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Introduo experincia intelectual de Theodor Adorno

Curso Introduo experincia intelectual de Theodor Adorno

14 aulas

Primeiro semestre de 2013

Professor: Vladimir Safatle

Ministrado no Departamento de Filosofia

Universidade de So Paulo

Para introduzir a experincia intelectual de Theodor AdornoAula 1

Ao final de um dia de esperana brutal e de profunda depresso: eu estava ao ar livre, sob um cu de escurido indescritvel e furiosamente carregado. Ele portava a expresso de uma catstrofe iminente. De repente, uma luz, como um relmpago, aparece em um ponto e desaparece rapidamente abaixo ou acima das nuvens. Digo: a tempestade, e algum me confirma. Segue um longo barulho indescritvel, mais prximo de uma exploso do que de um trovo; no acontece nada mais do que isto. Pergunto: tudo? e isto tambm me foi confirmado. Ainda sob grande emoo, mas ao mesmo tempo tranqilizado, acordo. Estvamos no meio da noite. Retomei tranquilamente meu sono.

Adorno tinha o hbito de anotar alguns de seus sonhos. Este um deles, datado de 24 de janeiro de 1956. A sua maneira, ele descreve algo de fundamental na experincia intelectual deste que , sem dvida, um dos filsofos mais importantes do sculo XX. Gilles Deleuze tinha o hbito de afirmar que o verdadeiro pensamento era sempre solidrio de um acontecimento que nos fora a pensar, algo que tem a fora de nos retirar do solo seguro do senso comum a fim de nos levar confrontao com o que no se submete aos esquemas categorias que colonizam nossa linguagem ordinria. No seria difcil mostrar como esta concepo do pensar como resposta ao choque do acontecimento est na raiz da experincia intelectual adorniana.

Neste sonho, h um choque. Na verdade, um choque que aqui no deixa de se servir da figura romntica da potncia colossal da natureza, fora monumental capaz de colocar o pensar diante do que produz uma certa violncia contra o poder esquematizador da imaginao. A contemplao da tempestade furiosa, portadora de escurido indescritvel e de um longo barulho aterrador sem forma uma figura privilegiada que encontramos quando Kant fala do sublime dinmico da natureza. Fora sublime que, ao ser contemplada de um ponto seguro, nos faz descobrir uma potncia de resistncia (Vermgen zu widerstehen) capaz de elevar as foras da alma (Seelenstrke) para alm da onipotncia aparente da natureza (scheinbaren Allgewalt der Natur). Pergunto: tudo?, diz Adorno; um pouco como quem diz: ento posso me colocar diante de tal fora sem me destruir!? No deixa de ser desprovido de interesse lembrar aqui desta passagem da Odissia, to cara a Adorno, onde Ulisses pede a seus marinheiros que o atem ao mastro de seu navio para que ele possa ouvir o canto das sereias sem com isto deixar-se afogar em busca da beleza. Como se o verdadeiro pensar fosse isto: uma aproximao arriscada com o que parece ter a fora de nos destruir, de destruir uma certa imagem do que o homem :

As aventuras de que Ulisses sai vitorioso so todas elas perigosas sedues que desviam o Eu da trajetria de sua lgica. Ele cede sempre a cada nova seduo, experimenta-a como um aprendiz incorrigvel e at mesmo, s vezes, impelido por uma tola curiosidade, assim como um ator experimenta insaciavelmente os seus papis. Mas onde h perigo, cresce tambm a salvao: o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substncia da experincia de tudo aquilo que mltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sbio ao mesmo tempo aquele que se expe mais audaciosamente ameaa da morte, na qual se torna duro e forte para a vida.Digamos pois que vale para Adorno aquilo que ele mesmo escreveu sobre Ulisses: a verdadeira experincia (e que no poderia deixar de dizer respeito tambm a toda experincia filosfica verdadeira) a experincia do sobrevivente, deste que se expe mais audaciosamente a uma certa forma de ameaa. Experincia daquele que ainda sob grande emoo, mas ao mesmo tempo tranqilizado pode retomar seu sono porque sabe que o sono no ser mais fundado sob o esforo obsessivo em tentar calar um saber a respeito do qual nos seria insuportvel assumir. A filosofia e seus exteriores

Estas colocaes iniciais podem ser teis para balizar uma discusso sobre o sentido do que poderamos chamar de experincia intelectual ou, mais propriamente, de experincia filosfica (philosophischer Erfahrung): termo que ser objeto maior da Introduo Dialtica negativa; talvez o livro mais importante de Adorno, juntamente com a Teoria esttica. Pois devemos comear dizendo que uma experincia filosfica a modulao incessante e rigorosa de uma nica questo desdobrada em todas as suas conseqncias. Faamos nossa a afirmao de Deleuze: Na verdade, uma teoria filosfica uma questo desenvolvida e nada mais que isto: por ela mesma, nela mesma, ela consiste, no em resolver um problema, mas em desenvolver at o fim as implicaes necessrias de uma questo formulada. Ou seja, cada filosofia animada por uma forma de questo capaz de gerar tanto uma srie determinada de problemas quanto uma dimenso de pressupostos tacitamente implcitos e no-problematizados que fornece o campo de enunciao de uma problemtica filosfica. Por trs de seus inumerveis desenvolvimentos e escritos, um filsofo no fundo sempre trabalha uma s questo.

Esta questo, por sua vez, pode ser avaliada. Ela pode ser boa ou m, o que indica que ela passvel de qualificao. Podemos fornecer uma proposio provisria a afirmar que uma questo filosfica ser boa ou m quando mensurada ao contedo de verdade do acontecimento que a gera. Toda questo filosfica necessariamente vinculada a um acontecimento histrico, ela a ressonncia filosfica de um acontecimento. Assim, a filosofia cartesiana solidria do impacto filosfico da fsica moderna. A filosofia hegeliana, por sua vez, pode ser vista como fruto das aspiraes emancipadoras da Revoluo Francesa. Mas, e a filosofia adorniana? Qual a questo e qual o acontecimento que geram a filosofia adorniana?

Antes de responder tais perguntas, vale a pena lembrar como o problema da unidade da experincia filosfica adorniana guarda dificuldades suplementares. Pois poucos foram os filsofos do sculo XX que se aplicaram de maneira to sistemtica em embaralhar os limites da filosofia como disciplina universitria. Uma rpida passada de olhos por suas Obras completas indica uma configurao extremamente peculiar. De vinte volumes, oito dizem respeito a textos sobre esttica musical, dois sobre crtica cultural e literatura, dois estritamente sobre sociologia. Esta aparente disperso de interesse j foi objeto de vrias tentativas em privilegiar certos momentos da experincia intelectual adorniana afirmando, por exemplo, que os textos filosficos tm predominncia em relao aos textos musicais, que a guinada sociolgica teria permitido Teoria Crtica instalar-se em um para alm da filosofia, entre outras interpretaes inumerveis.

De minha parte, gostaria de partilhar um postulado fundamental de leitura: uma verdadeira experincia filosfica radicalmente una na multiplicidade de suas vozes. Neste sentido, absolutamente incorreto ler um filsofo da mesma maneira que um aougueiro olha para um boi, ou seja, pensando inicialmente em como separar as partes e quebrar as juntas. Devemos l-lo respeitando a necessidade de todos os seus momentos, perguntando-se pelas articulaes internas entre textos que parecem pertencer a reas to diversas entre si quanto podem ser, no caso de Adorno, a pesquisa social emprica, a esttica musical, a reflexo sobre a tradio filosfica, a crtica literria, o estudo das mdias e a sociologia das idias.

Este um ponto importante se quisermos levar em conta o regime de recepo do pensamento de Adorno no Brasil. Data do comeo dos anos setenta o comeo do interesse pela Escola de Frankfurt no Brasil. Colaborou para isto a tradio marxista solidamente implantada na universidade brasileira e a acolhida restrita que o marxismo francs de Althusser teve entre ns. A Escola de Frankfurt aparecia como uma corrente no dogmtica do marxismo ocidental, com larga fora de influncia no campo da crtica da cultura e da anlise das sociedades do capitalismo tardio. Por outro lado, tal recepo ocorreu no momento em que a universidade brasileira passava pela constituio de suas estruturas de mestrado e doutorado. Como resultado, alguns campos de saberes, como os estudos de comunicao, institucionalizaram-se ao mesmo tempo que a Escola de Frankfurt fazia sua entrada no meio universitrio. Desta forma, ela se transformou rapidamente em referncia importante para a vida acadmica nacional.

No entanto, a disponibilizao dos textos de Adorno para o pblico brasileiro ainda limitada. Alm da ausncia de tradues de obras centrais, como a A personalidade autoritria, Jargo da autenticidade, Trs ensaios sobre Hegel, Para uma metacrtica da teoria do conhecimento, devemos lembrar que a quase totalidade dos textos e monografias sobre msica at hoje no foram traduzidos. Isto tende a produzir uma recepo que acaba por privilegiar certos momentos e questes devido, entre outras coisas, dificuldade de acesso a certas partes da produo adorniana. Por outro lado, estudar algum como Adorno, cuja multiplicidade de campos de anlise est articulada, de maneira peculiar, em um projeto comum, exige a reconstruo sistemtica de tal articulao, sob a pena de ignorarmos, por exemplo, como a esttica musical pode fornecer resposta para problemas que aparecem pela primeira vez nos textos de filosofia, como a teoria social organiza previamente o campo de intelegibilidade que ser colocado em operao na crtica literria, etc.

Tal caracterstica nos coloca diante de uma questo de mtodo da mais alta importncia. Pois possvel que Adorno nos mostre como h certas questes em filosofia que s podem ser abordadas de maneira adequada a partir do momento que somos capazes de forar a sistematicidade do discurso filosfico, a partir do momento que obrigamos tal discurso a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Foragem que impediria a filosofia de se transformar naquilo que um dia Foucault chamou de: Perptua reduplicao de si mesma, em um comentrio infinito de seus prprios textos e sem relao a exterioridade alguma. Comentrio infinito que nos levaria necessariamente simples textualizao de prticas discursivas. desta forma que devemos compreender afirmaes maiores como:Plenitude material e concreo dos problemas algo que a filosofia s pode alcanar a partir do estado contemporneo das cincias particulares. Por sua vez a filosofia no poderia elevar-se acima das cincias particulares para tomar delas os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distncia mais segura. Os problemas filosficos se encontram continuamente e, em certo sentido, indissoluvelmente encerrados nas questes mais determinadas das cincias particulares.

