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CONEXIDADE danilo arnaldo briskievicz
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danilo arnaldo briskievicz
CONEXIDADE 30 obras completas
1993 a 2012
TIPOGRAPHIA SERRANA SERRO - MINAS GERAIS BRASIL
2012
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Apresentao
Era uma vez em 1993. Naquele ano resolvi: j era hora de tornar
pblico alguns versos. A poesia interior se revirava a procura de uma
Identidade. Poderia dizer que a alma do mundo me impelia, o tempo
todo, a me identificar com os smbolos interiores sejam eles de qual
matriz tenham se originado (a famlia, a sociedade, a histria, o amor).
De 1993 at 2012 quando apareceu o trigsimo livro intitulado De
dentro pra fora as viagens pelo Brasil e pelo mundo, o conhecimento de
sentimentos novos, as mudanas de cidade, a leitura dos clssicos da
poesia mundial, brasileira e mineira foram somando novos versos.
Dos trinta livros publicados, alguns impressos, outros em formato
digital, em cada um deles me sinto singular. A memria potica do
momento ali se expressa de modo intenso, conturbado e necessitado de
ajustamento.
A poesia expressa nos trinta livros agora reunidos nessa Conexidade so
apenas tentativas de purificao, de catarse, de memria, de resoluo
de conflitos internos, de saudades amorososas e dos amigos, de contar a
histria interior das cidades visitadas em sua unicidade.
Os versos, tantos versos, so permeados da memria afetiva da
existncia. Em cada canto da poesia que se expressou possvel ver e
sentir um pouco da linha do tempo da vida. E cada vida, assim como a
poesia, nica.
Isso no quer dizer que seja estanque e sem ajuntamentos. Toda a poesia
uma conexidade. Uma profunda conexidade entre os diversos tempos
da vida em suas idades. Mas em cada verso, sei, fundo, que o
aprendizado se deu.
Acompanhe essa Conexidade e se torne mais um elo.
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3
IDENTIDADE/1993
PRLOGO
Para borrifar o papel
com sentimentos e palavras
o poeta de alma cortada
declina o dia
declina a noite
percorrendo o mistrio
que o faz contemplar
na vida no momento no tempo
uma profundidade intensa
que o leve a amar.
Para borrifar o papel
de risadas e realidade
o poeta de alma penada
purifica o dia
mistifica a noite
descrevendo os mistrios
de sua indignao
com a dor silncio tormento
um sentimento irrisrio
que o leve a calar.
Um poeta no dia
perscruta os atos idos
na certeza prpria
convence-se da m sorte.
EU SOU
Corao sem identidade
quebra-cabea montado
de dor e ardor e clamor
um grito de desespero.
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4
IDENTIDADE
Identidade que se processo no ocaso
de encontros e despedidas
inverses e diverses
de espantos e acolhidas
contradies e paixes.
Fiz-me na hora certa
incerta manh da existncia
difusa luz da histria
onde conto meus dias
sem receio de ser feliz
com anseio de ter aqui
um momento alegre e
contagiante
escrito na tbua da minha razo
contrao de sonho e realidade.
Identidade porttil
fundada nas estruturas slidas
do ser, humano que ,
a cada etapa
tateando no escuro dos dilogos frutuosos
calorosos.
Descobri a ideia estreita
de ser humano interessado
em si s.
BOCADO
Da boca fiz poesia
do sorriso hipocrisia
de quem sorri e beijei
s me resta melancolia.
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5
LINHA DO HORIZONTE
Na linha do cotidiano
deslizo a caneta da vida.
Inocentemente desvendo
a solido a cada ano.
Na foz do destino
corro em rios de lembranas.
Incessantemente me desiludo
com todo desatino.
CASULO
Envolvido em mim mesmo
sou epiderme.
Despido de mim mesmo
sou expresso.
INDEFINITO
Se queres me definir
mira a estrela mais distante
e percebe seu brilho.
Conta os olhares perdidos
que mirei a lua, a praia, o infinito.
ausculta meu peito em sol menor
e entenda sua sinfonia.
Se queres me definir
descolore o azul de meus olhos
e pinta um branco total.
junta contigo o conhecimento de tudo
Com o saber divino.
e ausculta meu peito de-cadente
perscruta minhalma penitente.
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6
CACOGRAFIA
No questionrio da vida
achei poucas afirmaes
e no fostes exclamao
decerto minhas reticncias.
TEMPORAL
Doeu-me na pele de neve
a chuva plida de tua voz
ecoando nas grutas de meu ser
frases prontas de despedida.
Onde tu estavas quando me tra?
Onde estava eu quando te perdi?
RE-AO
Ao passado que limite
acrescento uma reviso
anotando os seus erros
no caderno da emoo.
Errei por descrever
quem era eu ao agir
e anotei consciente:
devo me redescobrir.
Acertei vivendo as etapas da vida
ano e meses e dias com intensidade.
Anotei um acerto:
a cada tempo uma realidade.
No erro da noite
nos acertos da tarde
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7
descobri a ambiguidade:
sinto a vida de verdade.
ANNIMO
Srio, eu?!
Quero
tempo
tombo.
Tdio, eu?!
Tento
canto
minto.
FUTURSTICO
Para onde for acompanhar-me-o
recordaes passadas
e singelos amigos.
Comigo viro as emoes da vida
que insistem no atropelo
e as mais belas despedidas.
ESCALADA
Suado de alegria
subi a escadaria.
Melancolia parte
noite vazia.
Deitado na saudade
desci ao abismo.
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8
SONO
Veia desatada em mil ns
pulso emocional vulco
na noite de desembarao
adormeo em meio ao vero.
Desacordei de um sono leve
pesado em seus contornos
suave em seu declnio
rude no seu reincio.
Fui noite, agora sou dia
paraso, hoje sou profecia
tentei um acordo, desacordei insone.
procurei um atalho, ca na armadilha
destino castigo estilo solitrio.
CSMICO
A nuvem plida
o jato de luz
a estrela apagada:
tudo madrugada.
Algo do nada
tua lembrana.
NOTAS
Como quem toca uma guitarra
e suspira um saxofone
na noite de despedida
no sou o mesmo
j tenho
os pressupostos que me compunham.
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9
DESPEDIDA
Ouvirei teus gemidos
sem censurar
mas na partida de teus passos
permite-me chorar?
Relerei tuas cartas
sem pestanejar
mas ao queim-las
concede-me duvidar?
Sentirei tuas palavras
sem lamentar
mas ao pedir perdo
deixa-me negar?
Dispersei tuas lembranas
sem hesitar
mas quando te rever
posso te convidar?
REssINTO
Tu no aceitaste desculpas
na noite flagelada de dores
nem mesmo sentistes a flmula
da minha incerteza que pairava.
Incerto que estava
acertei teu egosmo
e de tudo que assumimos
me sobreveio ressentimento.
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HORAS
Desperta
a noite j vem.
Acorda a
madrugada chegou.
Dorme
o dia caiu.
Doce vampiro.
AFTER DAY O que restou da noite
foi a angstia
a insnia
e a solido do aoite.
O que restou do beijo
foi o sabor
a forma
e a distrao do ensejo.
O que restou de ti
foi o retrato
a carta
e a poro mais triste.
PASSANTE
Ondulei a curva j remota
de teus ps na sala
e no se encontram notcias
dos jornais passados
que tu lestes.
(esto arquivados).
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No se acha a mesma mesa
no canto da sala
e a televiso preto e branco
hoje colorida.
(tudo evolui).
Desci as escadas da sorte
e me veio a saudade
da cano serena
que compusestes na primavera.
(mudam-se as estaes).
Limpei a viseira
que meus olhos azuis possuem
e vi no quarto de hspede
a sua marca arcaica.
(reformaram as paredes).
Peguei-me ultrapasado
ligando fatos idos ao presente
revivendo sentimentos
sem sentidos ao luar.
MEIAS PALAVRAS
Na distncia fixa
tremenda desiluso
tu no ests
em comunho com meu corpo.
Digo ao relento
ouves sem ateno
e expresso por carta
s entendes sofrimento.
Palavras so instintos
que distinguem
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cada relao.
Para ti usei amor
ouvi amizade
utilizei paixo
ouvi estima.
Usei palavras demais,
castigo-me agora
pela hora no consumada.
FASCISTA
No fim da tarde
condeno o tudo ao meu nada
na mancha negra da lagoa dourada
desprendo um olhar de vertigem.
Nas caldas vulgares da sereia
atendo a insatisfao
nas lembranas do passado
dodo e incerto
encrenco a mquina sentimental.
E concreto que sou
torno-me semblante pesado
escalando a tarde
comigo apenas.
Volte-se para o lado
e no vers minha face.
VISO
Um corpo sentado
recente viso
nos sonhos te tenho
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no sem obstculos reais.
O irrealismo
de teus lbios nos meus
impressiona e desfigura.
TOQUE
Entendi a caminhada da manh
rompendo a tarde
aprofundando o sentido mgico
dos afagos no corpo
dos toques nostlgicos.
SAUDADE
Pensei em nada e tudo se vai
rebuscando o papel
chamuscado de saudade.
Pensei remorso e encontrei esperana
esverdeando o canal
pintando-o de felicidade.
ANGUSTADE
Solido algo brando
capricho de deuses
produz amargura, uma dor danada
resseca a garganta, impede a palavra.
Machuca no fundo
remi o passado.
Corri o meu mundo
destri o pecado.
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Brisa que sopra na fronte da paixo
teso recolhido
de toque em noite de contrao
de beber a taa da libido.
ESTTICO
Estacionados esto
os objetos ao meu redor
plantas em silncio
jardim esttico.
Parados esto os objetos prximos
mesa batida
rdio esttico.
Calados esto
os objetos ao meu redor colocados
mesa em silncio
rdio esttico.
CERTEZA
Distncias separam pessoas
ligadas por certas realidades:
habitam o planeta Terra
e pensam as mesmas verdades.
Distncias unem certezas
de seres da mesma espcie
sentem-se solitrias
e choram de saudades.
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Distncias unem e separam
os amantes da vida,
com seus sentimentos e sentidos
sensaes e conflitos.
