadas na
escola como uma medida emergencial da PMPA. As Defensorias apresentaram a proposta
de a PMPA viabilizar um terreno para que a empresa TRIUNFO CONCEPA reconstruísse
as 16 casas demolidas. A PMPA informou, então, que isso seria inviável, pois não haveria
terrenos pequenos que comportassem as famílias. A PMPA visualizou como
possibilidade, a inclusão das famílias no Aluguel Social, ainda que não possua os recursos
necessários para custear o benefício, sugerindo, então, que a TRIUNFO CONCEPA
assumisse o benefício, arcando com os custos do repasse dos valores às famílias.
Em uma derradeira tentativa de fixação de acordo extrajudicial, a incluir a PMPA
e TRIUNFO CONCEPA, foi realizada reunião no dia 8/1/2018, na sede da DPE/RS, sem
sucesso.
No dia 22 de janeiro de 2018, a DPU recebeu o contato telefônico da Diretora
Técnica da FASC, informando que, conforme levantamento realizado pela PMPA, 19
adultos e 30 crianças encontravam-se (e encontram-se até a presente data)
acampados em frente à Prefeitura4, alegando que não voltarão para o alojamento na
escola por motivos de falta de segurança e de infraestrutura para moradia na Escola
Estadual de Ensino Fundamental Prof. Ernesto Tochetto.
As pessoas que atualmente encontram-se alojadas em frente ao Paço Municipal
estão expostas à diversas situações de violência seja simbólica ou física, principalmente
as crianças, considerando-se, ainda, que há bebês de colo no local.
Foram rejeitadas todas as propostas apresentadas pela PMPA pois as famílias
apresentam muita descrença na resolução do caso, frente ao sentimento de que após 8
4 14 famílias estão morando ao lado da Prefeitura, e o município não sabe o que fazer com elas. Sul21.
Publicado em 27/1/2018. Disponível em <https://www.sul21.com.br/jornal/14-familias-estao-morando-ao-
lado-da-prefeitura-e-o-municipio-nao-sabe-o-que-fazer-com-elas/>
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meses convivendo com uma situação provocada por terceiros permaneceriam
“esquecidos” pelo Poder Público.
Em suma, as famílias se encontram desde agosto/2017 em uma situação
provisória, que só se deteriora com o tempo.
Entrementes, as Defensorias Públicas da União e do Estado, em cumprimento
ao art. 4º, inciso II, da Lei Complementar nº 80/1994, empreenderam diversas
tentativas de solucionar extrajudicialmente a contenda, com a pessoa jurídica
TRIUNFO CONCEPA e o Município de Porto Alegre, sem sucesso.
Esses, na mais breve síntese, os fatos que dão base ao presente processo.
Avança-se, assim, à análise jurídica.
III. DO DIREITO
III.1. DAS PRELIMINARES
III.1.1. Do Cabimento da Ação Civil Pública
A Lei da Ação Civil Pública (LACP) (Lei nº 7.347/1985) não é o único diploma
normativo que disciplina as ações coletivas. Tem-se, no Brasil, um microssistema de
processo coletivo formado pela LACP, de um lado, e pelo CDC, de outro, de modo que
estes dois diplomas legais têm aplicabilidade em toda e qualquer ação coletiva, formando
um verdadeiro “ordenamento processual geral” do processo coletivo, tendo em vista as
normas de remissão neles contidas, as quais fazem referências recíprocas entre si, o que
culmina na aplicação complementar de um ao outro.
Vejam-se os dispositivos:
Art. 21 da LACP:
Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e
individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que
instituiu o Código de Defesa do Consumidor. (Redação dada pela Lei
nº 8.078, de 11.9.1990)
Art. 90 do CDC:
Aplica-se às ações previstas neste título as normas do Código de
Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no
que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas
disposições.
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Neste contexto, ao analisar os aspectos processuais das ações coletivas, deve o
intérprete sempre fazer uma leitura coordenada da LACP e do CDC, sendo certo que deste
estudo se perceberá facilmente o cabimento de ação civil pública em caso de direito
individual homogêneo, ainda que não seja matéria consumerista.
Afinal, o parágrafo único do art. 81 do CDC dispõe que:
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam
titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte
contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim
entendidos os decorrentes de origem comum.
E aplicando-se o art. 81 do CDC à LACP, percebe-se ser a ação civil pública meio
cabível para tutelar qualquer direito individual homogêneo, na medida em que o
dispositivo do Código Consumerista é totalmente transportável ao estudo da ação civil
pública, nos termos do art. 21 da LACP, acima transcrito.
O Superior Tribunal de Justiça já pacificou sua jurisprudência no sentido de
agasalhar a tese ora defendida:
PREVIDENCIÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ASSOCIAÇÃO CIVIL.
LEGITIMIDADE. AÇÃO COLETIVA. POSSIBILIDADE.
A Lei 8.078/90, ao alterar o art. 21 da Lei 7.347/85, ampliou o
alcance da ação civil pública e das ações coletivas para abranger a
defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos,
desde que presente o interesse social relevante na demanda. In casu,
os interesses são homogêneos, tendo em vista o debate de uma
ampla classe de segurados da Previdência Social, onde se tem um
universo indeterminado de titulares desses direitos.
De acordo com a inteligência do artigo 21 do Código de Defesa do
Consumidor, a Associação é legítima para propor ações que versem
sobre direitos comunitários dos associados. Recurso desprovido. (REsp
702607 / SC, Relator(a) Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA
(1106) , Órgão Julgador T5 QUINTA TURMA, Data do Julgamento,
09/08/2005, Data da Publicação/Fonte DJ 12/09/2005 p. 360)
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Igualmente, é importante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento
do Recurso Extraordinário n. 163.231/SP, concluiu que os interesses individuais
homogêneos são espécies de interesses coletivos.
O art. 1º, inciso V, da LACP, prevê ser cabível ação civil pública para tutela de
“qualquer outro interesse difuso ou coletivo”. Fazendo um silogismo com o julgado do
STF, percebe-se o seguinte: (i) premissa maior: cabe ação civil pública para proteção de
qualquer interesse coletivo (art. 1º, inciso V, da Lei da ACP); (ii) premissa menor: os
interesses individuais homogêneos são espécie de interesses coletivos (entendimento do
STF); (iii) conclusão: cabe ação civil pública para defesa de qualquer interesse individual
homogêneo.
Em verdade, as únicas vedações legais para ação coletiva são aquelas do parágrafo
único do art. 1º da LACP, que não se aplicam a este caso.
Também merece ser salientado que, na espécie, o direito tutelado somente pode
ser plenamente concretizado pela via da ação coletiva, máxime porque o dano causado às
famílias individualmente consideradas, à vista da multivulnerabilidade geral , nem sequer
chegaria ao Poder Judiciário. Ademais, a ação coletiva é o veículo adequado para expor
a grave violação de direitos humanos e fundamentais perpetrada pelos demandados.
A verificação do dano coletivo e dos danos sociais justifica a tutela pela via
transindividual. Assim, mesmo a partir desta análise sumária, torna-se facilmente
perceptível a importância e os benefícios jurídicos, sociais e econômicos do manejo desta
Ação Civil Pública.
III.1.2. Da legitimidade ativa da Defensoria Pública
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado
justamente por garantir o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita aos
carentes, orientação jurídica e a defesa conforme assegura o art. 5º, inciso LXXIV, da
Constituição da República, ligado ao direito fundamental do acesso à justiça, consagrado
no art. 5º, inciso XXXV, da CR.
As atribuições da Defensoria Pública estão previstas no art. 134 da Constituição
da República, cabendo-lhe a defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados. A
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Lei Complementar nº 80/1994, em seu art. 4º, inciso VII, estabelece como função
institucional a promoção da “ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de
propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos
quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes”.
O inciso XI do mesmo dispositivo também lhe incumbe de “exercer a defesa dos
interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa
portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar
e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”.
Tratando-se de famílias, com integrantes de todas as idades (de crianças de colo a
idosos), em situação de multivulnerabilidade, não há dúvidas do enquadramento dos
beneficiários desta demanda coletiva com o art. 4º, inciso XI, da Lei Complementar nº
80/1994.
De acordo com o art. 5º, inciso II, da Lei nº 7.347/1985, com a redação dada pela
Lei 11.448/07, atribuiu-se legitimidade à Defensoria Pública para o ajuizamento de ação
civil pública. Além disso, com a promulgação da Lei Complementar nº 132/2009, não
resta mais qualquer dúvida acerca da atribuição da instituição para a defesa dos direitos
humanos, inclusive na forma coletiva.
Veja-se a respeito:
Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à
função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e
instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação
jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de
forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma
do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. (Redação dada pela
Lei Complementar nº 132, de 2009)
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
…
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da
cidadania e do ordenamento jurídico; (Redação dada pela Lei
Complementar nº 132, de 2009).
...
VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos, postulando perante seus órgãos; (Redação dada pela Lei
Complementar nº 132, de 2009).
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações
capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos,
coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da
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demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;
(Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009)VIII –
exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos,
coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na
forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; (Redação
dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
...
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos
necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais,
econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies
de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; (Redação
dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança
e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades
especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de
outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do
Estado; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
...
XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de
internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob
quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias
fundamentais; (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas
vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer
outra forma de opressão ou violência, propiciando o
acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas;
(Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
Art. 15-A. A organização da Defensoria Pública da União deve primar
pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento
interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais,
difusos, coletivos e individuais homogêneos. (Incluído pela Lei
Complementar nº 132, de 2009). (original não grifado)
Também a partir de interpretação ampliativa do microssistema, norteada pelo
princípio do acesso à justiça (art. 5º, inciso XXXV, CRFB), depreende-se que os
legitimados pela Lei nº 7.347/1985 podem defender os direitos individuais homogêneos.
No caso específico da Defensoria Pública, reforça-se tal conclusão, ainda que sob
outro viés. De fato, a Constituição atribui ao Órgão as seguintes funções, previstas nos
artigos 5º, LXXIV, e 134 da Constituição Federal:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos seguintes termos:
(...)
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LXXIV – O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos
que comprovarem insuficiência de recursos.
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa,
em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.
Assim, a leitura da legitimação conferida pela Lei da Ação Civil Pública sob a
ótica constitucional da atuação atribuída à Defensoria Pública permite a conclusão de que,
para a assistência jurídica integral em favor dos necessitados, este Órgão pode se valer de
instrumento coletivo para a defesa de quaisquer direitos ou interesses dos
hipossuficientes, sejam difusos, coletivos ou individuais homogêneos de qualquer
espécie.
Enfim, quer sob a interpretação ampliativa, quer sob a interpretação restritiva do
microssistema de ações coletivas, afirma-se a legitimidade da Defensoria Pública para o
ajuizamento da presente ação.
Dessa forma, não há instituição que represente tão adequadamente os
hipossuficientes como a Defensoria Pública. A ideia de representatividade adequada é
inerente ao reconhecimento da legitimidade para o ajuizamento de demandas coletivas.
Não reconhecer a legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ação civil
pública seria inviabilizar o próprio acesso à justiça daqueles que não têm condições
econômicas de se fazerem representar em juízo, como bem frisado pela Ministra Carmen
Lúcia em seu voto no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3943,
em que o STF julgou e considerou, por unanimidade, que a atribuição da Defensoria
Pública em propor Ação Civil Pública é constitucional, conforme citação abaixo:
Em Estado marcado por inegáveis e graves desníveis sociais e pela
concentração de renda, uma das grandes barreiras para a implementação
da democracia e da cidadania ainda é o efetivo acesso à Justiça. Estado
no qual as relações jurídicas importam em danos patrimoniais e morais
de massa devido ao desrespeito aos direitos de conjuntos de indivíduos
que, consciente ou inconscientemente, experimentam viver nessa
sociedade complexa e dinâmica, o dever estatal de promover políticas
públicas tendentes a reduzir ou suprimir essas enormes diferenças passa
pela criação e operacionalização de instrumentos que atendam com
eficiência as necessidades dos seus cidadãos.