Tal foragem vinda da confrontao entre filosofia e cincias particulares empricas, por sua vez, capaz de nos indicar que talvez existam objetos que s podem ser apreendidos na interseo entre prticas e elaboraes conceituais absolutamente autnomas e com causalidades prprias. Os momentos mais importantes da histria contempornea da filosofia esto prenhes de tais estratgias. Por exemplo, quando Marx pensa o problema da produo da aparncia, ele s pode pens-lo ao construir um ponto de cruzamento entre a anlise do processo de determinao social do valor das mercadorias no capitalismo e a reflexo lgica sobre a dialtica entre essncia e aparncia a partir de Hegel. Estas duas sries de saberes so autnomas e irredutveis, uma no depende nem a aplicao da outra (o problema da determinao social do valor da ordem da economia poltica e sua causalidade economicamente determinada). Mas tais sries devem se cruzar para que um certo objeto possa ser apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto filosfico. S a elaborao conceitual sobre a dialtica essncia/aparncia ou s a anlise econmica do problema do valor da forma-mercadoria no seriam capazes de apreender o acontecimento que est em jogo no pensamento de Marx.

O mesmo vale para Adorno. Ao iniciar sua vida como professor universitrio, o jovem Adorno proferiu, em 1931, uma aula magna que no deixava de comear de maneira sintomtica: Quem escolhe atualmente por ofcio o trabalho filosfico, deve renunciar desde o comeo a iluso que inicialmente animava os projetos filosficos: a de que seria possvel apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen) atravs da fora do pensamento.Esta conscincia, historicamente enraizada, do descompasso entre exigncias de sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir possibilidade de se deixar formalizar como totalidade o motor que levar Adorno a constituir a configurao de sua prpria experincia intelectual. Pois devemos colocar a questo: o que deve ser uma filosofia que duvida da possibilidade de apreender a totalidade da realidade atravs da fora do pensamento com seus esquemas categoriais de estruturao do campo da experincia? O que deve ser esta filosofia a no ser um movimento incessante de confrontao com a autonomia dispersiva dos campos empricos e autnomos do saber e de retorno a si a partir do impacto de tal experincia? Uma filosofia que mede a todo momento a distncia entre tais campos empricos e o carter constituinte da elaborao conceitual. Medida esta que vai ao poucos configurando a sistematicidade do prprio texto filosfico, seja atravs da interferncia constante de elaboraes vindas das cincias empricas na economia textual da reflexo filosfica, seja atravs da necessidade cada vez mais premente do texto adotar um estilo fragmentrio, elptico, como se girasse em torno de algo que s pode ser exposto atravs de suas resistncias (da o privilgio adorniano pela forma ensaio, pelo uso de aforismas [como em Mnima moralia] e pela escrita no monogrfica [como na Dialtica Negativa e na Teoria esttica]). Um texto cujas categorias centrais sero forjadas exatamente para dar conta, para construir o nome prprio da resistncia, s totalizaes apressadas do pensamento, do que se oferece como real. Uma teoria do sujeito

Neste ponto, talvez j possamos dar uma resposta provisria ao problema relativo questo central que baliza a experincia filosfica de Theodor Adorno. Pois Adorno forneceu um nome para este movimento no interior do qual o carter constituinte da elaborao conceitual confronta-se com uma resistncia que vem da reflexo emprica e tem o estatuto de algo real que afeta o pensamento: sujeito. Podemos mesmo dizer que, do incio at o fim, a filosofia adorniana no ser outra coisa que uma complexa teoria do sujeito que procura desdobrar suas conseqncias nos campos da reflexo sobre a teoria do conhecimento, a esttica, a moral e a teoria social. Ou melhor, uma teoria do sujeito que s pode se configurar atravs das passagens da filosofia em direo a campos empricos do saber. No seria difcil mostrar que, neste ponto, Adorno acaba por mostrar sua profunda solidariedade com a tradio dialtica inaugurada por Hegel, j que a filosofia de Hegel , a sua forma, tambm uma longa elaborao a respeito da reconstruo possvel da categoria de sujeito. Uma construo que tambm exige a disperso conceitual do fazer filosfico.

No entanto, uma colocao desta natureza pode parecer estranha. Pois pergunta sobre o que o sujeito, ns normalmente oferecemos uma resposta como: sujeito uma entidade substancial, ou seja, idntica a si mesma e capaz de auto-determinar sua prpria essncia. Na modernidade, sujeito tende a se confundir com termos como conscincia j que tendemos a atribuir ao sujeito as mesmas determinaes da conscincia, a saber, a autonomia potencial das aes e condutas que leva imputabilidade da pessoa jurdica, a unidade coerente das representaes e da personalidade, a capacidade reflexiva do pensar, entre outros. Ou seja, autonomia, imputabilidade, reflexividade, unidade e identidade nos aparecem normalmente como atributos bsicos de toda e qualquer noo de sujeito.

O que veremos em Adorno, no entanto, ser um esforo sistemtico para repensar todas estas categorias, isto a fim de elaborar uma noo de sujeito onde a identidade d lugar no-identidade e clivagem, onde a reflexividade abra espao ao reconhecimento da racionalidade do que no imediatamente conceito. Na verdade, trata-se de constituir um conceito de sujeito capaz de servir de fundamento crtica noo hegemnica de subjetividade. Projeto que Adorno enunciou ao afirmar querer: Com a fora do sujeito, quebrar a iluso (Trug) da subjetividade constitutiva. Para tanto, ele precisar operar recursos massivos a campos empricos do saber como a psicanlise e a sociologia.

Notemos ainda que a problematizao do conceito moderno de sujeito um dos tpicos mais recorrentes na filosofia do sculo XX. Tudo se passa como se o pensamento contemporneo tomasse conscincia de que as expectativas emancipatrias da razo, estas expectativas que prometiam ao homem sair de sua minoridade e, como dizia Descartes, ser senhor da natureza haviam produzido o inverso daquilo que era seu conceito. Uma inverso da emancipao em dominao de si que no deixava de estar ligada ao destino deste conceito que serve de fundamento racionalidade moderna: sujeito. Pois no foram poucos aqueles que insistiram na questo: quanto devemos pagar para que a unidade, a autonomia, a transparncia e a identidade do sujeito possam se impor enquanto realidade? O que deve acontecer com a experincia de ns mesmos para que ela possa ser vista como campo que se submete a tais categorias? E o que acontece com a experincia do mundo quando o fundamento da experincia um sujeito pensado a partir destes atributos? Podemos dizer que tais questes so a base de um dos livros centrais de Adorno: a Dialtica do Esclarecimento. De fato, elevar tal experincia de si condio de problema algo que necessariamente traz conseqncias profundas. Pois a maneira com que compreendemos a categoria de sujeito no poderia de deixar de ter conseqncias na maneira com que definimos o que um objeto da experincia, quais as condies para que algo aceda condio de objeto. Ou seja, trata-se da compreenso de que toda verdadeira crtica da razo tem seu solo na crtica quilo que serve de fundamento s operaes de categorizao e de constituio do objeto de experincias que aspiram preencher critrios racionais de validade.

Neste sentido, devemos estar atentos, por exemplo, para o fato de boa parte das operaes crticas da Dialtica do Esclarecimento visarem demonstrar como o processo de constituio do Eu moderno, com suas exigncias de auto-identidade imediata e de auto-determinao, significou a submisso de toda experincia possvel ao primado da identidade e da abstrao. Assim, por exemplo, se Adorno precisa insistir tanto na necessidade do pensamento racional denegar toda fora cognitiva da mimesis (tema maior do advento da razo moderna no qual se vinculam a degradao do pensar por imagens e a crtica da fora cognitiva da semelhana e da analogia), porque se trata de sustentar: a identidade do eu que no pode perder-se na identificao com um outro, mas [que] toma possesso de si de uma vez por todas como mscara impenetrvel. Pois a identidade do Eu seria dependente da entificao de um sistema fixo de identidades e diferenas categoriais. A projeo de tal sistema sobre o mundo exatamente aquilo que Adorno e Horkheimer chamam de falsa projeo ligada dinmica do narcisismo e as processos de categorizao do sujeito cognoscente, j que, em ltima instncia, a categorizao seria uma projeo do princpio de identidade do Eu na sntese do diverso da intuio em representaes de objetos da experincia. Mesmo a compreenso da cognio como assimilao do objeto atravs de uma rememorao (Erinnerung) capaz de internalizar as cises que a prpria conscincia teria produzido no escapar dos motivos da crtica frankfurtiana. Neste momento, valem para Adorno e Horkheimer a afirmao de um filsofo que, em vrios momentos, cruzou o caminho dos frankfurtianos atravs de uma crtica da razo como modo de dominao tcnica do mundo e de si, Martin Heidegger: nos parece que, em todo lugar, o homem s encontra a si mesmo. Heisenberg teve plena razo ao dizer que, para o homem de hoje, o real (Wirklichen) no pode parecer de outra forma.Assim, toda boa leitura de Adorno deve tentar compreender como ele foi capaz de constituir uma crtica do sujeito moderno que, ao mesmo tempo, colocou-se como afirmao de uma teoria renovada da subjetividade, de uma teoria do sujeito independente das temticas ligadas filosofia da conscincia. Por outro lado, trata-se de demonstrar como, no interior da experincia intelectual adorniana, estas temticas prprias reflexo sobre o estatuto de um conceito filosfico, como sujeito, serviro de base para o desenvolvimento de uma complexa crtica social do capitalismo avanado. este movimento fundamental entre crtica da razo, crtica do sujeito e crtica social que interessa a Adorno. Como conceitos filosficos, ao mesmo tempo, fundamentam a crtica social e se configuram a partir dela, ou seja, so gerados pela situao social mas, ao mesmo tempo, fornecem a perspectiva que fundamenta a crtica esta mesma situao? Como o que nasce no interior de uma situao pode servir de ponto de fuga, como perspectiva que me permite criticar esta prpria situao? Como se d esta passagem tensa entre filosofia e teoria do capitalismo? Como possvel, por exemplo, articular a crtica do sujeito como locus da identidade imediata e a compreenso de que: a ideologia a forma originria da ideologia? Todas estas questes s podem ser respondidas atravs de uma leitura atenta do texto adorniano.Indstria cultural e crtica da cultura

tendo em vista os problemas gerados no interior do projeto de constituir uma teoria do sujeito onde este no aparea como pea maior de uma metafsica da identidade que podemos abordar o sentido de uma das elaboraes mais conhecidas de Adorno, a saber, o conceito de indstria cultural. Ele visa preencher duas funes. Primeiro, trata-se de mostrar como a esfera da cultura de massa transformou-se no ncleo dos processos de socializao e de formao de individualidades. Desde os anos 30, o Instituto de Pesquisas Sociais desenvolvia pesquisas a respeito das modificaes estruturais na esfera da famlia devido desagregao da autoridade paterna. Neste contexto, eles insistiam que processos anteriormente vinculados ao ncleo familiar tendiam a ser operados pelo setor mais economicamente organizado da cultura.

