Universidade Cândido Mendes
Instituto a Vez do Mestre
Campus Centro II
Pós-graduação lato senso em Psicologia Jurídica
Orientador: Eduardo Pontes Brandão
Aluna: Patricia Reis Guimarães Rosa
Matrícula: K213636
Tema:
Da costela de Adão – a discrepância entre meninos e meninas no sistema sócio-educativo
AGRADECIMENTOS
A Deus, por tudo.
A minha família, por ser singular.
Aos professores do curso de pós-graduação em Psicologia Jurídica da UCAM.
Aos colegas da turma, mais que colegas, companheiros.
DEDICATÓRIA
A Pedro, meu filho, motivo e razão de tudo o que faço.
A Ângela, amizade mais cara desta vida.
A Julio, que me ensina tanto sobre a vida, às vezes mesmo sem saber.
RESUMO
O presente trabalho procura articular quais as causas para a
discrepância entre o número de adolescentes do sexo feminino em relação aos
adolescentes do sexo masculino no Sistema de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro.
A partir do contexto jurídico, lançando mão da legislação ao longo do
tempo, dos referenciais teóricos da Psicologia Social e inserido no contexto da
discussão de gênero, questiona-se qual o lugar das meninas no âmbito do
conflito com a Lei.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ?.......................................................................................PAG. 6
CAPÍTULO 1
DO SURGIMENTO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA À PRODUÇÃO DO MENOR........PAG.10
A INVENÇÃO DO MENOR ?.............................................................................................PAG.12
CAPÍTULO 2
DO CÓDIGO DE MENORES AO ECA – DO MENOR À CRIANÇA E ADOLESCENTE.... PAG.15
DA PRÁTICA DE ATO INFRACIONAL – DEFINIÇÕES.....................................................PAG. 18
SINASE – UM PASSO A FRENTE NA GARANTI A DE DIREITOS...................................PAG. 23
CAPÍTULO 3
A JUVENTUDE CRIMINALIZADA E O LUGAR DAS MENINAS.......................................PAG. 26
O LUGAR DAS MENINAS.................................................................................................PAG. 28
CONCLUSÃO..............................................................................................PAG.33
BIBLIOGRAFIA............................................................................................PAG.35
INTRODUÇÃO
O Brasil possui 25 milhões de adolescentes na faixa de 12 a 18
anos, o que representa, aproximadamente, 15% (quinze por cento) da
população. É um país repleto de contradições e marcado por uma intensa
desigualdade social, reflexo da concentração de renda, tendo em vista que 1%
(um por cento) da população rica detém 13,5% da renda nacional, contra os
50% mais pobres, que detêm 14,4% desta (IBGE, 2004).
Essa desigualdade social, constatada nos indicadores sociais,
traz conseqüências diretas nas condições de vida da população infanto-juvenil.
Quando é feito o recorte racial, as disparidades tornam-se mais profundas,
verificando-se que não há igualdade de acesso aos direitos fundamentais. A
população negra em geral, e suas crianças e adolescentes em particular,
apresentam um quadro socioeconômico e educacional mais desfavorável que a
população branca. Do total de pessoas que vivem em domicílios com renda per
capita inferior a meio salário mínimo somente 20,5% representam os brancos,
contra 44,1% dos negros (IPEA, 2005). Há maior pobreza nas famílias dos
adolescentes não brancos do que nas famílias em que vivem adolescentes
brancos, ou seja, cerca de 20% dos adolescentes brancos vivem em famílias
cujo rendimento mensal é de até dois salários mínimos, enquanto que a
proporção correspondente de adolescentes não brancos é de 39,8% . A taxa de
analfabetismo entre os negros é de 12,9% nas áreas urbanas, contra 5,7%
entre os brancos (IPEA, 2005). Ao analisar as razões de equidade no Brasil
verifica-se que os adolescentes entre 12 e 17 anos da raça/etnia negra
possuem 3,23 vezes mais possibilidades de não serem alfabetizados do que os
brancos (UNICEF, 2004). E mais: segundo o IBGE (2003), 60% dos
adolescentes brasileiros da raça/etnia branca já haviam concluído o ensino
médio, contra apenas 36,3% de afrodescendentes (negros e pardos). Há
também diferenças superiores entre a raça/etnia branca e a raça/etnia negra
quando se verifica a relação entre a média de anos de estudo e o rendimento
mensal em salário mínimo. A raça/etnia branca possui média de estudo de oito
anos e o rendimento médio em salário mínimo de 4,50, contra a média de 5,7
anos de estudo com rendimento médio em salário mínimo de 2,20 da raça/etnia
negra (IPEA, 2002).
Quanto à escolarização dos adolescentes e jovens brasileiros, a
realidade apresenta dados significativos. Muito embora 92% da população de
12 a 17 anos estejam matriculadas, 5,4% ainda são analfabetos. Na faixa etária
de 15 a 17 anos, 80% dos adolescentes freqüentam a escola, mas somente
40% estão no nível adequado para sua faixa etária, e somente 11% dos
adolescentes entre 14 e 15 anos concluíram o ensino fundamental. Na faixa de
15 a 19 anos, diferentemente da faixa etária dos 7 a 14 anos,10 a
escolarização diminui à medida que aumenta a idade. Segundo Waiselfisz
(2004), a escolarização bruta de jovens de 15 a 17 anos é de 81,1% , caindo
significativamente para 51,4% quando a faixa etária de referência é de 18 a 19
anos.
Nesse contexto de desigualdade social, a mortalidade juvenil
também é aspecto a ser considerado, tendo em vista que a proporção de
mortes por homicídios na população jovem é muito superior à da população
não jovem. Segundo Waiselfisz (2004), a morte por causas externas na
população jovem é de 72%, e destas 39,9% referem-se a homicídios praticados
contra a população jovem. Já em relação à população não jovem, a taxa de
óbitos é de 9,8%, e destes os homicídios representam apenas 3,3%.
A realidade dos adolescentes em conflito com a lei não é diferente
dos dados ora apresentados. Estes também têm sido submetidos a situações
de vulnerabilidade, o que demanda o desenvolvimento de política de
atendimento integrada com as diferentes políticas e sistemas dentro de uma
rede integrada de atendimento, e sobretudo, dar efetividade ao Sistema de
Garantia de Direitos.
O levantamento estatístico da Subsecretaria de Promoção dos
Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos (Murad, 2004) identificou que existiam no Brasil cerca de 39.578
adolescentes no sistema sócio-educativo. Este quantitativo representava 0,2%
do total de adolescentes na idade de 12 a 18 anos existentes no Brasil Ainda
em relação e esse levantamento estatístico, 70%, ou seja, 27.763 do total de
adolescentes no Sistema sócio-educativo se encontravam em cumprimento de
medidas sócio-educativas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de
serviço à comunidade).
Segundo Rocha (2002), havia no país 9.555 adolescentes em
cumprimento de medida sócio-educativa de internação e internação provisória.
Destes, 90% eram do sexo masculino; 76% tinham idade entre 16 e 18 anos;
63% não eram brancos e destes 97% eram afrodescendentes; 51% não
freqüentavam a escola; 90% não concluíram o Ensino Fundamental; 49% não
trabalhavam; 81% viviam com a família quando praticaram o ato infracional;
12,7% viviam em famílias que não possuíam renda mensal; 66% em famílias
com renda mensal de até dois salários mínimos, e 85,6% eram usuários de
drogas.
