PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Direito
Núbio Pinhon Mendes Parreiras
Culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial? A questão do
criminal compliance.
Belo Horizonte
2021
Núbio Pinhon Mendes Parreiras
Culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial? A questão do
criminal compliance.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Henrique Viana Pereira
Coorientador: Prof. Dr. Pablo Alves de Oliveira
Área de concentração: Democracia, Liberdade e
Cidadania.
Belo Horizonte
2021
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Parreiras, Núbio Pinhon Mendes
P258c Culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial?: a questão do criminal compliance / Núbio Pinhon Mendes Parreiras. Belo Horizonte, 2021. 135 f.
Orientador: Henrique Viana Pereira Coorientador: Pablo Alves de Oliveira
Mestre (Dissertação) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito
1. Compliance - Brasil. 2. Culpabilidade. 3. Vulnerabilidade. 4. Princípio da seletividade. 5. Globalização. 6. Corrupção passiva - Brasil. 7. Responsabilidade penal. 8. Governança corporativa. I. Pereira, Henrique Viana. II. Oliveira, Pablo Alves de. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. IV. Título.
CDU: 343.5 Ficha catalográfica elaborada por Fernanda Paim Brito - CRB 6/2999
Núbio Pinhon Mendes Parreiras
Culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial? A questão do
criminal compliance.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito.
Área de concentração: Direito Público
__________________________________________________________________ Prof. Dr. Henrique Viana Pereira – PUC Minas (Orientador)
__________________________________________________________________ Prof. Dr. Júlio César Faria Zini – UFMG (Banca
Examinadora)
__________________________________________________________________
Prof. Dr. Pablo Alves de Oliveira – PUC Minas (Coorientador e Suplente)
Belo Horizonte, 05 de fevereiro de 2021.
À Juju e ao nosso Ian, por toda compreensão e amor.
AGRADECIMENTOS
Duas ou três laudas não seriam suficientes para elencar todos os agradecimentos
devidos, de forma a se tornar inviável o fazer aqui. Contudo, a algumas pessoas parece
imprescindível. Como aos professores doutores Luciano Santos Lopes e Eduardo Saad-
Diniz pela atenção despendida a um desconhecido. Ao Prof. Dr. Domingos Sávio Calixto
e ao Prof. Ms. Leonardo Avelar Guimarães pelas constantes e frutíferas trocas de ideias.
Ao amigo Alisson de Sousa Dias, por todas as reflexões compartilhadas desde o 1º
período da graduação. A todos os colegas e aos professores do Programa de Pós
Graduação em Direito da Puc-Minas, em especial aos professores doutores Guilherme
Coelho Colen, Klelia Canabrava Aleixo, Cláudio Roberto Cintra Bezerra Brandão, Lucas
de Alvarenga Gontijo, por todos os debates gentilmente compartilhados. Aos meus
queridos orientador e coorientador, Prof. Dr. Henrique Viana Pereira e Prof. Dr. Pablo
Alves de Oliveira, por toda a atenção e paciência com as minhas inquietantes pretensões
de estudo, não tenham dúvida, o método com que me orientaram foi fundamental para a
conclusão da pesquisa. Aos meus familiares, avós Zózimo e Nelma (sempre presente),
irmãos Henrique, Nelsinho e Arthur, pais Núbio e Nelma Regina (sempre presente), e às
razões da minha existência, Juju e Ian, por todo o apoio e carinho incondicionais.
(...) pelo aperfeiçoamento da teoria da culpabilidade mede-se o progresso do Direito
Penal. (Franz von Liszt)
RESUMO
O criminal compliance tem se apresentado como uma poderosa ferramente para assegurar
a prevenção de riscos criminais, de modo a assumir posição de destaque na sociedade do
risco marcada pela globalização financeira, cenário que proporcionou a expasão da
repressão penal empresarial. Entretanto, é necessário atentar que a necessidade de
prevenção de riscos criminais também é uma realidade para empresas menores, sobretudo
diante da seletividade penal, que não é restrita ao Direito Penal tradicional. Apesar disto,
fatores como a baixa condição financeira e/ou cultural (baixo grau de instrução) impedem
o acesso das pequenas empresas aos programas de criminal compliance, evidenciando a
sua vulnerabilidade penal. Neste sentido, a teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade
torna-se um importante instrumento de redução de danos causados pela seletividade
penal, inclusive em face da questão do não acesso aos programas de criminal compliance.