Segundo, trata-se de mostrar como a produo cultural transformou-se no setor mais avanado da produo econmica. Neste sentido, o conceito de indstria cultural no visa apenas mostrar as mutaes pelas quais a cultura passou na sociedade industrial, mas tambm como a cultura transformou-se em pea fundamental do processo de auto-valorizao do Capital. A sua maneira, Adorno j indicava a mutao do capitalismo em capitalismo cultural, ou seja, capitalismo onde a cultura desempenha papel econmico decisivo.

Mas vejamos com mais calma a primeira funo. Adorno acredita que a indstria cultural constituiu-se como poder unificador da dinmica de funcionamento das esferas sociais e como processo de submisso da diversidade lgica da identidade. Para tanto, foi inicialmente necessrio que ela se constitusse como sistema unificado de produo. Cinema, rdio, revistas: todas essas mdias devem estar submetidas mesma lgica de produo e aos mesmos detentores. Uma oligopolizao que se acentou com o passar do tempo. Por outro lado, esta natureza oligopolista implica necessariamente padronizao e estereotipia. Esta padronizao exige que a produo seja uma montagem de clichs que devem ser facilmente reconhecidos para que a segurana advinda da capacidade em reconhecer o que sempre volta ao mesmo lugar seja garantida. Da porque Adorno e Horkheimer falaro que o primeiro servio fornecido pela Indstria Cultural ao consumidor seria o esquematismo. Esta uma maneira de atualizar a afirmaao de Marx, para quem a produo cria um necessariamente sujeito para o produto. Neste sentido, Adorno chega mesmo a afirmar que a atitude do pblico j seria parte do sistema. Vem da fora do sistema sua capacidade de organizar a sociedade atravs de uma rede de diferenciais e targets prontos para a identificao. Desta forma, Adorno pode insistir que os processos de identificao presentes nos produtos da comunicao de massa seriam negaes simples da singularidade ou, se quisermos, da no-identidade dos sujeitos.

Vrios criticaro Adorno por ele parecer, com isto, acreditar que o processo de recepo no seria uma atividade criativa, mas simplesmente a confirmao de padres postos e manipulados pela Indstria Cultural. Mas notemos um ponto importante que faz uma grande diferena. De uma certa forma, Adorno no acredita que a funo da Indstria Cultural consista simplesmente na imposio do mesmo e na promessa reiterada de satisfao imediata. mais correto dizer que, para Adorno, a fora da Indstria Cultural vem da sua capacidade em administrar o desencanto com a prpria Indstria Cultural, em gerir a insatisfao. Adorno insiste vrias vezes que a Indstria Cultural j produz produtos que visam dar forma, expressar o desencantamento com os prprios esteretipos fornecidos por ela mesma. Como se o verdadeiro cerne do poder no estivesse na imposio de padres de condutas, mas na gesto de suas margens. Neste sentido, se verdade que a atitude do pblico j seria parte do sistema, porque desencanto do pblico com os padres da Indstria Cultural o verdadeiro motor do processo. Nada d mais dinheiro Indstria Cultural do que produtos que expressam o desencanto com a prpria Indstria Cultural. Maneira astuta de perpetuar contedos de identificao que no exigem mais assentimento. Um acontecimento gerador

Mas voltemos ao nosso problema inicial, at porque, de uma certa forma, ela tambm est ligada ao debate da cultura no sculo XX. Se a questo que fornece a consistncia da filosofia adorniana diz respeito possibilidade de pensar um sujeito que no seja mais a entificao dos princpios de identidade, unidade e auto-determinao, questo esta que recebe sua forma cannica atravs do imperativo de, com a fora do sujeito, quebrar a iluso da subjetividade constitutiva, ento devemos ainda nos perguntar: qual o acontecimento que gera esta questo? Qual o acontecimento histrico a respeito do qual a filosofia de Adorno ser sempre fiel e a partir do qual ela medir seu desenvolvimento?

Pr tal pergunta parece-me algo importante porque normalmente ela respondida de maneira equivocada. No so poucos aqueles que diro que a filosofia de Adorno marcada, sobretudo, por Auschwitz, isto a ponto dela estabelecer como imperativo categrico para a contemporaneidade: tudo fazer para que Auschwitz nunca mais ocorra novamente. Um dos pensadores mais recentes a insistir neste ponto foi Alain Badiou, para quem, em Adorno: Trata-se de saber quais so as redes e condies de possibilidade de um pensamento aps Auschwitz, ou seja, de um pensamento que seja, em vista do que foi Auschwitz, no seja um pensamento obsceno, mas antes um pensamento cuja dignidade seria preservada devido a razo dele ser um pensamento aps Auschwitz. E se nos perguntarmos sobre do que Auschwitz o nome, deveramos afirmar que Auschwitz o nome de uma certa catstrofe do pensamento identitrio.

De fato, Adorno no cansa de insistir que nos campos de concentrao no era o indivduo que morria, mas o exemplar, pois a indiferena em relao ao sofrimento presente na transformao do assassinato em operao industrial e desafectada seria o resultado direto de um modo de pensar, de uma forma de vida que perdeu toda capacidade de se deixar tocar pela irredutibilidade singular do sensvel. Da uma afirmao como:O que os sdicos diziam s suas vtimas nos campos de concentrao: - Amanh, voc partir por esta chamin como fumaa em direo ao cu; indica esta indiferena em relao vida de cada singular (Einzelnen) para a qual a histria caminha. Em sua liberdade formal, o singular j to intercambivel como sob as botas dos que iro liquid-lo.

Ou seja, a catstrofe histrica representada por Auschwitz no seria outra coisa que a figura mais bem acabada de uma forma de vida, como a nossa, que seria incapaz de viver com o que no se submete forma de identidade, com o que rompe com um princpio de unidade cuja maior entificao seria a prpria funo do Eu moderno. Contra isto, teramos uma filosofia assombrada pelo carter totalitrio do Uno, pela exigncia de pautar a poltica pela necessidade de evitar o sofrimento e de sustentar respeito a alteridade (um pouco como se Adorno no passasse de um Lvinas precoce). Posies que, hoje em dia, poderiam ser aceitas sem maiores dificuldades por todos os que compreendem que a funo fundamental do pensamento a tarefa negativa e reativa de simplesmente evitar a catstrofe. Posio de quem se desespera a respeito da fora geradora e revolucionria da prxis.

verdade que Adorno formular um critrio moral que pode ser enunciado da seguinte forma: o verdadeiro ato moral aquele capaz de deixar-se guiar pelo afastamento do sofrimento. No entanto, uma proposio desta natureza temerria por permitir, inicialmente, vrias interpretaes. Pois podemos compreender este afastamento do sofrimento como um imperativo utilitarista (nossos atos so guiados pelo clculo do prazer e pelo afastamento do desprazer) ou ainda como um imperativo ligado a formas de poltica da vitimizao (os sujeitos da ao devem ser vistos inicialmente como vtimas em potencial). No entanto, podemos fornecer uma outra interpretao, substancialmente diferente, em relao ao pensamento adorniano. Sem em momento algum ignorar a importncia decisiva da experincia castrfica de Auschwitz no apenas para o pensamento adorniano, mas para todo e qualquer pensamento que, a partir da segunda metade do sculo XX, queira de fato pensar altura dos acontecimentos histricos, sem negar que, de fato, uma das dimenses maiores do pensamento, a partir de ento, ser necessariamente evitar a catstrofe, trata-se de insistir que nenhuma filosofia pode ser solidria apenas de um acontecimento meramente negativo (evitar algo, impedir que algo acontea novamente etc.). Toda verdadeira filosofia traz tambm consigo a exigncia de pensar a partir de um acontecimento portador de promessas instauradoras. Mesmo a ao de evitar o pior s encontra fora se for portada por promessas instauradoras.

Fazer uma afirmao desta natureza de especial importncia para a leitura de Adorno, j que vrios comentadores procuraram afirmar que a filosofia de Adorno no poderia fornecer horizontes de interveno. No entanto, tentemos tirar todas as conseqncias do fato de, para Adorno, mesmo o paradigma do campo de concentrao no ser resultante da irracionalidade de um pretenso mal radical, mas da estrutura paranica do Eu moderno que projeta compulsivamente para fora de si sua prpria infelicidade, sua prpria impossibilidade de se reconhecer no que no se conforma imagem de si. Ou seja, ele , de uma certa forma, o extremo de uma patologia vinculada implementao social da metafsica da identidade. Por isto, devemos nos colocar a seguinte questo: sendo Auschwitz, para Adorno, algo como a catstrofe do pensamento identitrio, haveria ento um acontecimento capaz de levar o Eu a se confrontar com o que parece lhe dissolver, um acontecimento gerador de novas formas para o pensar? Pergunta que visa indicar a qual acontecimento devemos ser fiel a fim de impedir que nossas formas de vida conservem estruturas psquicas e libidinais que possam servir de base para a integrao em sociedades totalitrias. neste ponto que devemos levar s ltimas conseqncias a importncia da esttica para a constituio do programa filosfico adorniano.

De maneira esquemtica, podemos dizer que o verdadeiro acontecimento gerador da filosofia adorniana o conjunto de as possibilidades estticas abertas pela chamada Segunda Escola de Viena, em especial nas figuras de Alban Berg e de Arnold Schoenberg. No devemos ter medo de afirmar que toda sua filosofia a elaborao contnua e rigorosa das potencialidades abertas pelas expectativas vanguardistas da esttica musical. Mas para entender melhor este ponto, devemos afinal de contas compreender melhor o que significa, para Adorno, pensar sobre a msica, ou ainda, o que a experincia da msica nos traz.Ao escrever seu mais importante livro sobre msica, Filosofia da nova msica,de 1948, Adorno viu-se obrigado a iniciar desculpando-se: Pode parecer cnico, depois do que aconteceu na Europa e de tudo o que ainda nos ameaa, dissipar tempo e energia intelectual decifrando problemas esotricos da tcnica moderna de composio. Esta frase no fundo pode ser traduzida da seguinte maneira: os problemas da racionalidade musical parecem to autnomos em relao quelas questes gerais postas pela efetividade ao pensamento filosfico que eles parecem ser desprovidos de relevncia real, para alm de um pequeno crculo de especialistas. Afinal, por que regras de harmonia, problemas de sintaxe musical e obsolescncia de padres de construo musical interessariam algum mais do que msicos?

