EM TORNO DA OBRA INFANTIL
DE AQUILINO RIBEIRO*
Francisco Topa
0. Este trabalho pretende estudar brevemente as obras de Aquilino Ribeiro
integrveis na literatura infantil. O nosso objectivo no consiste apenas em mostrar
de forma satisfatria os motivos por que todos os que a elas se tm referido de pas-
sagem as consideram como autnticas obras-primas, mas tambm em apreender
com base no percurso por elas desenhado, e levando tambm em considerao os
prefcios que as acompanham e as reflexes que a propsito delas Aquilino fez
noutras circunstncias uma orientao nova no contexto da literatura infantil por-
tuguesa, at porque particularmente autntica, em sintonia com o Aquilino que os
leitores das suas obras adultas conhecem.
1. Literatura infantil
Dado que o significado e o referente da expresso literatura infantil conti-
nuam pouco claros apesar de as actividades que os tomam como suporte conhece-
rem uma expresso e uma actividade cada vez mais acentuadas , comearemos por
reflectir sobre o tema.
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O primeiro aspecto a notar tem a ver com o facto de se tratar de um fenmeno
relativamente recente, embora importe reconhecer que, antes do aparecimento de
uma literatura infantil escrita, existia uma importante literatura oral, que sempre
encontrou na criana e no jovem um emissor / receptor privilegiado. Considerando-
a ou no como uma espcie de pr-histria da primeira, impossvel deixar de
reconhecer que ela constituiu desde sempre um filo fundamental e uma constante
fonte de inspirao para a literatura infantil propriamente dita.
O seu marco inicial geralmente fixado em 1697, data em que Charles Per-
rault publicou Histoires ou Contes du Temps Pass. No entanto, a literatura infantil
s se afirmaria em definitivo no Romantismo, na medida em que, como escreveu
Aguiar e Silva, O cdigo semntico-pragmtico da literatura romntica, ao privi-
legiar o sonho, a transracionalidade, a ingenuidade (enquanto valor contraposto a
artisticidade), os mitos do paraso perdido, da pureza originria e da inocncia
primordial, possibilitava atribuir temtica da literatura infantil e aos textos liter-
rios destinados s crianas uma relevncia que implcita e explicitamente lhes era
recusada pelas poticas aristotlica e horaciana e pelas poticas delas derivadas1.
Mas a afirmao e o desenvolvimento da literatura infantil no decorreram apenas
de mudanas no sistema literrio. Para isso contriburam decisivamente as trans-
formaes sociais, culturais, ideolgicas e econmicas verificadas na primeira
metade do sculo passado e que vieram atribuir aos problemas da educao uma
importncia crescente. No plano que nos interessa, as consequncias mais imedia-
tas foram o aumento progressivo da alfabetizao das crianas, que comeam a
deixar de ser vistas como adultos em miniatura e passam a representar um pblico
* Publicado em Ruralia, n. 2, Arouca, 1992, pp. 115-147, e Cadernos Aquilinianos, n. 11,
Viseu, Centro de Estudos Aquilinianos, 2000, pp. 25-50.1 Ntula sobre o conceito de literatura Infantil, in Domingos Guimares de S, A Literatura
Infantil em Portugal. Achegas para a sua histria (Catlogo bibliogrfico e discogrfico), Braga,
Editorial Franciscana, 1981, p. 13.
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leitor potencialmente importante, com gostos e exigncias especficos, que a litera-
tura infantil ir procurar satisfazer, aproveitando o desenvolvimento da indstria
editorial.
A afirmao histrica deste novo tipo de literatura ocorreu assim de modo
condicionado, sendo notria a presso da pedagogia e do mercado editorial. Essas
circunstncias no impediram que ela crescesse e viesse a obter um claro reconhe-
cimento social, acompanhando a cada vez maior ateno consagrada universalmen-
te criana e sua formao. No entanto, e tanto mais que se afirmou como uma
literatura para, como uma literatura com um pblico especfico, definido em ter-
mos etrios, ficou condenada desde o incio a um estatuto de marginalidade que a
remeteu para a periferia do sistema semitico literrio.