Portanto, a presente pesquisa investigará a viabilidade da teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade em face do criminal compliance, e alguns aspectos criminológicos,
político-criminais e dogmáticos em torno da questão.
Palavras-chave: Criminal compliance; culpabilidade pela vulnerabilidade; seletividade
penal; globalização financeira; sociedade do risco.
ABSTRACT
The Criminal compliance has been presented as a powerful tool to ensure the prevention
of criminal risks, in order to assume a prominent position in the risk society marked by
financial globalization, a scenario that has provided the expansion of corporate criminal
repression. However, it is necessary to note that the need to prevent criminal risks is also
a reality for smaller companies, especially in view of criminal selectivity, which is not
restricted to traditional criminal law. Although that, factors such as low financial and / or
cultural conditions (low level of education) prevent small businesses from accessing
criminal compliance programs, highlighting their criminal vulnerability. In this sense, the
theory of culpability by vulnerability becomes an important instrument to reduce the
damage caused by criminal selectivity, including in the face of the issue of non-access to
criminal compliance programs. Therefore, this research will investigate the viability of
the theory of culpability by vulnerability in the face of criminal compliance, and some
criminological, political-criminal and dogmatic aspects around the issue.
Keywords: Criminal compliance; culpability by vulnerability; criminal selectivity;
financial globalization; risk society.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABBI (Associação Brasileira de Bancos Internacionais);
AP (Ação Penal);
Art. (Artigo);
BGH (Bundesgerichtshof - Tribunal Federal Alemão);
CDC (Código de Defesa do Consumidor);
CGU (Controladoria Geral da União);
COAF (Conselho de Controle de Atividade Financeira);
CP (Código Penal);
CPP (Código de Processo Penal);
CR/88 (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988);
DOJ (Departament of Justice);
FCPA (Foreign Corrupt Practices Act - Lei de Práticas de Corrupção no Exterior);
FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos);
GAFI (Grupo de Ação Financeira Internacional);
IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais);
ISO (International Organization for Standardization);
MP (Ministério Público);
OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico);
PIB (Produto Interno Bruto);
SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas);
SMPE (Secretaria da Micro e Pequena Empresa);
STF (Supremo Tribunal Federal);
STJ (Superior Tribunal de Justiça);
TAC (Termo de Ajustamento de Conduta);
TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais);
TJRS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul).
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ......................................................................................... 12
2. BASES CRIMINOLÓGICAS DA TEORIA DA CULPABILIDADE
PELA VULNERABILIDADE .................................................................. 15
2.1 O positivismo criminológico ....................................................................... 15
2.2 O paradigma da reação social ...................................................................... 18
2.3 A crítica criminológica e seus discursos ...................................................... 20
3. A TEORIA DA CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE .... 24
3.1 O princípio da coculpabilidade e as suas limitações ................................... 25
3.1.1 A sua dispersa recepção legal e jurisprudencial no Brasil ..................... 31
3.1.2 As limitações do princípio da coculpabilidade ...................................... 37
3.2 A estrutura e o foco originário da culpabilidade pela vulnerabilidade ........ 40
3.3 Os dois grandes grupos dos fatores de vulnerabilidade ............................... 43
3.3.1 A posição ou estado de vulnerabilidade ................................................ 43
3.3.2 O esforço pessoal para a vulnerabilidade .............................................. 45
4. A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL EMPRESARIAL E O
COMPLIANCE .......................................................................................... 47
4.1 O paradigma sociológico da sociedade de risco e a globalização financeira
...................................................................................................................... 48
4.2 A expansão da repressão penal empresarial ................................................. 55
4.3 O instituto do criminal compliance: panorama geral .................................. 62
4.3.1 A questão do overcompliance ............................................................... 68
4.4 A acrítica importação periférica dos discursos do centro ............................ 70
4.5 A função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito e os ataques
que recebe .................................................................................................... 73
4.6 Resistências à culpabilidade pela vulnerabilidade aplicada ao Direito Penal
empresarial ................................................................................................... 78
5. A FALTA DE ACESSO A PROGRAMAS DE COMPLIANCE COMO
EVIDÊNCIA DE VULNERABILIDADE ............................................... 80
5.1 Compliance para micro e pequenas empresas ............................................. 81
5.1.1 Competitividade no mercado ................................................................. 81
5.1.2 Exigências legais ................................................................................... 84
5.1.3 Gestão de riscos em micro e pequenas empresas .................................. 87
6. A CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE EM FACE DO
CRIMINAL COMPLIANCE ...................................................................... 92
6.1 A estrutura da culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal
compliance e o seu foco ............................................................................... 93
6.2 Os dois grandes grupos dos fatores de vulnerabilidade em face do criminal
compliance ................................................................................................... 94
6.2.1 A posição ou estado de vulnerabilidade em face do criminal compliance
................................................................................................................ 95
6.2.2 O esforço pessoal para a vulnerabilidade em face do criminal compliance
................................................................................................................ 98
6.3 A contenção do poder punitivo pela culpabilidade pela vulnerabilidade em
face do criminal compliance ...................................................................... 100
7. CONCLUSÃO .......................................................................................... 104
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 112
ANEXO Sentença que reconheceu o princípio da coculpabilidade, proferida em 14 de
janeiro de 2013, pela 3ª Vara Criminal da Comarca de Uberlândia, nos autos de n.