NEGATIVO
Na sombra de mim
o sol se faz escuro
como pele negra
negativo obscuro.
Com a sombra em mim nascida
ando negativo pela rua
e na noite a lmpada assombra
se no, sou sombra da Lua.
ESSNCIA
Um desejo invade
complacncia.
Um vento inspira
demncia.
Uma msica apavora
carncia.
ALUSO
Caminhonete pisoteando o asfalto
marchando caminho adentro
afora
agora
desbravando algo mais
que uma iluso passageira.
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PORO
O mar me traz algo esterno
um sentimento eterno
ps-moderno.
Mar, corrente de emoes
canes eruditas
cristalizadas em seus caes.
FALCIA
Vendaval de esperana
me vem ao contemplar
na imensidade molhada desta terra
a frieza do mar.
Fala de calmaria
fronteiras quebradas e limites
instransponveis sem utopia
possveis para quem ama.
GELATINSTICO
Na nata do mar
escorre meu amor
pela vida
minhas crenas
e realizaes.
Na dvida de caracol
me enrolo em conflitos
nas curvas da sereia gorada
estou pensativo.
Cravo os dedos na areia
plida e estranha
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escorre sangue
espalhado em meu corpo.
Cu e mar
eu aqui
incrdulo protesto silencioso
de pensamento vaidoso
bpede racional
filsofo da solido marginal.
MEDO
Na solido do mar
cravado de escurido
descobre-se que amar
absoluta contradio.
No estar sobre as guas
agitadas pelo vento
percebe-se o nada que
agora meu sentimento.
Na escurido de meu cu
brilha a estrela da saudade
a lua de uma paixo
revelando-me por inteiro:
profundo
obscuro
exato
a-mundo.
BSSOLA
Agarrei-me ao mastro do barco
em meio a palavras de medo
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descubro que bem cedo
perdera meu zelo.
Mastro que me aponta as estrelas
astro, me fez perceber
como imensa a galxia e
minha possibilidade de ser.
Mas o mastro
um astro
sem lastro.
O mastro me apontou na noite
o Cruzeiro do Sul.
E
Cor s
dor s
Cor s dor
Cor s dor... s!
I
Cansao, malas, parada
utopia, previses, palavras.
Pela janela avisto a caatinga
j passando por Minas Gerais
pela mente alucino
Jiribatuba que no chega mais.
Ao lado o padre
ao lado os colegas
de lado as senhoras
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frente das relvas.
E passa rodovia
e rodoviria
chega Salvador
cidade imaginada.
Salvador, ferry-boat, mar
conversa, Bom Despacho, calar.
II
O vento passa o tempo
vento espanta o cansao
vento calmo
ainda cedo.
Chegamos casa paroquial
descemos as malas
ocupamos os quartos
jantamos...
repouso.
Ondas calmas
calmaria mental.
RE COR DAO
Teu nome escrevi na areia
facilmente pensei em ti
lembrana remota
do que deixamos de fazer.
Deitei-me na praia
metade gua ) (metade areia
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meus braos abertos em contorno
retrataram um corao.
Corao de guas salgadas
borbulha em recordaes
corao divino
perdido em meditaes.
TONEL DA MEMRIA - 1994
PASSEIO POTICO
As escadas de Santa Rita pararam no tempo
os transeuntes dirios so os mesmos.
O tom do cu permanece inalterado
o coqueiro intacto respira os anos.
A seca cavalga todo ano pelos pastos
mas a mo do lavrador esculpe o cho sob os olhos de Deus.
As oraes permanecem catlicas e sonoras
Apesar das seitas constiturem seus ncleos.
Tudo em Serro cheira sculos
e a vida envelhecida em tonis da memria.
A moa (s isso mudou) ficou mais esperta
de tantos alertas que a televiso vive a anunciar
- decotou o vestido, largou o marido
E quer se engravidar.
O moo deixou a velha bicicleta
andando de moutain bike pelo asfalto afora
-tem na mente na imagem da famlia que o padre
descreveu e no sabe se um dia a ter.
Nada em Serro muda da noite para o dia
e a vida camuflada em selvas de cerveja.
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IN LOCO
Vasculho as gavetas da memria
localizo a mo generosa deslizando
sobre facas amoladas com m sorte.
Se a pergunta onde erramos? encontra lugar
Perco-me no tempo a recordar.
21 -12 93
Pena que da morte
s sabemos o estado
se ela traa horizontes
s quem foi defunto sabe.
Quem penumbra espessa
invadiu a tarde
com surrealismo bestial
sombras e dvidas?
Sorte que da morte
s sabemos o estado
se desvendar mistrios
s quem foi defunto sabe.
Oito horas da noite
encontro dos mortos cheios de medo e dor.
BEM OU MAL
No me recordo de ver nas sombras
vestgio de arrependimento por serem
obscuras negras frias.
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22
No me recordo de ver na luz
agradecimento que no seja
iluminar clarear descobrir.
Nas ondas pintadas da tela na sala
surge a pergunta retratada:
sou filho de uma luz transcendental
ou de uma treva arrependida?
FEIRA
A bela vida consiste em antes mesmo
Possu-la, admir-la.
Ver no feio do dia-a-dia
os opostos se completando.
No h plsticas para vidas tristes
nem bisturis para remodelar o passado.
GHETULIANA
preciso que o ser se faa carncia de ser.
Sartre
Suas palavras me ensinam
o que ter e fazer
como ser feliz.
Mas nessas palavras bem ditas
vem calor do Saara
angstia danada
desejo de ter acertado na vida.
De ter feito arruaa trapaa
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tudo aquilo menos isso
que agora me orienta a no fazer.
De ter aproveitado a novidade
toda ela sem medo
medo desbotado magoado
que agora me passa em conselho.
Todo seu hlito recende
para orientar-me dos entraves
de errar na vida dos homens.
Sua vida me indica
a nica sada no ter entrada.
Fomos aqui jogados
feitos eu ele ns
num jogo imperfeito
que se fosse eu eleito no seria juiz.
Sua boca amplifica
vaidade tardia
da taquicardia diria
eternos gemidos emitidos.
Boca de noite sofrida
alegre mas vazia
suave mas evasiva.
Tons sobre tons
boca sobre boca
assim sou ouvinte de boca
calada pelo tempo que leva
palavras e corpos
para o cemitrio da memria.
Faze o bem e sers perfeito.
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SBADO h NOITE
Desarrumando antigas gavetas
perdia-me ainda mais
vasculhando verdes ocasos
sem nexo nem avais.
Procurando arquivos secretos
segredos banais
revelando negros descasos
encontrei-me srio demais.
O RELGIO
Ao Bonfim
Subia as escadas rabiscadas de saudades
das conversas a muito ocorridas
a idade penetrava-me poucos desejos
e o sino da Santa Rita no obrigava a partida.
A voz de Jlia anunciando morte de pai
assim velho assim gacho
encheu de lacunas o garoto
encheu o quarto de amigos.
A voz de Magda pestanejando o microfone
assim gasto assim antigo
encheu meus ouvidos de 14:40 h
encheu meus olhos de avisos.
Deitado na noite a Lua sorria
de madrugada ela me possua
descobrindo ninhos de andorinhas
o futuro seria eternamente badaladas.
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ROTINA
Quando fico em fnebre silncio
peito em feixes de rotina
o mesmo Sol no azul celeste
concluo o dia semelhante ao de sempre.
RUAS
Passageiro de becos e sonhos
embarco nas arruaas
de pedras calando a vida.
Paredes cados alterando a trilha
perdes que reconstroem as noites
pedras buscando sapatos.
SALTO ALTO
Equvoco auditivo na noite
no ecoou no peito seu toque-toque na esquina
nem palavras de reconciliao.
Badalei-me no sou o mesmo que h tempos
desnudou seu corpo
naturalizou seus atos
relativizou sua culpa.
Na noite de salto alto no dobro aos seus ps.
CALMANTE
De noite sou o que sou
rpido de gole em gole.
Perdendo a coerncia entre uma frase e outra
entendendo a decadncia da Lua minguante.
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26
Abastecendo ouvidos de sons e rudos
sugando da msica bom lenitivo.
Desfazendo sonho intil e infrtil
achar-se em trs notas musicais.
Na noite sou o que sou
goles luares pro
c
u
r
a
GARI
Teus restos joguei pela janela
inteis para reciclagem
ocuparo a lata de lixo.
Tantas reconciliaes mas nada valeu
tentativas frustradas vai embora!
deixe apenas o telefone
da limpeza pblica.
O POSTE E O BBADO
Ao Goleau
Tenho sido apenas poste.
Tentei ser calada para o bbado
talvez seu aguardente
fui apenas poste.
Olhei com fineza e embriaguez alheia
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27
- curvas na calada
fui apenas brao de apoio na trajetria
- fui poste.
Poderia ser pupila dilatada
beijo baforado
pernas trocadas
- fui poste
Vo-se os sbados e nada muda
mas mudar pra qu?
O poste ilumina os passos do bbado...
ESOTRICA
...para Irene B. Dinis Filha
...livre, leve e solto.
Se ao te beijar um significado rompia
era noite enluarada
era amor e fantasia.
Se ao te olhar uma iluso aparecia
era o dia do reencontro
era paixo e alegria.
Foi beijando-te
num lapso de infinito
foi olhando-te
num eterno espelho fixo
que enchi o corao de desejo
e alma de certeza:
amei-te sem medo
sem dvida nem receio.
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28
REBORDOSA
Havia minha boca e um copo
uma estranha sensao
- no alcancei o l t i m o g o l e
co(r)pos distantes distantes palavras
ressaca
MICTRIO
Via-me ali, cheiro ftido
mictrio.
A vida um pouco glria e
Urina.
Via-me ali, gua escoando
gotas etlicas.
O mictrio da vida leva
eles eu.
Cheiro suburbano de sentimento noturno
mijo recorda-me lixo
paradoxo sem sombra feliz-infeliz em duas msicas ouvidas.
PERDAS & DANOS
Talvez estejas entre um cigarro e outro
e tuas lembranas denotem nostalgia
semblante triste sem consolo.
Perdeste a agenda
com ela um prefixo companhia.