...
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O objetivo da Defensoria Pública é a eficiência da prestação de serviços
e o efetivo acesso à Justiça por todos os necessitados, para garantia dos
direitos fundamentais previstos no art. 5º, incs. XXXV, LXXIV e
LXXVIII, da Constituição da República. A constatação de serem
normalmente mais graves as lesões coletivas, aliada à circunstância de
tender o tempo gasto em processos coletivos a ser menor, evidencia que
a opção por ações coletivas racionaliza o trabalho pelo Poder Judiciário
e aumenta a possibilidade de assegurar soluções uniformes e igualitárias
para os diferentes titulares dos mesmos direitos, garantindo-se não
apenas a eficiência da prestação jurisdicional, a duração razoável do
processo e a justiça das decisões, que se igualam em seu conteúdo sem
contradições jurisprudenciais não incomuns em demandas individuais.
Portanto, não há dúvida de que esse instrumento processual é um dos mais eficazes
à garantia do direito à razoável duração do processo e à celeridade da sua tramitação
(CRFB/88, art. 5º, inc. LXXVIII).
Por derradeiro, tendo como princípio institucional a unidade (art. 134, § 4º, da
Constituição da República), a separação entre Defensorias Públicas da União, do Estado
e do Distrito Federal é de caráter unicamente administrativo, não tendo o condão de
efetivamente cindir a Instituição, que é una.
Desse modo, e como a demanda é multidisciplinar, e abrange não apenas órgãos
federais, é cabível o litisconsórcio entre DPU e DPE/RS, inclusive em analogia ao art. 5º,
§ 5º, da Lei nº 7.347/1985.
III.2. DO MÉRITO
III.2.1. Do Direito à Moradia
O direito social à moradia foi instituído no rol de Direito Humanos desde a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 25, com o seguinte
enunciado:
Artigo 25. 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive
alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego,
doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios
de subsistência fora de seu controle. (original não grifado)
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
15
É resguardado também por outros institutos de direto internacional como o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), em seu artigo 11:
ARTIGO 11
1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda
pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família,
inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim
como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados
Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse
direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da
cooperação internacional fundada no livre consentimento. (Grifei)
E outras convenções como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas
as Formas de Discriminação Racial (1965); Convenção Internacional sobre a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação da Mulher (1979); Convenção sobre os Direitos da
Criança (1989); Convenção dos Trabalhadores Migrantes (1990); Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais (1989);
Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver (1976); Agenda 21 sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento (1992), e, como tal, têm dois aspectos: um negativo, que
diz com a proibição de políticas públicas que dificultem ou impossibilitem o exercício do
direito à moradia, e outro, positivo, que diz com a obrigação do Estado de criar políticas
públicas tendentes a promover e proteger o direito à moradia.
Desta forma, conforme se vê, o direito à habitação é largamente debatido e
protegido em âmbito internacional desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
marco inicial da busca para a proteção de todos e eliminação de todas as formas de
discriminação.
Se, conforme disposto pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, todo ser
humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, entre
outros, habitação e que, segundo o PIDESC, toda pessoa tem direito a um nível de vida
adequando para si próprio e sua família, inclusive à habitação, não se pode pensar que
a destruição das moradias de famílias que habitavam o local há vários anos seja
minimamente amparado pelo ordenamento jurídico.
Nesse sentido, o art. 6º da Constituição Federal define o direito fundamental à
moradia como direito social, que está relacionado ao dever dos entes federativos de
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
16
concretizarem suas políticas públicas de habitação social, nos termos do art. 23, incisos
IX e X, da CRFB/1988.
Dizer que a moradia é um direito social é dizer que ela faz parte dos chamados
Direitos Fundamentais de Segunda Geração. Esta é uma gama de direitos que têm o seu
valor ligado à igualdade material. A doutrina trata estes direitos não como poderes de
agir (liberdades públicas lato sensu), mas sim como poderes de exigir, conforme discorre
o renomado professor Ingo Wolfgang Sarlet5:
Além disso, como ocorre com os direitos fundamentais em geral,
também os direitos sociais apresentam uma dupla dimensão subjetiva e
objetiva. No que diz com a primeira, ou seja, quando os direitos sociais
operam como direitos subjetivos, está em causa a possibilidade de
serem exigíveis (em favor de seus respectivos titulares) em face de seus
destinatários. A despeito das dificuldades e objeções que se registram
nessa esfera (v.g., menor densidade das normas definidoras de direitos
sociais, limites ao controle judicial das políticas públicas, dependência
da disponibilidade de recursos, em outras palavras, do impacto da assim
chamada reserva do possível), constata-se, no caso brasileiro, uma forte
tendência doutrinária e jurisprudencial (com destaque aqui para a
jurisprudência do STF) no sentido do reconhecimento de um direito
subjetivo definitivo (portanto, gerador de uma obrigação de prestação
por parte do destinatário) pelo menos no plano do mínimo existencial,
concebido como garantia (fundamental) das condições materiais
mínimas para uma vida com dignidade, o que, em termos de maior
incidência, se verifica especialmente nos casos do direito à saúde e à
educação. (Grifei)
Divisada a essencialidade do direito à moradia, resta apurar, no caso concreto, a
responsabilidade por sua violação, tal como perpetrado pelos demandados.
III.2.2. Da Responsabilidade Civil dos Demandados
III.2.2.1. Da responsabilidade civil da CONCEPA
A Constituição da República prevê, no art. 37, § 6º, que, quando da delegação de
serviços públicos a responsabilidade das concessionárias, será objetiva pelos danos que
causarem a terceiros, em virtude do risco da atividade. Nessa linha vai o entendimento do
5 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; SARLET, Ingo Wolfgang. Curso de Direito
Constitucional. 1ª.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
17
STJ de que aquele que lucra com a concessão de serviço público também deve responder
pelos riscos deste decorrente, veja-se:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO. TRANSMISSÃO DE
ENERGIA ELÉTRICA. ATIVIDADE DE ALTA PERICULOSIDADE.
TEORIA DO RISCO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA.
CONSERVAÇÃO INADEQUADA DA REDE DE TRANSMISSÃO.
INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. CULPA DA EMPRESA
RECONHECIDA PELA INSTÂNCIA DE ORIGEM. RECURSO
ESPECIAL NÃO CONHECIDO. 1. A empresa que desempenha
atividade de risco e, sobretudo, colhe lucros desta, deve responder
pelos danos que eventualmente ocasione a terceiros,
independentemente da comprovação de dolo ou culpa em sua
conduta. 2. Os riscos decorrentes da geração e transmissão de energia
elétrica, atividades realizadas em proveito da sociedade, devem,
igualmente, ser repartidos por todos, ensejando, por conseguinte, a
responsabilização da coletividade, na figura do Estado e de suas
concessionárias, pelos danos ocasionados. 3. Não obstante amparar-se
na Teoria do Risco, invocando a responsabilidade objetiva da
concessionária, a instâncias ordinárias também reconheceram
existência de culpa em sua conduta: a queda de fios de alta tensão era
constante na região, mesmo assim a empresa não empreendeu as
necessárias medidas de conservação da rede, expondo a população a
risco desnecessário. 4. Não se conhece do recurso no tocante à redução
da pensão mensal, porquanto os danos materiais foram fixados na
sentença, sem que a parte ora recorrente impugnasse tal ponto em seu
recurso de apelação, conformando-se com o decisum. 5. O valor fixado
nas instâncias locais para a indenização por danos morais não se
apresenta exorbitante ou ínfimo, de modo a afrontar os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, incidindo na espécie o enunciado
n. 7 da Súmula do STJ. 6. Ressalva do entendimento do e. Ministro
Aldir Passarinho Júnior, que não conheceu do recurso especial,
adotando exclusivamente o fundamento relativo à culpa da
concessionária demonstrada nas instâncias ordinárias, o que enseja sua
responsabilidade subjetiva por omissão. 7. Recurso especial não
conhecido. (REsp 896.568/CE, Rel. Ministro FERNANDO
GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 19/05/2009, DJe 30/06/2009)
O dever de indenizar está presente mesmo que a parte vítima do dano não seja
usuário do serviço prestado pela empresa concessionária, entendimento que decorre da já
referida previsão constitucional do art. 37, § 6º, e da aplicação do CDC, equiparando a
consumidor todas as vítimas do evento.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
18
Também nesse sentido é o entendimento do STJ em caso de concessão rodoviária,
tal qual o desta ação, ressaltando que somente haverá a aplicação das excludentes do nexo
casual como fato de terceiro, culpa exclusiva da vítima quando, nos termos da ementa
abaixo transcrita, “for a causa única do sinistro ou, nos dizeres de Aguiar Dias, quando
‘sua intervenção no evento é tão decisiva que deixa sem relevância outros fatos culposos
porventura intervenientes no acontecimento’”:
RESPONSABILIDADE CIVIL. RECURSO ESPECIAL.
ATROPELAMENTO FATAL. TRAVESSIA NA FAIXA DE
PEDESTRE. RODOVIA SOB CONCESSÃO. CONSUMIDORA POR
EQUIPARAÇÃO. CONCESSIONÁRIA RODOVIÁRIA.
RESPONSABILIDADE OBJETIVA EM RELAÇÃO A TERCEIROS
USUÁRIOS E NÃO USUÁRIOS DO SERVIÇO. ART. 37, § 6°, CF.
VIA EM MANUTENÇÃO. FALTA DE ILUMINAÇÃO E
SINALIZAÇÃO PRECÁRIA. NEXO CAUSAL CONFIGURADO.
DEFEITO NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO CONFIGURADO.
CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. INOCORRÊNCIA.
INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS DEVIDOS.
1. Inexiste violação do art. 535 do Código de Processo Civil se todas as
questões jurídicas relevantes para a solução da controvérsia são
apreciadas, de forma fundamentada, sobrevindo, porém, conclusão em
sentido contrário ao almejado pela parte. 2. As concessionárias de
serviços rodoviários, nas suas relações com o usuário, subordinam-se
aos preceitos do Código de Defesa do Consumidor e respondem
objetivamente pelos defeitos na prestação do serviço. Precedentes. 3.
No caso, a autora é consumidora por equiparação em relação ao defeito
na prestação do serviço, nos termos do art. 17 do Código consumerista.
Isso porque prevê o dispositivo que "equiparam-se aos consumidores
todas as vítimas do evento", ou seja, estende o conceito de consumidor
àqueles que, mesmo não tendo sido consumidores diretos, acabam por
sofrer as consequências do acidente de consumo, sendo também
chamados de bystanders. 4. "A responsabilidade civil das pessoas
jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público é
objetiva relativamente a terceiros usuários e não-usuários do
serviço, segundo decorre do art. 37, § 6º, da Constituição Federal"
(RE 591874, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI,
Tribunal Pleno, julgado em 26/08/2009, REPERCUSSÃO GERAL
- MÉRITO DJe-237 DIVULG 17-12-2009 PUBLIC 18-12-2009). 5.
Na hipótese, a menor, filha da recorrente, faleceu ao tentar atravessar
na faixa de pedestre, em trecho da BR-040 sob concessão da ré, tendo
a sentença reconhecido a responsabilização da concessionária, uma vez
que "o laudo pericial da polícia judiciária bem apontou que o local do
atropelamento é 'desprovido de iluminação pública', 'com sinalização
vertical e horizontal precária devido à manutenção da via', tendo se
descurado de sua responsabilidade na 'obrigação direta de manutenção
da rodovia'", admitindo a ré "a deficiência de seu serviço no local,
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
19
quando apressou-se depois e instalou passarela destinada a pedestres
naquele trecho", além do fato de não haver prova da culpa exclusiva da
vítima. Caracterizado, portanto, o nexo causal, dando azo a
responsabilização civil. 6. O fato exclusivo da vítima será relevante
para fins de interrupção do nexo causal quando o comportamento dela
representar o fato decisivo do evento, for a causa única do sinistro ou,
nos dizeres de Aguiar Dias, quando "sua intervenção no evento é tão
decisiva que deixa sem relevância outros fatos culposos porventura
intervenientes no acontecimento"(Da responsabilidade civil, vol.II, 10ª.
edição. São Paulo: Forense, 1997, p. 946). Ocorre que, ao que se
depreende dos autos, a menor, juntamente com sua avó, atravessaram a
rodovia seguindo as regras insculpidas pelo Código de Trânsito
Nacional, isto é, na faixa destinada para tanto. 7. Não se pode olvidar
que, conforme a sentença, "a própria ré admitiu a deficiência de seu
serviço no local, quando apressou-se depois e instalou passarela
destinada a pedestres naquele trecho, como mostrado nas fotos de fls.