0702.11.020753-8, pelo juiz Antônio José F. de S. Pêcego ......................................... 125
12
1 INTRODUÇÃO
O presente cenário econômico-político de globalização financeira da chamada
sociedade de risco, que nos é imposto e avança paulatinamente há pelo menos três
décadas, vem promovendo profundas transformações jurídicas, notadamente na seara
criminal, com uma pauta de criminalizações primária e secundária sem precedentes,
inclusive no Direito Penal econômico/empresarial.
Com efeito, diante deste quadro de intensa persecução criminal empresarial, o
mundo corporativo tem apresentado programas de criminal compliance como
ferramentas para a prevenção de riscos de práticas criminais no pelos atores das pessoas
jurídicas, a partir de um discurso oficial de reforçar um alinhamento ao Direito.
Não obstante, diante do elevado custo econômico e cultural dos programas de
integridade, aos pequenos negócios este poderoso produto corporativo não tem estado à
disposição, os deixando vulneráveis à uma poderosa agenda de criminalização, capaz de,
inclusive, comprometer os ideais mercadológicos da livre concorrência, inviabilizando o
ingresso dos menores.
Ora, é forçoso reconhecer a dificuldade, financeira e/ou cultural, de, por
exemplo, uma pequena joalheria ou mercearia familiar contratar um programa de
integridade para prevenir riscos de possíveis injustos penais de lavagem de capitais,
crimes contra o direito do consumidor etc.
Acrescente-se à problemática a patente seletividade estrutural que define a
atuação do aparelho penal, notadamente em localidades de economia periférica, como o
Brasil, inclusive nas persecução criminal econômica/empresarial.
Atento a isto, esta pesquisa pretende, a partir de uma metodologia dedutiva com
as revisões bibliográficas, investigar o potencial de uma teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade, com uma feição empresarial, focada nesta questão do criminal
compliance, como possível instrumento de redução de danos à referida política criminal.
Para tanto, entende-se necessária, uma rápida análise da evolução dos
paradigmas criminológicos, para denunciar a presente filiação das agências penais
brasileiras ao positivismo criminológico como a principal responsável por impedir a
recepção da teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade não apenas no Direito Penal
tradicional, mas, sobretudo, no econômico/empresarial.
Este objetivo será incumbência do no capítulo 2, que, estudando as “Bases
criminológicas da teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade”, iniciará com o
13
“positivismo criminológico”, para compreendê-lo como habitat natural da
coculpabilidade. Após, será visitado o “paradigma da reação social”, que é a base
fundante da “criminologia crítica”, matriz que viabilizou o surgimento da teoria da
culpabilidade pela vulnerabilidade.
Daí a dificuldade do próprio princípio da coculpabilidade, base para a
culpabilidade pela vulnerabilidade, se consolidar na literatura jurídica e jurisprudência
brasileiras.
Não por outra razão se mostra necessário, no capítulo 3, o estudo do “princípio
da coculpabilidade e as suas limitações”, advindas principalmente do determinismo
economicista, impedindo-o de atingir os objetivos que propõe e inclusive de ter a devida
recepção jurisprudencial e legal, estudado no item “A sua dispersa recepção legal e
jurisprudencial no Brasil”.
Por outro lado, será possível constatar que o princípio da coculpabilidade foi o
percurssor para o desenvovimento, por Eugenio Zaffaroni, da teoria culpabilidade pela
vulnerabilidade e, após, finalmente, adentrar no item “A estrutura e o foco originário da
culpabilidade pela vulnerabilidade”.