Em cumprimento da medida sócio-educativa de semiliberdade
existiam 1.260 adolescentes, segundo Fuchs (2004). Destes, 96,6% eram do
sexo masculino; 68,5% tinham entre 15 e 17 anos; 62,4% eram
afrodescendentes; 58,7% estavam fora da escola formal antes do cometimento
do ato infracional; 75,7% não trabalhavam; 70% se declaravam usuários de
drogas e 87,2% viviam com a família antes do início do cumprimento da
medida sócio-educativa.
A realidade dos adolescentes brasileiros, incluindo aqueles no
contexto sócio-educativo, exige atenção do Estado e evidencia a necessidade
de uma agenda de urgências no sentido de se efetivar políticas públicas e
sociais e, sobretudo, ampliar os desafios para a efetiva implementação da
política de atendimento sócio-educativa.
Cabe-nos, então, indagar por qual razão temos mais meninos
entrando, saindo e não raro, muitas e muitas vezes voltando aos corredores
das Varas da Infância e Juventude? O que este quadro nos mostra? O que
estes números nos dizem?
A partir da síntese das estatísticas podemos visualizar o perfil
daqueles que são os frequentadores, por assim dizer, do espaço do judiciário,
os usuários do sistema de justiça. Em sua grande maioria são jovens do sexo
masculino, pobres e pouco escolarizados e não raro, chegam ao judiciário por
atos relacionados ao tráfico de drogas.
Esse quadro pode ser observado por outro prisma, que não
apenas a tipificação do sujeito, mas interrogando por que esse sujeito é mais
visto em contrapartida a uma outra parcela de jovens. Em especial, neste
trabalho, procura-se indagar qual o lugar ocupado pelas adolescentes do sexo
feminino no contexto do conflito com a lei. O que pode ser visto ou apontado
como causas do número tão reduzido, em proporção ao número de
adolescentes do sexo masculino, e sobretudo a questão da reincidência, que
aparece de forma tão expressiva entre os meninos e é praticamente inexistente
entre as meninas.
Inegavelmente, indagar o nosso viciado olhar sobre a questão do
ato infracional, coloca-nos face a face com a relevante questão do gênero. Este
pode ser definido para além da diferenciação marcadamente sexual, biológica,
ou a mera distinção entre macho e fêmea. O conceito de gênero inclui a
dimensão psicológica e social do sexo. São os papéis sociais desempenhados
por cada sujeito, são construções sociais para cada modelo que conhecemos
de homem e mulher.
No atual momento histórico, quando acabamos de eleger a
primeira mulher presidente do Brasil, é especialmente interessante utilizar o
conceito de gênero. O país vivenciou de forma intensa a discussão do papel da
mulher, em uma campanha claramente marcada por uma questão de gênero,
onde a mulher era apresentada como sendo menos capaz de dar conta da
administração de um país, ou mesmo veiculando uma ideia de que ser mulher
implica necessariamente no papel de mãe/avó, dona de casa, cuidadora. Em
alguns momentos fica evidente que ser mulher é condição inerente para ser
vista como menos em relação ao homem.
Estas reflexões ajudam a embasar o questionamento deste
trabalho, acerca do que acontece no sistema sócio-educativo, cuja porta de
entrada é o Judiciário. Por que estamos diante de tamanha discrepância entre
não apenas o quantitativo mas, como consequência imediata, a qualidade do
atendimento realizado que diferencia meninos e meninas?
Capítulo 1
Do surgimento da infância e adolescência à produção do menor
A ideia de infância, tal qual a conhecemos nos nossos dias, não é
necessariamente a mesma ao longo da História. Ariès (1981) nos apresenta,
através da pesquisa iconográfica empreendida, que a concepção de criança foi
sendo construída a medida que tantas outras instituições foram surgindo.
Para localizar historicamente, podemos dizer que o sentimento de
infância surge na Idade Média, ou seja, é o que podemos deduzir, já que não
havia anteriormente a este período representação ou qualquer tentativa de
representação da infância, sendo muito provável que neste mundo adulto não
houvesse lugar para a infância. A criança desta época, vista como um adulto
em miniatura participava integralmente do mundo e da vivência adulta.
Apenas no século XIII surgem as primeiras tentativas de
diferenciar uma outra categoria de pessoa, que não adulta, embora o que se
pudesse observar nas pinturas do período, seja uma tentativa de
representação da infância tal qual uma miniatura do adulto, ou então como um
anjinho, atravessada pela forte presença religiosa do período.
Somente no século XVI, os educadores entraram em cena para
demarcar uma separação definitiva entre o mundo dos adultos e das crianças.
Surge, neste período, a ideia de uma inocência infantil, e com isto, passam a
vigorar alguns princípios: é preciso vigiar as crianças com cuidado e jamais
deixá-las sozinhas em nenhum lugar; deveria se evitar mimar as crianças
habituando-as desde cedo à seriedade; deveria ser incorporado ao
comportamento infantil o recato; não se deveria deixar as crianças em
companhia de criados e por último deveria se extinguir a familiaridade e
substituí-la por uma grande reserva nas maneiras e na linguagem. Tal
concepção de infância surge claramente marcado pelo modelo burguês
emergente.
O mesmo autor fala-nos ainda da importância do surgimento dos
colégios. A estes caberia a função de isolar, cada vez mais, as crianças durante
um período de formação tanto moral como intelectual e adestrá-las graças a
uma disciplina mais autoritária.
No século XII, os colégios eram asilos fundados por doadores
para estudantes pobres. No século XV, estes se tornaram institutos de ensino e
finalmente, todo o ensino passou a ser ministrado nos colégios. O
estabelecimento de uma regra de disciplina marcou a transição dos colégios de
classes com amplo espectro de idades assistidas por um único mestre, para o
colégio moderno, uma instituição complexa, não apenas de ensino, mas de
vigilância e enquadramento. A evolução da instituição escolar demonstra como
esta é intimamente atrelada a uma evolução do sentimento das idades e da
infância.
É possível afirmar ainda, que o sentimento de infância emergente
é inseparável do sentimento de família. Há uma relação de complementaridade
entre ambos, sendo o interesse pela infância a expressão particular deste
sentimento mais geral de família. Junto ao progresso do sentimento de família
surgem os progressos da vida privada, da intimidade doméstica. Tal sentimento
não se desenvolve quando a família está muito aberta para o exterior; ele exige
um mínimo de segredo, um entrincheiramento necessário da família.
Podemos perceber, como primeira expressão desse modelo de
família moderna, a família dos homens ricos e importantes, moradores de
grandes casas. Neste momento, é interessante notar que, até mesmo a
concepção arquitetônica da casa passa a ser desenhada por tal sentimento,
criando a separação dos cômodos que garantiria a tal privacidade da família e
a manteria isolada do contato com os demais frequentadores da casa e
empregados.