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29
PLO OESTE
O gelo se debatia no copo
em silncio se desfaziam lgrimas
NOITE TRMICA
O copo de frio arrepiado
em meio a sorrisos da cerveja
fui assim degustando a noite
num indigestivo sbado.
TREVO
Ca do alto relevo
vertigem em forma de trevo
cinco dez quinze ptalas
sem porte cor nem sorte.
H2
Di um amor que plano
papel esboo teoria.
No corri um cido que neutro
insosso inodoro frio.
2004
Em algum lugar do futuro
meu caminho cortar o teu
se chegarmos at l
saberemos quem sou eu.
Em algum lugar desse universo
meu sonho buscar o teu
se nos conhecermos
saberemos quem sou eu.
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30
HEDON
No sou real nem quero ser
sou um sonho eterno adeus
apenas bom momento.
Serei eterno ou no serei?
Quem comprovar?
No sou real mas posso ser
hedonice em noite de Lua cheia.
DUAL
Reflexivo espelho
alma
corpo
depressivo receio
calma porto.
Distendido dualismo
pensar
agir
partido sofrimento
calar sorrir.
A ONDA ERA PRETA
As ondas no diziam nada
embalei o cu e joguei no lixo
as estrelas se foram de txi
emudecendo canes e notas.
H tdio no me intrigam
cores da orqudea na manh
bal de gaivotas meu porto solido.
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31
INTERCMBIO
A flcida curva da estrada
no me conduz a ti
a clida luz do dia
no me eleva a ti.
SPIN
H energia atmica nos poros rompidos
-rompiam-se passado e presente
sonhar motiva a realidade?
O pensamento rouba o dilogo
se calo sonho
se falo destruo o sonhado.
WALL
Beijar quebra muros
unindAlemanhas.
Mundo de muros
silncios e apuros.
VOLUME
Cavalguei em espantos saborosos
sobre ondas de nctar e ouro
tudo se fez aurora.
Balbuciei nmeros de mundos infindos
com boca carimbada
tudo se fez silncio.
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ARRUMAO
Perda procura achados
desenhos atropelados
um nu um homem pelado
calas nos varais
sapatos no telhado.
EM POTNCIA
Ao Srgio Vidal
Quem se v assim
calmo frio pacfico
no entendeu ainda
o parntese quase reticncia
penetrando a jornada
da juventude quase vazia
de um grande amor.
ROSA
A rosa foge do amor presente
o passado mais forte
prendo-me sua cor
importa-me a distncia que mantemos.
Como, rosa, flor escarlate
orientar-se para alcanares o que possuo
dar-te-me sem freios
doar-me sem te murchar?
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33
ELEGIA DO TEMPO
Tempo-rei, ensinai-me o que eu
Ainda no sei. G. Gil
I ramos eu e Deus
partimos de nibus.
A paisagem despia o cu da nova cidade
contudo no largava o sonho ao vento.
Estava decidido era vocao
um padre serrano assim branco
assim jovem.
Em poucos anos perdi meus passos
no calabouo estruturado das palavras
gaguejei sorrisos suspirei lgrimas.
Como no contasse os tempo ele se foi
em trs calendrios lentos calmos profundos
-perdi-me em planos sucessivo desmaio cronolgico.
Criou-se entre a criana e o homem
um hiato de trs anos.
II
Quisera que as flores to belas
vissem meus olhos alegres
no jardim gramado de esforo
de ver muda fazer-se flor.
Mas os olhos coloridos se foram
da janela onde avistava as palmas
- no houve regresso.
S as almas renascero.
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34
Da kombi branca velocidade nos olhos
corria por entre casas mudas e tristes
alegria no retorno s aulas
em meio a solfejos de frias.
O corredor to amplo em seu passado
esqueceu-se das palavras sbias
bem como das nuvens que o tempo choveu.
Em Serro a noite cai to silenciosa
que o tempo se fez realidade
passei e sou passado.
III
O tempo tipografou na face
rugas exangues e um olhar de angstia
passou cada segundo das clulas jovens
envelheceu a noite fez-se dia.
Levou da boca as palavras
definiu os culpados sorriu a alegria
fez-se suspiro com anseio de infinito
pelas duras marcas que o peito contraria.
Tempo-perdido entre frios olhares
hoje traz sombra dor melancolia
de nada valem as fotos
debocham das mos trmulas
de nada valem remdios
o p quer se incorporar aos meus ossos.
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35
A LIO DA CHUVA
No duvido que a sombra tenha medo da luz
nem que o Sol tema chocar-se coma a Lua
pois a luz contm a treva
-sorrio disso.
H noite em cada amanhecer no interrompamos o ciclo
ele se repete em ns
hoje sou banho amanh chuveiro
ontem fui cano depois rio.
Ateno lio da chuva
que sobre a terra deposita suas esperanas
ver semente crescer rvores
ter rvore para refazer o ciclo.
Que eu chova gua e amadurea rvore.
SOLIDO
quando o peito desarrumado percebe
a tempo- o desencanto
quando as noites perdem sua beleza
sem desculpas acalanto
foi assim: peito partido
noite fria
que desatei os ns do sapato
de uma inslita caminhada.
Se sobraram pedras
rolantes desejosas de contato
se caram lgrimas de mgoa
rolantes desejosas de ateno
a certeza do sorriso que prevalece...
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36
ORATRIO DE VERSOS/2002
TRADUO Ento fui acometido pela Nusea, me deixei cair no banco,
j nem sabia onde estava, via as cores girando,
lentamente em torno de mim, sentia vontade de vomitar;
e isso: a partir da a Nusea no me deixou,
se apossou de mim.
A nusea, Jean-Paul Sartre
Traduzir-me parece difcil
quanto mais me procuro, ousadia:
me perco. Basta a angstia:
sofrendo me reconheo vivo.
Acordo: vem a memria
nome, sobrenomes, objetos: onde estou?
No me acho fora de mim
sou um espelho quebrado.
Estou rompido em dois polos
um que ama e ousado, outro serei eu?
frio e melanclico mas ambos
cabem num s destino.
H muralhas dentro de mim: pedras
no caminho da vida, vivo ou existo?
Estou dividido em fragmentos de ao
no h resposta, pairam dvidas.
MEDO preciso no sentir medo.
A nusea, Jean Paul Sartre
Hoje dia de suportar a luz
enquanto no fundo do meu tnel
escurido.
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37
Hoje dia de ver o sol, lua, brilho
dentro de mim no h sombras
h a maior sombra: medo.
De mim ao mundo h um precipcio
de mim ao outro h mundos e fundos
(pena de mim: entre eu e mim h
um cosmo insuportvel).
CONTINUAO
Embriagada manh do silncio
frio suor pelo peito desce
cores se foram para o branco
no adianta correr: o trem j se foi.
Parar nem pensar no se deve
continuar, continuar se consegue.
As pedras molhadas estagnadas
a chuva plida trazendo o sono
entediada manh da solido amena
pela manh se sofre pouco venha a madrugada.
Parar nem pensar no se deve
continuar, continuar quem consegue?
MODIFICAO
Venho notado mudanas no meu passado espanto
cada dia me volto para trs e j modifico algo
novos dias novas verses como recompor a verdade
do real que havia quando me perdi pela primeira vez no amor?
Voltados relgios, dias, pessoas j falecidas
-
38
nada seno a conscincia sou passado
o primeiro amor por tanto dio e querer
afastado dos dias se tornou nvoa plida.
De manh rezo alto para ver se adormeo o desejo
ele me introduz na voz, na luz do dia renaso
passado reformado em busca de xtase, mas qu...
sou um simples junco pensante sem realidade.
PERDIDOS
Perceba como voamos no pensamento
h ventos tufes e lamentos
mas tambm por que no afirmar numa fala quase terapia e div
a vida assim confusa e na confuso a gente se acha e se perde
mas pode se quiser se puder se der ser feliz.
Nascemos para nos perder e de vez em quando (outono a outono)
nos encontrar na cama das amarguras nas memrias nas mesas
de bar em bar perigoso se encontrar: no encontrei-me ali
deixa o prazer da noite ser dissipao
procure-se um dia: no corao.
VIVENDO
Sentia que comeava a viver: sofria
assim mesmo: o primeiro sofrimento
cria em ns a altivez e o estatuto provisrio
de seres criados para o amor.
O amor acontecia em meio juventude
criana, no, jovem imaturo, j sofrido
nem sabia que de lembranas pode-se viver
e agora, homem maduro mesmo, quero voltar o tempo.
-
39
A ingenuidade da primeira vez , a pureza
do primeiro toque, o calor, nsia: primeiro desejo
no, no h como tirar da memria o resduo
do primeiro momento: perdi a inocncia.
GOLES
Olhos que se guiam pela praa
nem rvore nem busto nem flor
um bbado cambaleante sem cor
no h vergonha em mais um gole
nem medo que o console
nessa bebedeira hermtica ele perde
o para-outro que o compromete
e por entre ruas e becos confuso
esquece o olhar de algum ao longe
parado na praa roubada em sua graa
pelo bbado sem vergonha que passa.
FESTA
Os grilos solfejam seus cantos
o brejo em concerto detona a noite
partituras misturadas ao verde mato
gargantas afinadas em tom natural
no brejo das noites ouvinte feito
a lua refora os olhos dos sapos
parecem expirar a vida dos homens
insistentes em transitar pelo escuro.
Na noite dos brejos em silncio
dos corais de insetos crepitantes
o pensamento escoa feito gua boa
nas bicas da saudade feito vida.
-
40
LEVES VERSOS
Dedos meus batam de leve a tecla
mame esperta e pode acordar:
ela no ia gostar do gemido
dos versos no fim da noite
para sepultar palavras
ingeridas a cada gole.
Dedos meus batam de leve a tecla
mame est alerta e pode concordar:
em escrever sobre o amor ausente
tarefa decente espantar a dor.
PATER
Teus olhos me ensinaram
que se deve saber a hora certa
de abrir e fechar os olhos
sem inocncia mas conscincia
diante da vida tu sempre calmo
sem tesouros ou fortunas
cavaste aos poucos uma intensa presena
a morte tira mas no esquecemos
em ns est tua presena sempre assim
noite de lua cheia em Milho Verde.