A resposta adorniana seria: porque a histria das formas musicais um setor privilegiado, mas quase esquecido, da histria da razo. Lembremos desta antiga constatao platnica de que a msica indica fundamentalmente critrios de organizao, o que nos explicaria porque nunca se abalam os gneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade. Se os gneros musicais tm o poder de abalar os alicerces da cidade, porque as formas musicais se colocam como dispositivos que aspiram fornecer critrios de organizao racional daquilo que aparece primeiramente como natureza (o som) e expresso das funes intencionais do sujeito. Insistamos neste ponto. A forma musical produzida a partir de decises sobre os protocolos de identidade e diferena entre elementos (consonncia e dissonncia), sobre os problemas de partilha entre o que racional e o que irracional (som e rudo), sobre o que necessrio e o que contingente (desenvolvimento e acontecimento). Ela se produz ainda a partir de decises sobre a relao entre razo e natureza (a msica como mimesis das leis naturais ou como plano autnomo do que se afirma contra toda iluso de naturalidade) e sobre os regimes de intuio do espao e do tempo. esta gama de dispositivos que nos permite afirmar que a forma musical nasce de uma deciso sobre os critrios vlidos de racionalidade. Neste sentido, desde sua juventude, Adorno acreditava que as experincias musicais da Segunda Escola de Viena haviam produzido as condies de possibilidade para pensarmos um conceito renovado de sujeito e de razo. O que o levou a afirmar, de maneira peremptria: em relao especificidade que o ltimo Schoenberg foi capaz de realizar como compositor, h algo a ser ganho para o conhecimento filosfico. Sobre a relao entre arte e filosofia em Adorno

Podemos, desdobrar esta questo espinhosa a respeito da relao entre filosofia e esttica em Adorno atravs da apresentao de uma resposta ao problema do regime de recurso filosfico arte na experincia intelectual adorniana. notvel que em momento algum tal recurso opere a partir da lgica da exemplificao. Para Adorno, as obras de arte no so um caso exemplar daquilo que a elaborao filosfica seria o conceito.

De maneira esquemtica, possvel dizer que h, ao menos, trs maneiras de se pensar os modos de indexao entre conceito e caso. O primeiro o caso como exemplo do conceito. Aqui, h uma relao tautolgica de subsuno da particularidade do caso generalidade do conceito, at porque no h nada a apreender do caso que j no esteja no conceito. Isto nos leva necessariamente, para utilizar uma leitura proposta por Badiou, a uma viso pedaggica da arte. Pois a arte no produziria verdades. Antes, ela deveria fornecer o caminho correto para a apreenso de uma verdade que lhe ultrapassa e que encontra seu solo natural na discursividade prosaica do pensamento conceitual.

O segundo o caso como ponto de excesso do conceito. Trata-se da defesa da existncia de uma relao de no-estruturao do caso pelo conceito, como se houvesse uma irredutibilidade da multiplicidade prpria ao caso a toda tentativa de estruturao pelas capacidades generalizadoras do conceito. Uma certa viso romntica da arte como discurso originrio, espao natural da intuio criadora seria o desdobramento orgnico de tal posio.

Por fim, podemos dizer que o caso um modelo do conceito e se dissermos isto estaremos mais perto do que Adorno tem em vista atravs do seu recurso filosfico s artes. Trata-se de mostrar como o verdadeiro caso aquele que traz em si modos de organizao capazes de reordenar as aspiraes sintticas do conceito.

Esta uma questo maior, at porque Adorno claro em afirmar o primado do modelo em filosofia: Pensar filosoficamente como pensar por modelos; a dialtica negativa um conjunto de anlises de modelos. Assim, devemos responder: o que significa afirmar que a confrontao com as obras de arte o modelo para a reconstituio do pensar filosfico?

Muito haveria a se dizer a respeito desta questo, mas a ttulo introdutrio podemos insistir em um ponto. Afirmar que a confrontao com as obras de arte o modelo para a reconstruo do pensar filosfico significa sustentar que a arte pensa, que ela um campo produtor de verdades. Talvez ela no pense exatamente por conceitos e com seus processos de submisso da particularidade do caso a universalidade de representaes gerais, mas ela pensa por formalizaes. De qualquer maneira, a idia de forma liga ainda a arte a um certo nvel de articulaes lgicas do conceito. Por outro lado, ela nos fornece modos de formalizaes de objetos que, por que no dizer as coisas s claras, tem aspiraes cognitivas. A este respeito, lembremos como a Teoria esttica de Adorno no temia em afirmar que a problemtica da teoria do conhecimento retorna (wiederkehren) imediatamente na esttica. Ele vai ainda mais longe, na medida em que afirma que a formalizao esttica deve ser compreendida com correo do conhecimento conceitual, j que a : arte racionalidade que critica a racionalidade sem dela se esquivar. A crtica da arte em relao ao conceito se legitima na medida em que, para Adorno, a formalizao esttica capaz: de absorver na sua necessidade imanente o no-idntico ao conceito colocando-se assim como dimenso de verdade. Pois: Com o progresso da razo, apenas as obras de arte autnticas conseguiram evitar a simples imitao do que j existe. Um exemplo do gnero de correo que a arte pode nos fornecer: A grosseria do pensamento a incapacidade de operar diferenciaes no interior da coisa, e a diferenciao tanto uma categoria esttica quanto uma categoria do conhecimento.

Ou seja, contrariamente a uma tendncia geral do pensamento esttico do sculo XX, Adorno no cessa de analisar as obras de arte a partir de critrios de verdade e de falsidade, de autenticidade e de inautenticidade, tal como, por sinal, Arnold Schoenberg. Isto permite Adorno relativizar a tendncia de autonomia das esferas sociais de valor e afirmar que a atividade artstica nos fornece coordenadas para pensarmos a ao moral e as expectativas cognitivas. Contrariamente a Kant, para quem o acordo intersubjetivo sobre o Belo no exigiria nenhuma referncia verdade racional ou norma moral, Adorno no cessa de insistir que foras idnticas agem sobre esferas no idnticas. Neste sentido, devemos nos perguntar qual era o significado maior da experincia esttica da Segunda Escola de Viena para Adorno. Sem entrar em consideraes tcnicas que obrigariam a redao de outro artigo, possvel dizer tal significado est necessariamente vinculado maneira com que, atravs da esttica, Adorno encontra as bases para pensar um conceito de sujeito no mais vinculado ao primado da identidade. Isto fica claro em afirmaes como:

A msica de Schoenberg quer emancipar-se em seus dois plos: ela libera as pulses (Triebhafte) ameaadoras, que outras msica s deixam transparecer quando estes j foram filtrados e harmonicamente falsificados; e tenciona as energias espirituais ao extremo; ao princpio de um Eu que fosse forte o suficiente para no renegar (verleugnen) a pulso (...) Embora sua msica canalizasse todas as foras do Eu na objetivao de seus impulsos, ela permaneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schoenberg, algo estranho ao Eu.Este um ponto fundamental. Toda forma musical traz a pressuposio de uma figura do sujeito, no apenas enquanto agente do processo composicional vinculado categoria de expresso, mas tambm como ouvinte que deve se orientar a partir de modos determinados de audio. Tomemos, por exemplo, a forma-sonata definida como o que tem: um clmax identificvel, um ponto de mxima tenso para o qual a primeira parte do trabalho conduz e que simetricamente resolvido. Trata-se de uma forma fechada, sem a estrutura esttica de uma forma ternria; ela tem uma finalizao dinmica anloga ao desdobramento do drama oitocentista, no qual tudo resolvido, os detalhes esto ligados e a obra redonda. A identificao de clmax e tenses exige funes intencionais como a memria narrativa (que organiza o desenvolvimento em drama), a ateno orientada por um telos, alm da compreensibilidade de princpios de diferenciao e de identidade partilhados tanto pelo compositor quanto pelo ouvinte. A idia de resoluo exige, por sua vez, um Eu capaz de orientar processos de sntese e de determinar o sentido de totalidades funcionais; ou seja, um Eu como unidade sinttica de representaes. Mas uma msica que no se organiza como uma sonata; que modifica noes estruturais como resoluo, hierarquia, tenso-distenso, antecedente-consequente, consonncia-dissonncia, que constri de outra maneira sua totalidade funcional, traz necessariamente a promessa de uma nova figura do sujeito, que no simplesmente o sujeito dos julgamentos estticos.Este regime de recurso filosfico arte ser uma constante na experincia intelectual de Adorno. Vemos que, aqui, a arte no utilizada como libi para o abandono do conceito em prol de alguma espcie de imanncia com domnios pr-conceituais da intuio, de afinidade pr-reflexiva entre sujeito e natureza ou de hipstase do inefvel, do arcaico e do originrio. Ao contrrio, tal recurso privilegiado quer dizer simplesmente que precisamos sustentar novos modos de formalizao e ordenao que no sejam mais assentados na represso da experincia de no-identidade. Modos que, em certas situaes histricas, encontram sua primeira manifestao na arte, isto para depois desdobrarem-se em outras esferas da vida social.

Foi esta a aposta que animou a experincia intelectual de Adorno: pensar a partir das promessas de uma nova ordem trazida pelo setor mais avanado da produo artstica de seu tempo. Digamos que este foi o solo positivo de sua dialtica negativa. Aposta que s foi possvel porque Adorno assumiu, desde o incio, a necessidade de parar de ver, na arte, a simples indicao de uma esttica e assum-la como setor privilegiado da histria da razo, ou seja, parar de ver, no recurso filosfico arte, apenas a tentativa de constituir uma esttica inflacionada de vocabulrio filosfico. Devemos derivar todas as conseqncias do fato de uma certa experincia esttica, com seus protocolos de formalizao, fornecer a Adorno o modelo de reorientao das categorias da dialtica, em especial a categoria de sujeito. Este um trabalho que exige um cuidado que sempre marcou a experincia intelectual adorniana: o cuidado de no separar o que deve ser pensado conjuntamente. Introduo experincia intelectual de Theodor Adorno

Aula 2

Na aula de hoje, comearemos a discusso de um pequeno texto programtico, intitulado A atualidade da filosofia. Na verdade, este texto no foi publicado por Adorno, mas pronunciado como aula-magna ocasio de sua entrada na Universidade de Frankfurt como professor de filosofia, em 1931, quando o autor tinha 28 anos.

Trata-se de um texto programtico por ser, de uma certa forma, a sntese de um processo de definio de problemas e de formao intelectual que havia direcionado Adorno durante todo os anos 20. Uma das caractersticas maiores deste processo era seu hibridismo. Durante os anos 20, Adorno foi atravessado por uma oscilao constante entre seguir uma carreira de compositor e seguir uma carreira acadmica de professor de filosofia. Ele chega a ir para Viena a fim de seguir cursos com o compositor Alban Berg durante quase dois anos. Neste perodo, ele produz vrias peas, todas marcadas por uma certa filiao quilo que ento era chamado de nova msica, ou seja, a Segunda Escola de Viena (Schoenberg, Berg, Webern). Sua produo de artigos sobre a msica de sua poca e crticas de concerto intensa, principalmente para revistas como Musikbltter des Anbruch, Pult und Taktstock e Die Musik. Os assuntos dizem respeito, sobretudo, s correntes artsticas e compositores decisivos para o debate esttico dos anos 20 na Alemanha: o expressionismo, Hindemith, Bela Brtok, os compositores da nova msica, Hanns Eisler, Kurt Weill, Ravel, Mahler, entre outros.