Neste aspecto, destaca Ariès (1981:189):
“A criança tornou-se um elemento indispensável da vida quotidiana, e os adultos passaram a se preocupar com a sua educação, carreira e futuro. Ela não era ainda o pivô de todo o sistema, mas tornara-se um personagem muito mais consistente. Essa família do século XVII, entretanto, não era a família moderna: distinguia-se desta pela enorme massa de sociabilidade que conservava. Onde ela existia, ou seja, nas grandes casas, ela era um centro de relações sociais, a capital de uma pequena sociedade complexa e hierarquizada, comandada pelo chefe da família. A família moderna, ao contrário, separa-se do mundo e opõe à sociedade o grupo solitário dos pais e filhos. Toda
a energia do grupo é consumida na promoção das crianças, cada uma em particular, e sem nenhuma ambição coletiva: as crianças, mais do que a família. Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família moderna durante muito tempo se limitou aos nobres, aos burgueses, aos artesãos e aos lavradores ricos. Ainda no séc XIX, uma grande parte da população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as família medievais, com as crianças afastadas da casa dos pais. O sentimento de casa, do chez soi, do home, não existia para eles. O sentimento de casa é uma outra face do sentimento de família. A partir do séc. XVIII, e até nossos dias, o sentimento de família modificou-se muito pouco. Ele permaneceu o mesmo que observamos nas burguesias rurais ou urbanas do século XVIII. Por outro lado ele se estendeu cada vez mais a outras camadas sociais.”
Tal apreciação nos faz refletir que o modelo de família que vemos,
ainda hoje prevalecer, é produto de uma determinada forma da sociedade se
organizar. Uma organização ditada sobretudo a partir do modo de produção do
capital. Essa organização tem seus reflexos sobretudo na forma como a família
passa a ser vista em instâncias como o judiciário.
A invenção do menor
Jovens e menores são formas pelas quais, socialmente, se
diferenciam os adolescentes segundo sua classe social. Logo podemos
compreender que nos nossos dias e em nossa sociedade não se nasce criança
que se torna jovem como tampouco se nasce menor. Estamos diante de
construções sociais que são datadas, produzidas e reproduzidas.
Podemos dizer que, a partir da independência do Brasil, havia
uma preocupação ainda incipiente em relação a infância e juventude. Esta
estava sobretudo focada nos casos das crianças órfãs e enjeitadas, o que já se
fazia presente no século XVIII por meio da prática de recolhimento de crianças
através da roda dos expostos.
O interesse de cunho jurídico relativo aos indivíduos menores de
idade aparece restrito à primeira lei penal do Império – o Código Criminal de
1830. Esta lei chegava a ser considerada um avanço, uma vez que
anteriormente a ela vigoravam as Ordenações do Reino de Portugal. Estas
eram medidas punitivas tão severas que foram abolidas por serem
consideradas bárbaras. O Código de 1830 marca a responsabilização penal
para menores a partir dos 14 anos.
Apesar da pouca importância dada ao período conhecido como
infância e juventude nesta época, é surpreendente a preocupação com o
recolhimento de menores em estabelecimentos especiais que visassem sua
correção. Isto porque ainda não estava em voga a discussão sobre a
importância da educação estar em prevalência sobre a punição, algo que pode
ser localizado no final do século XIX.
De um modo geral, a tônica da legislação nas primeiras décadas
do Império era a preocupação com o 'recolhimento de crianças órfãs e
expostas'. O que se pode encontrar são medidas de caráter essencialmente
assistencial, lideradas pela iniciativa privada de cunho religioso e caritativo. A
responsabilidade de zelar pelos expostos era, nitidamente, da Igreja que para
tanto, contava com subsídios dos cofres públicos.
Na segunda metade do século XIX, passa-se a perceber na
legislação uma preocupação com a formação educacional das crianças e um
incentivo para que se abrissem escolas, sendo que a pobreza não deveria
constituir impedimento a qualquer criança a ter acesso à escola.
Entretanto, como podemos ver no decreto n°1331 de 1854, que
em seu artigo 69 estabelecia: “Não serão admitidos a matrícula, nem poderão
frequentar as escolas: os meninos que padecerem de moléstias contagiosas;
os que não tiverem sido vacinados e os escravos.” Logicamente
compreendemos que, esta escola, de fato, não era para todos.
Ao final do século XIX, uma outra criança passa a ocupar um
lugar de destaque na história, e que tem início com o advento da abolição da
escravatura, seguida da Proclamação da República – uma criança descrita
como 'um magno problema' pela elite intelectual, política e filantrópica. Neste
período ferve um caldeirão de leis que procuram regular a situação da infância.
A tônica do discurso era, a princípio, de defesa incondicional da criança. Mas,
basta uma leitura mais atenta para perceber que tratava-se de uma oscilação
constante entre a defesa da criança e a defesa da sociedade contra esta
criança que se torna uma ameaça. O problema da criança adquire uma
dimensão política. Ressaltava-se a urgência da intervenção do Estado,
educando ou corrigindo 'os menores' para que se transformassem em cidadãos
úteis e produtivos para o país, assegurando a organização moral da sociedade.
Um projeto de 1906, do deputado Alcindo Guanabara, é o primeiro
apontado a tratar diretamente da regulamentação da infância 'moralmente
abandonada e delinquente'. Destacam-se no projeto algumas questões que
serão objeto de discussão nos anos que se seguiram, até culminar na
aprovação do Código de Menores vinte anos mais tarde. São elas:
I. A questão da autoridade e do controle por parte da autoridade judiciária.
“Todo menor, em reconhecida situação de abandono moral ou de maus
tratos físicos, fica sob proteção da autoridade pública.” (art.1)
II. Os dispositivos para suspensão, perda ou devolução do Pátrio Poder. “O
responsável só manterá o menor uma vez provada sua capacidade legal
e moral para te-lo sob sua guarda.” (art. 8)
III. A regulação da idade criminal, passando de 9 (Código Penal) para 12
anos, e, entre 12 e 17 para os que obrarem sem discernimento. Os que
agissem com discernimento seriam recolhidos às Escolas de Reforma.
IV. Criação de instituições para menores, na parte urbana da cidade, um
estabelecimento terá a denominação de 'depósito de menores'; na zona
suburbana, escolas de prevenção para os moralmente abandonados. E
a escola de reforma com duas seções independentes: uma para os
menores processados absolvidos – seção industrial – e outra para os
delinquentes condenados – seção agrícola.
Em suma, resta apenas a confirmação de que o recolhimento era
inevitável, estando condenado ou absolvido. Esta é claramente a preocupação
por parte do governo: incentivar a criação de colônias correcionais. Como
aparece no decreto 6994 de 1908: “a internação na colônia é estabelecida para
os vadios, mendigos validos, capoeiras e desordeiros.”
Outro ponto a ser destacado neste contexto é a especialização de
um juizado para atender os menores e as consequências disto, como nos
mostra Rizzini (2000:22):
“...já estava formada a essência da legislação relativa aos menores, bem refletida no projeto de João Chaves. Ela apontava a que o Estado assumisse a responsabilidade como uma espécie de tutor oficial; à criação da função do juiz e do tribunal especializados nos assuntos concernentes aos menores; à fixação da idade penal em 14 anos, sendo a menor idade um atenuante às penas; ao escrutínio e a vigilância sobre a vida do menor, bem como sobre os seus ascendentes e o controle sobre a família, tendo o poder de suspender, destituir e restituir o pátrio poder. Por fim a criação de estabelecimentos que cuidassem da educação ou da reforma dos menores sob a tutela do Estado.”