SENO
A estrada se desenha por sob meus ps
um calado trinta e nove com poucos anos
ps-de-moleque na memria dos passos
cho vermelho na retina dos tnis.
Aos poucos a sombra vai-se curvando
os anos e passos se sucedendo e enfim
-
41
anos e passos cessam e a cor vermelha
se torna desbotada como a face em sepultura.
Do tempo nada se leva seno a memria
dos passos nada se leva seno a segurana
da vida nada se leva seno o sopro eterno
dos versos nada se diz seno inteis.
RETORNO
Voltei a ser poeta
a alma novamente rasgada em pedaos
o lbio gemendo em dores insondveis
o peito fragmentado numa eroso incurvel.
Versos me aguardem
de volta estou pois o ventre corrodo
ama novamente algum.
Voltei a ser poeta
estou neste mundo dos relacionamentos doentios
mundo das paixes desenfreadas
dos cimes imediatos e irremediados.
Voltei a ter a alma martirizada pelo amor
minha garganta s pronuncia monosslabos
a mente no se cansa de lembrar de um novo amor
Voltei a estar vivo...ressuscitei.
-
42
CONVENTO
Quero uma janela bem fechada nesta noite
um quarto sem trancas no destrancvel
um abajur apagado a velar minha priso interior
vasos de violetas por sobre a mesa
e nada mais que uma msica dos bbados a tocar
quero nesta noite de clausura interior
um porto para meditar a vida.
Nesta noite importa-me o retiro das palavras
a concesso pra dormir bem cedo
mais cedo do que minha solido.
Nesta noite quero apenas um convento.
TRIPALIUM
E como cassem horas dos cabelos
de cor em cor se embranquecendo
a vida expirou o ltimo soluo.
E como o tempo me amordaasse
tortura por tortura padecendo
a vida estancou o ltimo sofrimento.
Da vida nada se leva seno a dvida
e se bom perguntar por no saber
melhor calar para entender.
TUMULTO
A borboleta se cansa de colorir o ar
o peixe se cansa de perseguir a isca
a minhoca se cansa de perfurar e fica parada
o homem cria tmulos e vai para o cu?
A orqudea mata seus ramos antigos
-
43
sobre eles constri sua folhas
tudo nasce e renasce aqui e nada ocorre
para alm desta vida.
O homem parado diante da morte consciente
retira da vida sua naturalidade e chora
mas nada devolve a senha dos vivos
e a dvida das religies prossegue insana.
FLATUS VOCES
Pensar na Maria e no Jos
na flor: ontem se abriu
deixar rolar palavras pelo ar
ao sabor das tempestades
aproximar-se da velhice
com sabedoria dos viventes
reler as cartas de tempos idos
com emoo e recato
expirar a vida devagar
como deixar de pensar.
CURATIVO Construo minhas lembranas com meu presente. Sou repelido para o presente,
abandonado nele. Tento em vo ir ter com o passado: no posso fugir de mim
mesmo.
A nusea/J.-P.Sartre
As nuvens em algodo
prontas para estancar
o corte das estradas
fundo cho adentro
em cada canto de mato
uma abertura para olhar
um trecho para espiar
-
44
o dia nascer quadrado.
As chuvas depois da evaporao
prontas para limpar
a ferida dos anos
profunda nas almas
em cada corao partido
uma orao para estancar
uma litania para repetir
durante a vida que passa.
MATO
No quintal as rvores se debruam
sobre as mos da infncia
cercas que no cercam os pulos
o roubo engraado tramado
nas rodas-gigantes da inocncia
decente furto sem preocupao.
rvores dando-nos os ps para subir
um contato imediato com a seiva
a selva a cidade no o mato
que cresce ordenadamente devagar
sem acelerar a pulsao da horas
sem amassar a terra que de todos.
VOZ E NS
A horas se amontoam feito trouxa de roupas
cada uma a seu modo amarrada
feita de ns de ns de ns.
Que te parece poeta do tempo mesmo amante
parece hora de orar pela amada
adormecida em sete palmos?
-
45
As horas rebuliantes sobre os dias pesando
cada uma a si mesmo trazendo
feito de ns de voz de avs...
Que te parece poeta do tempo em hiato passado
parece hora de ora em ora: gritai ao tempo
_ para!
CRESCENDO
No sabia - ao me darem um nome
eu me perderia.
Nem esperava - depois do presente
viesse a palmada.
No queria - depois dos pais
surgisse o mundo.
Nem contornava a igreja velha rezando
para ser condenado.
NADA O nada nadifica. M. Heidegger
Ao heideggeriano Alfredo
Dentro da casa moraria a escurido
mas lmpadas artificiais recriam as cores
casas velhas refletem os raios dos tempos
a msica suave convida a rever a vida
o cu insulta meus olhos com estranho brilho
repousa a treva de uma noite sem fim
e mesmo criando lmpadas no podem
iluminar seus prprios passos
na assombrosa guerra estranha de existir.
Dentro de ns esto a luz e a treva
as lamparinas l no iluminam
e nas trevas construmos nosso destino
luz que ilumina, treva que nadifica.
-
46
O QUE MORRER?
Dedico-te meu corpo so ou fraco
pois para vires ao mundo
tu que no s em si mesma
precisas de minha vida.
No sei tua hora nem tua cara
mas j morri tantas vezes
minha carne que h de se perder
ressente o tempo de tristezas j ido.
Dedico-te meus amores: com minha ida
ferida quem sabe a alma chorem
ferida quem sabe a saudade voltem
para rever os lugares em que um dia vivi.
Dedico-te os olhares transcendentais
a vida perdida mais uma vez
toma que tua - minha vida esmola
para teus dias se perpetuarem.
O PSSARO DO EGITO
Morrer como um passarinho
sem grandes suspiros nem ais
apenas com a mo de meu amor
a segurar minha carne que fica.
Adormecer como um passarinho
breve poema em fim de noite
rolar nos braos do esquecimento
do pretrito perfeito.
Fechar os olhos sem lua
h noites em que morri
-
47
pelas caladas de p-de-moleque
mas no instante de meu desfalecimento
repito: quero morrer sem ais
apenas como um passarinho.
Morrer numa noite de sbado
repetindo a mesma rotina judia
de sofrer e lamentar
os pecados as culpas as dores.
Morri tantas vezes no sbado
que sou judeu por foras das circunstncias.
Permaneci imvel pensando
no creio que pensar seja pecado
se for pecado tenho metros de culpa.
Comi carnes diversas
de um passado ao teu lado
se for pecado comer carne neste dia
culpa sua, meu desencanto!
Morri tantas vezes no sbado
que sou judeu praticante.
SINAIS
Versos caindo em gotas de palavras
a noite vai se desfazendo em desejos
e corpos de amantes se encontram
entre sinais verdes vermelhos azuis
o desejo sem medida em gotas de lua
desfecho de procuras o momento se faz
total porque tudo apenas um momento
felicidade apenas um lapso do desencanto
com a tristeza reinante nos dias frios.
H nesta noite casais sorrindo
o mrito das ondas de luz iluminando os beijos
so to explcitos que confesso a Deus
que todo poderoso me empreste o poder das letras
-
48
para declarar culpados os amantes que no amam
brigando em vez de unirem seus mundos
num eterno faz de conta de felicidade.
Nestas noites em que a lua ilumina demais
desconfio como bom mineiro que houve
ontem hoje e quem sabe haver amanh
momentos em que os amantes desafogados
desabrigados desconsolados de seus ombros amigos
digam no um ao outro mas a partir da dor
sol e lua se encontrando
luz e trevas se atrevendo
haja o exato momento que vivo:
complacncia frieza e precocidade.
EUCALIPTOS
A cada quilmetro mais distante da casa
dos mveis dos animais das flores
perdia um tanto de quem sempre serei: meu passado.
Aquele cu obscurecido pelos eucaliptos
a piscina sempre azul, mera projeo
de nossos coraes orantes.
No stio dos seminaristas carmelitas
sempre em comum se olhando
saguis passeavam pelas rvores
caindo ao sabor dos machados.
Em cada metro de verde o silncio se pintava
e azuis eram as brisas que nos enlaavam
em recreios sem discusses.
Pequeno crrego carregando para longe
coraes que se consagram
no medo quase desencanto de amar.
Quando se est no verde e no azul
preto roxo incolor no existem
mas basta um lapso de convivncia
-
49
e o arco-ris perde seu brilho
lua cheia se transforma em nova
e nada reconstri o tempo desgastado
em dias de reunies e reunies.
Aos poucos, poucos meses
os olhares se tornam pesados
a rotina sufoca e ser livre transgredir
normas leis regras estatutos
e tudo se torna pesado nublado:
e vo-se os corpos embora
pois boa a hora que nos afasta
dos olhares de condenao.
A cada quilmetro distante da antiga casa
as asas voltam a crescer e o pssaro enclausurado
ala seu voo baixo para a existncia autntica.
ME
O dia chegava pela tua boca
os olhos tropeando no claro
quando criana feita acordar
ninar a felicidade para
no sonho possuir a realidade.
BALADA DO CONFUSO
Quem sabe em tempos remotos
sem remotos controles
na era da pr-imagem
na selva de um tarz
eu fosse mais vivo
pelo menos tinha motivo
pra na humanidade acreditar.
Depois de Exupry
dos controles das bombas
-
50
senti uma pena de ser
que por aqui
um mata outro sorri
um rouba outro ri
bastante confuso.
Depois do Pequeno Prncipe
dos detonadores atmicos
desejei no ser binico
crescer o corao e sorrir
mas se o pequeno suicidou-se
o que que restou
pra executar pra fazer?
MORTE
E se agora fosse o momento de despedir-me
da casa dos objetos da cama
da msica do dia da hora?
E se agora fosse hora de expirar para sempre
sonhos passados planos futuros
amigos por vir dias por viver?
E se agora algum me dissesse meio sem querer
chegada a hora de partir, levanta-te!
Como abrir os olhos diante de tudo o que fui
como seria fechar os olhos para tudo que vivi?