Nele, será constatado que é formada por “dois grandes grupos dos fatores de
vulnerabilidade”, tanto “a posição ou estado de vulnerabilidade”, quanto pelo “esforço
pessoal para a vulnerabilidade”, fatores interdependentes para o tratamento da questão.
Importante também, adiante, estudar, no capítulo 4, “A expansão do Direito
Penal empresarial”, para, assim identificá-la como condição lógica para a estruturação e
propagação, em nível global, dos programas de criminal compliance, de sorte a, com isto,
ser possível uma análise mais detida do instituto.
Antes, porém, uma atenção especial ao “paradigma sociológico da sociedade de
risco e a globalização financeira” lançará luzes para melhor compreender a “expansão da
repressão penal empresarial” e, finalmente, investigar “O instituto do criminal
compliance: panorama geral”, bem como “A questão do overcompliance”, extremamente
elucidativa para compreender os meandros da integridade corporativa a nível macro.
Ainda no no capítulo 4, válido atentar para “A acrítica importação periférica dos
discursos do centro”, tópico que, acrescido do “A função do Direito Penal no Estado
Democrático de Direito e os ataques que recebe”, esclarecerá um pouco melhor as
recentes mutações da repressão penal brasileira e, finalmente, adentrarmos no item
“Resistências à culpabilidade pela vulnerabilidade aplicada ao Direito Penal
empresarial”.
14
A partir desta base será possível aprofundar, no capítulo 5, na “falta de acesso a
programas de compliance como evidência de vulnerabilidade”, compreendendo,
primeiramente, a necessidade e importância, ao menos em tese, dos programas de
integridade para os pequenos negócios, no item “Compliance para micro e pequenas
empresas”, a partir das imposições da “Competitividade no mercado”, das “Exigências
legais” e da necessidade de “Gestão de riscos em micro e pequenas empresas”.
Só assim, e, finalmente, se tornará viável entender, no capítulo 6, a possibilidade
de uma teoria da “culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal compliance”,
com o estudo da “estrutura da culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal
compliance e o seu foco”, a partir dos “dois grandes grupos dos fatores de vulnerabilidade
em face do criminal compliance”, a ponto de constatar que há sim, existência de
vulnerabilidade empresarial, notadamente uma “posição ou estado de vulnerabilidade em
face do criminal compliance”, assim como o “esforço pessoal para a vulnerabilidade em
face do criminal compliance”, onde serão analisadas situações concretas do cotidiano do
pequeno empresário.
Por fim, ainda no capítulo 6, será constatada a necessidade de “contenção do
poder punitivo pela culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal compliance”,
quando de algumas possibilidades de combinações dos dois grupos de fatores de
vulnerabilidade, especificamente com a ausência de acesso aos programas de criminal
compliance.
15
2 BASES CRIMINOLÓGICAS DA TEORIA DA CULPABILIDADE PELA
VULNERABILIDADE
A elaboração da teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade (ZAFFARONI,
2010, p. 268 e ss.) pressupõe toda uma evolução do pensamento criminológico,
especialmente a partir da definitiva superação do positivismo criminológico com o
surgimento do arcabouço teórico do paradigma do Labeling Approach, também
conhecido como da reação social ou rotulacionismo/etiquetamento, conforme ensinado
por Batista (2015, p. 75).
Sem a referida superação teórica, a compreensão da culpabilidade pela
vulnerabilidade, se surgisse, emergiria sem qualquer alicerce, extremamente frágil a
qualquer discurso.
Registre-se, por oportuno, que no tocante à vulnerabilidade, a primeira proposta
de responder referida demanda emergiu do princípio da coculpabilidade, que, elaborado
anteriormente à Criminologia Crítica – apresentada por Alessandro Baratta (2016) –, fora,
portanto, influenciada pela chamada Criminologia Liberal1, na medida em que a feição
liberal também – especialmente a partir de seu revigoramento com o paradigma da reação
social – visa conter o avanço do poder punitivo estatal.
No capítulo seguinte esta questão será melhor aprofundada, bem como a
insuficiência do princípio da coculpabilidade para dar conta do problema da
vulnerabilidade, exigindo , assim, uma correção realizada pela teoria da culpabilidade
pela vulnerabilidade (ZAFFARONI, 2010, p. 268 e ss.), que fora influenciada, também,
pela crítica criminológica (CARVALHO, 2018, p. 235).