Neste período era praticamente impossível diferenciar a origem
do discurso sobre a infância. Se de ordem policial ou jurídica, sendo o mais
provável que de ambos e numa mesma direção: recolher menores, de acordo
com uma cuidadosa classificação visando a prevenção e a regeneração. O
projeto busca impor maior vigilância sobre a vida do menor e controle sobre a
família. Estava em prática uma concepção de Justiça de Menores no Brasil que
nas palavras de Rizzini (2000) estava com frequência associada à ideia de
'salvação da criança vista como elemento-chave para salvação da nação”.
Um entendimento higienista de que a herança e meios deletérios
transformavam em monstros crianças já marcadas por certas inclinações
inatas, acarretando consequências funestas para toda a sociedade. A infânca
pobre, caracterizada desde sempre com abandonada e delinquente foi
nitidamente criminalizada. O termo menor passou, então a transbordar o círculo
jurídico e se popularizou.
Capítulo 2:
Do Código de menores ao ECA – do menor à criança e adolescente
A Lei 8069 de 13 de julho de 1990, O ECA – Estatuto da Criança
e do Adolescente – define como criança a idade de zero a doze anos
incompletos e como adolescente aqueles compreendidos entre os doze e os
dezoito anos, para efeitos de aplicação desta lei.
Tal legislação, por preconizar a doutrina da proteção integral, é
considerada por muitos como uma grande evolução na defesa dos direitos da
criança e do adolescente, uma vez que, a legislação anterior que vigorava, o
Código de Menores de 1979, estava pautado pela doutrina da situação
irregular. Mas o que constituiria situação irregular? O próprio Código define em
seu artigo 2, citado por Passetti (1987:30):
“ Considera-se em situação irregular o menor: I. privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória ainda que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou omissão de pais ou responsável; b) manifesta irresponsabilidade dos pais ou responsável para provê-las; II. vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III. em perigo moral devido a: encontrar-se de modo habitual em ambiente contrário aos bons costumes; IV. privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V. com desvio de conduta, em virtude de grande inadaptação familiar ou comunitária; VI. autor de infração penal.”
A definição no Código de Menores para o que seria considerado
situação irregular, deixa bem claro a quem se destina tal legislação. Ainda
sobre isto, Passetti (1987:31)) nos diz:
“Lendo o que o Código de Menores dispõe sobre a situação irregular, notaremos que ele não está falando de menores em geral, mas começa a ficar claro para quem ele é feito: para crianças e jovens oriundos de famílias trabalhadoras de baixa renda, geralmente desorganizadas. O menor em situação irregular é aquele que vive na situação de marginalidade social. Este é o menor que, além de aparecer no Código de Menores, constará do Código Penal, e será o contingente que habitará as instituições para menores.”
Segundo Santos (2002:206), as primeiras menções à expressão
“menor”, remetem às leis criminais do Brasil Império onde definiam as penas
aplicadas no caso de cometimento de crimes por menores de idade. A
expressão acabou assimilada no contexto sócio-jurídico e passou a designar as
crianças nascidas das camadas mais baixas da pirâmide social.
Ainda segundo a referida autora, neste trajeto, a expressão
assume conotação de controle político, pois ao segmentar certos setores
sociais, criam-se categorias de crianças consideradas “suspeitas” e
potencialmente “perigosas”.
Durante todo o século XX, a expressão menor preencheu a
necessidade de diferenciar entre os bem-nascidos e os potencialmente
“perigosos” para a sociedade. Como se pode perceber no longo caminho da
construção da preocupação com a infância, esta permanece diretamente
atrelada à ideia de um mercado consumidor e uma mão-de-obra adestrada e
dócil. Base do capitalismo, podemos situar a preocupação com a infância com
a própria manutenção do sistema.
O modelo europeu que chega ao Brasil nos navios da Coroa
portuguesa, dissemina conceitos tais como a valorização do trabalho associada
a uma concepção de cidadania. Como nos mostra Santos (2009:207):
“A interferência nos paradigmas sociofamiliares foi o principal caminho escolhido para fazer valer, aqui, valores trazidos da sociedade européia. Para tanto, foi necessário acionar um conjunto de saberes-poderes, tal como definidos por Foucault, capazes de transformar as formas de constituição das famílias e, a partir daí, da identidade dos sujeitos. É neste contexto que observamos a emergência de campos específicos do saber relacionados com a criança: a pediatria, a pedagogia, a puericultura (Azevedo, 1989), entre outros que, apropriados de acordo com os padrões morais do período, foram as vias de construção de modelos ideais de conduta.”
Enfim, podemos compreender que os modelos de família que
começaram a ser criados e implantados foram utilizados como parâmetros para
o que passaria a ser encarado como “normal” ou “anormal”. A partir desta
concepção de “normalidade”, passou-se a eleger como norma determinado
modelo de ser família em detrimento de qualquer outra possibilidade. As
famílias da elite econômica e intelectual foram cooptadas pelos discursos
médico, pedagógico e jurídico, como o modelo de família que se pretendia
implementar.
A forma de implantação do referido modelo se deu através da
defesa da infância. O futuro cidadão precisava ser cuidado e educado e para
tal se tornava necessária uma família centrada que preparasse seus filhos para
o futuro. Disciplinar e domesticar as crianças através da criação de bons
hábitos e adequar seu comportamento.
Neste ínterim, não bastava a modelização pelos pressupostos
higienistas. Tornava-se necessária uma base legal, um marco jurídico que
delimitasse os marcos do higienismo. Nas palavras de Santos (2009:209):
“...um dos principais propósitos das primeiras legislações sobre a infância no Ocidente moderno foi servir como um poderoso instrumento de penetração e controle das famílias (Coimbra, 2000;85). Referimo-nos ao controle das virtualidades, apontados por Foucault como exigência das sociedades disciplinares, um controle não apenas sobre o que se faz ou o que se é, mas sobre o que se pode vir a fazer ou vir a ser (Foucault, 1996).”
Podemos, desta forma, salientar que no campo jurídico, ao longo
do século XIX, a preocupação era a clara definição do que seria o crime.
Numa perspectiva positivista, para além da definição do crime era essencial a
tipificação do criminoso. Este previamente identificado em suas potencialidades
seria alvo de uma possível intervenção preventiva. Tal ideia fica muito clara em
relação à infância no Brasil, na apreensão da doutrina do antigo Código de
Menores e sua doutrina da situação irregular.
Da prática de ato infracional - definições
Passamos então a um entendimento do que é a prática do ato
infracional e as possíveis medidas sócio-educativas que cabem a cada
situação. Tal entendimento é fundamental para que equívocos como a
classificação de 'menor' seja mantida com base em puro preconceito social e
passemos a realmente nomear o ato infracional e as respectivas medidas
sócio-educativas não com o intuito de marcar ou rotular estes adolescentes,
mas para que passemos a encarar a questão do ato infracional com a clareza
necessária para desmistificá-lo.
Para que não reste qualquer dúvida, o ECA apresenta bem
claramente algumas definições. São elas:
Art. 103 – Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou
contravenção penal.
Art. 104 - São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos
às medidas previstas nesta Lei.
Art. 105 – Ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas
previstas no art. 101.