299/303". 8. O direito de segurança do usuário está inserido no serviço
público concedido, havendo presunção de que a concessionária assumiu
todas as atividades e responsabilidades inerentes ao seu mister. 9.
Atento às peculiaridades do caso, em que a sentença reconheceu a
responsabilidade da concessionária, bem como ao fato de se tratar de
vítima de tenra idade, circunstância que exaspera sobremaneira o
sofrimento da mãe, além da sólida capacidade financeira da empresa ré
e consentâneo ao escopo pedagógico que deve nortear a condenação,
considero razoável para a compensação do sofrimento experimentado
pela genitora o valor da indenização de R$ 90.000,00 (noventa mil
reais). Com relação aos danos materiais, a pensão mensal devida deve
ser estimada em 2/3 do salário mínimo dos 14 aos 25 anos de idade da
vítima e, após, reduzida para 1/3, até a data em que a falecida
completaria 65 anos. 10. Recurso especial parcialmente provido. (REsp
1268743/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA
TURMA, julgado em 04/02/2014, DJe 07/04/2014)
A responsabilidade objetiva foi, posteriormente à previsão constitucional,
expressa pelo Código Civil, em seu art. 927, parágrafo único – o qual se aplica também
ao caso em tela por se tratar de empresa privada concessionária de serviço público6 –, e
6 Processual Civil. Competência de Órgão Julgador Fracionário. Questão de Ordem. Sociedade de
Economia Mista. Responsabilidade Civil. Constituição Federal, Artigos 37, § 6º, 109, I, e 173, § 1º. Emenda
Constitucional nº 1/69 (art. 107). Decreto-Lei 200/67, Artigo 4º. RISTJ (arts. 8º e 9º, § 1º, VIII, e § 2º, III).
1. A sociedade de economia mista, sob o talhe de contrato administrativo, executando serviço público
concedido, apesar de submeter-se ao princípio da responsabilidade objetiva, quanto aos danos causados por
seus agentes à esfera jurídica dos particulares, no caso concreto, sujeita-se às obrigações decorrentes de
responsabilidade civil. Andante, ainda que exerça atividade concedida pelo Estado, responde em nome
próprio pelos seus atos, devendo reparar os danos ou lesões causadas a terceiros. De efeito, a existência da
concessão feita pelo Estado, por si, não o aprisiona diretamente nas obrigações de direito privado, uma vez
que a atividade cedida é desempenhada livremente e sob a responsabilidade da empresa concessionária.
Ordenadas as idéias, em razão da matéria, finca-se a competência da Segunda Seção para o processamento
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
20
consagrada a Teoria do Risco, a fim de aplicar a responsabilidade civil inclusive para os
casos em que não há ocorrência de culpa.
Nesse sentido, veja-se:
E diante dessas considerações, quanto à ré, concessionária de serviço
público, é de se aplicar, em um primeiro momento, as regras da
responsabilidade objetiva da pessoa prestadora de serviços públicos,
independentemente da demonstração da ocorrência de culpa.
Isso porque a recorrida está inserta na “Teoria do Risco”, pela qual se
reconhece a obrigação daquele que causar danos a outrem, em razão
dos perigos inerentes a sua atividade ou profissão, de reparar o prejuízo.
Assim, se é desempenhada determinada atividade de risco e,
sobretudo, colhem-se lucros desta, deve a empresa de igual modo
responder pelos danos que eventualmente ocasione a terceiros,
independentemente da comprovação de dolo ou culpa em sua conduta.
Essa é a orientação contida no artigo 927, parágrafo único, do Código
Civil:
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano
a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o
dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."
Outra não é a lição de Caio Mário Pereira da Silva:
"A doutrina objetiva, ao invés de exigir que a responsabilidade civil seja
a resultante dos elementos tradicionais (culpa, dano, vínculo de
causalidade entre uma e outro) assenta-se na equação binária cujos
pólos são o dano e a autoria do evento danoso. Sem cogitar da
imputabilidade ou investigar a antijuridicidade do fato danoso, o que
importa para assegurar o ressarcimento é a verificação se ocorreu o
evento e se dele emanou o prejuízo. Em tal ocorrendo, o autor do fato
causador do dano é o responsável. Com a teoria do risco, diz Philippe
Lê Tourneau, o juiz não tem de examinar o caráter lícito ou ilícito do
ato imputado ao pretenso responsável: as questões
de responsabilidade transformam-se em simples problemas objetivos
que se reduzem à pesquisa de uma relação de causalidade
(Responsabilidade Civil. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. pág. 269
- grifou-se).
(REsp 1330027/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA,
TERCEIRA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 09/11/2012) (grifei)
e julgamento dos recursos decorrentes. 2. Precedentes jurisprudenciais. 3. Afirmada a competência da
Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça. (QO no REsp 287.599/TO, Rel. Ministro HUMBERTO
GOMES DE BARROS, Rel. p/ Acórdão Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, CORTE ESPECIAL, julgado
em 26/09/2002, DJ 09/06/2003, p. 165)
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
21
Portanto, “sendo objetiva a responsabilidade, desnecessária a verificação da culpa
da concessionária pelo ocorrido, bastando que se observe a existência do dano e do nexo
causal” 7.
Quanto à conduta e ao nexo de causalidade, não há discussões, visto que a própria
CONCEPA confirmou ter retirado as casas e os escombros no período de 15 a 25 de
agosto de 2017, conforme resposta ao ofício enviado pela DPU, juntamente com a BM,
PRF, DMLU e representantes da Associação de Moradores da Ilha do Pavão.
Dos documentos anexos enviados pela CONCEPA, consta registro de reunião
feita com a representante da Associação de Moradores, Sra. Lurdes Salete de Castro8, nos
termos que seguem:
INCÊNDIO NA COMUNIDADE DA ILHA DO PAVÃO:
CASAS EM MADEIRA ABANDONADAS, DESABITADAS:
RISCO DE NOVO INCÊNDIO PONDO EM PERIGO QUEM
HABITA O LOCAL:
FICA DECIDIDO POR OPÇÃO DA REPRESENTANTE DOS
MORADORES O DESMONTE DAS 16 CASAS INABITADAS, REGISTRO FEITO PELO NEJ N. 00911 BEM COMO REGISTROS
FOTOGRAFICOS, ASSINADA PELA PARTE INICIALMENTE
CITADA.
[...]
PEDE-SE O APOIO DA CONCEPA E DA POLÍCIA RODOVIÁRIA
FEDERAL NO ACOMPANHAMENTO DA OPERAÇÃO DE
DESMONTE DAS CASAS.
A CONCEPA, na CARTA JUR 022/2017, confirmou que houve a retirada de
escombros do incêndio e de casas inabitadas, sendo, portanto, de duas espécies diferentes
– havia casas e escombros, ambos foram retirados com o auxílio do MPOA, PRF e BM
por opção da representante dos moradores.
14 de agosto - Houve solicitação da Prefeitura de Porto Alegre para a
limpeza do local com a retirada de escombros e das casas abandonadas,
conforme pedido da comunidade. [...]
Fim: 15 a 25 de agosto – Início da operação para a retirada dos
escombros decorrentes do incêndio e das moradias abandonadas, em
ação conjunta com a Prefeitura de Porto Alegre, Polícia Rodoviária
Federal e Brigada Militar.
[...]
7 Trecho do voto da Ministra Relatora Nancy Andrighi no REsp 1095575/SP, Rel. Ministra NANCY
ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2012, DJe 26/03/2013. 8 Registro de Reunião. Documentos anexos a Carta Jur 02/2017 – CONCEPA.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
22
Imperioso ressaltar que as moradias retiradas se encontravam
desocupadas desde o final do mês de junho, conforme informações da
comunidade, em função da disputa do tráfico pelo local.
Como pode ser observado, a própria CONCEPA em seu relato – bem como é feito
no Registro de Reunião – diferencia o que seria escombros do incêndio (não que isso
legitime o desmonte das casas sem anuência dos moradores destas) e o que seriam
moradias abandonadas. Reconhece, portanto, a existência de casas que não foram vítimas
do fogo – ou, se foram, não as prejudicou a ponto de tornarem-se inabitáveis – e somente
estavam sem moradores no momento. Frise-se que, desde o último incêndio até a
destruição total das casas pela ré, se passaram menos de um mês – tempo que a
concessionária, Município de Porto Alegre, PRF e BM consideraram suficiente para
considerar abandonada, inabitada, uma residência que foi ocupada por anos pelas
famílias.
Sobre a situação das casas estarem inabitadas, a concessionária ressalta que quem
afirmou tal condição foi a comunidade que restou no local, sendo que as pessoas teriam
– temporariamente – deixado o local devido ao tráfico. Isto é, a empresa concessionária,
ignorando a guerra do tráfico existente no local, ingenuamente acreditou que as
pessoas que permaneceram no local (e, portanto, não estavam sendo ameaçadas pelo
novo comando) iriam dar informações contrárias aos seus interesses. Essa
ingenuidade não é apenas inverossímil, como, também, inverte qualquer lógica do
razoável.
Ressalta-se: nenhum dos entes pode argumentar a ignorância sobre a atual
situação da Ilha e crer que a palavra de uma alegada representante da Comunidade de que
aquelas casas eram inabitadas bastaria para destruir a moradia de alguém, sem nem ao
menos tomar medidas mínimas para buscar consultar o real morador.
Dito de outro modo, tendo conhecimento de que as pessoas se ausentaram de seus
domicílios devido ao tráfico, a CONCEPA simplesmente supôs que as pessoas que ali
moravam há anos, quando não há décadas, iriam abandonar totalmente a sua moradia e
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
23
seus pertences9 – e, portanto, destruiu as casas, deixando famílias multivulneráveis
desabrigadas, não tendo onde dormir, trabalhar, realizar sua higiene ou se alimentar.
Por fim, consoante entendimento do STJ abaixo transcrito, cabe aos réus
provarem as excludentes de causalidade, sendo caso de inversão do ônus probatório,
bastando à parte autora a arguição do dano, o qual é amplamente provado nos documentos
anexos, inclusive colacionados pela própria concessionária:
RESPONSABILIDADE CIVIL. CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO
PÚBLICO.
ELETROCUSSÃO. MORTE DE MENOR. VIOLAÇÃO AO ARTIGO
535 DO CÓD. DE PROC. CIVIL. INOCORRÊNCIA. TEORIA DO
RISCO OBJETIVO. APLICABILIDADE.
CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. INADMISSIBILIDADE.
DESPESAS DE LUTO E FUNERAL. FATO CERTO.
PENSIONAMENTO DOS PAIS. POSSIBILIDADE.
CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL. PRECEDENTES. DANOS
MORAIS. VALOR RAZOÁVEL.
I. Inexiste a alegada ofensa ao artigo 535 do Código de Processo Civil,
eis que as questões trazidas pela recorrente foram todas apreciadas pelo
acórdão impugnado, naquilo que pareceu ao colegiado julgador
pertinente à apreciação do recurso, com análise e avaliação dos
elementos de convicção carreados para os autos.