Neste sentido, mostra-se relevante e suficiente um rápido estudo sobre o
paradigma positivista na criminologia, bem como na sua necessária superação seguida da
crítica, para, assim, viabilizar uma melhor compreensão da teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade.
2.1 O positivismo criminológico
Não parece razoável menosprezar os benefícios trazidos pelo positivismo
científico para a humanidade, na medida em que proporcionou importantes avanços em
1 Baratta (2016, p. 147) denomina Liberal, acertamente, todas as teorias criminológicas desenvolvidas fora da tradição da Crítica.
16
variados campos dos saberes, sobretudo nas ciências sociais, tal qual o da secularização
dos discursos políticos e científicos.
Não obstante, é imperioso reconhecer as limitações do positivismo científico, de
tal sorte que “também representa uma atualização, um continuum e até uma sofisticação
dos esquemas classificatórios, hierarquizantes, produzidos pela colonização do mundo
pelo capital” (BATISTA, 2015, p. 41).
Diante dos estreitos limites desta pesquisa, se torna inviável um aprofundamento
acerca do desenvolvimento do positivismo científico em geral – notadamente sobre o seu
florescimento no século XIX – a tal ponto de exigir um corte epistemológico focado nas
especificidades do positivismo criminológico, que aqui nos interessa.
Assim, Alessandro Baratta apresentou uma definição acerca do positivismo
criminológico:
(...) as teorias patológicas da criminalidade, ou seja, as teorias baseadas sobre as características biológicas e psicológicas que diferenciariam os sujeitos ‘criminosos’ dos indivíduos ‘normais’, e sobre a negação do livre arbítrio mediante um rígido determinismo. Estas teorias eram própias da criminologia positivista que, inspiradas na filosofia e na psicologia do positivismo naturalista, predominou entre o final do século passado e princípios deste. (BARATTA, 2016, p. 29)
Nesta esteira, o surgimento do positivismo criminológico se deu no final do
século XIX, sob a perspectiva do paradigma etiológico, na medida em que se pautava na
investigação das causas da criminalidade, com uma inspiração calcada,
predominantemente, em “teorias positivistas biológicas (genéticas, psicológicas,
psiquiátricas etc.)” (CIRINO DOS SANTOS, 2008, p. 04).
Daí que, não por outra razão, um dos mais destacados teóricos do positivismo
criminológico não era proveniente das ciências sociais, mas um médico, qual seja o
italiano Cesare Lombroso (1835-1909).
E não poderia ser diferente, na medida em que Lombroso (2007) dedicou toda a
sua vida pesquisando alvos do sistema de justiça criminal, a fim de verificar a existência
de causas biológicas para o desvio
Assim, visitando pessoas presas e cadáveres em presídios e necrotérios,
Lombroso as media, pesava e as classificava, a tal ponto de conseguir explorar o método
positivista às suas últimas consequências, produzindo uma pesquisa impecável sob o
ponto de vista da disciplina positivista.
17
Com efeito, é válido destacar que o discurso criminológico positivista
lombrosiano teve um importante discípulo em terras brasileiras, o médico chamado
Raimundo Nina Rodrigues, que desenvolveu relevantes investigações no final do século
XIX, como “As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil” e “Os africanos no
Brasil” (ZAFFARONI, 2010, p. 42/43).
Desde este contexto, a primeira espinha dorsal da escola do positivismo
criminológico é exatamente o determinismo (biológico), questionando o livre-arbítrio
defendido pela Escola Liberal Clássica.
Não obstante, é importante observar que o sistema criminal, quando orientado
pelo determinismo positivista, percebe o fenômeno da criminalidade de forma dual,
dividindo a sociedade em dois grandes grupos: os cidadãos “normais” (imunizados) e os
“anormais” (criminalizados), conforme bem observado por Pedrinha (2009, p. 117).