Desta forma, algumas arestas são aparadas: não existe crime
para o adolescente, existe ato infracional; não há pena para o adolescente em
conflito com a Lei, há medida sócio-educativa, que serão apresentadas a
seguir, e sobretudo, não podemos falar em medida sócio-educativa para
crianças, pois o ECA estabelece que até 12 anos incompletos, cabem às
crianças apenas medidas protetivas.
No capítulo V do ECA são apresentadas as medidas sócio-
educativas, como vemos a partir do art. 112 - verificada a prática de ato
infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as
seguintes medidas:
i. Advertência
ii. Obrigação de reparar o dano
iii. Prestação de serviço à comunidade
iv. Liberdade assistida
v. Inserção em regime de semi-liberdade
vi. Internação em estabelecimento educacional
vii. Qualquer uma das previstas no art 101, I ao VI
Vemos ainda no parágrafo primeiro : a medida aplicada ao
adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias
e a gravidade da infração.
Aqui, novos aspectos precisam ser destacados acerca das
medidas sócio-educativas. Embora a mais conhecida seja a internação, esta
não constitui a única. Existem outras que podem ser empregadas, em especial,
se levarmos em consideração o que diz o parágrafo primeiro sobre
circunstâncias e gravidade. Além disso, é preciso salientar que não apenas as
medidas sócio-educativas são empregadas mas também as medidas protetivas
elencadas no art 101. Estas não apenas poderiam como deveriam figurar entre
as medidas estipuladas no atendimento ao adolescente em conflito com a Lei.
Tal seria uma atitude coerente com a doutrina da proteção integral.
Passemos agora as definições das medidas sócio-educativas
anteriormente elencadas:
Advertência - consistirá na admoestação verbal, que será reduzida a termo e
assinada.
Da obrigação de reparar o dano – em se tratando de ato infracional com
reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o
adolescente restitua a coisa, ou promova o ressarcimento do dano, ou por
outra forma compense o prejuízo da vítima.
Da prestação de serviços à comunidade – consiste na realização de tarefas
gratuitas de interesse geral, por período não excedente a seis meses, junto a
entidades assistenciais, hospitais, escolas e outros estabelecimentos
congêneres, bem como em programas comunitários e governamentais. As
jornadas não poderão exceder a oito horas semanais de modo a não prejudicar
a frequência à escola ou a jornada normal de trabalho.
Liberdade assistida – será adotada sempre que se afigurar a medida mais
adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente. Será
fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer momento ser
prorrogada, revogada ou substituída por outra medida. A autoridade designará
pessoa capacitada para acompanhar o caso. Esta pessoa realizará os
seguintes encargos:
1. promover socialmente o adolescente e sua família, fornecendo-lhes
orientação e inserindo-os, se necessário, em programa oficial ou
comunitário de auxílio e assistência social;
2. Supervisionar a frequência e o aproveitamento escolar do adolescente,
promovendo, inclusive, sua matrícula;
3. Diligenciar no sentido da profissionalização do adolescente e de sua
inserção no mercado de trabalho.
4. Apresentar relatório do caso.
Regime de semi-liberdade – pode ser determinado desde o início, ou como
forma de transição para o meio aberto, possibilita a realização de atividades
externas, independentemente de autorização judicial. É obrigatória a
escolarização e a profissionalização, devendo sempre que possível, ser
utilizados os recursos existentes na comunidade. Tal medida não comporta
prazo determinado aplicando-se, no que couber, as disposições relativas a
internação.
Internação – constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios da
brevidade, excepcionalidade e respeito a condição peculiar de pessoas em
desenvolvimento. É permitida a realização de atividades externas a critério da
equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário.
Não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada,
mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses. Em nenhuma
hipótese o período máximo de internação excederá três anos. Atingido este
limite, o adolescente deverá ser liberado, ou colocado em regime de semi-
liberdade ou liberdade assistida. A liberação será compulsória aos vinte e um
anos. A internação só poderá ser aplicada quando:
1. tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou
violência a pessoa.
2. Por reiteração no cometimento de outras infrações graves.
3. Por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente
imposta.
Aspecto relevante no que tange a internação diz respeito ao local.
A internação deverá ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes,
em local distinto daquele destinado ao abrigo, obedecida rigorosa separação
por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração.
Todo o processo de construção do ECA se pautou nas questões
de defesa dos direitos humanos de todos os cidadãos, incluindo crianças e
adolescentes entre estes. Fica então marcada a distinção entre a nova
legislação e a antiga nas palavras de Antônio Fernando do Amaral (2000:78)
um dos juristas que ativamente participou da redação do ECA:
“ O direito do menor tem reconhecidas três doutrinas: a doutrina do direito penal do menor, que preconizava que o direito do menor só deve se interessar por menores quando estes praticam um ato definido como infração penal...existe uma doutrina intermediária – a doutrina da situação irregular, que enfatiza que o menor é sujeito deste novo ramo do direito e, também tratado pela respectiva legislação, sempre que esteja numa situação irregular – como tal, definida legalmente. Uma situação de patologia, uma situação de doença social... Existe finalmente uma outra doutrina – a doutrina da proteção integral. Esta preconiza que o direito do menor não deve se dirigir apenas a um tipo de menor, mas deve se dirigir a toda a juventude e a toda a infância, e suas medidas de caráter geral devem ser aplicáveis a todos os jovens e todas as crianças.”
Além das diferenças conceituais e doutrinárias que separam a Lei
8069 do Código de Menores alguns pontos acentuam a diferença entre ambas,
onde destacamos algumas das principais, em especial àquelas que tratam do
adolescente em conflito com a Lei:
O Código de Menores dispunha sobre a assistência a menores
que se encontrassem em situação irregular; os menores enquanto objeto de
medidas judiciais. O ECA partiu da concepção de 'sujeitos de direitos', assim
sendo, preconiza a garantia ampla dos direitos pessoais e sociais.
Quanto à detenção, em contraposição ao antigo Código que
permitia a prisão cautelar como se observa na prática com adultos, o ECA em
seu art. 106 declara que: nenhum adolescente será privado de sua liberdade
senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da
autoridade judiciária competente. E continua em seu parágrafo único: o
adolescente tem direito à identificação dos responsáveis pela sua apreensão,
devendo ser informado acerca de seus direitos. Tal ponto é considerado um
grande avanço da legislação, utilizando-se inclusive de parâmetros
internacionais, pois coíbe a arbitrariedade e os abusos permitidos na antiga
legislação, segundo a qual qualquer um teria autoridade para apreender um
menor, mesmo em caso de mera suspeição.
No que tange ao direito de defesa, a legislação anterior ao ECA
restringia à participação do curador de menores (promotor público). Já a Lei de
1990 estabeleceu a garantiria de defesa: nenhum adolescente será privado de
liberdade sem o devido processo legal, sendo asseguradas diversas garantias
de defesa como o direito de receber assistência jurídica gratuita, ser ouvido
pela autoridade competente e solicitar a presença dos pais, entre outras.
De relevância também podemos salientar a internação. Crianças
e adolescentes podiam ser internados por encontrarem-se em situação
irregular, sem prazo determinado, como já foi apresentado na abordagem sobre
o que consistiria a situação irregular. No ECA a medida só pode ser empregada
a adolescentes autores de ato infracional grave, obedecendo-se aos princípios
de brevidade, excepcionalidade e respeito a sua condição peculiar de pessoa
em desenvolvimento.