II - A obrigação das empresas concessionárias de serviços públicos de
indenizar os danos causados à esfera juridicamente protegida dos
particulares, a despeito de ser governada pela teoria do risco
administrativo, de modo a dispensar a comprovação da culpa, origina-
se da responsabilidade civil contratual.
III - Consoante deflui do disposto no artigo 37, § 6º, da Constituição
Federal, basta ao autor demonstrar a existência do dano para haver
a indenização pleiteada, ficando a cargo da ré o ônus de provar a
causa excludente alegada, o que, segundo as instâncias ordinárias,
não logrou fazer.
IV - No tocante às despesas de funeral, a jurisprudência desta Corte
tem-se inclinado no sentido de inexigir a prova da realização dos gastos,
em razão da certeza do fato do sepultamento. Ademais, tendo o tribunal
local afirmado a existência de despesas com funerais, a pretensão de
exclusão das referidas despesas encontra óbice no enunciado da Súmula
07 deste Tribunal.
V - A morte de menor em acidente, mesmo que à data do óbito ainda
não exercesse atividade laboral remunerada, autoriza os pais, quando
9 Conforme matéria jornalística, “Com a intenção de retornarem em algum momento, deixaram os móveis
e até cachorros nas casas, sob os cuidados dos vizinhos que continuaram na Ilha. Quando decidiram
retornar, depararam com tratores e caminhões demolindo as casas de madeira da entrada da Pavão”.
(Ex-moradores da Ilha do Pavão são transferidos para prédio público. Diário Gaúcho. 25/8/2017.
Disponível em <http://diariogaucho.clicrbs.com.br/rs/dia-a-dia/noticia/2017/08/ex-moradores-da-ilha-do-
pavao-sao-transferidos-para-predio-publico-9879779.html>)
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
24
de baixa renda, a pedir ao responsável pelo sinistro a indenização por
danos materiais, aqueles resultantes do auxílio que futuramente o filho
poderia prestar-lhes.
VI - Em face da realidade econômica do país, que não mais permite
supor a estabilidade, longevidade e saúde empresariais, de modo a
permitir a dispensa de garantia, a Segunda Seção deste Tribunal, no
julgamento do Recurso Especial nº 302.304/RJ pacificou posição,
afirmando a impossibilidade da substituição de capital, prevista na lei
processual civil, pela inclusão do beneficiário de pensão em folha de
pagamento.
VII - A estipulação do valor da indenização por danos morais pode ser
revista neste Tribunal quando contrariar a lei ou o bom senso,
mostrando-se irrisório ou exorbitante, o que não se verifica na hipótese
dos autos.
Recurso especial não conhecido.
(REsp 506.099/MT, Rel. Ministro CASTRO FILHO, TERCEIRA
TURMA, julgado em 16/12/2003, DJ 10/02/2004, p. 249)
À vista destas colocações, inequívoca a responsabilidade civil da CONCEPA
pelos danos causados às famílias desalojadas da Ilha do Pavão.
III.2.2.2. Da responsabilidade da União, da ANTT e do DNIT
De início, assente-se que a BR-290, cuja faixa de domínio era ocupada pelos
moradores atingidos, pertence à União, e é concedida à CONCEPA, o que é público e
notório.
Assim, as famílias desalojadas permaneceram por décadas em local de
propriedade da União, com a anuência desta e, depois, da concessionária da rodovia.
O Poder Público não pode se eximir das violações de direitos humanos ocorridas
em sua área de domínio por empresa para a qual foi delegada a prestação de serviços
públicos, nos termos do art. 37, § 6º, da CRFB. Dito de outro modo, sendo a área de sua
propriedade, deve ter ciência e tomar as medidas necessárias para que a ordem
constitucional seja mantida.
A simples concessão para prestação dos serviços públicos não exime per se que a
União deixe de tutelar os objetivos da República, de erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CRFB, art. 3º, III) e
garantir os direitos sociais (CRFB, art. 6º).
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
25
Muito menos a concessão exime a União de fazer serem respeitados os diplomas
internacionais de Direitos Humanos que firmou. Muito ao revés, cabe à União primar
para que haja respeito à eficácia horizontal dos Direitos Humanos (Drittwirkung), sob
pena, inclusive, de responsabilização internacional10, como já ocorrido no caso Caso
Ximenes Lopes vs. Brasil, que tramitou perante a Corte Interamericana de Direitos
Humanos, levando à condenação do Brasil por violações perpetradas por uma casa de
repouso particular.
Por evidente, sabe-se que a responsabilidade internacional estatal por violações
particulares não é ilimitada: ela “se configura cuando los Estados son cómplices o toleran
las acciones de los particulares que vulneran los derechos humanos”11. No entanto,
atuando a CONCEPA com poderes típicos do Estado, seja em razão da concessão
realizada, seja em razão do abono de outros órgãos públicos para a remoção realizada, é
inequívoca a possibilidade de responsabilização internacional da União pela violação aqui
retratada.
De outro lado, conforme documentado pela CONCEPA na CARTA JUR
022/2017, acima citada, a remoção se deu em ação conjunta, inclusive, com a Polícia
Rodoviária Federal, órgão pertencente à estrutura do Ministério da Justiça.
A sua vez, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) é entidade
integrante da administração federal indireta, submetida ao regime autárquico especial e
vinculada ao Ministério dos Transportes. A ANTT atua na exploração da infraestrutura
rodoviária federal (art. 22, V da Lei 10.233/01).
A ANTT tem como atribuição legal “fiscalizar a prestação dos serviços e a
manutenção dos bens arrendados, cumprindo e fazendo cumprir as cláusulas e condições
10 “De esta manera, el Estado adquiere la obligación positiva de adoptar las medidas necesarias para
asegurar la efectiva protección de los derechos humanos en las relaciones interindividuales, es decir el
deber jurídico de prevenir, razonablemente, las violaciones a los derechos humanos de los individuos que
se encuentran bajo su jurisdicción, reconociendo así los efectos de la Convención Americana vis-à-vis de
terceros (el denominado Drittwirkung), sin el cual las obligaciones convencionales de protección se
reducirían a poco más que letra muerta” (ARDILA, Felipe Medina. La Responsabildad Internacional
de Estado por actos particulares: análisis jurisprudencial interamericano. Disponível em
<http://www.corteidh.or.cr/tablas/r26724.pdf>, acesso em 3 fev 2018, p. 17). 11 ARDILA, ib idem, p. 22.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
26
avençadas nas outorgas e aplicando penalidades pelo seu descumprimento”, nos termos
do inciso VIII do art. 24 da referida Lei.
No sentido ora defendido, a jurisprudência do e. Tribunal Regional Federal da 4ª
Região reconhece que a simples concessão não exime a responsabilidade fiscalizatória do
ente conforme inciso supracitado, verbis:
ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE
REINTEGRAÇÃO DE POSSE AJUIZADA POR
CONCESSIONÁRIA DA ANTT. IMÓVEL LOCALIZADO NA
FAIXA DE DOMÍNIO DE RODOVIA FEDERAL. INTERESSE
JURÍDICO DA ANTT. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1.
Embora o contrato de concessão estabeleça ser responsabilidade da
concessionária a manutenção da integridade da faixa de domínio,
devendo adotar, inclusive, as providências judiciais necessárias à
garantia do patrimônio das rodovias que compõem o lote
rodoviário objeto do contrato, é dever da ANTT a fiscalização e
manutenção dos bens outorgados nas concessões para
administração de rodovias (art. 24-VIII da Lei nº 10.233 /2001). Além disso, em se tratando de reintegração de posse de bem público
federal, a atuação da ANTT parece ir além das atribuições decorrentes
de sua condição de agente regulador ou fiscalizador, ante a presença de
interesse público a ser protegido, o que evidencia o interesse jurídico e
autoriza seu ingresso no feito como assistente simples da parte autora.
(TRF4, AG 5024679-39.2014.4.04.0000, QUARTA TURMA, Relatora
VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA, juntado aos autos em
20/03/2015)
Por sua vez, o DNIT, pessoa jurídica de direito público, submetido ao regime de
autarquia, vinculado ao Ministério dos Transportes, foi criado e é regulado pela Lei nº
10.233/2001, que prevê seus objetivos, atribuições e responsabilidades, nos termos que
seguem:
Art. 82. São atribuições do DNIT, em sua esfera de atuação:
IV - administrar, diretamente ou por meio de convênios de delegação
ou cooperação, os programas de operação, manutenção, conservação,
restauração e reposição de rodovias, ferrovias, vias navegáveis, eclusas
ou outros dispositivos de transposição hidroviária de níveis, em
hidrovias situadas em corpos de água de domínio da União, e
instalações portuárias públicas de pequeno porte; (Redação dada pela
Lei nº 13.081, de 2015)
V - gerenciar, diretamente ou por meio de convênios de delegação ou
cooperação, projetos e obras de construção e ampliação de rodovias,
ferrovias, vias navegáveis, eclusas ou outros dispositivos de
transposição hidroviária de níveis, em hidrovias situadas em corpos de
água da União, e instalações portuárias públicas de pequeno porte,
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
27
decorrentes de investimentos programados pelo Ministério dos
Transportes e autorizados pelo orçamento geral da União; (Redação
dada pela Lei nº 13.081, de 2015)
Art. 83. Na contratação de programas, projetos e obras decorrentes do
exercício direto das atribuições de que trata o art. 82, o DNIT deverá
zelar pelo cumprimento das boas normas de concorrência, fazendo com
que os procedimentos de divulgação de editais, julgamento de licitações
e celebração de contratos se processem em fiel obediência aos preceitos
da legislação vigente, revelando transparência e fomentando a
competição, em defesa do interesse público. (Redação dada pela
Medida Provisória nº 2.217-3, de 4.9.2001)
Parágrafo único. O DNIT fiscalizará o cumprimento das condições
contratuais, quanto às especificações técnicas, aos preços e seus
reajustamentos, aos prazos e cronogramas, para o controle da qualidade,
dos custos e do retorno econômico dos investimentos.
Art. 84. No exercício das atribuições previstas nos incisos IV e V do art.
82, o DNIT poderá firmar convênios de delegação ou cooperação com
órgãos e entidades da Administração Pública Federal, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, buscando a descentralização e a
gerência eficiente dos programas e projetos.
§ 1º Os convênios deverão conter compromisso de cumprimento, por
parte das entidades delegatárias, dos princípios e diretrizes
estabelecidos nesta Lei, particularmente quanto aos preceitos do art. 83.
§ 2º O DNIT supervisionará os convênios de delegação, podendo
denunciá-los ao verificar o descumprimento de seus objetivos e
preceitos. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.217-3, de
4.9.2001)
Da mesma forma, a legislação supra preceitua que o DNIT deve fiscalizar as ações
e, portanto, responde solidariamente por danos ocorridos em sua área de domínio quando,
por ato comissivo, não fiscaliza as ações da concessionária e permite que esta cometa atos
que vão além das suas atribuições, lesionando pessoas como no caso em tela.