Por outro lado, Adorno continua seguindo os passos necessrios para a carreira acadmica. Em 1924, ele defende sua dissertao, sob a superviso de Hans Cornelius, cujo ttulo era: A transcendncia do objetal e do noemtico na fenomenologia de Hursserl (Die Transzendenz des Dinglichen und Noematischen in Husserls Phnomenologie). O debate com a fenomenologia ser uma constante na trajetria filosfica de Adorno, principalmente atravs dos seus dois nomes maiores: Husserl e Heidegger. Ao primeiro, ser dedicado, entre outros, o livro Para uma metacrtica da teoria do conhecimento: estudos sobre Husserl e as antinomias fenomenolgicas, de 1956. Para o segundo, o famoso O jargo da autenticidade, de1964.

Alguns anos mais tarde, em 1927, Adorno tentar apresentar sem sucesso, para o mesmo Hans Cornelius, uma tese de habilitao em filosofia intitulada: O conceito de inconsciente na doutrina transcendental da alma (Die Begriff des Unbewussten in der transzendentalen Seelenlehre). Tratava-se de uma tentativa ousada de aproximao entre psicanlise freudiana e a noo de transcendental no interior da tradio filosfica kantiana. Indicao clara desta maneira to prpria a Adorno de procurar pontos de articulao entre questes filosficas e problemticas derivadas do estado atual das cincias empricas. Este fracasso levar Adorno a apresentar outra tese de habilitao, agora sob a superviso de Paul Tillich, que ser publicada em 1933 com o ttulo de Kierkegaard: construo da esttica.

No entanto, no deixa de ser surpreendente que, at o momento da publicao de sua tese de habilitao, Adorno no publicara praticamente nenhum artigo ou texto claramente sobre filosofia. Sua prolfica produo era, at ento, exclusivamente dirigida esttica musical. Um fato que s pode ser explicado se aceitarmos que vrias preocupaes maiores que sero objetos de seu programa filosfico j esto, de uma forma ou outra, em operao no interior dos textos sobre esttica e crtica musical. De fato, a conferncia A atualidade da filosofia, nos indica alguns caminhos importantes neste sentido.

Esta conferncia programtica aparece em um momento decisivo. Em janeiro de 1931, Max Horkheimer assume a direo do Instituto para a pesquisa social, que a partir de ento se transformar na base institucional daquilo que hoje entendemos por Escola de Frankfurt. Criado em 1923 graas subveno financeira de Flix Weil, filho de um grande comerciante com negcios na Argentina, o Instituto dedicava-se, principalmente, a estudos sobre a histria do movimento operrio, especialidade de seu ento diretor, o professor de economia poltica Carl Grnberg. A tais estudos, somavam-se anlise sobre a crise da economia capitalista e o funcionamento da economia planificada. Mas com a vinda de Horkheimer, as pesquisas ganharo uma perspectiva substancialmente diferente.

A nova linha de pesquisa encontra-se enunciada na conferncia de janeiro de 1931 que Horkheimer pronuncia ocasio de sua posse como diretor do Instituto. Ela tinha por ttulo A situao atual da filosofia social e as tarefas de um instituto para a pesquisa social. Como vocs percebem, j seu ttulo no deixar de ressoar na conferncia que Adorno dar meses depois. Nos dois casos, era questo de uma reflexo sobre o quadro atual da filosofia (basicamente aquela de tradio alem) e sobre as possibilidades que ento se abriam. Por isto, uma boa maneira de entrar na leitura da conferncia de Adorno lembrando inicialmente algumas questes presentes na conferncia de Horkheimer, j que, muito seguramente, o pblico das duas conferncias era o mesmo.

O lugar da filosofia

A conferncia de Horkheimer inicia com a afirmao da que a filosofia social deve estar no corao das preocupaes maiores da filosofia. Fundada na reflexo sobre fenmenos que s podem ser entendidos no contexto da vida social (como estado, lei, economia, religio), a filosofia social encontraria seu impulso decisivo na recusa hegeliana em deduzir tais categorias da anlise solipsista de sujeitos isolados. Da a necessidade de Horkheimer lembrar da crtica hegeliana a pretensa tendncia kantiana em derivar os princpios fundamentais da moral, arte, conhecimento, direito a partir de uma reflexo que parte da estrutura individualizada da conscincia ou da anlise a priori de suas faculdades. Contra isto, Horkheimer insiste na maneira com que, na filosofia social hegeliana: a essncia ou a forma substantiva do individual manifesta-se no em atos pessoais, mas na vida do todo ao qual ela pertence desta forma que o idealismo pode se transformar, em Hegel, em filosofia social.

Hegel no desconhece a natureza conflitual e no-imediata da relao entre os interesses do indivduo e o modo de afirmao da necessidade inerente totalidade da vida social. Uma totalidade que se realiza normalmente na figura institucional do Estado justo. No entanto, o modo de desenvolvimento histrico da indstria, da tecnologia, das cincias positivas e dos regimes de reproduo social exigem, da filosofia social, no apenas a problematizao do projeto hegeliano, mas a compreenso das novas condies necessrias sua realizao.

Horkheimer sensvel maneira, por exemplo, com que um certo positivismo afirmava-se tanto na filosofia quanto na sociologia atravs da crtica a todas categorias abstratas e universalistas, como: classe, ideologia, conscincia de classe e totalidade. Ele compreende tal esforo como uma maneira de hipostasiar o dado, de impedir o pensamento de ir alm da contemplao do que aparece conscincia natural como mera efetividade, como realidade bruta. Por outro lado, como bem identificou Honneth: quando o Instituto de Pesquisas sociais de Frankfurt comea seus trabalhos no inicio dos anos 30 sob a direo de Horkheimer, a estrutura comum ainda largamente marcada por uma f no progresso alimentada pela filosofia da histria. Ou seja, contra a hipstase do que aparece como o que meramente , a filosofia social deve deixar-se pautar por um ideal de reconciliao social filosoficamente fundamentado nas consideraes sobre a natureza emancipatria do projeto da modernidade. Ela deve fornecer bases para processos de valorao que orientam a crtica.

Isto no significa, no entanto, alguma espcie de imperialismo filosfico onde esta fornece o quadro de valores que deve guiar pesquisa empricas que, em si mesmas, devotar-se-iam a problemas parciais e perdidos em meio a questes de especialistas. Horkheimer fala de uma interpenetrao dialtica atravs da qual a filosofia e teoria social se influenciam mutuamente. Isto significa, de maneira mais precisa:

organizar investigaes estimuladas por problemas filosficos contemporneos onde filsofos, socilogos, economistas, historiadores e psiclogos estejam juntos em colaborao permanente para empreender em comum o que, em outros campos, pode ser realizado individualmente em laboratrio. Em suma, a tarefa fazer aquilo que todos verdadeiros pesquisadores sempre fizeram, ou seja, perseguir suas questes filosficas maiores atravs dos mtodos cientficos mais precisos a fim de revisar e refinar suas questes a partir do desdobramento de seus trabalhos e de desenvolver novos mtodos sem perder a viso de amplos contextos. Com esta perspectiva, nenhuma resposta por sim ou no deriva de questes filosficas. No entanto, tais questes integram-se no processo de pesquisa emprica, suas respostas esto no avano do conhecimento objetivo que afeta a prpria forma das questes.

Esta a primeira formulao do que aparecer anos mais tarde, em um texto maior de Horkheimer intitulado Teoria tradicional e teoria crtica, como sendo o programa interdisciplinar que dever aparecer como horizonte metodolgico dos esforos de pesquisa que caracterizaro a chamada Escola de Frankfurt. Neste momento, tal programa interdisciplinar est ligado tentativa de analisar a conexo entre vida econmica social, desenvolvimento psquico dos indivduos e mudanas no reino da cultura, tomada aqui em seu sentido o mais amplo possvel. Horkheimer v tal anlise como um setor renovado do problema clssico a respeito da conexo entre existncia particular e Razo universal, realidade e Idia, vida e Esprito. No se trata de pressupor uma correspondncia completa entre Idia e realidade material, mas de, atravs de uma relao renovada entre filosofia e teoria social, dar conta de um duplo processo de reconfigurao das questes filosficas, seus mtodos e de orientao do potencial crtico da teoria social. Da porque Horkheimer insiste em uma filosofia social capaz de, por exemplo, saber avaliar pesquisas empricas, questionrios, estudos sobre comunicao de massa, aproximando-se cada vez mais do mtodo de anlise prprio sociologia.

Todas estas questes no deixam de estar presentes como pano de fundo da conferncia que Adorno pronunciar meses mais tarde. O problema da relao entre filosofia e teoria social, a metodologia da especulao filosfica, assim como sua funo contempornea enquanto discurso de forte potencial crtico, a posio em relao s correntes ento hegemnicas no cenrio intelectual alemo (em especial, a fenomenologia e o positivismo lgico): todas estas questes formam a ossatura do texto adorniano. No entanto, uma srie de diferenas so fceis de serem identificadas.

A totalidade como problema

Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferncia de Adorno comea:

Quem escolhe atualmente por ofcio o trabalho filosfico, deve renunciar desde o comeo a iluso que inicialmente animava os projetos filosficos: a de que seria possvel apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen) atravs da fora do pensamento.Como dissera na aula passada, esta conscincia, historicamente enraizada, do descompasso entre exigncias de sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir possibilidade de se deixar formalizar como totalidade o motor que levar Adorno a constituir a configurao de sua prpria experincia intelectual. A princpio, parece estarmos longe desta maneira horkheimeana de colocar-se sob a gide de uma certa recuperao do projeto hegeliano de constituir uma filosofia social suficientemente fortalecida pela sociologia a ponto de dar conta das articulaes globais da realidade socialmente partilhada e de suas promessas de racionalidade. Se verdade que: em Horkheimer, a filosofia social finalmente a rainha das cincias devido ao seu carter sinttico, em Adorno aparece desde o incio uma necessidade reiterada em afirmar que: Nenhuma razo legisladora pode reencontrar-se em uma realidade cuja ordem e forma (Gestalt) exclui toda pretenso da razo. Ou seja, o primeiro dado a respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada a desintegrao da adequao (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser. Uma desintegrao que faz com que a prpria idia de ser aparea como um princpio formal vazio (leeres Formalprinzip). Para Adorno, toda filosofia que pressupe tal adequao deve ser compreendida como idealista. Da porque uma das operaes mais recorrentes do texto consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia atual (atravs principalmente da fenomenologia). A crtica do idealismo transforma-se em pea de orientao do prprio programa filosfico adorniano.