Permitindo que a nfase fosse colocada sobre o vector infantil em lugar do
vector literatura, a literatura infantil sujeitou-se a condicionalismos de vria
ordem, nomeadamente a necessidade de respeitar um conjunto algo indefinido e
varivel de caractersticas temticas e estilsticas, colocando os seus autores
perante factores motivadores nem sempre harmonizveis, como sejam o moral, o
didctico, o esttico, o escalonamento etrio, num respeito geralmente mais passivo
do que aquele que se verifica na literatura tout court pelas orientaes pedaggi-
cas, scio-polticas, estticas, de cada poca. As consequncias derivadas de um tal
posicionamento podem ser particularmente negativas, como bem observaram Maria
Jos Palo e Maria Rosa Oliveira2:
a que entram a Pedagogia, como meio de adequar o literrio s fases
do raciocnio infantil, e o livro, como mais um produto atravs do qual os valo-
res sociais passam a ser veiculados, de modo a criar para a mente da criana
hbitos associativos que aproximam as situaes imaginrias vividas na fico a
conceitos, comportamentos e crenas desejados na vida prtica, com base na
2 Literatura Infantil Voz de criana, So Paulo, Editora tica, 1986, pp. 6-7.
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verosimilhana que os vincula. O literrio reduz-se a simples meio para atingir
uma finalidade educativa extrnseca ao texto propriamente dito, reafirmando um
conceito, j do sc. XVIII, de A. C. Baumgartner de que literatura infantil
primeiramente um problema pedaggico e no literrio.
Com isso, esqueceu-se que a literatura infantil talvez no devesse ser mais que
um conjunto de textos literrios que proporcionam um espao privilegiado de
comunicao entre duas etapas da condio humana a adulta e a infantil , como
props, sob forma interrogativa, Antnio Torrado:
Ou ser antes um modo problemtico de comunicao (tentativa de
comunicao) adulto-criana, onde o teatro, a poesia, a narrativa surgem como
meios de recurso, expedientes sugestivos e subtis, para que a comunicao se
estabelea, e a cumplicidade, fertilizante para ambos os mundos, nasa, como
num encontro imediato do 3. grau? O que o adulto prope, anuncia criana,
em prosa e verso, equivale-se prtica dos ndios jivaros, quando dispunham,
sob a mesma tenda, um velho e um recm-nascido, para que, dormindo ambos,
os sonhos se cruzassem, ganhando o velho sonhos novos, obtendo a criana de
uma vezada toda a sabedoria dos sonhos antigos?3.
Assim entendido, o texto da literatura infantil seria em quase tudo idntico ao
da literatura tout court, embora sem deixar de apresentar caractersticas prprias,
resultantes sobretudo da tendncia para o investimento na inteligncia e na sensibi-
lidade da criana. A questo da utilidade pedaggica ser tambm colocada de um
modo completamente outro, como defendem Maria Jos Palo e Maria Rosa Olivei-
ra4:
3 Literatura infanto-juvenil, in Colquio/Letras, n. 66, Maro de 1982, p. 11.4 Op. cit., p. 14.
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Privilegiar o uso potico da informao tambm pr em uso uma nova
forma de pedagogia que mais aprende do que ensina, atenta a cada modulao
que a leitura pode descobrir por entre o traado do texto. Ensinar breve e fugaz
que se concretiza no fluir e refluir do texto, sem pretenses de ter a palavra final,
o sentido, a chave que soluciona o mistrio. Mais do que falar e preencher, o tex-
to ouve e silencia, para que a voz do seu parceiro, o leitor, possa ocupar espaos
e ensinar tambm. Redescobre-se, ento, o verdadeiro sentido de uma aco
pedaggica que mais do que ensinar o pouco que se sabe, estar de prontido
para aprender a vastido daquilo que no se sabe. A arte literria um dos cami-
nhos para esse aprendizado.
2. Concepo aquiliniana de literatura infantil
So quatro as obras de Aquilino Ribeiro pertencentes literatura infantil:
Romance da Raposa, Arca de No III classe, O Livro de Marianinha e Peregri-
nao de Ferno Mendes Pinto Aventuras extraordinrias de um portugus no
Oriente.
primeira vista, poder surpreender este interesse de Aquilino pela literatura
infantil, mesmo levando em conta que se trata de um escritor polgrafo e que o
tema da infncia (e tambm da adolescncia e da juventude) se encontra bem repre-
sentado na sua obra, e no apenas nos dois admirveis romances de 1948 que so
Cinco Ris de Gente e Uma Luz ao Longe. Essa eventual surpresa dissipar-se-,
contudo, se atendermos ao facto de tal interesse no ter sido resultado de um moti-
vo exterior ou de um plano pr-concebido e aplicado de forma sequenciada, mas
antes de um gesto de amor traduzido em presentes literrios oferecidos aos sucessi-
vos rebe