Nos termos da lei e conforme jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 4ª
Região:
ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE
DE TRÂNSITO. TETRAPLEGIA. DANO MORAL. DANO
MATERIAL. DANO ESTÉTICO. PENSÃO. É o DNIT - Departamento
Nacional de Infra-Estrutura de Transportes parte legítima para figurar
no pólo passivo de ação de ressarcimento por danos ocorridos em
acidente de trânsito em rodovia federal mal sinalizada. É concessionária
parte legítima para figurar no pólo passiva desta ação em decorrência
das cláusulas do contrato de concessão e seus anexos, que prevêem a o
dever de utilização de meio efetivos de segurança quando da realização
das obras na rodovia federal. Como a autora fundamenta seu pedido
inicial na falta de segurança e conservação da rodovia, deve a
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
28
concessionária integrar a lide. Estão demonstrados os requisitos para a
configuração do dever de indenizar, a saber: a) o fato (acidente de
trânsito); b) a omissão estatal revelada na falha de serviço na via
pública; c) o dano (tetraplegia na vítima); d) o nexo de causalidade; e)
a inexistência de culpa exclusiva da vítima/terceiros, caso fortuito e
força maior. Desta forma, respondem os réus, solidariamente, pelos
danos materiais, morais, estéticos que causaram a autora e pelo
pagamento de pensão. (TRF4, AC 5019312-70.2011.404.7200, Quarta
Turma, Relator Desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Junior,
julgamento 21.01.2014.)12 (original não grifado) ADMINISTRATIVO. DANO MORAL. DNIT. LEGITIMIDADE
PASSIVA. ACIDENTE. BURACO. RODOVIA. O DNIT detém
legitimidade para figurar no polo passivo do presente feito, na medida
em que o acidente se deu em razão de obras realizadas por construtora
contratada pela autarquia ré e para a duplicação da rodovia federal BR-
101. A responsabilidade extracontratual do Estado - que emerge do
preceito esculpido no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal - nos casos
em que os danos não são causados por atos comissivos dos agentes
estatais, mas, sim, por deficiência nos serviços, cuja prestação o
legislador atribuiu precipuamente à Administração Pública, é de ordem
12 Decisão confirmada pelo STJ: PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ACIDENTE. RODOVIA EM OBRAS. TETRAPLEGIA.
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO ESTADO E DA CONCESSIONÁRIA. ACÓRDÃO.
OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. JULGADO CITRA E ULTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. NEXO
CAUSAL E CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA. CIRCUNSTÂNCIAS FÁTICAS E PROBATÓRIAS.
VALOR DO DANO MORAL. EXAME. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. JUROS
MORATÓRIOS E CORREÇÃO MONETÁRIA. TERMO INICIAL. SÚMULAS 54/STJ E 362/STJ.
DENUNCIAÇÃO DA LIDE. PODER PÚBLICO. DESNECESSIDADE. CELERIDADE PROCESSUAL.
RECURSO DESPROVIDO. 1. Hipótese que cuida de indenização deferida à recorrida, em razão de
acidente ocorrido em 23/11/2009, na Rodovia BR - 101, sob a administração da concessionária recorrente,
que lhe causou tetraplegia traumática definitiva, tendo o acórdão de origem condenado (também) a
concessionária e o DNIT, de forma solidária. O particular causador do acidente já fora condenado pela
sentença. 2. O acórdão que, apesar de não mencionar expressamente todos os dispositivos legais destacados
pelo recorrente, aborda na íntegra os pontos essenciais para o deslinde da controvérsia, não incorre em
violação ao comando normativo inserto no art. 535 do CPC. 3. Nexo causal e culpa exclusiva da vítima,
via de regra, caracterizam-se como circunstâncias fáticas inviáveis de exame em recurso especial, haja vista
a necessidade de incursão no contexto probatório, incidindo a súmula 7/STJ. 4. Da mesma forma, o valor
dos danos morais somente pode ser revisto pelo STJ quando for ínfimo ou exorbitante em face das
circunstâncias do caso, não sendo cabível, no âmbito da Corte, o reexame de "justo" e/ou das provas dos
autos, situação que também atrai o óbice contido na súmula 7/STJ. 5. Consoante jurisprudência desta Corte
Superior de Justiça, os juros moratórios inerentes aos danos morais incidem desde a data do evento,
mediante aplicação da súmula 54/STJ (Recurso representativo da controvérsia nº 1132866/SP). A correção
monetária, desde a data do arbitramento, nos moldes do enunciado da súmula 362/STJ ("A correção
monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento.") 6. A
obrigatoriedade da denunciação da lide deve ser mitigada em ações indenizatórias propostas em face do
poder público pela matriz da responsabilidade objetiva (art. 37, § 6º - CF). O incidente quase sempre milita
na contramão da celeridade processual, em detrimento do agente vitimado. Isso, todavia, não inibe
eventuais ações posteriores fundadas em direito de regresso, a tempo e modo. 7. Recurso especial da
AUTOPISTA LITORAL SUL S.A. desprovido. (REsp 1501216/SC, Rel. Ministro OLINDO MENEZES
(DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 1ª REGIÃO), PRIMEIRA TURMA, julgado em
16/02/2016, DJe 22/02/2016)
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
29
subjetiva. No caso, restou caracterizada a omissão culposa do
próprio DNIT, que foi negligente ao não fiscalizar devidamente a
obra executada pela construtora contratada e não impedir que esta
viesse a provocar danos a terceiros. A execução do serviço pela
construtora se deu de forma faltosa e imperfeita. A partir da vigência da
Lei nº 11.960/09 (30/06/2009), devem incidir, uma única vez, até o
efetivo pagamento, os índices oficiais de remuneração básica e juros
aplicados à caderneta de poupança, nos termos da nova redação do art.
1º-F da Lei nº 9.494/97 conferida pela Lei nº 11.960/09. (TRF4, AC
5000275-36.2011.404.7207, Quarta Turma, Relator p/ Acórdão
Candido Alfredo Silva Leal Junior, D.E. 21/03/2013) (grifei)
A União, ANTT e o DNIT podem delegar as suas atribuições para pessoas
jurídicas, inclusive de direito privado. Isto, contudo, não os exime da responsabilidade
sobre a fiscalização e das indenizações decorrentes por omissão sua em área de domínio
seu. Estes estavam cientes de que as pessoas moravam há décadas na região, e jamais
tomaram qualquer medida para retirada destes, cientes disto, nenhuma ação tomaram
quando a CONCEPA decidiu, unilateralmente, sem sequer algum tipo de processo
administrativo com contraditório, demolir as residências das famílias ora assistidas pela
Defensoria Pública.
Em síntese: (a) sendo a União a proprietária da rodovia BR-290, (b) tratando-se
a ANTT da entidade autárquica responsável pela fiscalização das concessões rodoviárias,
(c) à luz do art. 82 e ss. da Lei nº 10.233/2001, (c) tendo havido a participação da Polícia
Rodoviária Federal na remoção, e (d) considerando a responsabilidade estatal pelo
respeito a Direitos Humanos, inclusive com possibilidade de responsabilização
internacional, máxime dentro de área de domínio seu, estabelecida a responsabilidade
de tais entes.
III.2.2.3. Da responsabilidade do Município de Porto Alegre.
A documentação anexa não deixa maiores dúvidas de que o Município de Porto
Alegre teve participação direta na remoção forçada das famílias desalojadas da Ilha do
Pavão, abonando a conduta da CONCEPA e lhe fornecendo subsídios materiais.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
30
A própria CONCEPA, repita-se, documenta, na já citada CARTA JUR 022/2017,
que houve solicitação do MPOA para a remoção de escombros e casa supostamente
abandonadas, e que a ação se deu de forma conjunta com a Prefeitura Municipal:
14 de agosto - Houve solicitação da Prefeitura de Porto Alegre para a
limpeza do local com a retirada de escombros e das casas abandonadas,
conforme pedido da comunidade. [...]
Fim: 15 a 25 de agosto – Início da operação para a retirada dos
escombros decorrentes do incêndio e das moradias abandonadas, em
ação conjunta com a Prefeitura de Porto Alegre, Polícia Rodoviária
Federal e Brigada Militar.
[...]
Imperioso ressaltar que as moradias retiradas se encontravam
desocupadas desde o final do mês de junho, conforme informações da
comunidade, em função da disputa do tráfico pelo local.
Há, pois, evidente conduta Municipal, bem como nexo causal com o resultado
danoso, pelo que é o Município de Porto Alegre também responsável pelo
reassentamento das famílias, despiciendo falar em culpa, porquanto de índole objetiva a
responsabilidade em tela, comissiva que é.
Em acréscimo, assente-se que o Município tanto reconhece a sua responsabilidade
que foi ele que concedeu a escola para que as famílias permanecessem durante este
ínterim em que não se soluciona a moradia definitiva deste.
III.2.2.4. Da política pública habitacional. Do papel do Poder Judiciário em sua
efetivação.
De início, assente-se que, na compreensão das demandantes, não versa o presente
feito sobre a efetivação de políticas públicas, mas, sim, de responsabilidade civil por ato
danoso praticado, em conjunto, por atores públicos e privados.
De todo modo, caso se argumente que as Defensorias pretendem a intervenção
judicial nas políticas públicas de moradia, cabe ressaltar que, como já explanado, o direito
à moradia é internacional e nacionalmente tutelado, sendo um dever do Estado em todas
as suas esferas a sua garantia enquanto direito social previsto na Constituição da
República. Tratando-se de mínimo existencial, tal direito pode ser exigido quando da sua
não efetivação.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
31
A Jurisprudência é uníssona no sentido de ser defeso invocar a reserva do possível
para recusar prestações que consubstanciam o mínimo existencial, e.g.:
(...) A CONTROVÉRSIA PERTINENTE “RESERVADO POSSÍVEL”
E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A
QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de
recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar
situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas
definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria
implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da
República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao
Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados
valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o
Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela
insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a
verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo
parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em
perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a
conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na
própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da
reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público,
com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a
implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição
- encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo
existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo,
emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa
humana. Doutrina.Precedentes.
- A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de
determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III),
compreende um complexo de prerrogativas cujaconcretização revela-se
capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem
a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e,
também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da
plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação,
o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à
saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à
alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos
da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV). (...) (STF - ARE 639337
AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado
em 23/08/2011, publicado em 15/09/2011 –grifou-se).
Da ótica constitucional, é manifesto que execuções de políticas públicas para
promoção de efetivação de direitos fundamentais – tais como o direito à incolumidade
física, à moradia em espaços urbanizados e ao meio ambiente equilibrado – gozam de
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
32
prioridade máxima, sendo descabida a avocação de escusas voltadas a evadir os entes de
suas responsabilidades.
Afasta-se, desde já, a clássica objeção de que o Poder Judiciário não tem
competência, pelo princípio da divisão de Poderes13, para julgar “questões políticas14”.
O papel do Poder Judiciário é observar se as normas vêm sendo cumpridas,
limitando o abuso de poder e, quando necessário, ordenar que o Executivo concretize as
políticas públicas, de maneira a proteger os dispositivos constitucionais.
A respeito, forçoso consignar a diretriz jurisprudencial do Supremo Tribunal
Federal:
O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias
constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da
Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as
atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular
exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado
pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de
poderes. Desse modo, não se revela lícito afirmar, na hipótese de
desvios jurídico-constitucionais nas quais incida uma Comissão
Parlamentar de Inquérito, que o exercício da atividade de controle
jurisdicional possa traduzir situação de ilegítima interferência na esfera
de outro Poder da República. (STF, Pleno, MS 23452/RJ, Rel. Min.
Celso de Mello, DJ 12.05.2000, p. 20.)
De igual modo, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, para o qual:
A determinação judicial desse dever pelo Estado, não encerra suposta
ingerência do judiciário na esfera da administração. Deveras, não há
discricionariedade do administrador frente aos direitos consagrados,
quiçá constitucionalmente. Nesse campo a atividade é vinculada sem
admissão de qualquer exegese que vise afastar a garantia pétrea. (STJ,
1. T, REsp 736524/SP, Rel. Min. Luiz Fux, DJ 03.04.2006, p. 256.)
13 “A separação de poderes em si mesma não representa um obstáculo lógico ao controle pelo Judiciário
das ações ou omissões inconstitucionais praticadas pelo Poder Público (...)”, dessa forma, “nem a separação
dos poderes nem o princípio majoritário são absolutos em si mesmos, sendo possível excepcioná-los em
determinadas hipóteses, especialmente quando se tratar da garantia dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana”. BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios
Constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 207-325. 14 COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In:
Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35 n. 138 abr./jun. 1998.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
33
O Ministro Luiz Fux acrescentou, na mesma assentada, que a “Constituição
Federal consagra um direito e a norma infraconstitucional o explicita, impondo-se ao
judiciário torná-lo realidade, ainda que para isso, resulte obrigação de fazer, com
repercussão na esfera orçamentária”. Ao final, conclui que:
Ressoa evidente que toda imposição jurisdicional à Fazenda Pública
implica em dispêndio e atuar, sem que isso infrinja a harmonia dos
poderes, porquanto no regime democrático e no estado de direito o
Estado soberano submete-se à própria justiça que instituiu. Afastada,
assim, a ingerência entre os poderes, o judiciário, alegado o
malferimento da lei, nada mais fez do que cumpri-la ao determinar a
realização prática da promessa constitucional.