No deixa de ser desprovido de interesse lembrar que o ponto de partida da experincia filosfica adorniana era, a sua maneira, o resultado da absoro de um diagnstico utilizado para dar conta dos desafios para a produo artstica da poca. A perda de unidade da experincia do mundo aparecia na esttica vanguardista como conscincia do esgotamento das formas artsticas arraigadas na tradio com sua fora sinttica e sua capacidade de constituir obras de arte como totalidades orgnicas. J o expressionismo, o grande movimento artstico do modernismo alemo, trazia no seu interior o esgotamento terminal das leis formais universais e aquilo que o jovem Adorno chamava de separao entre o Eu e as formas. Da porque: Se o poeta e o pintor expressionista procuram retratar no a objetividade do mundo, nem o modo como ele se mostra aos sentidos, mas sim reconstruir o primado da subjetividade na relao com o que lhe externo, a conscincia da impossibilidade de atravessar o abismo que ligaria o Eu ao mundo tambm afeta a possibilidade de comunicao dessa expresso pura, cristalizada no ideal do grito.

Mas o que seria exatamente esta desagregao da experincia do mundo que tanto a esttica quanto a filosofia do incio do sculo XX parecem sentir de maneira decisiva?

Mais ou menos na mesma poca e contexto cultural, o socilogo Max Weber insistia que um certo sentimento de desagregao e de indeterminao apareciam necessariamente como saldo dos processos de modernizao social e de desencantamento do mundo. Weber se referia, principalmente, perda do poder de unificao social produzido pelas explicaes mtico-religiosas de mundo. A tenso entre a significao religiosa e a direo do mundo material levar necessariamente quilo que Weber chamava de autonomizao das esferas social de valores, ou seja, processo de autonomia cada vez maior entre os contedos normativos, as exigncias de validade e o desenvolvimento da arte, da cincia, da poltica e da economia. Cada uma destas esferas da vida social ir desenvolver aquilo que Weber chama de legalidade prpria. Isto significa que cada esfera da vida social ganhar, na modernidade, a possibilidade de se desenvolver de acordo com suas prprias leis e sem precisar, a todo momento, fazer apelo ao poder unificador dos mitos mtico-religiosos socialmente partilhados. Algumas conseqncias importantes resultam de tal processo.Primeiro, lembremos desta tendncia de fragmentao da vida social e de conflito entre exigncias de validade. Esta fragmentao foi bem salientada por Habermas, ao lembrar que: uma vez que as imagens do mundo se desagregam e os problemas legados se cindem entre pontos de vista especficos da verdade, da justeza normativa, da autenticidade ou do belo, podendo ser tratados, respectivamente, como questo de conhecimento, como questo de justia e como questo de gosto, ocorre nos tempos modernos uma diferenciao de esfera de valor: cincia, moral e arte. Todo o problema consistir em encontrar algum modo de dilogo entre a verdade aspirada pelo discurso cientfico, a justia aspirada pelo discurso jurdico e a autenticidade aspirada pela arte (embora esta compreenso da arte como domnio da autenticidade expressiva no deixe de colocar uma srie de problemas).

Enquanto tal dilogo no encontrar lugar o resultado no ser apenas o crescimento da distncia entre especialistas e a esfera pblica. As esferas de valores tendem a ser cada vez mais complexas, inesgotveis e refratrias traduo. Seu desenvolvimento impede processos de totalizao. Isto faz com o sujeito moderno aparea como aquele que sente a desintegrao da possibilidade de apreenso da experincia de totalidade capaz de garantir o acesso ao sentido do existente por operaes dedutivas. O desencantamento do mundo mostra aqui, segundo Weber, seu sintoma mais profundo: a entificao de uma antropologia da finitude, a indeterminao social e a perda do sentido que s uma racionalidade orientada por valores seria capaz de garantir. Esta antropologia da finitude fica muito bem caracterizada em um trecho maior de Weber a respeito do fenmeno moderno de ausncia de sentido da morte: Ela no o tem porque a vida individual do homem civilizado, colocada dentro de um progresso infinito, segundo seu prprio sentido imanente, jamais deveria chegar ao fim; pois h sempre um passo frente do lugar onde estamos, na marcha do progresso. E nenhum homem que morre alcana o cume que est no infinito. Abrao, ou algum campons do passado, morreu velho e saciado de vida, por que estava no ciclo orgnico da vida (...) O homem civilizado, colocado no meio do enriquecimento continuado da cultura pelas idias, conhecimento e problemas, pode cansar-se da vida, mas no saciar-se dela. Podemos dizer que a proposta horkheimeana de organizar um programa interdisciplinar sob os auspcios da filosofia social consistia em reconstruir uma experincia possvel de totalidade acessvel reflexo. Ela vinha ainda marcada de uma importante inflexo marxista fortemente influenciada por Georg Lukcs que, grosso modo, consistia em dizer que esta autonomia das esferas sociais de valores e a constituio de racionalidades prprias era um processo que tendia a esconder um outro, a saber, a maneira com que todas estas esferas tendiam a ser racionalizadas a partir de dinmicas de abstrao e quantificao ligadas universalizao da forma-mercadoria. Como dir Lukcs:

No h problema nessa etapa de desenvolvimento da humanidade que, em ltima anlise, no se reporte a essa questo e cuja soluo no tenha de ser buscada na soluo do enigma da estrutura da mercadoria, j que o problema da mercadoria seria: o problema central e estrutural da sociedade capitalista em todas as suas manifestaes vitais. Pois somente nesse caso pode-se descobrir na estrutura da relao mercantil o prottipo de todas as formas de objetividade e de todas as suas formas correspondentes de subjetividade na sociedade burguesa.

Lukcs pode dizer isto porque a forma-mercadoria no apenas um dado econmico, mas um modo global de organizao e de racionalidade que parece colonizar todas as esferas a partir do modo de racionalidade em operao na esfera econmica. Da porque esta filosofia social renovada proposta por Horkheimer era animada pelo horizonte de uma crtica da economia poltica do capitalismo avanado.

No entanto, a via de Adorno no era totalmente simtrica a tais consideraes e bem provvel que isto venha do fato de que esta experincia de desagregao e indeterminao no tenham, para ele, apenas uma causa social. Veremos isto de maneira sistemtica em outras aulas, mas j vale a pena notar como Adorno introduz em sua conferncia algumas noes que nos obrigam a passar para uma dimenso de problemas que no se esgotam na tematizao do campo de determinaes sociais, mas que parecem nos indicar algo prprio ao campo de uma certa experincia metafsica. Pensemos por exemplo na idia de uma ruptura no prprio ser (Brchigkeit im sein selbst), ou de um ser cujo carter no adequado e no posto como totalidade racional pode ser esboado (das ihr nicht adquat und nicht als Totalitt rational zu entwerfen ist).

fato, por outro lado, que a conscincia da ausncia de relao imediata de adequao entre pensamento e ser (uma temtica, diga-se de passagem, maior da filosofia hegeliana) leva Adorno a, por um lado, estabelecer uma plataforma crtica em relao s correntes hegemnicas da filosofia alem poca, em especial a fenomenologia de Husserl, Heidegger e o positivismo lgico do Crculo de Viena, isto sem deixar medir sua distncia em relao Escola de Marburgo e a dita filosofia da vida de Simmel. Por outro, tal conscincia permitir a Adorno estabelecer, atravs de um dilogo cerrado e bastante importante com Walter Benjamin, uma peculiar perspectiva metodolgica materialista e dialtica.

Nem ontologia do ser, nem hipstase do dado Boa parte da conferncia de Adorno era dedicada crtica a duas linhas antagnicas da filosofia alem da poca: a fenomenologia, com sua guinada em direo recuperao heideggeriana da ontologia, e o positivismo lgico. Tais crticas continuaro como motivos maiores do pensamento adorniano em seus desdobramentos posteriores. Em 1931, ela aparece para demonstrar a possibilidade de uma filosofia que no seja nem simples glosa das cincias empricas (como quer o positivismo), nem hipstase de um conceito indeterminado de ser (como quer Heidegger).

Sobre o positivismo, Adorno afirma que ele procura simplesmente liquidar a filosofia a partir do momento que esta: converte-se exclusivamente em instncia de ordenao e controle das cincias particulares, sem ser permitida acrescentar algo de essencial a elas. Adorno no nega a necessidade, corretamente levantada pelo positivismo, de pensar a possibilidade da filosofia a partir da considerao sobre seus modos de relao s cincias. Neste sentido, ele segue Horkheimer ao afirmar:

Plenitude material e concreo dos problemas algo que a filosofia s pode alcanar a partir do estado contemporneo das cincias particulares. Por sua vez a filosofia no poderia elevar-se acima das cincias particulares para tomar delas os resultados como algo pronto e meditar sobre eles a uma distncia mais segura. Os problemas filosficos se encontram continuamente e, em certo sentido, indissoluvelmente encerrados nas questes mais determinadas das cincias particulares.

No entanto, Adorno no deixar de lembrar como o positivismo incapaz de apreender de maneira correta o problema do sentido do dado (Gegebenheit que tambm pode ser traduzido em vrios casos por fato, condio, circunstncia), categoria fundamental de todo empirismo. Em larga medida, a crtica adorniana premissa do imediatamente dado uma verso da crtica hegeliana a todo conhecimento que procura se fundamentar na imediaticidade do dado.

No primeiro captulo da Fenomenologia do Esprito, Hegel insiste que no h acesso imediato algum a dados primeiros. Toda e qualquer percepo de um estado fsico j conceitualmente estruturada, ou seja, a receptividade da nossa percepo dependente do que estamos acostumados a ver e da maneira como estruturamos o campo do visvel, por isto ela inferencial, e em hiptese alguma imediata. Ver algo no apenas separar este algo de um continum, o que j pressupe capacidades estruturadas de diferenciao, mas pressupe tambm que posso fazer julgamentos do tipo: - Este algo X semelhante, idntico, o mesmo caso que algo Y. O que, por sua vez, pressupe todo um amplo conjunto de estruturas inferenciais lgicas que dizem respeito maneira com que compreendo noes como: identidade, diferena, semelhana, entre outros. Ou seja, todo dado mediado por estruturas lgicas, e no imediato.