Se agora fosse hora de ir embora
ficaria a saudade de no ter feito
de cada hora a presena intensa da felicidade.
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51
NOTURNO ...eu quero meu amor se derramando, no d mais pra segurar
explode corao. Gonzaguinha
As pernas cansadas da caminhada noturna
que de repente a noite vai se tornando cega e vaga
e j no mais cruzo e descruzo as paralelas
a vida que me acentua as curvas do caminho.
As pernas cruzadas tantas buscas
hoje quem sabe a morte deste momento lcido
traga a paz s cansadas veias que desatam o tempo
que a memria apaga ao despertar do dia.
Hoje como a noite est fria e o corao agitado
prefiro o cio dos lenis ao frescor das mos
prefiro a insatisfao dos andarilhos
que a certeza de tantos viajantes.
Hoje como sempre fao diferente o fim de noite
vou caminhar sobre os lenis banhados de saudade
e vou regurgitar sobre a dura madrugada
os sons de minha infncia que se foi h muito.
Hoje queria ser apenas um violino em disparada
uma cano em d menor sem a menor culpa
e amanh cedo eu a culparia pelas lgrimas
que nesta noite insistem em visitar meus olhos.
Hoje apenas hoje queria deixar de ser poeta e tocar
nas peles que o desejo encerra toda volpia possvel
dos que querem fazer deste viver a sangria do desejo
e de cada momento um tormento de lembrana em fotos.
Hoje j no quero mais ser imortal: quero ser finito.
-
52
ESQUECIMENTO
Sossego, at que enfim, no suportava mais
ou se suportava, suportava esperando
a alegria de novas aventuras desfez o engano
esqueci teu rosto tua voz e teu sentido.
Desapego, at que enfim, no demonstrava mais
ou se demonstrava era por capricho e orgulho
nosso amor se perdeu em dias de deslembranas
esqueci teu corpo, tua face, teu sorriso.
CONTRA-SENSO
Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te
no por que te amo nem porque me detestas
s por que te esqueo e tu no me gostas.
Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te
no por que te amo nem porque me detestas
somente a lembrana nos faz resistir
vivendo em tempos diferentes um encontro passado.
Tu te queres me ver esquecendo sua sombra
tua luz se projeta por detrs da memria
tu te queres distante de meu corpo
a saudade se encarrega da lembrana.
Como perder-nos se j perdidos estamos
como esquecer se juntos j nos separamos
porque repisamos ainda juntos e diferentes
o mesmo tempo do amor passado?
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53
MENTIRAS
No te preocupes te esqueci ( me minto mas verdade)
uma nova paixo te fez esquecer (mas demorei a me acostumar)
um ditado antigo e comprovei( que mentira)
que no vale a pena sofrer por amor (tu no queres repisar nosso
amor?).
Quem amou sentindo o tempo passando
a fonte secando de leve em breves espaos
correndo as horas fomos nos afastando
hoje minto: ainda te amo.
Minto, por que ainda te quero perto
te quero junto. Te quero ao vivo
mas por que isso agora: o tempo passou
por que no percebi: tudo acabou.
VARAL DAS CONSOANTES
Vou compor poemas de portas abertas
sentir a brisa da tarde nua
seduzindo poros entre o frescor
da brisa dos apaixonados.
Abrir as janelas da alma
cavalgar poemas desatinados
nesta tarde eu mereo ser pblico
quero a notoriedade.
Hoje, s hoje, sem solido
quero comunicar a paz
que entra pela janela sai pela porta
poema: varal das consoantes.
-
54
CU SEU ... e foram se cobrir pois viram-se nus.
Livro do Gnesis
A hora no se consuma!
a carne que fim procura
sem cura a ermo vagamos
em busca de um amor
perdendo o ardor de pensar
o destino se oculta
pelas estradas desviadas
a delcia do paraso
ofcio do meio dia.
A hora no desarruma
a casa pelas visitas
pelos fratricidas em busca da dor
os fofoqueiros em busca da doena
o destino no me leva
o amor no se quebra
pra eu ver passar a vida
em pleno nascer do dia
ltimo de minha jornada.
A hora no palpita
o corao em alforria
livre serei para ir
mas para onde se a hora
aprisiona e me quer viver
ir para onde cu vu dos viventes
ir para o alm com ou sem algum?
Talvez seja melhor a hora parar
deixando a vida mesmo esperar.
-
55
INFORMAO
Se me dessem a certeza
os livros
se me dessem o retorno
das idas e idas do ser
pudesse eu querer rel-los
mas que o medo
(os livros falam)
mais forte que os olhos
(os livros se calam).
Parece medo pode ser pressgio
mas muita informao
- um contgio
pra alma ferida de tanto amor
- um estgio
polui a mente pela diviso.
Amor desinformado pretendo
nem televiso jornais livros
nada de ver feridos olhos
novamente a histria
de um amor desenfreado
com Freud do lado.
Divide bem e governars.
AMOR BREJEIRO
A lua radiando sombras pela mata de eucaliptos
rs cantando Elvis Presley no fundo de todos os sons
pessoas dormindo e sonhando com seus futuros prximos.
Morcegos ultrapassando nossa conversa
zunindo pelos ouvidos a inquietude dos corpos noturnos
duas mos ocas que no se afagam nem se atraem.
Minha alma
estava distante de tudo
-
56
a lua queria me devorar
s meu corpo, ouvidos e bocas e um frio cortante
percebia a outra presena.
Tu estavas nu diante de meus olhos
no a nudez dos apaixonados
mas dos enclausurados.
Soaram os gongos de nossas angstias
e na noite de piscina esverdeada
sobrou muito pouco de mim para remontar nosso dilogo.
Tua alma estava to distante da minha
passeavam por outros mundos naquela hora
e mesmo librianos no pudemos justificar
o porqu de tanta rispidez.
Queria que minhalma estivesse ali para sentir-te total
mas no. Ela estava distante medrosa de sofrer.
Minhalma ao ouvir tua autossuficincia correu tanto
que suei para me reencontrar.
PASSOS DA MEMRIA
Ao Luiz Carlos
Os passos nos pastos gramados
e por sobre rvores os pssaros
se cantam e encantam com cores
os frutos avermelhados do vero
o cu refuta a lua e lana o sol
sob ns a luz clara da vida se faz
os sons da cidade abrigam silncio
nada interrompe o marasmo da cascata
nem menino nem pai nem filho.
S as aves marias so pronunciadas
-
57
as tardes cadas se machucam nos olhos
os transeuntes desaparecem como o ar
por sobre a sombra do flamboyant
o casal se perde no tempo
constri casa famlia histria
e a aliana nem sequer foi comprada
o ourives se matou na madrugada sem lua
e da minha rua ouvia a madeira queimando.
Da memria rasguei meus panos
a interpretao dos anos foi concorrida
mas a batida do corao devolve-me o luar
que diz: bom parar e novamente se emocionar
com o breve momento de olhar pela janela
e ver a mais velha cidade que se possa contemplar.
CENRIO
Era eu mesmo quem te escutava?
Ondas que o mar leva praia
dos amores quisera distncia...
Tu sempre vens na hora certa da angstia
procurar confunde as horas da memria
no posso querer teus lhos para todo sempre
eles so de muita gente.
Era eu mesmo quem te falava?
O tempo nos encontra de mo vazias
prontos e um e outro para se afagar e receber
mas no recebemos nem nos damos
fenecemos no paiol das promessas.
O mar cenrio por muito de fundo feito
escuta os planos que fizemos h anos...
Era eu mesmo quem te amava?
A concha fechada das palavras omitidas
-
58
abre o leque dos dias do porvir.
MEMRIA DE SONS
A voz das horas gritou alto
pulsando emoo desferi golpes
profundas feridas se abriram: passado.
Tua face reinvento-a a cada dia
j no sei se a imagem confere
os originais envelheceram.
Tua voz a escuto acompanhada de um sorriso
mas tuas risadas no ouo mais
me traduzo na tua imagem: sofro.
Teu corpo por onde meus olhos se confundiam
se parece agora com uma borboleta
o tempo tem asas que nos separam.
Teu jeito tua maneira de ser teu cheiro
nem a memria recupera nem o tempo rev
fui-me para longe foste para nunca mais
e entre anos dias de primavera e vero
no te recomponho mais tambm pudera
a memria da pele sutil e j se confunde.
LGRIMA DOCE
Rola sem medo te esperei era tamanha a seca
rola sem receio de me ferir esperei-te tanto
leva contigo a mgoa a culpa e a dor
exorciza meu passado.
Esperei tanto por ti agora jorra de mim
carrega meus olhos batizai meus planos
enquanto te esperei estive seco
-
59
seco demais para chorar.
PRE, AGORA
Percebe que sofro olha bem nos meus olhos
a dor est no azul e no branco por toda parte
concede que te veja sempre assim: passageira
por que se me descobre possa ofend-la.
Por que se me tocas e me amas e te amo de volta
a dor um dia aparece e o encanto se quebra para j
de olhar como se fosse eu quem te amo: tenho pena
de amar mais que teu prprio amor.
Sou mesmo assim: passado aprisionando o presente
no me consertes pra qu, no podes remendar
o passado em cicatrizes pela alma: tens conserto
para almas penadas? Desista: volte a ser feliz.
POEMA DE UM VELHO
Veio a hora avisando: deite-se
levantei-me. Que nada: o tempo dormira
junto de mim: no notara as rugas.
E fui espalhando-me pela manh
e o tempo me rondando: corria de mim
o caracol estava ali : meu passado.
Choveu, mudou a estao e sentia
adormecido no tempo o corao frio
correr no dava: envelhecia.
Msicas tocaram, tentei ouvir o peito
o tempo sorria irnico: deitei-me cedo
acordei novamente: estava velho.
-
60
Por onde corro por onde ando naso
tempo passado, correr no devo, cansao.
Paro, penso: o espelho no mente .O corao
est repleto de muito espao: jamais amei.
CONFIDNCIA AO AMOR
Encontrei-te novamente perdido atrs de uma rvore centenria
estavas l fertilizado pelo tempo pela chuva e pelo sol
vieste ao meu encontro e novamente depois de alguns anos
entrastes sorrateiro para dentro de meu lar e l ficou.