Destas abordagens feitas até o momento podemos apreender
que mudanças significativas foram implementadas com o ECA, em especial no
atendimento ao adolescente em conflito com a Lei. Neste sentido, a legislação
vem avançando buscando sistematizar a forma de atendimento, como fica
esboçado no sistema nacional de atendimento sócio-educativo (SINASE).
SINASE – um passo a frente na garantia de direitos
O Sistema Nacional de Atendimento Sócio-educativo – SINASE,
é fruto de uma construção coletiva que envolveu, nos últimos anos, diversas
áreas do governo, representantes de entidades e especialistas na área, além
de uma série de debates protagonizados por operadores do Sistema de
Garantia de Direitos em encontros regionais que cobriram todo o País.
O processo democrático e estratégico de construção do SINASE
concentrou-se especialmente num tema que tem mobilizado a opinião pública,
a mídia e diversos segmentos da sociedade brasileira: o que deve ser feito no
enfrentamento de situações de violência que envolvem adolescentes enquanto
autores de ato infracional ou vítimas de violação de direitos no cumprimento de
medidas sócio-educativas.
Por sua natureza reconhecidamente complexa e desafiadora,
além da tamanha polêmica que o envolve, nada melhor do que um exame
cuidadoso das alternativas necessárias para a abordagem de tal tema sob
distintas perspectivas.
Por outro lado, a necessidade de intensa articulação dos distintos
níveis de governo e da co-responsabilidade da família, da sociedade e do
Estado demanda a construção de um amplo pacto social em torno dessa coisa
pública denominada SINASE.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente -
Conanda, responsável por deliberar sobre a política de atenção à infância e à
adolescência, pautado sempre pelo princípio da democracia participativa, tem
buscado cumprir seu papel normatizador e articulador, ampliando os debates e
sua agenda para envolver efetiva e diretamente os demais atores do Sistema
de Garantia dos Direitos.
O SINASE reafirma a diretriz do Estatuto sobre a natureza
pedagógica da medida sócio-educativa. Para tanto, este sistema tem como
plataforma inspiradora os acordos internacionais sob direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário, em especial na área dos direitos da criança e do
adolescente.
Outrossim, priorizaram-se as medidas em meio aberto (prestação
de serviço à comunidade e liberdade assistida) em detrimento das restritivas de
liberdade (semiliberdade e internação em estabelecimento educacional, haja
vista que estas somente devem ser aplicadas em caráter de excepcionalidade
e brevidade). Trata-se de estratégia que busca reverter a tendência crescente
de internação dos adolescentes bem como confrontar a sua eficácia invertida,
uma vez que se tem constatado que a elevação do rigor das medidas não tem
melhorado substancialmente a inclusão social dos egressos do sistema sócio-
educativo.
O SINASE, enquanto sistema integrado, articula os três níveis de
governo para o desenvolvimento dos programas de atendimento, considerando
a intersetorialidade e a co-responsabilidade da família, comunidade e Estado.
Esse mesmo sistema estabelece ainda as competências e responsabilidades
dos conselhos de direitos da criança e do adolescente, que devem sempre
fundamentar suas decisões em diagnósticos e em diálogo direto com os
demais integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, tais como o Poder
Judiciário e o Ministério Público.
A implementação do SINASE objetiva primordialmente o
desenvolvimento de uma ação sócio-educativa sustentada nos princípios dos
direitos humanos. Defende, ainda, a idéia dos alinhamentos conceitual,
estratégico e operacional, estruturada, principalmente, em bases éticas e
pedagógicas.
O documento está organizado em nove capítulos. O primeiro
capítulo, marco situacional, corresponde a uma breve análise das realidades
sobre a adolescência, com foco no adolescente em conflito com a lei, e das
medidas sócio-educativas no Brasil, com ênfase para as privativas de
liberdade. Para tanto, ancorou-se em dados oficiais publicados em estudos e
pesquisas. O segundo capítulo trata do conceito e integração das políticas
públicas. O terceiro trata dos princípios e marco legal do SINASE.
O quarto contempla a organização do Sistema. O quinto capítulo
trata da gestão dos programas. O sexto apresenta os parâmetros da gestão
pedagógica no atendimento sócio-educativo. O sétimo trata dos parâmetros
arquitetônicos para os programas sócio-educativos; o oitavo, da gestão do
sistema e financiamento, e o último, do monitoramento e avaliação. O anexo
apresenta o detalhamento técnico das normas, definições e etapas para
elaboração de projetos arquitetônicos e complementares das Unidades de
atendimento sócio-educativo de internação e internação provisória.
Sendo assim, destaca-se o principal objetivo do SINASE, tornar
viáveis as propostas que foram semeadas no ECA, no sentido de realmente
oferecer um atendimento sócio-educativo em lugar de repressão e punição.
Capítulo 3
A juventude criminalizada e o lugar das meninas
Ao falarmos em processos de criminalização de adolescentes,
precisamos esclarecer algo de muito importante presente no texto de Misse
(2007:191):
“ A naturalização do ato infracional pode ser um tema com dupla entrada: a naturalização no sentido de banalização, de aceitação das ilegalidades como ato comum, normal, ordinário pelos seus próprios autores, crianças e adolescentes; e a naturalização como crença de que a infração existe no ato e não na interação entre acusadores e acusados a respeito do ato.(...) O 'crime', a 'transgressão', o 'ato infracional' ou que nome se dê a isso, não existe senão como interação entre uma ação e uma reação moral a essa ação. Institucionalizada, a reação moral transforma-se em lei e tipifica um curso de ação que, praticado, será o 'crime'. (K) O processo social que interpreta a ação concreta como crime ou ato infracional é o que chamo de processo de criminação, para diferenciar da criminalização abstrata dos códigos. Ele começa com uma denúncia ou um 'flagrante' e se transporta para a esfera legal, que se responsabilizará pela sua interpretação oficial. Uma vez que a ação tenha sido incorporada ao tipo penal, isto é, interpretada como crime ou criminada, passa-se à busca do seu autor ou seus autores, o que vem a configurar outro processo, conexo e complexo, de “incriminação”. Tudo isso se passa envolvendo agentes e atores sociais, operadores institucionais, desempenho de papéis, modos de produção de verdades em diferentes escalas – moral, policial, judicial, enfim, todo um complexo processo social.”
A ideia central, a ser tratada quando falamos em jovem em
conflito com a lei, consiste em compreender o olhar seletivo da justiça para o
adolescente. Basta abrirmos qualquer jornal impresso, ou ouvirmos um
noticiário para percebermos que existem duas categorias bem definidas que
também se apresentam no sistema de justiça: o usuário de drogas da classe
média alta, em contrapartida ao traficante, em geral, pobre e negro. De um lado
o comportamento desviante da classe média, que necessita de
acompanhamento médico psicológico para algum trauma ou mesmo por uma
questão de limite que não foi bem trabalhada e do outro, o marginal, menor ou
qualquer outro adjetivo que seja empregado para definir àqueles que desde
que nasceram já davam indício de que não seriam boa coisa.