Todos os operadores do direito, e, em especial o magistrado15, exercem decisivo
papel de verificação de compatibilidade da norma infraconstitucional, material ou formal,
ao compará-la com o Texto Magno.
Assim sendo, não há violação à separação dos poderes, uma vez que “compete ao
judiciário determinar o fornecimento do mínimo existencial independentemente de
qualquer outra coisa, como decorrência das normas constitucionais sobre a dignidade
humana e sobre a saúde. E de acordo com a mesma autora “o mínimo existencial
corresponde ao conjunto de situações materiais indispensáveis à existência humana
digna.”16
Na LOA/2018 do MPOA, há a previsão do Programa Porto Alegre para Todos
que objetiva “promover o desenvolvimento social como forma de inclusão, garantia dos
direitos humanos e redução da pobreza, atuando com ações que busquem a emancipação
dos cidadãos e a inclusão social através de políticas públicas de assistência social,
moradia, capacitação e inserção produtiva e acessibilidade”17. Além disso, há destinação
total de mais de trinta milhões de reais para projetos de reassentamentos a serem
executados pelo DEMHAB18.
15 “Ele não deve ser um autômato aplicador da lei, mas sim o mais crítico intérprete, sempre com os olhos
voltados para os direitos fundamentais conquistados a duras penas, em um Estado constitucional de
Direito.” FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantías; la ley Del mas débil, p. 26 Apud GRECO, Rogério.
Curso de direito penal: parte geral. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2002, p. 109. 16 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 274. 17 Lei Orçamentária Anual 2018, Prefeitura de Porto Alegre, p. VI. 18 Lei Orçamentária Anual 2018, Prefeitura de Porto Alegre, p. 218.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
34
Portanto, no caso em questão, mesmo que se entenda que se debatem políticas
públicas, cabe ao Judiciário exigir do Poder Público a efetivação do direito social à
moradia, compelindo os demandados, de modo solidário, a realizar as políticas públicas
sob sua responsabilidade, a fim de reassentar as famílias que agora estão totalmente
desamparados e desabrigados, como a efetivação e direito social constitucional e garantia
do mínimo existencial.
A forma de materialização de tal política será vista adiante.
III.2.2.5. Da responsabilidade do Estado do Rio Grande do Sul: Da omissão
inconstitucional
É mais comum do que seria razoável, nas diferentes esferas federativas do Brasil,
reiterada postura omissiva do Poder Público, quedando-se inerte quanto às suas
competências legais e constitucionais.
Importante salientar que a omissão estatal viola flagrantemente os preceitos e
princípios contidos na Constituição da República, uma vez que impede, por ausência ou
insuficiência de medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos seus postulados.
No caso em análise, a omissão afigura-se como específica, ou seja, aquela em que
o poder público, ciente de eventuais adversidades, mantém-se inerte, criando, por
consequência, ocasião para ocorrência do evento em situação que tinha a obrigação de
agir para coibi-lo, saná-lo ou amenizá-lo.
O Estado do Rio Grande do Sul é ciente da guerra entre facções e da insegurança
crescente que acomete os habitantes da Ilha do Pavão, sem que tome atitudes
minimamente suficientes para resolver o conflito, somente buscando que esse não se
espalhe e deixando os moradores da Ilha à própria sorte, sem a devida tutela do Estado.
É conhecimento geral que as populações marginalizadas – aqui no sentido técnico
de estarem “às margens” da sociedade – têm um “direito próprio”19, sua própria
regulação, com as figuras centrais das facções exercendo o papel que deveria ser do
19 Direito vivo na concepção de Ehrlich (EHRLICH, E. Fundamentos de Sociologia do Direito. Brasília:
UnB, 1986); ou direito achado na rua, como preceituado por Souza Junior (SOUZA JR, J. G. (Org.). O
Direito achado na rua. Brasília: UnB, 1988.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
35
Estado, provendo segurança a quem permanece ao lado delas e “fazendo justiça” a seu
bel prazer para quem não se alinha com a facção.
O Estado, omisso no seu dever constitucional de prover a segurança à população,
permitiu que se chegasse ao ponto de famílias serem expulsas de suas próprias residências
devido ao medo e ao risco de vida que sofriam, sem que nenhuma atitude fosse tomada
para ao menos minimizar a situação de total abandonado destas famílias, que já viviam
em situações de multivulnerabilidade por residirem em área não regularizada (sem direito
à moradia), em situação de pobreza, com baixa escolaridade e trabalhando de forma
informal para garantir um mínimo existencial – o qual nem sequer é alcançável quando
estas famílias ficam desprovidas de suas residências, permanecendo em local impróprio
para habitação, qual seja, uma escola!
Eis, em síntese, a omissão inconstitucional e violadora de Direitos Humanos do
Estado do Rio Grande do Sul, o que o leva a estar, também, no polo passivo desta
demanda coletiva.
III.2.3. Das Indenizações e Reparações
III.2.3.1. Da indenização pelo dano material. Da compra assistida e do Bônus-
Moradia
Estabelecida a responsabilidade da CONCEPA, da União, do DNIT, da ANTT e
do MPOA pela violação ao direito de moradia, é necessário divisar a forma de reparar os
danos impingidos.
A indenização do dano segue o princípio da reparação integral, consagrado no art.
944 do Código Civil, o qual preceitua que a reparação deverá se dar na mesma proporção
do dano.
O principal objeto da demanda é, por evidente, a reparação do dano in natura, isto
é, indenizando as famílias com novas residências. Todavia, não se pode perder de mira a
situação de extrema vulnerabilidade das famílias desabrigadas e as dificuldades que estas
teriam em encontrar um local para moradia e reconstruir as suas próprias casas.
Deve-se, portanto, buscar alternativas que otimizem a solução dos danos
causados, restabelecendo a dignidade das famílias atingidas.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
36
Nesse viés, no âmbito do Município de Porto Alegre, tem-se o programa
denominado Bônus-Moradia, instituído pela Lei Municipal nº 10.443/200820 (para o
bônus destinado à indenização e ao reassentamento de famílias ocupantes de áreas a serem
liberadas para o Programa Integrado Socioambiental (PISA) do Município de Porto
Alegre) e pela Lei Municipal nº 11.229/201221 (para o bônus destinado à indenização e
ao reassentamento de famílias ocupantes de áreas de risco, ou residentes em áreas que
deverão ser liberadas para permitir a execução de obras de infraestrutura urbana no
Município de Porto Alegre).
Tal valor, em síntese, serve para que as famílias reassentadas adquiram um novo
imóvel.
A Lei nº 10.443/2008 foi regulamentada, de modo mais recente, pelo Decreto nº
19.832, de 11/9/201722, a estabelecer o valor máximo de 56,46389 CUBs23 padrão baixo,
o que, em valores atuais, corresponde a cerca de R$ 78.500,00. De acordo com o art. 1º,
parágrafo único, do Decreto, a conversão dos CUBs em reais se dá quando da avaliação
do imóvel a ser adquirido com o Bônus-Moradia.
O processo para utilização de tal importe se denomina Compra Assistida, em que
a Prefeitura Municipal, via DEMHAB, realiza todos os trâmites necessários à compra
direta do imóvel, pagando o valor diretamente ao proprietário do imóvel escolhido pela
família reassentada.
In casu, seria possível ventilar o enquadramento das famílias no disposto na Lei
Municipal nº 11.229/2012, já que a violência decorrente do tráfico de entorpecentes
tornou a área anteriormente ocupada pelas famílias como evidente área de risco.
De todo modo, não se pretende a simples inclusão das 36 famílias no programa já
existente, mas, sim, que tal programa sirva de parâmetro à responsabilização dos
agentes. Ademais, não há falar em responsabilidade exclusiva do MPOA, porquanto
20 Disponível em <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cgi-bin/nph-
brs?s1=000029803.DOCN.&l=20&u=%2Fnetahtml%2Fsirel%2Fsimples.html&p=1&r=1&f=G&d=atos
&SECT1=TEXT> 21 Disponível em <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cgi-bin/nph-
brs?s1=000032882.DOCN.&l=20&u=%2Fnetahtml%2Fsirel%2Fsimples.html&p=1&r=1&f=G&d=atos
&SECT1=TEXT> 22 Disponível em <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/netahtml/sirel/atos/Decreto%2019832> 23 Custo Unitário Básico da Construção Civil.
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37
advinda a violação ao direito de moradia também da CONCEPA, da União, da ANTT e
do DNIT, que devem, igualmente, ser responsabilizados.
Assim, afigura-se como mais apropriada para a reparação in natura do dano
perpetrado a realização de Compra Assistida, tendo como parâmetro a política pública
normatizada no Município de Porto Alegre, cabendo (a) solidariamente à CONCEPA, à
União, à ANTT, ao DNIT e ao Município de Porto Alegre, a imediata disponibilização a
cada família desalojada do valor correspondente ao Bônus-Moradia, no importe atual de
R$ 78.500,00 (correspondente a 56,46389 CUBs padrão baixo), a ser calculado quando
da avaliação do imóvel a ser adquirido (art. 1º, parágrafo único, do Decreto/POA nº
19.832/2017), e (b) ao Município de Porto Alegre, de modo célere, as medidas necessárias
à aquisição da moradia, consoante disposições da Lei Municipal nº 11.229/2012.
Não sendo do entendimento do Juízo que é caso de pagamento do valor
correspondente ao Bônus-Moradia, pugna, desde logo, pela produção de prova pericial,
a fim de aferir o valor de cada unidade habitacional que deixou de ser ocupada pelas
famílias desalojadas da Ilha do Pavão.
III.2.3.2. Da necessidade de apuração individual em sede de liquidação quanto
a eventuais danos remanescentes.
De outro vértice, tendo havido a destruição das casas com os bens de uso dentro
delas (ou, então, tendo tais itens sido extraviados por conduta da CONCEPA), a
indenização deverá levar em conta a totalidade desse valor.
Todavia, levando-se em conta a dificuldade de, no momento, apurar os valores
dos bens destruídos (e nem sendo a ACP veículo apropriado para esmiuçar tais detalhes),
é caso de valer do expediente previsto no Código de Defesa do Consumidor, em seu
Capítulo II “Das Ações Coletivas Para a Defesa de Interesses Individuais Homogêneos”
onde está disposto o seguinte:
Art. 95. Em caso de procedência do pedido, a condenação será genérica,
fixando a responsabilidade do réu pelos danos causados.
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38
Assim, quanto ao valor exato da reparação por danos materiais, além das
residências, requer seja fixada a responsabilização genérica, a ser arbitrada em liquidação
individual de sentença.
III.2.3.3. Do dano moral coletivo perpetrado pelos demandados – tutela de
direitos individuais homogêneos
A indenização por dano moral é assegurada no inciso V do art. 5º da CRFB e é
definido por Yussef Said Cahali24 como sendo
tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe
gravemente os valores fundamentais inerentes a sua personalidade ou
reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em
linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los
exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na
tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na
desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação
pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da
normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou
no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral.
Não há, na CRFB ou em qualquer legislação infraconstitucional, restrição para
que os danos morais sejam caracterizados somente no âmbito individual. Possível a
“caracterização de danos morais coletivos, quando ofendidos direitos ou interesses que
extrapolam a esfera individual, a evidenciar lesão extrapatrimonial de natureza
metaindividual, transindividual, ou coletiva”25. Da mesma forma, entendimento do STJ
que reconhece danos morais coletivos, inclusive no bojo de ação civil pública:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART.
535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
DIREITO DO CONSUMIDOR. TELEFONIA. VENDA CASADA.