Daí que, com efeito, em que pese a sua superação teórica – como se estudará a
seguir – esta percepção positivista está instalada no senso comum, conforme bem
escreveu Roberta Pedrinha:
Os valores do Positivismo Criminológico estão espraiados, quer seja no preconceito, quer seja na forma de rotular e estigmatizar os indivíduos, quer seja pelo desenvolvimento do modelo científico, quer seja pelo ideal de superioridade, higiene e beleza, finalmente, quer seja na dicotomia dos gêneros, de seus papéis sociais e sexuais, apoiados em ‘verdades biológicas’. (PEDRINHA, 2009, p. 111)
É interessante observar que, notadamente no Brasil, o positivismo mantém sua
presença em variados campos dos saberes sociais:
O positivismo é uma grande permanência no pensamento social brasileiro, seja na criminologia, na sociologia, na psicologia ou no Direito. Muito mais do que uma escola de pensamento, constitui-se numa cultura. (BATISTA, 2015, p. 41)
A partir disto, como não poderia ser diferente, conforme destacado por Salo de
Carvalho, é este o saber criminológico que foi instalado não apenas no ensino das
faculdades, mas, sobretudo, nas agências punitivas estatais brasileiras:
As premissas da criminologia etiológica atuarão, nos sistemas de interpretação e valoração das provas nos processos de execução – e em determinados casos nos processos de cognição (v.g. exames de periculosidade nos incidentes de insanidade mental) –, como valorações hierarquicamente superiores,
18
vivificando os sistemas inquisitoriais das provas tarifadas. (CARVALHO, 2015, p. 39/40)
Com efeito, o positivismo criminológico é alicerçado no famigerado “Direito
Penal do Autor”, ao invés do “Direito Penal do Fato”. Assim, pune-se pelo que é, mas
não pelo que foi feito.
Muito embora inúmeros discursos2 tenham chegado a questionar o positivismo
crimininológico primevo aqui esboçado, o grande giro epistemológico só foi possível com
o paradigma da reação social (BARATTA, 2016, p. 85 e ss.), a seguir estudado.
2.2 O paradigma da reação social
Com efeito, houve sucessivas investidas de variados discursos que se
candidataram para desqualificar o positivismo criminológico, todos constatando as
incoerências e contradições daquele paradigma vigente (BARATTA, 2016; CIRINO
DOS SANTOS, 2008; BATISTA, 2015).
Ou seja, percebendo a insuficiência da biologia (e demais saberes afins como os
chamados psi) para explicar as causas da criminalidade, com a mera proposição de análise
de características físicas e/ou psicológicas dos indivíduos rotulados como “delinquentes”,
o positivosmo criminológico se desestabilizava teoricamente.
Como se não bastasse, como se extrai de Cirino dos Santos (2008) a grande
questão do positivismo criminológico residia exatamente no método escolhido, ou seja, o
positivista. Assim, não obstante ser inquestionável a genialidade de seus teóricos
(sobretudo Lombroso), se viram limitados pelo caminho/método adotado.
E foi da sociologia – notadamente nos Estados Unidos – que se emergiu a mais
fina crítica ao então vigente paradigma criminológico. Neste sentido, começou-se a
perceber estas questões logo no início do século XX, deslocando as lentes, na pesquisa
criminológica, do indivíduo “criminoso”, para o sistema de criminalização, a ponto de
chegar ao seu ápice com a noção do chamdo labeling approach, ou teoria do
rotulacionismo (etiquetamento).
2 Baratta (2016) traz uma minuciosa pesquisa sobre referidos discursos, demonstrando alguns inclusive extremamente vigorosos, como o sociológico da teoria estrutural-funcionalista (BARATTA, 2016, p. 59 e ss.), contudo, insuficientes para a superação do positivismo criminológico.
19
Portanto, do paradigma etiológico (patologizarnte) passou-se para o da reação
social (ou do rotulacionismo), consagrando-se, sem dúvida, como uma das mais
importantes revoluções teórico-criminológicas:
Ocorre, então, uma redefinição radical do objeto da criminologia. O criminoso não é ponto de partida, é locus de análise de uma realidade socialmente construída. Baratta pontua que se a pergunta do positivismo era “quem é o criminoso?”, a do rotulacionismo seria “quem é definido como criminoso?” O rotulacionismo seria o estudo da “formação da identidade desviante” e das agências de controle social. (BATISTA, 2015, p. 75)
Com efeito, os veículos criminalizadores constituem importante alicerce para o
rotulacionismo:
Na perspectiva do labelling approach, o rótulo delitivo é designado ao indivíduo pelos veículos criminalizadores que configuram formal e informalmente o controle social – p. ex., meios de comunicação, veículos culturais, agência policial, estruturas jurídicas. A identificação do autor do delito com o rótulo promove a essencialização do criminoso, ou seja, o sujeito é esquecido e no lugar da sua identidade histórica é congelada a memória do ato delitivo. O efeito é o de que o episódio crime se confunde com a própria vida do seu autor. O rótulo do crime totaliza o passado, o presente e o futuro, sendo toda a complexidade do homem reduzida a um único e exclusivo ato. Nas palavras de Jock Young, estes mecanismos de essencialização procedem a partir de uma ênfase hiperbólica a determinadas características individuais que permitem traçar contornos claramente delineadores que sugerem que o ser do sujeito essencializado é fixo e irresoluto. (CARVALHO, 2018, p. 230)
Registre-se o pensamento de Howard Becker, notadamente em 1963, quando
publicou a obra Outsiders: studies in the sociology of deviance, assim sintetizando as
ideias:
Tal suposição me parece ignora o fato central sobre o desvio: ele é criado pela sociedade. Eu não quero dizer isto da maneira em que é normalmente entendida, em que as causas do desvio estão localizadas na situação social do desviante ou em ‘fatores sociais’ que induzem sua ação. Quero dizer, em vez disto, que os grupos sociais criam o desvio estabelecendo as normas cuja infração constitui desvio, e aplicando estas normais a determinadas pessoas e as rotulando de outsiders. Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, mas uma consequência da aplicação de normas e de sanções a um ‘delinquente’, por parte de outras pessoas. O desviante é uma pessoa à qual a rotulação foi aplicada com sucesso; o comportamento desviante é um comportamento de uma pessoa que foi rotulada.3 (tradução livre de BECKER, 1997, p. 8-9)
3 No original: Such an assumption seems to me to ignore the central fact about deviance: it is created by
society. I do not mean this in the way it is ordinarily understood, in which the causes of deviance are located
in the social situation of the deviant or in ‘social factors’ which prompt his action. I mean, rather, that
social groups create deviance by making the rules whose infraction constitute deviance, and by applying
those rules to particular people and labeling them as outsiders. From this point of view, deviance is not a
20
Observe-se que, no paradigma da reação social, o fenômeno da criminalidade
começou a ser visto de uma forma nunca antes sequer imaginada, promovendo uma
ruptura extremamente drástica e relevante na pesquisa criminológica, de tal sorte a
inverter o objeto de análise – do indivíduo para o sistema – e transformar o criminoso em
criminalizado.
Ou seja, “a criminalidade não é um atributo ontológico de uma determinada
conduta, mas o resultado da reação que a coletividade teve diante dessa conduta. Se não
há reação, a pessoa não é um criminoso, o crime inexiste.” (CASTILHO, 1996, p. 11)
É importante destacar que, como ensina Batista (2015, p. 78), no Brasil o mais
importante estudioso do rotulacionismo foi o advogado Augusto Thompson, autor de
obras como “Quem são os criminosos?” – o crime e o criminoso: entes políticos; e “A
questão penitenciária no Brasil”.
Portanto, enquanto a criminologia tradicional investigava a criminalidade a
partir do indivíduo, o labeling approach o estudava sob a perspectiva do
rotulacionismo/etiquetamento que sempre fora realizado pelas instituições penais sobre
determinadas pessoas como criminosas/desviantes.
E foi a partir deste novo paradigma que surgiu a criminologia crítica, como será
estudado.
2.3 A crítica criminológica e seus discursos
Não obstante a revolução criminológica provocada pelo labeling approach, a
exemplo das teorias antecedentes, também se mostrou insuficiente para a questão
criminológica.
E foi nesta esteira que surgiu a criminologia crítica, de tal sorte a, alicercada no
rotulacionismo, embasar sua pesquisa não no discurso oficial dos sistema penal, mas nas
suas reais funções frequentemente ocultadas (CIRINO DOS SANTOS, 2008, p. 121).
Com efeito, a crítica criminológica popularizou-se no final da década de 19604,
após as evoluções da “criminologia radical”, nos Estados Unidos da América (ano de
quality of the act the person commits, but rather a consequence of the application by others of rules and
sanctions to an ‘offender’. The deviance is one whom that label has successfully been applied; deviant
behavior is behavior that people so label. 4 Necessário registrar que, a partir de pesquisas recentes de Eugênio Raul Zaffaroni (O nascimento da
criminologia crítica: Spee e a cautio criminalis. Trad. Augusto Jobim do Amaral e Eduardo Baldissera
21
1968) e, no Reino Unido, da “nova criminologia” (também em 1968), conforme se extrai
de Andrade (2012, p. 88/96). Já para o restante da Europa foi através do esforço de
Alessandro Baratta que viabilizou a divulgação.