Baratta – no prefácio do texto de Batista (1998:8)- afirma tal
situação de forma contundente:
“ o sistema de justiça criminal da sociedade capitalista serve para disciplinar despossuídos, para constrangê-los a aceitar a 'moral do trabalho' que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão do trabalho e na distribuição da riqueza socialmente produzida. Por isso o sistema criminal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulneráveis da população: para mantê-las - o mais dócil possível – nos guetos da marginalidade social ou para contribuir para sua destruição física.”
O que podemos constatar na história das sentenças do judiciário,
e a partir da análise dos operadores das equipes técnicas é que 'recuperação',
'ressocialização', 'reeducação' são eufemismos que escondem objetivos e
instrumentos de contenção social claros e explícitos desta referida seletividade.
A questão da droga é, sem dúvida, o principal fator de
criminalização da juventude, salvaguardando a devida proporção entre as
classes sociais, que responsabiliza a uns por porte e uso e outros por tráfico.
Mas enfim, as drogas continuam sendo o que mais coloca o jovem em contato
com o sistema de justiça e as medidas sócio-educativas.
Podemos verificar tal dado ao consultar, por exemplo, a pesquisa
de Sento-Sé (2007) , onde se apresenta os atos infracionais registrados na 2ª
Vara da Infância e Juventude, do período de 1993 a 20011. Verifica-se uma
curva crescente de 1993 a 1998 no quesito entorpecentes, chegando ao
patamar de 64,1% em 1998. Em seguida, percebe-se uma curva decrescente,
mas, que de qualquer forma, coloca a questão do entorpecente entre uma das
principais ocorrências com jovens.
Batista (1998), também apresenta dados interessantes para
serem analisados a este respeito. Dentre seus muitos dados coletados nos
processos do Juizado de menores, destacaremos apenas os aspectos
1 Vale ressaltar que apenas a cidade do Rio de Janeiro apresenta uma divisão em 2 Varas da Infância e
Juventude, atribuindo a II Vara a exclusividade sobre o ato infracional como pode-se observar no próprio texto disponível no site da II VIJ. “A 2ª Vara da Infância e da Juventude é, no momento, o único Juízo competente para julgar adolescentes (pessoas entre 12 e 18 anos de idade), que praticam condutas delituosas (atos infracionais).”
envolvimento com drogas e o sexo do adolescente ao longo de 20 anos:
Sexo 1968 1973 1978 1983 1988
Masculino 97,00% 94,90% 87,90% 90,00% 85,70%
Feminino 3,00% 5,10% 12,10% 10,00% 14,30%
Infração 1968 1973 1978 1983 1988
Consumo 84,8% 79,5% 75,8% 50% 28,6%
Tráfico 9,1% 17,9% 24,2% 47,5% 65,7% Fonte: Processos do Juizado de Menores do Rio de Janeiro – Arquivo Nacional
O já citado estudo de Sento-Sé (2007:216) também questiona o
fato de meninos e, em menor escala meninas, a partir dos 15 anos estarem
entre as vítimas preferenciais. Tal problemática também é abordado por
Saffiotti (1997:144):
“O adolescente masculino, pobre e negro não constitui um dos alvos prediletos dos homicidas que integram a Polícia Militar de São Paulo exclusivamente por ser homem, ou só por ser pobre ou apenas por ser negro. Essas três dimensões completam a imagem do perfeito bandido ou daquele cuja eliminação física a sociedade exige para ter um assaltante a menos. O imaginário social, carregado de conteúdos da ideologia de classe/raça/gênero hegemônicas, pinta o retrato do marginal com as características das categorias sociais dominadas/exploradas, ou seja oprimidas.”
O lugar das meninas
Uma das disciplinas do curso nos levou a uma visita ao
Educandário Santos Dummont. Trata-se de um estabelecimento para o
cumprimento de medida sócio-educativa de privação de liberdade para
adolescentes do sexo feminino. A visita guiada ao espaço e o contato com os
profissionais da equipe lançaram a base da questão deste trabalho. Por que o
contingente de meninas é tão menor que o de meninos? Quais os papéis, ou
quais os lugares ocupados pelas adolescentes neste cenário?
Estamos frente a percepção da questão do gênero. Este distingue
sexo de gênero, reservando para o significado de sexo só a condição biológica,
a diferenciação entre macho e fêmea. No conceito de gênero inclui-se a
dimensão psicológica e social do sexo, isto é, características atribuídas à
feminilidade e à masculinidade e os papéis que desempenham homens e
mulheres em uma determinada sociedade.
O gênero é um primeiro modo de dar significado às diferenças, e
que tais diferenças são produzidas socialmente, não tendo, portanto, meras
distinções anatômicas, marcas biológicas indeléveis do sexo. Tais diferenças
não são aprendidas como pluralismos, riqueza diversa, mas como
desigualdades que se manifestam incessantemente no cotidiano. Por serem
um sexo dominado, a autonomia das meninas esbarra em limites – trabalho,
carreira, liberdade de ir e vir, possibilidades de dispor de si – que a certeza de
direitos iguais não consegue, ainda, remover.
Outra fonte de informação acerca do lugar das meninas no
conflito com a Lei, uma vez que não foi possível realizar um trabalho de
campo, foram os relatos apresentados por Athayde e MV Bill no livro Falcão –
mulheres e o tráfico. As histórias relatadas no livro são fruto de anos de
entrevistas e filmagens pelo Brasil.
No início a proposta dos autores era relatar a situação dos
adolescentes do sexo masculino que se envolvem com o tráfico de drogas.
Entretanto, no relato dos autores, ao tentar desmistificar a questão dos jovens,
acabaram por descobrir que esta realidade, como uma rede, está entrelaçada
com outras realidades, onde estão também as mulheres.
A partir da entrevista com a mãe de um adolescente envolvido
com o tráfico foi possível obter o seguinte dado, como coletado por Athayde
(2007:78):
A pergunta do pesquisador: “No meio do tráfico têm muitas meninas?” Ao que a mãe responde: “são muitas...no caminho da droga...e no caminho do roubo também, porque elas começam roubando um pacote de bolacha no mercado, quando vê, já tá envolvida... já tá roubando para manter o vício, né?...Muitas também na prostituição... infelizmente são muitas, elas são as que mais levam drogas para os traficantes, elas são pouquinho revistadas, aí vai aumentando e cada dia aumenta mais as meninas no tráfico, e no crime em geral, né?
Estatisticamente, os meninos aparecem como ampla maioria.
Chegamos a ter como proporção 84% de meninos contra 16% de meninas, no
último demonstrativo disponível no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro, no ano de 2007.
Contudo, Batista (1998:56) nos traz um dado que merece ser
devidamente analisado. Ela nos remete aos anos de 1907 a 1914, quando
funcionavam as Varas de Órfãos e curiosamente, neste período, embora não
encontrando em sua pesquisa nenhum processo relativo a crimes, levando
inclusive à hipótese de que estes poderiam ser julgados nos tribunais dos
adultos, encontra a maioria de processos envolvendo meninas.