Mas Adorno diz mais do que isto, assim como Hegel havia feito antes dele. Quando o filsofo de Frankfurt afirma que o positivismo lgico parece ignorar como: o sujeito do dado no ahistoricamente idntico, transcendental, mas ele adquire forma (Gestalt) historicamente compreensvel e mutvel (wechselnde), ele insiste no fato de que tais categoriais lgicas de estruturao do dado no so dedutveis transcendentalmente, no so o resultado de uma reflexo a respeito de condies a priori e ahistricas de possibilidade da experincia. Antes, elas so fruto de uma gnese emprica, de um processo histrico que constitui a pretensa naturalidade e essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta dimenso constitutiva do processo histrico em nossos modos de conhecer simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukcs chamava poca de reificao, ou seja, tratar como imediatamente dado aquilo que resultado de um processo histrico e estrutural que se desenrola normalmente s costas das conscincias. Da porque Adorno insiste que o positivismo lgico no pode dar conta de maneira adequada do problema da conscincia alienada, do Eu alienado (des fremdes Bewustsseins, des fremdes Ich), sou seja, da conscincia incapaz de apreender reflexivamente a gnese e o sentido de seu modo de apreenso de objetos. Aqui j se v uma postura epistemolgica fundamental de Adorno. Ela consiste em sempre se perguntar sobre a figura do sujeito pressuposta por perspectivas epistemolgicas variadas. Tudo se passa como se Adorno dissesse no haver teoria do conhecimento sem teoria do sujeito, sendo que teorias do conhecimento podem ser criticadas tendo em vista conceitos inadequados de sujeito. O que no significa psicologizar a teoria do conhecimento, como se fosse questo de submeter nossas expectativas cognitivas anlise das faculdades psicolgicas dos sujeitos. Trata-se antes, como veremos, de mostrar que mesmo faculdades psicolgicas tm uma gnese scio-histrica e, com isto, de submeter nossos modos de conhecer a processos scio-histricos. Como dir um comentador atento de Adorno: Ele aceita que o psicologismo falso mas prope no seu lugar uma forma daquilo que poderamos chamar de sociologismo. O que ele est dizendo que nenhuma caracterstica da lgica entendida como o reino da validade pura pode ser compreendida como independente de sua sociognese.

Por sua vez, a crtica fenomenologia presente nas filosofias de Husserl, Heidegger e Max Scheler mais complexa. A complexidade vem do fato de Husserl e Heidegger serem dois dos filsofos que mais receberam a ateno de Adorno durante todas as fases de sua produo intelectual. Isto indica a importncia que Adorno reconhece na filosofia dos dois, uma importncia advinda de uma certa partilha de problemas que unem os trs.

Adorno partilha com Husserl a procura em pensar as condies para um certo retorno s coisas. Da porque ele pode afirmar que a descoberta realmente importante de Husserl, para alm da noo de intuio de essncia (Wesensschau) foi o reconhecimento do conceito de dado irredutvel (unableitbaren Gegebenheit). Ele arrancou assim da psicologia o conceito de uma intuio que se d como algo originrio. No entanto, esta sada da psicologia teria acabado por hipostasiar um certo absolutismo lgico que permite a Adorno enderear a Husserl crticas parecidas quelas que ele dirige contra o positivismo. Como veremos mais a frente, Adorno v no conceito de intuio categorial o ponto central da filosofia husserliana, o ponto para onde converge de maneira antinmica exigncias materialistas de retorno s coisas e estratgias idealistas que acabam por atribuir imediatez ao que resultado de reflexo.

Por outro lado, no difcil perceber como a relao conflituosa de Adorno a Heidegger sempre o acompanhou, embora no possamos falar em sentido inverso, j que Heidegger, por sua vez, nunca comentou os ataques reiterados adornianos. Esta relao no apenas resultado de uma espcie de operao de guerrilha intelectual contra um dos pilares daquilo que um dia Adorno chamar de ideologia alem. Ela uma operao decisiva para a prpria formao do pensamento de Adorno, j que entre ele e Heidegger passa uma relao tensa de distncia e proximidade.A primeira questo que deve ser respondida a fim de esclarecer o motor desta confrontao entre Adorno e Heidegger : em que estas duas experincia filosficas convergem? Poderamos aqui identificar, ao menos, trs centrais. Primeiro, tanto Adorno quanto Heidegger percebem que a razo moderna enredou-se em um movimento de interverso que transforma os processos de racionalizao em dispositivos de dominao tcnica da natureza. Ou seja, h uma crtica da racionalidade instrumental orientado os diagnsticos histricos tanto em Heidegger quanto em Adorno: Pois pode muito bem ser que a natureza esconda sua Essncia precisamente no lado em que se presta ao controle tcnico do homem, diz Heidegger. Isto leva tambm Heidegger a uma crtica contra a positividade das cincias que faz do prprio Heidegger, uma das vtimas preferidas do positivismo lgico que Adorno tanto combate.

Segundo, tal crtica da racionalidade instrumental tambm crtica filosofia moderna do sujeito como sua hipstase de um conceito de sujeito centrado na figura da conscincia. Por fim, restar filosofia entrar na procura de uma linguagem capaz de pr o que da ordem daquilo que nega as determinaes fenomenais reificadas. Tanto em Adorno quanto em Heidegger ela ser encontrada principalmente no recurso filosfico arte.

No entanto, Adorno desde o incio enderea crticas bastante fortes contra Heidegger. J no incio da conferncia A atualidade da filosofia, Adorno afirma que projetos, como o heideggeriano, de reconstruo da ontologia, ou seja, de um discurso do ser enquanto ser, erram por partir da possibilidade de uma adequao entre pensamento e ser. Neste sentido, Heidegger compartilharia o pressuposto fundamental do idealismo com suas iluses de totalidade.

Tal crtica ser repetida, por exemplo, na Dialtica negativa. L, ao analisar o problema da ontologia, Adorno parte de uma estratgia visando dar conta da natureza prpria necessidade ontolgica, ou seja, quilo que impe a ontologia como necessidade para o pensar. Tal necessidade estaria vinculada a exigncias de um saber do absoluto (Wissen des Absoluten), vontade de apreender o todo sem que limites sejam impostos ao conhecimento:

A influncia da ontologia no poderia ser compreendida se ela no correspondesse a uma necessidade urgente, index de uma perda (Versumten), a aspirao de que o veredicto kantiano a respeito do saber do absoluto no fique por isto mesmo.

Esta necessidade estava assentada na crena de que a razo poderia impor sua estrutura profuso do ente. No entanto, possvel transformar em uma ontologia a prpria experincia da impossibilidade de tal tentativa de imposio. sua forma, ao menos aos olhos de Adorno, isto que Heidegger tentaria fazer.

Heidegger reconheceria uma situao histrica na qual os processos de reproduo material da vida transformaram a sociedade em uma interconexo integral de funes para as quais a prpria noo de substncia perdeu sua realidade social. Da porque mesmo em teoria do conhecimento a noo de substncia perdeu h muito seu lugar. Neste sentido, a necessidade ontolgica apareceria como sintoma de defesa contra tal situao atravs de um recurso a relaes substanciais que, no entanto, no podem mais se afirmar em toda sua positividade. A ontologia fundamental do ser apareceria assim como uma certa nostalgia de um absoluto que no pode fundamentar determinao fenomenal alguma. a partir de tal problemtica que Adorno procura encaminhar a interpretao do conceito heideggeriano de ser e sua autonomia em relao a todo e qualquer processo posicional reflexivo prprio aos modos de apreenso de um sujeito.Na nossa conferncia, Adorno afirma que a aproximao heideggeriana em relao a Kierkegaard , no fundo, algo extremamente sintomtico, j que a dialtica incessante (rastlos) de Kierkegaard no vincula a subjetividade a ser firmemente fundado algum, levando ao abismo do desespero subjetivo. Heidegger deve resolver o problema aceitando uma realidade historicamente pr-dialtica, pr-reflexiva e vazia. Por isto, ela tende a se encontrar com uma transcendncia opaca, obscura e totalmente indeterminada tematizada atravs da noo de ser para a morte. Pois a morte aqui no outra coisa do que a manifestao fenomenolgica da indeterminao do que exclui toda figura de um sujeito.

Esta realidade pr-dialtica, por sua vez, no nos leva a outra coisa que submisso do sujeito ao ser: No o homem o essencial, dir Heidegger, mas o ser. No entanto, a subjetividade que se nega (verleugnet) intervm-se em profisso de f objetivista. Este objetivismo tende determinao do ser como tautologia no mediatizada por conceitos nem designada imediatamente a partir do modelo da conscincia sensvel. Mas o ser o que o ser?, pergunta-se Heidegger, Isso isso mesmo (Es ist Es selbst). A pura repetio do nome, diz Adorno, toma o lugar de toda instncia crtica concernente o ser. Ou seja, Adorno age como quem segue Hegel na sua crtica ao ser como imediaticidade indeterminada (unbestimmte Unmittelbare) que sacrifica a relao ao conceito discursivo e toda individuao.

Introduo experincia intelectual de Theodor Adorno

Aula 3

Recapitulao

Na aula de hoje, continuaremos o comentrio da conferncia de 1931, A atualidade da filosofia. Lembremos mais uma vez da maneira com que a conferncia de Adorno comea:

Quem escolhe atualmente por ofcio o trabalho filosfico, deve renunciar desde o comeo a iluso que inicialmente animava os projetos filosficos: a de que seria possvel apreender (ergreifen) a totalidade da realidade (Wirklichen) atravs da fora do pensamento.J sabemos como esta conscincia, historicamente enraizada, do descompasso entre exigncias de sistematicidade do pensamento e uma realidade que parece resistir possibilidade de se deixar formalizar como totalidade ser o motor que levar Adorno a constituir a configurao de sua prpria experincia intelectual. O primeiro dado a respeito do qual a filosofia deve confrontar-se de maneira demorada a desintegrao da adequao (angemessen) entre pensamento (conceito) e ser (domnio do que se afirma como objetividade). Para Adorno, toda filosofia que pressupe tal adequao deve ser compreendida como idealista. Da porque uma das operaes mais recorrentes do texto consiste em mostrar como o espectro do idealismo ainda assombra a filosofia atual (atravs principalmente da fenomenologia).

Notemos como tal adequao entre pensamento e o domnio do que se afirma como objetividade , por um lado: a dissoluo da premissa da identidade entre sujeito e objeto, considerada pelo idealismo burgus como o pr-requisito para o conhecimento da verdade. Assim, toda filosofia que, de uma forma ou de outra, ainda pressupor nveis fundamentais de identidade entre sujeito e objeto s poder ser descrita por Adorno como idealismo. Neste sentido, Adorno no est longe de filsofos contemporneos, como Robert Brandom, que definem o idealismo como a perspectiva filosfica para a qual a estrutura do Eu duplica a estrutura do objeto, j que: a estrutura e unidade do conceito idntica estrutura e unidade do Eu. Uma estrutura formal que seria condio suficiente, e no apenas necessria, para a apreenso do contedo dos objetos da experincia. Da porque a perspectiva idealista necessariamente holista. Um holismo que Adorno critica ao afirmar que: A crise do idealismo equivale crise da pretenso filosfica totalidade.

Lembremos ainda que esta desagregao da experincia do mundo da qual parte Adorno tinha condies objetivas e sociais bastante claras. Adorno procura desde o incio operar uma passagem que consiste em mostrar como os impasses da sociedade burguesa se apresentam no interior dos prprios textos filosficos. O que no significa simplesmente que tais textos sejam produes ideologicamente comprometidas com modos hegemnicos de reproduo material da vida. Antes, trata-se de afirmar que eles so lugares privilegiados que deixam visveis, muitas vezes pela primeira vez, a extenso dos impasses e contradies presentes no interior das nossas prprias formas sociais de vida. Por isto, e amplamente possvel mostrar como a configurao do objeto de uma experincia filosfica temporalmente determinada expe a situao das condies de possibilidade de toda e qualquer experincia social. Trata-se simplesmente de insistir que toda e qualquer reflexo sobre as condies de possibilidade da experincia, ou seja, toda e qualquer reflexo sobre a validade transcendental dos nossos modos de conhecer, no pode deixar de sustentar-se em consideraes sobre as coordenadas sociais que interferem na maneira com que os objetos do mundo aparecem a um sujeito.