Fincaste nos meus ps o esterco da pureza e amei
tu me forastes a acreditar nos devaneios das noites de prazer
e pensei moo demais para me afastar do destino , que era
imagine s, depois de tantos corpos, o velho , o antigo amor.
Amor, s uma imprecisa palavra roubada das virgens e abortada
dos homens
no tens receio de na minha vida poder sentir de tal maneira
que apesar de desiluses e reencontros variados
possa eu inculto peito no riso definir-te?
E se te defino sers minha alegria
ou te vivendo e sentindo
lutando e gozando
no estarei ainda mais me enganando?
Hoje, amor, me sinto to breve
como a gota de gua no deserto rido
sinto-me to frgil que sou folha
rasgada sobre a mesa do falecido.
Procuro respostas encontro meu passado
e amor, meu amor que tenho e no encontro
-
61
tu ests to imperceptvel que no sei se vivi
ou fiz da minha vida uma abstrao de sentimentos.
...essa msica, no mesmo quarto e tu ests comigo?
MAR
As pedras so ondas sem praia para desaguar
cada rocha tem bromlias e orqudeas centenares
todo cu o fundo infinito da natureza virgem
quando chove escorre das rvores a vitalidade
a natureza ao redor da cidade dos homens
inspira descansa e faz sonhar.
As ondas de cada pedra altaneira sem medida
no desguam em lugar nenhum no h mar
tem campinho de grama no meio do mato
traves de pau de candeia da mata
trs ciclos se repetem a cada dia
manh tarde noite: a noite acaba em mar.
Minas tem mar: mar de pedra e verde
Minas tem onda: de pedras sem praia.
POETA
Ser poeta no fcil
depende do tempo e
infelizmente o tempo
ausncia de sentimento.
Ser poeta no fcil
tem que ter coragem e
preocupadamente coragem
falncia de ingenuidade.
-
62
Ser poeta no fcil
tem que ter audcia e
paulatinamente a audcia
demncia da seriedade.
Ser poeta no fcil
tem que ser prtico e
frequentemente a prtica
indecncia da teoria.
Ser poeta no fcil
ainda mais que o tempo
repetidamente na vida
voa para nunca mais.
VAGANDO
Arrasto-me por entre dias
selvas de existncia e s.
Vago-me pelas ruas entre noites
selvas de concreto que d d.
Dias e noites se debatendo: existo
atos e culpas atados em n.
SOM
O silncio: tmpanos desocupados
ou preocupados com vozes interiores
h no tempo de se silenciar o desejo
vontade de se ouvir calar.
No tom leve do dilogo sem som
-
63
a voz aguda o tempo interior
voltando frisando projetando
o ser dirio to desatento.
Quando tudo silncio interior
e fora do ser s o objeto inerte
pareo pairar sobre a realidade
abrigado no humano teto.
TEMPO AO TEMPO
Percorri caminhos de anos e cheguei
a um momento : momentos so pausas breves
para perder mais tempo.
E percebi: como cego em tiroteio o som
do destino como j havia traado
por mim a algum tempo.
O destino no inveno acreditem
destino coisa percebida por quem
perde tempo em momentos.
Perdendo tempo ganhei o momento
de perceber que de tempo em tempo
o destino acontece num breve sofrimento.
MEU POEMA
Meu poema dura uma nota e meia
da escala do tempo passado.
Em dias de sol dura um nascente
nascidos na manh de margarida na janela.
-
64
Meu poema dura a dureza do diamante
pra cada verso um milnio de saudade.
Meu poema no tem pai nem me
rfo feito por vrias mos.
Meu poema frio e calculista
primeiro sofro depois angustio.
Meu poema a soma de vidas
passadas no canal da emoo.
AMANHECER
O dia comea com um grito: existo
nem pergunto quem sou at desisto
de saber se hoje serei eu mesmo
o que talvez seja muito triste.
Eu me dou novamente o dia: insisto
vivo porque no tenho coragem de partir
se penso em existir o medo de projetar
se funde ao medo de amar.
Eu me dou novamente meu nome: identifico
refao o olhar sobre as coisas: frio
e o dia vem calmo e lento se pronunciar
sou em meio a todos que me injuriam.
LINHAS DA LINHA
O ltimo verso ecoa bravo
por entre alamedas e becos
depois da chuva fina e fria
veio o poema noturno.
Expressivo o nibus da palavra
percorrendo as linhas da linha
-
65
as curvas revoltadas da mulata
a tinta preta pintando o sentido.
BARCA DO SENTIDO
Os versos vm de longe
l detrs da montanha azulada:
toda vez que sem inspirao
se encontra o poeta iludido
para l que mira os olhos.
Os versos vm trotando
a poeira subindo: avisando!
eles chegam tipografando rimas
remando o barco das letras conjugadas.
COPO
A noite no excomunga ningum
acolhe os bbados e os fracos
os desiludidos os tediosos
a lua sacramenta toda dor
iluminando o fim do tnel
dos goles em copo americano.
TINTA FRESCA
Depois de acumular calendrios
dias e horas segundos vejo
a noite e o dia sem graa
parece pirraa de entediado
mas no, frieza intelectual.
Depois de rever os projetos
o qu, como, por que sinto
sensaes idnticas sem farsa
parece tdio de ps-moderno
mas no, incredulidade.
-
66
TRAJETRIA
A gente anda cabisbaixo
felicidade parcas vezes tida
entre um gole e outro da bebida.
O tempo anda cabisbaixo
no temos hora pra partida
entre um amor e outro na vida.
A lua anda cabisbaixa
contemplao dos olhos ressentida
entre uma morte e outra na avenida.
FESTA EM MEL
Afunda na pele teu ferro dolorido
coloca nas pernas a pressa dos dias
quem sabe abaixados possamos fugir
da dor da ferroada que levamos de ti.
Zum zum zum no meio do cemitrio
zum zum zum no alto do cemitrio.
DEMONADES OU BALADA DO CONVERTIDO
Creio em Deus pai...
at quando Senhor?
os homens se deixaro levar
pelo discurso mais forte
e nem a sorte os impedem
de ganhar os cus
qualquer um serve de guia
homens mulheres marias
-
67
lotes no cu lua de mel
vendem-se eternidades
varrem-se liberdades
e mesmo os de idade
colocam a bblia debaixo do brao
e haja gritos para exorcizar o mundo
mundo to perdido bandido
to demonaco e selvagem.
Os homens se deixam levar
pela cor da igreja
pela dor sentida que se cura
mas toda dor tem cura mesmo
e mesmo os imortais sabem disso
que adianta sofrer penando toda vida
se sofrendo ou sorrindo morremos
e nada garante o sossego
nem mesmo bblia
nem mesmo pedir mais cedo.
URNAS E CANTOS
Passe o tempo
amontoem-se os corpos
ficaram as saudades
as palmeiras os sabis
no tentem invocar os livros
a vida mais que letra
no invoquem a memria
ela sempre se engana e escapa
passe o tempo
amontoem-se as placas
ns passaremos sem remdio
ou mesmo remediados morreremos
preparem as urnas e os cantos
-
68
no esperem com espanto a ressurreio
se ela acontecer vai ser longe
e longe distante dos olhos
fiquem os sabis (que tambm se vo um dia)
fiquem as palmeiras (que se quebram ao vento)
ns iremos sei l pra onde
onde haja um canto indecifrvel
onde haja a novidade sem culpa.
LUZ
A tolice do crepsculo
ser crise de iluminao
se no fossem esses postes
haveria apenas escurido.
Mas como o homem cria e a natureza sofre
acostumados estamos luz da noite
se h perigo em iluminar a rua
se h castigo em dormimos tarde
ningum poder afirmar.
Mas o crepsculo est em crise
quem sabe se sasse bem rpido
sem ser pela vista notado
quem sabe se inscreve em Vnus
no calor dos graus mormao
poderia deixar de ser para ns.
Que pena do crepsculo
finda o dia dos srios
e deixa o cemitrio
com cara de catedral.
Se os anos voltassem
gostaria de sentir medo
do escuro dos olhos da noite.
-
69
POLIGAMIA DAS LETRAS
Conhecer o que dizem as palavras
decifrar o informe da boca aberta
a linguagem sempre esperta dos homens
decodifica o mundo o globo
os jornais: entre figuras
e estamos nus: garotos e garotas
a linguagem das lnguas presas
prender o cu na boca
expressar o peito em fria noite
lnguas que se dizem de si
de mim de ti do outro
reverenciar o discurso persuasivo
to discursivo que alguns dormem
ouvir a boca da noite se abrindo
ensinando o menino a se comunicar
palavras verbos substantivos
temos motivos de sobra pra amar
a poligamia das letras me informa
que no falar: que se abra uma porta
estreita mais poderosa que entende e muito
a porta dos homens sensveis
alguns chamam de incrveis
mas prefiro enumerar e cham-los
imortais na arte de ouvir
imortais na arte de amar.
ESTATSTICA
A vida no cabe em nmeros
em nmeros no cabe a morte
se nasce um homem nova sorte
se morre um infeliz novos dados
a vida no cabe em estatsticas
-
70
triste caminho da abstrao
cada um carrega em si muito mais
ancestrais e histrias
desnumeradas e sem tempo
no h nmeros pra aprisionar a vida
um quilo um cento um milheiro
cada um um janeiro esperando carnaval
faa bem ou faa mal do homem
rodar moinhos sem contar as voltas
ir pelo mundo a cavalo
sem medir o estrago das rugas
a vida no cabe em nmeros
em fichas de dados corretos.
SECA DOS TEMPOS O homem uma paixo intil.Sartre
Os carrinhos de mo pelos becos
na areia os gritos de guerra
os meninos de olhos castanhos
se misturam ao cenrio do tempo
incenso de missa em missa lavrada
jogados estamos entre alturas
mas no pensemos em cair
podemos sair pela tangente.
A infncia na memria viva
apesar da seca dos tempos
no cho dos poucos anos tudo belo
no h tempo ruim nem cemitrio.
BOIADA DE VERSOS
Poderia versar a noite inteira
rompeu a boiada da inspirao
-
71
e quero muito dizer
estou bem: estou vivo.