Segundo a autora, neste período, a Vara de Órfãos funcionava
como uma agência de serviços domésticos, intermediando a colocação de
meninas abandonadas, que saíam do asilo de menores, para trabalhar ' à
soldada' em casas de família. A soldada era uma prática comum em que uma
família tomava sob sua responsabilidade jovens com idade entre 12 e 18 anos,
correspondendo na nossa legislação atual às nossas adolescentes,
comprometendo-se a “vesti-las, calça-las, alimentá-las e depositar
mensalmente, em caderneta da Caixa Econômica Federal, quantias que
variavam de 5 a 10 mil réis. Um termo de compromisso era assinado perante o
juiz, que, nas palavras da autora organizava e intermediava uma espécie de
prorrogação dos serviços prestados pelas jovens escravas do passado. Vale
ressaltar que não haviam ainda transcorridos 20 anos da abolição e que não
por coincidência a maioria dos processos se referia a jovens morenas e pardas.
Podemos perceber que, nos dias atuais, tal configuração da
menina que é destinada ao trabalho doméstico permanece. O grave é que as
meninas continuam reunindo características básicas que as condicionam
fortemente a permanecer, por toda a vida, na situação de 'domesticidade
excludente', como dona de casa, ou trabalhando como empregada doméstica,
que são: pertencer aos setores mais empobrecidos da população, residir nas
áreas menos desenvolvidas e possuir baixo nível educacional. São fatores que
igualmente podem estar direcionando as jovens para a criminalidade.
Embora não sejam dados estatísticos, na visita ao já mencionado
estabelecimento para o cumprimento de MSE (medida sócio-educativa), a
maior parte das adolescentes que por lá haviam passado nos últimos tempos
haviam se envolvido com o tráfico, e de forma mais particular, com algum rapaz
envolvido com o tráfico e consequentemente apreendida junto com este, ou por
estar carregando alguma carga que era do companheiro. Tal situação nos faz
pensar que as adolescentes ainda ocupam um lugar de co-adjuvantes de seus
companheiros, são suas auxiliares e colaboradoras.
É verdade também que não podemos circunscrever a situação
das adolescentes a simples acompanhantes ou como dissemos co-adjuvantes.
MV BILL (2007) traz uma série de relatos que mostram que muitas jovens
também assumem integralmente funções no contexto da criminalidade.
Podemos ainda aprofundar o entendimento desta condição
diminuída das meninas pelas palavras de Madeira (1997:101):
“Uma série razoável de citações e verbalizações de investigações qualitativas poderia ser aqui arrolada para evidenciar que, nas famílias dos setores populares, as meninas têm sido socializadas segundo pelo menos cinco tipos de crenças, que as distinguem dos rapazes: de que nas meninas prevalecem os 'valores do coração' e 'não da cabeça'; de que as mulheres são mais obedientes do que os homens; de que são mais aptas para realizar as tarefas domésticas e que, portanto, é normal que elas as monopolizem; de que devem ser submetidas a uma maior reclusão nos lugares privados, especialmente no âmbito familiar, e de que possuem aptidões especiais para a realização de tarefas domésticas compatíveis com os estereótipos femininos mais divulgados – obedientes e solícitas.”
Seria como se de alguma maneira, a construção deste imaginário
social acerca das meninas criasse ao seu redor uma certa proteção contra a
criminalidade, ou então, podemos pensar por outro ângulo, como se a
construção social deste modelo de ser menina cegasse o sistema de justiça
que não vê nada além do estereótipo, menina é frágil, menina é recatada,
menina é do lar.
Entretanto, essa diferença que se faz sentir pelo número reduzido
de meninas que são apreendidas, aparece no estabelecimento de atendimento
e o trabalho lá desenvolvido, pois como nos foi apresentado na visita ao
Educandário Santos Dummont, a reincidência entre meninas é muitíssimo
pequena.
Uma das possíveis explicações para tal fenômeno consiste em
compreendermos que a construção deste modo de ser menina e adolescente
na nossa sociedade, e a partir daí, a compreensão de em quais lugares estas
transitam, revelaria em parte essa discrepância. Como já vimos, cabem as
meninas um espaço mais reservado na família, e desta sorte, a estas acabam
restando como espaço mais ampliado de convivência a escola. Isso estaria
inclusive relacionado ao maior índice de aproveitamento escolar das meninas.
Além disso, este entendimento, ou melhor esta construção social que marca o
espaço mais reservado às meninas, também as coloca em maior número nos
projetos e programas de atendimento e qualificação.
A reflexão específica para a condição das meninas é recente e
rara. O que se encontra acerca do assunto, tende a caminhar consensualmente
no sentido de acreditar que um grande número de meninas são pressionadas a
abandonar a escola, seja para substituir a mãe que trabalha no cuidado da
casa e dos irmãos, seja para elas próprias colaborarem, com uma tarefa
remunerada, para o sustento familiar. Neste sentido podemos entender que, a
inserção na sociedade de consumo, de forma cada dia mais antecipada seria
também uma das causas que aproxima as adolescentes da criminalidade.
Conclusão
No que diz respeito ao jovem em conflito com a Lei, podemos
entender que é uma situação análoga ao que Wacquant (2001:10) apresenta
do universo prisional adulto, onde a redefinição das missões do Estado em
toda parte, se retira da arena econômica e afirma a necessidade de reduzir seu
papel social e de ampliar, endurecendo sua intervenção penal. Trata-se de uma
concepção que procura criminalizar a miséria.
Nas palavras do autor, ao se referir especificamente ao caso
brasileiro:
“...desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres.”
Somos transportados pela análise da situação dos adultos,
apresentada acima, a refletir que em quase nada difere da condição dos
adolescentes. Há uma acentuada caracterização do jovem em conflito com a lei
que vai perdurar no sistema carcerário posteriormente. Trata-se do jovem do
sexo masculino, negro ou pardo, de baixa escolarização e que geralmente
apresenta algum envolvimento com a questão das drogas. Em suas análises, o
autor citado, nos fala da pretensa explosão da delinquência juvenil, referindo-se
a esta como sendo na verdade um artifício que reflete a diligência da justiça em
relação aos jovens.
Neste aspecto, cabe um questionamento do que afinal estaria por
trás da constante tendência a exacerbação dos números que acabam
genericamente atribuindo à pobreza todas as mazelas, como se a pobreza
fosse um fator homogeneizador de comportamento marcado pela transgressão.
A resposta a tal questão não é fácil e nem se encontra acabada,
mas certamente aponta no sentido da construção de um estereótipo
generalizado e homogeneizador, que fala a partir de uma visão de países
desenvolvidos sobre os menos desenvolvidos.
A pesquisa ora empreendida nos mostrou que não por acaso a
constituição das estatísticas apontam para este estereótipo do marginal. Esta,
na verdade, se construiu ao longo da história onde podemos perceber muito
claramente uma interligação entre o surgimento do capitalismo e a atual forma
de organização da sociedade. Ou seja, a forma como hoje a sociedade está
organizada é pautada pela forma como o capital e as fomas de produção assim
a constituíram.
Desta forma podemos entender a participação numericamente
inferior das meninas do sistema sócio-educativo a partir da compreensão de
que nosso modelo de sociedade compreende uma determinada forma de ser
menina ou mulher. A construção ao longo do processo histórico da origem do
sentimento de família, que primeiro criou uma forma intimista e particularizada
de ser família, e dentro deste grupo designou para as meninas um lugar ainda
mais reservado do convívio social.
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