Assim, na aula passada, eu insistira no fato de um certo diagnstico histrico da modernidade aparecer como base privilegiada para a reflexo dos frankfurtianos. Ele vinha de Max Weber e de sua teoria da autonomia das esferas sociais de valores na modernidade. Weber insistia que o sentimento de desagregao e de indeterminao apareciam necessariamente como saldo dos processos de modernizao social e de desencantamento do mundo devido perda do poder de unificao social produzido pelas explicaes mtico-religiosas de mundo. A tenso entre a significao religiosa e a direo do mundo material levar necessariamente quilo que Weber chamava de autonomizao das esferas social de valores, ou seja, processo de autonomia cada vez maior entre os contedos normativos, as exigncias de validade e o desenvolvimento da arte, da cincia, da poltica e da economia. Processo este cujo resultado era a necessria fragmentao do campo de experincias.

No entanto, no s as explicaes mtico-religiosas de mundo haviam perdido sua fora unificadora. Para Adorno, aquilo que dcadas mais tarde a filosofia francesa contempornea chamar de metanarrativas, ou seja, explicaes globais de processos sociais atravs do recurso filosofias emancipatrias da histria no podiam mais fornecer garantias para qualquer experincia filosfica autntica fiel ao seu contedo de verdade. Contribua para isto o desaparecimento, no horizonte histrico, do proletariado como sujeito-objeto capaz de realizar as expectativas sociais de emancipao.

Diante deste quadro, Adorno fornecia inicialmente as coordenadas gerais para a crtica das duas correntes hegemnicas da filosofia alem que, de diferentes modos, ainda continuariam prisioneiras da premissa idealista da identidade entre sujeito e objeto. Adorno referia-se ao positivismo lgico do Crculo de Viena e a fenomenologia de Husserl e Heidegger (alm de Max Scheler).

Em sua crtica ao positivismo lgico, Adorno centra o foco em sua pretensa incapacidade de apreender de maneira correta o problema do sentido do dado (Gegebenheit que tambm pode ser traduzido em vrios casos por fato, condio, circunstncia), categoria fundamental de todo empirismo. Devido sua matriz hegeliana, Adorno no pode aceitar a premissa do imediatamente dado, ou seja, da existncia de proposies fatuais de base que forneceriam o fundamento ltimo para toda operao de saber. Premissa que nos levaria a: considerar as proposies derivantes da observao como a origem ltima do conhecimento.

Assim, quando Adorno afirma que o positivismo lgico parece ignorar como: o sujeito do dado no ahistoricamente idntico, transcendental, mas ele adquire forma (Gestalt) historicamente compreensvel e mutvel (wechselnde), ele insiste no fato de que as categoriais lgicas de estruturao do dado no so dedutveis transcendentalmente, no so o resultado de uma reflexo a respeito de condies a priori e ahistricas de possibilidade da experincia. Antes, elas so fruto de uma gnese emprica, de um processo histrico que constitui a pretensa naturalidade e essencialidade do meu modo de perceber, de apreender um objeto. Ignorar esta dimenso constitutiva do processo histrico em nossos modos de conhecer simplesmente sucumbir diante daquilo que Lukcs chamava poca de reificao, ou seja, tratar como imediatamente dado aquilo que resultado de um processo histrico e estrutural que se desenrola normalmente s costas das conscincias. Por outro lado, trata-se de uma maneira de conservar a premissa da identidade entre sujeito e objeto, mas sem o incmodo intelectual de necessitar expor a estrutura do conceito de sujeito que opera no interior da teoria.

No que diz respeito s crticas dirigidas a Husserl e Heidegger uma complexidade suplementar. Como disse na aula passada, a complexidade vem do fato de Husserl e Heidegger serem dois dos filsofos que mais receberam a ateno de Adorno durante todas as fases de sua produo intelectual.Isto indica a importncia que Adorno reconhece na filosofia dos dois, uma importncia advinda de uma certa partilha de problemas que unem os trs. Como havia dita, esta discusso ser retomada de maneira mais sistemtica em outras aulas. Por enquanto, podemos lembrar algumas crticas gerais endereadas por Adorno.

Grosso modo, o filsofo alemo afirma que a fenomenologia , no fundo: o esforo para alcanar, aps a decomposio dos sistemas idealistas e com o instrumento do idealismo, a ratio autnoma, uma ordem de ser cuja fiabilidade esteja assegurada para alm do nvel subjetivo. Em que pensa Adorno exatamente? Segundo ele (e aqui o exemplo maior Husserl), a fenomenologia continua tributria da identidade entre sujeito e objeto, mesmo que no se trate mais da identidade com o objeto natural, este objeto puro e simples que possui determinao livres de qualquer referncia ao subjetivo, mas com o objeto de uma apreenso intencional da conscincia e responsvel pelo processo de produo de sentido e da objetividade. Esta intencionalidade instaura a conscincia em uma relao de imediaticidade profunda com aquilo que fundamenta a objetividade. Imediaticidade que figura contempornea na crena entre sujeito e objeto. Pois conscincia necessariamente conscincia de alguma coisa, mas o objeto correlato conscincia ser sempre um objeto intencional.

Vocs devem conhecer o exemplo clssico de Husserl: a rvore pura e simples pode queimar, enquanto a rvore como objeto intencional no pode queimar, ela permanece enquanto princpio estvel de determinao de sentido. Dir Husserl: A rvore pura e simples, a coisa na natureza, tudo menos esse percebido de rvore como tal, que, como sentido perceptivo, pertence inseparavelmente percepo. A rvore pura e simples pode pegar fogo, pode ser dissolvida em seus elementos qumicos etc. Mas o sentido o sentido desta percepo, que algo necessariamente inerente essncia dela no pode pegar fogo, no possui elementos qumicos, nem foras, nem qualidades reais. De uma certa forma, esta distino estrita entre objeto natural (domnio dos fatos) e objeto intencional ser alvo constante das crticas de Adorno, isto desde sua dissertao de 1924 sobre a diferena entre o noemtica e o coisal em Husserl. Ele no pode aceitar que a questo do conhecimento seja reduzida ao problema de como a conscincia pode ter acesso a objetos transcendentes em geral. Por outro lado, sobre Heidegger, Adorno dir:

Ao invs da questo das idias objetivas e do ser objetivo, em Heidegger, ao menos em seus escritos publicados, a questo subjetiva que surge: a exigncia da ontologia material reduzida ao domnio da subjetividade e ela procura na profundeza desta o que ela no encontra na plenitude aberta da realidade (Wirklichkeit).

A princpio, dificilmente encontraramos colocao aparentemente mais distante de Heidegger do que esta acusao de subjetivismo. Afinal, a insistncia na categoria de Dasein no seria o resultado mais visvel da crtica heideggeriana a toda e qualquer metafsica da subjetividade? No exatamente Heidegger que afirma claramente: No o homem o essencial, mas o ser. Como veremos, uma das estratgias crtica que continuaro at o Adorno de maturidade ser insistir que a negao total do ser subjetivo animada, no fundo, por uma espcie de identificao com o agressor.A conscincia que sente a possibilidade de seu desaparecimento devido ao impacto scio-histrico da reificao acaba por assumir a necessidade de sua prpria dissoluo atravs da defesa do primado de um ser que seria outra figura do pensamento da identidade, identidade pensada, utilizando uma chave de leitura colocada em circulao por Derrida, como metafsica do ser enquanto presena. Veremos isto mais a frente de maneira mais sistemtica.Delineamentos de um programa

Feita estas colocaes, Adorno passa apresentao do que pode aparecer como seu prprio programa filosfico. E para tanto ele no deixa de comear afirmando que aps o fracasso do idealismo e de suas verses recalcitrantes no certo que a prpria filosofia como discurso seja ainda atual. Atualidade entendida aqui como possibilidade de responder a pergunta: Aps o fracasso dos ltimos grandes esforos, h ainda adequao entre as questes filosficas e a possibilidade de respond-las?. Notemos a maneira de enunciar a pergunta. Ela pressupe que h questes filosficas, que a filosofia no uma simples instncia de ordenamento e controle das cincias que no faria outra coisa que glosar e comentar os resultados de cincias empricas. No entanto, tais questes j esto presentes e circunscritas nas questes cientficas as mais precisas. Mas quais questes so estas? Podemos dizer, de maneira esquemtica, que se Heidegger havia elevado a questo do ser a problema filosfico fundamental, Adorno nunca abandonar a centralidade da reflexo sobre o problema da verdade (que, em suas mos, aparecer inclusive como categoria central da orientao de julgamentos estticos). Verdade no sentido daquilo que se impe como absolutamente necessrio, incondicional e categrico. Da porque: para Adorno, no exatamente dados a respeito de certo ou errado, mas julgamentos sobre verdade e falsidade eram o fundamento necessrio para a validao da teoria. Em uma era na qual a metafsica perdera toda legitimidade, Adorno continuava se perguntando sobre a questo metafsica.

No entanto, questes desta natureza exigem que a filosofia tenha uma atitude peculiar. Contrariamente cincia, modalidade de discurso que, ao menos segundo Adorno, aceitaria seus diagnsticos como resultados irredutveis e estveis em si mesmo, como descrio exata de estados de coisas resultante da lgica da descoberta e da investigao, a filosofia teria diante de si signos (Zeichen) a serem interpretados (Deutung). Mas lembremos, estes signos que devem passar por uma certa hermenutica so exatamente os dados que a cincia v como descries exatas de estados de coisas. Ou seja, no uma diferena de objeto que separa a cincia e a filosofia, mas uma diferena de abordagem em relao aos mesmos objetos.

Mas a hermenutica filosfica nada tem a ver alguma forma de arqueologia do sentido. Como dir Adorno, a tarefa da filosofia no consiste em mostrar que a realidade portadora de sentido, procurando com isto construir totalidades atravs do recurso a alguma espcie de segundo mundo a ser descoberto atravs da anlise do mundo que aparece. A hermenutica filosfica, para Adorno, nada tem a ver com uma hermenutica que procura reduzir as questes a elementos dados e conhecidos presentes em um plano superior de inteligibilidade. Ao contrrio, devemos compreender que: o texto que a filosofia tem para ler incompleto, contraditrio e despedaado. No entanto, esta incompletude, esta contradio, este despedaamento so ndices claros da verdade do que aparece filosofia como seu ob


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