Nenhum poema boi manso
sai pelo mundo feito louco
filho de pai taciturno.
O poeta ou o poema
em quem reside a loucura?
o poeta morre
o poema pra quem fica?
Leiam meus versos
pra que a boiada chegue
ao fim da estrada.
Leiam meus versos
pra que a loucura
seja completa e amada.
Leiam meus versos
e descubram que na vida
s h entrada.
O OUTRO
Havia bem antes de mim outro
indiviso humilde animado
hoje depois de amar e ver-te
sou pouco do meu passado.
No foram as luas nem as estrelas
dizendo-me tu s passado
-
72
em apenas um segundo de medo
perdi quem havia amado.
Se o tempo moinho das horas
recontar meus momentos pudesse
deixaria ventos da juventude
agitar bem menos a memria.
No posso recontar o tempo
apenas reviv-lo triste
como se em algum lugar
a felicidade ali residisse.
INGENUIDADE
Foi mesmo a tanto tempo: j me esqueo
a muitos anos nem bem me lembro as imagens
turvam-se como rio verde na memria
de nada valem as recordaes: o tempo me levou.
E levando foi descendo ladeira abaixo e eu
impercia em cascatas de acontecimentos
nem percebi o tempo no passa a dor
perdia os olhos ingnuos da infncia.
Eu, eu mesmo. Que falo. Sinto e choro
eu, que me fiz em horas de tristes momentos
eu, eu me condeno - quero sentir o calafrio
do tempo injetando na veia passado.
E me vou levado pelo relgio da emoo
passei e sou passado e no me resta nada
apenas frases perdidas de um tempo ido
em que eu existia sem medo.
-
73
ELEGIA DA BOLA DA INFNCIA
Veio o tempo em longas cabeleiras
nem frio nem quente: angustiante
veio a veia dilatada pedindo: ame!
o tempo trouxe tuas cores e desvirginei as horas.
O tempo me persegue por entre rvores
os dias se perdem sem prazer
prazer era o tempo escorrendo
por entre um badalada e outra dos sinos serranos
prazer era a bola da infncia rolando
sem tempo pelo campinho de terra.
O tempo me jogou na face olhos tristes
como quem olha do Pico do Itamb
prazer era a carne fresca dos amores juvenis
por entre paredes e becos
prazer era a hora do recreio no ptio
inundado de andorinhas brancas e azuis.
Dos tempos escorrendo na memria
cativou-se o bom tempo (parece eterno)
dos projetos pensados na noite
tu sabes dos projetos arquivados na emoo?
Desses que falo com a boca salivando
esses se foram nas horas da grande cidade.
Bem aventurada a ingnua brandura dos meninos do interior
bem dito o sermo do meu senhor sobre a montanha de gente
bem sofrida a dor destes dias sem sol e sem chuva
regados a desiluso
bem.... mal acordei e j olho sem luz o dia herdado do sono.
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74
O frio na espinha batendo de leve em dias sobressalto existencial
o tempo: ele te quer virgem para fecundar
tua memria de passado
o tempo: ele te quer novo e jovem
para projetares o futuro ilusrio
o tempo: ele te quer velho como estilo colonial
para te dar lies de vida.
SOMA ET ANIMA
O silncio, escuta, alma penada de solido
o silncio traz a amada, ouve o bal
os passos no palco vazio, um tambor...
O silncio teu amigo, senhora imortal
recebe-o nos braos ao fundo dos sons cadentes
parar o tempo e ouvir a morte penteando os cabelos
te prepara para a noite das despedidas.
Ouve, alma prudente, para estacionada na nuvem que chove
v embaixo dos ps h muitos amados
parte rpido ouvindo os anjos chamando.
Nascente em meio s serras azuis dos mangais
no temeis o incgnito, v em paz
O silncio brinda taas, ouve corao!
Cada taa um sentimento nobre!
ENCONTROS
A alma leve feito fumaa
que se eleva que se leve
o amor bateu na porta
e nem sequer esperou:
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75
aportou na minha cama
colocou o seu drama
e por ele nos amamos
a existncia os planos
j comeam a rolar
e quem vai nos impedir
quem poder nos controlar
a existncia justificada amando estamos
contaminados pela paixo til.
Estou confuso mas estou agindo
se medindo me pego os metros de vida
escrevo cartas e pronto
j nem me lembro do dia de amanh
da conta por pagar da vida por extinguir
esta estrada do amor mesmo sem fim
e j justificado pelo outro no quero
no podes no deves no quero
pensar que h um final
assim abro as vlvulas para o fim
desta gua benta que cai sobre mim.
ORATRIO
As gotas de chuva agarradas s altas rvores
suicidam-se sobre minha cabea
respingando umidade e verde.
O cho trespassando seus corpos mutilados
umedecia suas covas brotando
flores em coroas multicores.
A nvoa fazia da mata um mistrio
os sons decompunham nossos pensamentos
-
76
e nas voltas pelo recanto dos saguis
alimentei seus corpos saltitantes.
Cada gota de chuva era cachoeira
cada silncio uma nova esperana.
Toda a tarde se fez orao criativa
de homens em sintonia com Deus.
Belo Horizonte / 11.02.95
SONETO DA CASA PERDIDA O que l vai, l vai, no o repises!
Cervantes
A janela se fechou pelo vento
sem tempo inteiro ainda ouvindo
a msica roando o pensamento
fecha-se o dia no barulho esculpindo.
A antiga janela na infncia se abrindo
refazendo manhs de sol e chuva
retorcendo os dias de maturidade cobrindo
a mo suada da sorte de leve luva.
A janela spera e inacabada ruindo
to jovem como eu desabando
no tempo que me vejo partindo
para alm da montanha azul calando
a infncia na casa dos pais traindo
- volta chuva dos tempos de acalanto!
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77
POEMA SEM BREVIDADE metade amputada de mim... Chico Buarque
No horizonte para alm dos olhos tristes
o corao est parado num ponto
em que felicidade havia.
Tu s as accias roando o vento
flores abertas em cio fecundando a vida
a noite dos gatos perdidos no meio do mato
a lua desnudada em sua face obscura.
Desde que amei teu olhar perdido em esperana
como se a felicidade ali residisse
desde que as molculas do tempo nos aproximaram
como se o tempo devolvesse o momento do parto.
No mais chorei por medo e sim por saudade
Ah! Peito tamboroso anuncia a glria dos amantes
onde reside a glria de amar seno sofrer?
No mais penei por trabalhar mas por esperar
Ah! espera alegre que anuncia o reencontro dos olhos na hora dos
pratos postos
onde resiste a vitria de amar seno suportar?
Desde que foste para o relicrio da alma do pobre amante das
lembranas impartilhveis
nunca mais vi as estrelas como pontos luminosos espelhando
nossos corpos
elas eram cmplices do amor que me consome
to forte que de vez em quando, de chorar me consolo.
Tu s a bblia aberta no Cntico dos Cnticos
do pudor e misticismo exorcizando tua presena
-
78
pura feito tnica de batizado roubado de sua pureza anmica
enfeitiada pelo louvor dos deuses como uma sacerdotisa.
Tu s minha ausncia dolorida: ferida cancerosa do tempo no
peito
a aura fazendo arco-ris aos meus olhos
tela sempiterna de cores incomunicveis
a vela acesa em noite de geradores desligados
a noite que te traz.
A noite, tu te lembras, da noite escura dos corredores?
Passevamos entre uma e outra ave maria
a noite, me digas, tu te lembras da lua vigiando nossa embriaguez
assustada?
a noite, te lembras da ltima palavra trazendo o silncio casa?
tens a noite como esconderijo eu a tenho como lembrana
pairando como flmula das loucas torcidas organizadas.
Tu s piano amordaando a garganta aos poucos a cada nota, a
lgrima acende imagens
a lgrima revive a magia das imagens virtuais sem foco, sem
sombra s trevas
tu consolas meus dias sem saber e porque nem te ds conta me
alegro
alegria de poeta repisar o tempo com palmilhas de saudade.
Quando fores s verdes campinas do tempo de infncia na porta
da igreja
me traga a semente de ip nascido na praa dos seminaristas
rezadores de tero
busca mudas de flor extica na casa pequena (que s ela cabe...)
de dona Ubaldina
mulher de olhos midos mas de corao pautado pela esperana.
Quando repisares teu antigo quarto v se no te esqueas - anotai
num guardanapo!
-
79
olhai sem displicncia para os tacos de lado a lado no cho
encaixados
imagina meus ps enroscados no labirinto dos pensamentos
olhai a parede branca parece sem vida - branco o deserto dos
prncipes pequenos habitantes dos mitos lendas evangelhos
olhai com o corao a janela para o pomar - medi a grandeza das
rvores pelos frutos jorrados da seiva.
Quando tua lembrana repassar os idos anos que no se vo sem
dor ou espanto
j me espantei com a atualidade de tua presena em minha vida -
d para sobreviver!
lembra-te dos cartes coloridos em noites escuras dos homens
cansados de estudar
espia com desejo as cartas revelando o poeta - enxuga as lgrimas
que as selaram.
Quando recolocares meu nome na gaveta da memria guarde o
nome do arquivo
deixa eu pensar no tempo passando o amor mas no apagando a
memria
deixa essa iluso ser o ramo seco atravessando o inverno mas
vingando na primavera
deixa eu ditar ao passado o lema dos esquecidos que no se do
conta da dor - recordar viver...
Gritai alma de sete cores escurecida por melodiosa cano dos
amigos feitos nas horas
gritai alma solitria por tantas lanas atravessadas por algozes
amores
gritai nua pela avenida dos sorvetes das cervejas dos carnavais.
gritai diante da gua benta... aspergi-vos na igreja das nossas
senhoras mes fertilssimas.
Tu s a inquietao duradoura e s vezes de to amarga breve
-
80
s o arrozal esperando o brejo renascer da chuva de prata, do
orvalho da madrugada
s a madrugada por onde repassas tua vida de liberdade vigiada
s madrugada quente de vero, fechado o quarto, abertos os olhos
em dvidas.