SERVIÇO E APARELHO. OCORRÊNCIA. DANO MORAL
COLETIVO. CABIMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. Trata-se de ação civil pública apresentada ao fundamento de que a
empresa de telefonia estaria efetuando venda casada, consistente em
impor a aquisição de aparelho telefônico aos consumidores que
demonstrassem interesse em adquirir o serviço de telefonia.
2. Inexiste violação ao art. 535, II do CPC, especialmente porque o
Tribunal a quo apreciou a demanda de forma clara e precisa e as
24 CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.20/21. 25 TRF4 5020840-52.2014.4.04.7001, TERCEIRA TURMA, Relator RICARDO TEIXEIRA DO VALLE
PEREIRA, juntado aos autos em 18/07/2016.
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39
questões de fato e de direito invocadas foram expressamente abordadas,
estando bem delineados os motivos e fundamentos que a embasam,
notadamente no que concerne a alegação de falta de interesse de agir do
Ministério Público de Minas Gerais.
3 – 6. (omissis)
7. A possibilidade de indenização por dano moral está prevista no
art. 5º, inciso V, da Constituição Federal, não havendo restrição da
violação à esfera individual. A evolução da sociedade e da legislação
têm levado a doutrina e a jurisprudência a entender que, quando
são atingidos valores e interesses fundamentais de um grupo, não
há como negar a essa coletividade a defesa do seu patrimônio
imaterial.
8. O dano moral coletivo é a lesão na esfera moral de uma
comunidade, isto é, a violação de direito transindividual de ordem
coletiva, valores de uma sociedade atingidos do ponto de vista
jurídico, de forma a envolver não apenas a dor psíquica, mas
qualquer abalo negativo à moral da coletividade, pois o dano é, na
verdade, apenas a consequência da lesão à esfera extrapatrimonial
de uma pessoa.
9. Há vários julgados desta Corte Superior de Justiça no sentido do
cabimento da condenação por danos morais coletivos em sede de
ação civil pública. Precedentes: EDcl no AgRg no AgRg no REsp
1440847/RJ, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
SEGUNDA TURMA, julgado em 07/10/2014, DJe 15/10/2014, REsp
1269494/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA
TURMA, julgado em 24/09/2013, DJe 01/10/2013; REsp
1367923/RJ, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA
TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 06/09/2013; REsp
1197654/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA
TURMA, julgado em 01/03/2011, DJe 08/03/2012. 10. Esta Corte já se manifestou no sentido de que "não é qualquer
atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano
moral difuso, que dê ensanchas à responsabilidade civil. Ou seja, nem
todo ato ilícito se revela como afronta aos valores de uma comunidade.
Nessa medida, é preciso que o fato transgressor seja de razoável
significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave
o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade
social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva.
(REsp 1.221.756/RJ, Rel. Min. MASSAMI UYEDA, DJe 10.02.2012).
11. A prática de venda casada por parte de operadora de telefonia é
capaz de romper com os limites da tolerância. No momento em que
oferece ao consumidor produto com significativas vantagens - no caso,
o comércio de linha telefônica com valores mais interessantes do que a
de seus concorrentes - e de outro, impõe-lhe a obrigação de aquisição
de um aparelho telefônico por ela comercializado, realiza prática
comercial apta a causar sensação de repulsa coletiva a ato intolerável,
tanto intolerável que encontra proibição expressa em lei.
12. Afastar, da espécie, o dano moral difuso, é fazer tabula rasa da
proibição elencada no art. 39, I, do CDC e, por via reflexa, legitimar
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40
práticas comerciais que afrontem os mais basilares direitos do
consumidor.
13. Recurso especial a que se nega provimento.
(RESP 201301436789, MAURO CAMPBELL MARQUES, STJ -
SEGUNDA TURMA, DJE DATA:10/12/2014) (grifei)
Na destruição das moradias dos assistidos da Defensoria Pública, evidente está a
existência de lesão extrapatrimonial em violação de direitos no aspecto individual
homogêneo ou coletivo em sentido estrito, em que as vítimas são determinadas ou
determináveis. Portanto, a indenização se dá em favor de tais vítimas – desnecessária a
liquidação individual a tanto, visto que mapeadas as famílias, cabendo a cada uma das
famílias uma cota-parte do total reparado.
Assim, a Defensoria Pública requer a condenação dos réus ao pagamento de
indenização por dano moral coletivo, no importe de 500 salários mínimos nacionais
(R$ 477.000,00 em valores de fevereiro/2018), ou outro valor prudentemente arbitrado
por esse Juízo, a ser direcionado às famílias afetadas pela violação noticiada.
III.2.3.4. Dos danos sociais – Estado do Rio Grande do Sul
Na situação em apreço, inegável o sentimento de insegurança gerado à sociedade,
como um todo, em virtude da omissão inconstitucional do Poder Público em garantir local
minimamente seguro e digno para habitação.
Inegáveis, portanto, os danos sociais causados em virtude dos atos ilícitos
perpetrados pelo Estado do Rio Grande do Sul a indivíduos indeterminados, merecedores
assim de tutela jurídica em âmbito difuso.
Neste norte, o dano social é espécie de dano que não se confunde com os danos
materiais, morais e estéticos. Diferencia-se, inclusive, do dano moral coletivo, que dize
respeito à violação de direitos no aspecto individual homogêneo ou coletivo em sentido
estrito – e aqui, reitere-se, se fala de direito difuso.
Feitas tais ressalvas, ainda que de modo breve, cabe ressaltar que os ditos “danos
sociais” são aqueles causados por comportamentos exemplares negativos ou condutas
socialmente reprováveis, como as ora apresentadas.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
41
Segundo explica Flávio Tartuce, “os danos sociais são difusos e a sua indenização
deve ser destinada não para a vítima, mas sim para um fundo de proteção ao consumidor,
ao meio ambiente etc., ou mesmo para uma instituição de caridade, a critério do juiz”26.
A respeito do tema, na V Jornada de Direito Civil do CJF/STJ, realizada entre os
dias 8 e 10 de novembro de 2011, aprovou-se enunciado reconhecendo a existência dos
denominados danos sociais, para além dos danos morais e materiais coletivos:
Enunciado 455: A expressão “dano” no art. 944 abrange não só os danos
individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais,
difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos
legitimados para propor ações coletivas. (grifei)
Na leitura do doutrinador Antônio Junqueira de Azevedo, os danos sociais
consistem em27:
lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu
patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por
diminuição na qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de
indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente,
repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e
de indenização dissuasória, se atos em geral da pessoa jurídica, que
trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população.28
Assim, demonstrada está a necessidade de ser o requerido condenado ao
pagamento de indenização a título de danos sociais, no montante de 500 salários
mínimos (R$ 477.000,00 em valores de fevereiro/2018), ou outro valor
26 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Método, 2013, p. 58. 27 A título ilustrativo, extremamente didática a tabela abaixo:
Disponível em: <http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11307>. 28 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano
social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; p. 376.
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42
prudentemente arbitrado pelo Juízo, a ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos
Difusos, vinculado ao Ministério da Justiça.
III.2.4. Dos Honorários Sucumbenciais
III.2.4.1. Do cabimento de honorários sucumbenciais em ação civil pública
A lei que rege a Ação Civil Pública, Lei nº 7.347/85, é clara em determinar que
somente a parte autora não deverá arcar com os honorários advocatícios, salvo má-fé,
litteris:
Art. 18. Nas ações de que trata esta lei, não haverá adiantamento de
custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer outras despesas,
nem condenação da associação autora, salvo comprovada má-fé, em
honorários de advogado, custas e despesas processuais.
Devem, portanto, os réus vencidos na ação pagar os ônus de sucumbência ao
vencedor, até mesmo porque o art. 18 acima transcrito não os alcança. E outro não é o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça, conforme precedentes abaixo transcritos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO COLETIVA. DIREITO DO
CONSUMIDOR. PRETENSÃO DE RESTABELECIMENTO DO
CANAL GRATUITO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR.
VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA.
ILEGITIMIDADE ATIVA E ILEGITIMIDADE PASSIVA DE
MASTERCARD BRASIL S⁄C LTDA. IMPOSSIBILIDADE DE
CONHECIMENTO. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO QUANTO A
FUNDAMENTO SUFICIENTE PARA A MANUTENÇÃO DO
ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283⁄STF. IMPOSSIBILIDADE
JURÍDICA DO PEDIDO. NÃO CONFIGURAÇÃO.
ILEGITIMIDADE PASSIVA DE VISA DO BRASIL
EMPREENDIMENTOS LTDA. NÃO OCORRÊNCIA.
PRECEDENTES DESTE SUPERIOR TRIBUNAL. CARÊNCIA DE
AÇÃO NÃO CONFIGURADA. EXISTÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE
DISPONIBILIZAR CANAIS GRATUITOS DE ATENDIMENTO AO
CONSUMIDOR. IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME DE
MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 7⁄STJ.
DESNECESSIDADE DE CONVERSÃO DO JULGAMENTO EM
DILIGÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO.
SÚMULA 211⁄STJ. COISA JULGADA COM EFEITO ERGA OMNES
SOBRE TODO O TERRITÓRIO NACIONAL. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS DEVIDOS. 12. Correta a condenação dos réus ao
pagamento de honorários advocatícios, já que o art. 18 da Lei n.
7.347⁄85 apenas dispensa de pagamento o autor de boa-fé da ação civil
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43
pública. (REsp 1.493.031/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 02/02/2016, DJe 10/03/2016)
PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. ART. 18 DA LEI N. 7.347⁄1985. CUMULAÇÃO
DE PEDIDOS INDEPENDENTES ENTRE SI. ACORDO JUDICIAL.
ACEITAÇÃO DE ALGUNS PEDIDOS PELOS RÉUS
INTEGRALMENTE, SEM CONCESSÕES MÚTUAS. AUSÊNCIA
DE TRANSAÇÃO. RECONHECIMENTO DE PEDIDO. 1. Ausência
de contradições, obscuridades ou omissões no acórdão embargado,
tendo em vista que, no voto condutor do acórdão, a condenação na
verba honorária foi suficientemente clara e fundamentada. (EDcl no
REsp 748.242/RJ, Rel. Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta
Turma, julgado em 12/04/2016, DJe 25/04/2016)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO NOS EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. DESERÇÃO. 2. A
isenção prevista no art. 18 da Lei 7.347⁄85 aplica-se apenas à parte
autora da ação civil pública. Precedentes. 3. Agravo não provido"
(AgRg nos ERESp n. 1.347.223⁄RN, Rel. Ministra NANCY
ANDRIGHI, DJe de 25.2.2014).
AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA
OPOSTOS POR RÉU EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESERÇÃO.
ART. 18 DA LEI N. 7.347⁄1985. – Na linha da jurisprudência desta
Corte, a norma do art. 18 da Lei n. 7.347⁄1985, que dispensa o
adiantamento de custas, emolumentos, honorários periciais e quaisquer
outras despesas, dirige-se, apenas, ao autor da ação civil pública.
Agravo regimental improvido" (AgRg nos EAg n. 1.173.621⁄SP, Rel.
Ministro CESAR ASFOR ROCHA, DJe de 22.62012).
CUSTAS. RECOLHIMENTO. AUSÊNCIA. DESERÇÃO. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. ISENÇÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 18,
DA LEI Nº 7.347⁄85. PRECEDENTES. EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. REDISCUSSÃO DA MATÉRIA.
IMPOSSIBILIDADE. II - A decisão embargada pautou-se em firme
posicionamento jurisprudencial desta eg. Corte de Justiça no sentido de
que, a invocação do art. 18, da Lei da Ação Civil Pública como forma
de isentar os ora embargantes das referidas custas, não tem o alcance
por eles pretendido, porquanto tal isenção beneficia apenas a parte
autora da ação que, no caso, é o Ministério Público (AgRg no REsp nº
1.096.146⁄RJ, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, DJe de 19.03.2009,
REsp nº 900.283⁄RS, Rel. p⁄ acórdão Min. CASTRO MEIRA, DJe de
06.02.2009, REsp nº 845.339⁄TO, Rel. Min. LUIZ FUX, DJ de
15.10.2007, p. 237). IV - Embargos de declaração rejeitados" (EDcl no
AgRg nos EREsp n. 1.003.179⁄RO, Rel. Ministro FRANCISCO
FALCÃO, DJe de 7.6.2011).