Tu, inspirador de flores e sementes a se abrirem sobre o altar e
sobre o cho
por onde plantas teus passos nos dias que se escapam dos olhos
arregalados?
tu no sabias compor msicas e me ensinaste a te reencontrar ao
som de acordes suplicantes
por onde ouves os passos dos gatos reinando na noite dos cios da
terra?
Tu s livro de poemas por sobre a cama - eu o deixo l pois me
consolo: livros de poemas so frteis feito virgem em lua de mel -
deixo-os fecundando...
Tu s a singular infinitude de momentos entregues ao tempo em
pequenos objetos sacramentos dos olhos que se vm...
tu te queres vendo o tempo como eu passado?
perdoa os versos matutinos feito missa breve - pela manh reza-se
to rpido, pela manh precisamos ainda pouco de Deus
o dia traz tormentos demais...
Tu ests abrigado no tonel inconstil da alma tu tens marcas na
alma? So como tatuagem no brao...
Ests na hora da despedida - tenho me ido tanto nos ltimos
tempos!
A alma cansa-se de viajar por terra: viva o cu, se houver!
Ests na bandeja das horas... j tive bons momentos diante das
teclas que te apresentavam, belas cartas...
Fostes do meu cotidiano confuso, de inconfessas pretenses
depois do parto a me v o filho crescendo se tornando outra
carne livre
-
81
nem me despedir consegui... h partos estranhos em noites frias,
sem graa
ficaram as fotos desde l as guardo como trunfo diante do tempo
que no para.
Poderei escrever mais versos com ps atolados na saudade?
Recebe os versos nem meus nem teus nem nossos
no nos pertencemos: os racionais os mundiais os globalizados.
recebe os versos que poderiam ser do finito ao infinito, do breve
ao Eterno, mas so do amante amada
recebe os versos breves em tantas letras escritas no te preocupes,
ultimamente tenho estado muito toa mesmo.
Recebe os versos mais uma vez. Belo Horizonte / 05.02.96
BALANA DO TEMPO
A luz atravessou o vaso sambambaiado por sobre a mesa em
mrmore esculpido
o dia ressurgiu feito Lzaro das profundas covas do ser
transcendente
e nem bem acordava tua sede cegava meus lbios: te procurava.
A noite arrastando correntes madrugada afora: estrelas, luas, cus
mensagens chegavam por entre meteoros anmicos: esperana
e nem bem recordava tua fria embriagada os olhos choravam: a
tua lembrana.
Amada madrugada dos homens miserveis sem metfora sem
encanto
noite causticante lanando ao pensar redes sem desembarao sem
fuga
dia perpassado de luz: nasci abrindo do fundo do tero os olhos
para a vida
momentos urgentes de equilibrar as horas na balana infiel do
tempo: urge ser feliz.
-
82
PAPEL DAS ALMAS
A alma partida entre luar e amanhecer
escreve, escreve rpido por entre a chuva
a noite desvelando o rosto esfacelado em dor
escreve, depressa, corre entre curvas significativas.
Vai, poeta, homem impuro, desvirginando a hora prendendo-a ao
papel
vai, poeta, enlaa a palavra por entre promessas de seguridade
afetiva
atira na parede dos papis indefesos a cor das paixes inconfessas
mas no te esqueas: lava a alma depois do culto danante das
letras.
No h esperana do dia raiar orvalhando
esquece, esquece lcido dos dias felizes
a lua nem bem chegar nem mal irrigar a pele (de chuva de prata)
esquece, esquece escrevendo: no h dessentido na letra
socorrendo a alegria
esquece e encharca o papel das letras radiosas da alma humana.
BOJO DO BARCO
A areia se abrindo para o mar em tarde noivando a noite
bela praia: olhos atravessando a mar que se enche - a lua cheia
a lua, cheia, revoltando o mar: no temos culpa pela dor da noite
a lua, enjoada, regurgitando ondas pela areia dos caranguejos
infantis: a vida no anda s para frente.
O belo regresso da noite clara, da gua clara, do claro pensar
os barcos pedindo partida: a noite feita para navegar
os astros quentes em tempo de estourar: mquina celeste
embriagada
peixes ninando a noite na rede capturados ainda sem saber: mar
alta. Jiribatuba BA / 1993
-
83
LENITIVO
Tua praia impedida por faustos casares de ministros (de guerra
no eram...)
teus eternos jovens universitrios em frias ou toa passando
horas
o carnaval balanando corpos presentes e espritos dos partidos
o sol desenhando nos olhos o panorama lenitivo das ondas
cadenciadas.
A Fonte da Bica restaurando a hidratao dos corpos agitados
h o tempo escorrendo por entre mos que se juntam danando
h os negros marcando a areia branca aos pulos da msica em
tambor
tambores ecoando na memria das vidas seriadas ali vividas ou
santificadas. Itaparica BA / 1993
ROSA, ROSAE
Ao Pe. Flix Obrzut
Os teus postais guardados recriam tuas faces verdes em arco-ris
se abrindo em cor
a fora do arrozal fertilizado pelo orvalho da lua melanclica
e nem bem a noite escorre por entre a chuva quotidiana das
enxurradas
teu brilho resvala na manh saudosa dos ps repisando o caminho.
A igreja benzendo as vozes latinas das oraes incorrigveis e
imortais
os santos ouvindo clamores, suspiros, lamentaes que se bastam
no toque imagem
as velas acesas clamando Maria me das mes penosas
me virgem de mos acolhedoras, recolhendo pedidos
incansveis.
-
84
A lua que te fertilize por uma chuva e outra de vozes orantes
a chuva que te inicie no mistrio dos frutos nascidos em estaes
das verdes campinas a arara h de sofrer na retina a dor de ver
preto e branco. Campina Verde / 04.03.96
ESCULTURA EM CAPIM
A arara azul sobrevoando a estrada dos homens fazendeiros
arara ou arco-ris em pleno dia de sol?
nos coqueiros com cachos enfeitados em amarelo hipertenso
h pousada o arco-ris gritante: a arara ecoando na memria da
retina.
Podia passar as mo agigantadas pela virtual imaginao:
confesso imaginei por sobre a verde campina esculpida pela terra,
cultivada pela chuva
verde claro, cachos de cabelo liso por entre os dedos do passado
maqueta de florestas de capim: os olhos reduzem as imagens mais
belas:
percebe, temos belos quadros na memria.
Plana como a rgua dos secundaristas traada em ruas, avenidas e
praas
como corria o Rio Verde entre tuas terras, desafio aos no
gegrafos
Rio Verde do rancho com nome de padre, de fonte feita por
padres, de padres rezando missas vespertinas.
Rio Verde corrente entre pontiagudas pedras rolando ladeira
abaixo.
Missas ecoando entre a torre e o cho geomtrico da igreja (o sino
roando nos tmpanos as horas)
-
85
de hora em hora a vida se desenhava entre ips amarelos e brancos
da Praa So Vicente
os seminaristas pestanejando aves e marias entre a alta grama dos
canteiros
ali a cidade comeava: milagre de So Vicente, tela de Van Gogh
sem corvos?
VISO NOTURNA
E como no existia Deus se tuas luzes eram espritos boiando na
lagoa...
era o esprito luminoso brotando do poste (luzes artificiais):
reflexos
reflexivos pontos por sobre a nata do tempo se indo pelo ladro
das horas
erga-se novamente noite: quero rever os espritos, Deus no est
morto.
Lagoa insana sombra que tu sers dos postes te rodeando
veja-te bela no espelho csmico, ou na contemplao nem sempre
justa do poeta
que o olhar do poeta no tem espelho: s decomposio
existencial
que o olhar do poeta inveja a beleza etrea, efmero nascer e
morrer do dia.
Lagoa da Pampulha / 03.03.96
GAIVOTA
O Tnel Dois Irmos descobrindo o mar incaptvel de to imenso
e longnquo
as favelas escarpando formaes mamelonares: seios nas praias de
brancas areias
o olhar retilneo buscando a gaivota por sobre a tarde pousando o
fim do dia
-
86
onde sepultam os corpos das gaivotas: poderei visitar seus
tmulos efmeros como a luz?
O Po de Acar caindo sob e o cho retesando formas na
imaginao
a lua comprometida com o belo expe a aula de esttica a olhos
vistos
nem objetivas nem pintores nem poetas: a noite revelando nossos
corpos pura
mais pura que o branco das penas perdidas pelo voo debochado da
gaivota insepultvel.
Rio de Janeiro / 1995
ROLETA
Rpido vamos de ponto em ponto
ligeiro avanamos de sinal em sinal
passageiro por passageiro a roleta girando
as rodas do coletivo percorrem a poeira da cidade.
Mos estendidas acenando - Pare!
so coletivos os movimentos
so sincronizadas as reclamaes
cada momento ali dentro muito confuso.
Belo Horizonte / 04.06.95
A MO
O motor ronca subindo a ladeira depredada
os homens sobem suados por entre cansaos
marcado o passo das domsticas partindo
a casa se torna o refgio dos cansados
a noite o abrigo dos operrios incultos
que esculpem no dia-a-dia dos casares
a histria caseira refazendo o Serro.
-
87
24 ANDAR
Nas asas de tantos andares
vinte trinta quarenta
daqui de cima onde os mortais
se rebaixam l embaixo
tenho no horizonte concreto estruturas.
artificial: a imagem. o som, o luar.
artificial: a comida, o livro, o cantor.
Belo Horizonte / 03.05.95
POBRE HOMEM, O TEMPO
A parreira crescida de seus dedos
suas veias largas jorrando tempo
nem rivais nem descontentamento
na sua vida lenta lembro bem
o que mais aparecia era a humildade
folhas caindo da rvore para o cho
palavras que se esvaem como perfume
de tua presena restou o sorriso
meio bobo quem sabe infantil
da eterna criana dentro de mim.
TEMPO LONGE
hora de dobrar esquinas
e chorar sem rimas a saudade
das ruas de p de moleque
das luas de noites breves.
Momento de ingressar no nibus
nos degraus da viagem lembrar
Santa Rita em tantas subidas
desci tanto para enxugar lgrimas.
Quando fico muito tempo longe
-
88
das flores da Praa Joo Pinheiro
colho muitas dores no peito
e cr