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
44
No entanto, o Tribunal faz uma ressalva a esta regra, quando o beneficiário dos
honorários é o Ministério Público. Assim, somente a este se aplica o critério de simetria
para não condenar a parte ré ao pagamento de honorários sucumbenciais em favor do MP
pela parte vencida na ação civil pública, conforme precedentes:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. HONORÁRIOS.
DESCABIMENTO. 1. "A jurisprudência da Primeira Seção deste
Superior Tribunal é firme no sentido de que, por critério de absoluta
simetria, no bojo de ação civil pública não cabe a condenação da parte
vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do
Ministério Público" (AgRg no AREsp 21.466/RJ, Rel. Ministro
BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em
13/8/2013, DJe 22/8/2013). 2. Agravo regimental a que se nega
provimento. (AgRg no REsp 1395801/RJ, Rel. Ministro OG
FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/09/2015, DJe
02/10/2015)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. FIXAÇÃO DE
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS EM FAVOR DO MINISTÉRIO
PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. 1. A jurisprudência da Primeira
Seção deste Superior Tribunal é firme no sentido de que, por critério de
absoluta simetria, no bojo de ação civil pública não cabe a condenação
da parte vencida ao pagamento de honorários advocatícios em favor do
Ministério Público. Precedente: EREsp 895.530⁄PR, Rel. Ministra
Eliana Calmon, Primeira Seção, julgado em 26⁄08⁄2009, DJe
18⁄12⁄2009. 2. Agravo regimental não provido. (AgRg no AREsp
21.466⁄RJ, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 13⁄8⁄2013, DJe 22⁄8⁄2013)
Todavia, não há como traçar paralelo com o presente caso, já que a autora é a
Defensoria Pública, a quem, diversamente com o que ocorre com o Parquet, e como
adiante se verá, tem plena legitimidade para receber honorários em razão de sua atuação.
III.2.4.2. Do cabimento de honorários em favor da Defensoria Pública
O tema dos honorários sucumbenciais em favor da Defensoria Pública rendeu – e ainda
rende – variadas discussões, que resultaram, em um momento inicial, no Enunciado n.
421 da Súmula de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça29.
29 “Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa
jurídica de direito público à qual pertença”.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
45
Tal entendimento já foi superado pelo Supremo Tribunal Federal, no bojo da
Ação Rescisória n. 1.937, o qual entendeu cabível a condenação inclusive do mesmo ente
público ao pagamento de honorários em favor da Defensoria Pública.
Eis a ementa do julgado, original não grifado:
Agravo Regimental em Ação Rescisória. 2. Administrativo. Extensão a
servidor civil do índice de 28,86%, concedido aos militares. 3. Juizado
Especial Federal. Cabimento de ação rescisória. Preclusão.
Competência e disciplina previstas constitucionalmente. Aplicação
analógica da Lei 9.099/95. Inviabilidade. Rejeição. 4. Matéria com
repercussão geral reconhecida e decidida após o julgamento da decisão
rescindenda. Súmula 343 STF. Inaplicabilidade. Inovação em sede
recursal. Descabimento. 5. Juros moratórios. Matéria não arguida, em
sede de recurso extraordinário, no processo de origem rescindido.
Limites do Juízo rescisório. 6. Honorários em favor da Defensoria
Pública da União. Mesmo ente público. Condenação. Possibilidade
após EC 80/2014. 7. Ausência de argumentos capazes de infirmar a
decisão agravada. Agravo a que se nega provimento. 8. Majoração dos
honorários advocatícios (art. 85, § 11, do CPC). 9. Agravo interno
manifestamente improcedente em votação unânime. Multa do art.
1.021, § 4º, do CPC, no percentual de 5% do valor atualizado da causa.
A atuação da Defensoria Pública é ampla e enseja a criação de uma consciência
coletiva de cidadania. A garantia individual e coletiva de assistência jurídica gratuita à
população necessitada, estabelecida na Constituição da República, foi uma das conquistas
sociais resultantes do processo de participação popular que ocorreu na Assembleia
Nacional Constituinte.
A condenação dos réus ao pagamento dos ônus sucumbenciais em favor da
Defensoria Pública tem respaldo no inciso XXI, do artigo 4º, da Lei Complementar n.
80/94, com redação dada pela Lei Complementar n. 132, de 7 de outubro de 2009, que
tem o seguinte teor:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
[...]
XXI – executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua
atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos,
destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados,
exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à
capacitação profissional de seus membros e servidores.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
46
O objetivo da norma é evidente: o aparelhamento da Defensoria e a capacitação
de seus membros e servidores em um quadro – lastimavelmente constante – de grandiosas
dificuldades estruturais e financeiras da Defensoria Pública. Ou seja, o fundo de
aparelhamento, constituído pelas verbas decorrentes de condenação em honorários de
sucumbência é de suma importância para Instituição, leia-se, para os destinatários da
assistência jurídica integral e gratuita.
Com isto, conclui-se que são devidos honorários de sucumbência dos réus em
favor da Defensoria Pública.
III.3. DO VALOR DA CAUSA
Tendo sido requerido o valor de R$ 78.500,00 a cada uma das 36 famílias
mapeadas pela DPU, totalizando R$ 2.826.000,00, além de 500 salários mínimos a título
de dano moral coletivo (R$ 477.000,00) e 500 salários mínimos a título de dano social
(R$ 477.000,00), totaliza-se o valor da causa de R$ 3.780.000,00.
IV. DA TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA
A fim de que seja concedida a tutela de urgência, deve-se demonstrar a
verossimilhança das alegações e o perigo da demora ou risco ao resultado útil do processo,
consoante art. 300 do CPC.
Não restam dúvidas, após a longa explanação dos fatos e do direito que embasa a
pretensão, da verossimilhança do direito alegado, inclusive devido a relevância do direito
social tutelado na presente ação que não pode ser ignorado pelo Poder Judiciário.
O periculum in mora é sobremaneira intenso, visto que há inegável possibilidade
de ocorrência de dano irreparável, em razão da situação de miserabilidade que as famílias
se encontram no momento. As famílias, inclusive com idosos e crianças, nem mesmo
continuam a habitar a escola em que permanecerem por alguns meses, devido à pressão
e preconceito dos moradores da localidade (visto que os assistidos são em sua maioria
recicladores), temores quanto à sua segurança e, sobretudo, pela franca ausência de
dignidade do local, que se revelou insalubre e desprovido de estrutura.
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
47
Portanto, é necessário o deferimento da tutela de urgência antecipada, a fim de
cessar, de imediato, ainda que de forma provisória, a grave violação ao direito
fundamental à moradia das famílias desalojadas.
A tanto, entendem as autoras que é adequado compelir a CONCEPA a efetuar um
pagamento mensal às famílias para que estas custeiem provisoriamente suas habitações,
tendo como parâmetro o valor do aluguel social concedido pelo Município de Porto
Alegre, que hoje paga aproximadamente R$ 500,00 (quinhentos Reais) mensais para
aluguel de imóvel30.
Frise-se: não se objetiva a inclusão das famílias no programa municipal,
sabidamente problemático, mas, sim, a que a CONCEPA (diretamente responsável pela
remoção das vítimas) desde logo provenha subsídios mínimos a que as famílias retomem
sua dignidade.
De forma alternativa, requer sejam os réus compelidos a ofertar moradia
provisória digna destinada às famílias para que permaneçam até o julgamento do feito
com a concessão da moraria definitiva.
Tal moradia deve contemplar, no mínimo, os seguintes itens: (a) possibilidade de
abrigar os núcleos familiares de modo completo, sem separação de cônjuges e filhos
(como seria em um albergue), (b) possibilidade de abrigar núcleos individualmente (sem
uma coabitação debaixo do mesmo teto), (c) segurança individual das famílias e (d) boas
condições estruturais e de salubridade.
V. DOS PEDIDOS
ANTE O EXPOSTO, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do
Estado do Rio Grande do Sul, por seus presentantes, requerem:
(a) O deferimento, em caráter liminar, da tutela provisória de urgência antecipada,
para determinar:
30 Conforme Decreto nº 18.576, de 25/2/2014, disponível em <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/cgi-
bin/nph-
brs?s1=000033935.DOCN.&l=20&u=/netahtml/sirel/simples.html&p=1&r=1&f=G&d=atos&SECT1=TE
XT>
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
48
i. à CONCEPA que realize o pagamento mensal do valor de R$ 500,00
(tendo como parâmetro o valor do aluguel social de POA) às famílias,
para que elas custeiem provisoriamente suas habitações; ou,
alternativamente,
ii. aos réus que, de forma solidária, forneçam moradia digna provisória,
que contemple os itens acima elencados;
(b) A citação dos demandados para, querendo, apresentar resposta (art. 242, §3º,
do Código de Processo Civil) e, conforme exigência do art. 334, § 5º do
Código de Processo Civil, as autoras manifestam seu interesse na audiência
de conciliação;
(c) A intimação do Ministério Público Federal para intervir no feito;
(d) Ao final, prequestinando-se todas as matérias constitucionais, legais e
convencionais acima indicadas, a fim de viabilizar eventual recurso
excepcional junto aos tribunais superiores, bem como o controle de
convencionalidade junto aos organismos internacionais de defesa dos Direitos
Humanos, a procedência integral dos pedidos formulados, a fim de:
i. Condenar os réus, à exceção do Estado do Rio Grande do Sul, ao
pagamento do valor correspondente ao Bônus-Moradia do Município
de Porto Alegre, no importe atual de R$ 78.500,00 por família, a ser
calculado quando da avaliação do imóvel a ser adquirido (art. 1º,
parágrafo único, do Decreto/POA nº 19.832/2017), a cada uma das 36
famílias desalojadas da Ilha do Pavão, conforme levantamento social
feito pela DPU;
ii. Condenar o Município de Porto Alegre a realizar as medidas
necessárias à aquisição da moradia (compra assistida), consoante
disposições da Lei Municipal nº 11.229/2012;
iii. Condenar os réus, à exceção do Estado do Rio Grande do Sul, a
indenizar os danos aos demais bens das famílias desalojadas, na forma
do art. 95 do Código de Defesa do Consumidor, a serem apurados
mediante liquidação individual;
DEFENSORIA REGIONAL DE DIREITOS HUMANOS
49
iv. Condenar todos os réus, solidariamente, ao pagamento de dano moral
coletivo, a ser revertido às famílias, em cotas-partes idênticas a cada
núcleo familiar, no importe de 500 salários mínimos (R$ 477.000,00
em valores de fevereiro/2018), ou outro valor prudentemente arbitrado
pelo Juízo;
v. Condenar o Estado do Rio Grande do Sul ao pagamento de dano social,
a ser revertido ao Fundo de Defesa de Direitos Difusos, no valor de
500 salários mínimos (R$ 477.000,00 em valores de fevereiro/2018),
ou outro valor prudentemente arbitrado pelo Juízo;
vi. A condenação dos réus ao pagamento de verbas sucumbenciais,
arbitradas com prudência pelo Juízo, devidas ao Fundo de
Aparelhamento da DPU e a DPE/RS, nos termos do art. 4º, XXI, da
Lei Complementar nº 80/1994.
Protesta pela produção de todas as provas juridicamente admitidas.
Dá à causa o valor de R$ 3.780.000,00 (três milhões, setecentos e oitenta reais).
Porto Alegre, na data do evento eletrônico.
ATANASIO DARCY LUCERO JÚNIOR
Defensor Público Federal
PATRICIA KETTERMANN
Defensora Pública