Ocorre que, em que pese a tardia difusão, como destaca Neder (2004, p. 11/12),
ainda na década de 1930, Georg Rusche já desenvolvia uma pesquisa extremamente
consistente, não obstante sem ter tido a obra introdução ou sequer conclusão. A partir daí,
tal projeto é posteriormente retomado e concluído por Otto Kirchheimer – advogado e
teórico da Escola de Frankfurt, ou Escola Crítica – com o título de “Pena e estrutura
social” (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004).
Infelizmente, durante muitos anos referida obra (RUSCHE e KIRCHHEIMER,
2004) ficou “desconhecida”, consistindo em legítimo produto da criminologia crítica.
Assim, apenas no final da década de 1960 que a criminologia crítica teve suas bases
prontamente definidas e divulgadas, inicialmente, como já adiantado, nos Estados Unidos
da América e no Reino Unido.
A criminologia crítica, em linhas gerais, conforme se extrai de Batista (2015) e
Andrade (2012) abarca variadas vertentes, como a radical, a nova, a de raízes, a da
libertação, a feminista etc.
Nesta esteira, a estrutura crítica criminológica é extremamente ampla e
diversificada, de tal sorte a albergar, a título de ilustração, tanto a relação do sistema
penitenciário com a “domesticação disciplinar” do sujeito (FOUCAULT, 2014), quanto
com os interesses do poder econômico (MELOSSI e PAVARINI, 2006; RUSCHE e
KIRCHHEIMER, 2004).
A rigor, a criminologia crítica, apesar de sua solidez, sempre esteve aberta
(inclusive ética e esteticamente) para novas contribuições, uma vez que coloca o homem
no centro, possibilitando, assim, acompanhar os novos problemas que eventualmente
surjam na sociedade. (ANDRADE, 2012, p. 72/73)
Portanto, sendo um saber aberto, não há que se falar em um “rol taxativo”
quando se fala em “discursos da criminologia crítica”. Pelo contrário, a crítica
criminológica, para identificar as funções reais/ocultas do sistema criminal, contrapondo-
Carvalho Salles. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.), o autor constatou que Friedrich Spee, já no início do Séc. XVII, no seu Cautio Criminalis oder Rechtliches Bedenken wegen der Hexenprozesse, formulava um discurso crítico-criminológico em face da Inquisição Eclesiástica. Portanto, o presente trabalho foca nos discursos criminológicos contemporâneos, muito embora Zaffaroni constate nesta obra que pelo menos desde este período já havia criminologia crítica.
22
as às oficiais/declaradas, exige uma frequente atualização dos discursos e elaboração de
novos seguimentos para darem conta das transformações sociais.
No que tange às funções do sistema penal, constata-se, com as lentes da crítica
criminológica, que as funções oficiais/declaradas – de contenção da criminalidade,
promoção da segurança pública etc. – são diametralmente contrárias às reais/ocultadas,
exatamente no sentido de manter a insegurança, a exclusão político-econômica, a
criminalidade etc.
A partir de uma perspectiva do materialismo histórico da criminologia crítica –
que foi muito importante para fundar este paradigma criminológico –, estas questões
foram demonstradas por Juarez Cirino dos Santos:
As funções reais do aparelho penal, [são] de reprodução das condições de produção (separação trabalhador/meios de produção), de garantia da exploração capitalista (relações de produção), com as consequências de marginalização social e desarticulação política da força de trabalho excedente, somado ao fracasso da ideologia penitenciária (controle da criminalidade e correção do criminoso) (...) (CIRINO DOS SANTOS, 2008, p. 121)
Registre-se, por oportuno, que a tradição da criminologia crítica histórico-
materialista – explorada por Melossi e Pavarini (2006), Rusche e Kirchheimer (2004),
entre outros –, sob o ponto de vista jurídico5, recebeu influência do teórico russo Evguiéni
Pachukanis (1891-1937), que apontava que as promessas do discurso oficial locupletam
as massas populares:
O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem totalmente conveniente para a burguesia, pois substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde das massas o domínio da burguesia. A ideologia do Estado jurídico é mais conveniente que a religiosa, porque ela, além de não refletir a totalidade da realidade objetiva, ainda se apoia nela. A autoridade como ‘vontade geral’, como ‘força do direito’, na medida em que se realiza na sociedade burguesa representa um mercado. (PACHUKANIS, 2017, p. 148) (...) De resto a justiça burguesa coloca todo seu empenho para que o contrato com o infrator cumpra-se de acordo com todas as regras da arte, ou seja, para que cada um possa verificar e garantir que o pagamento seja feito com justiça (princípio da publicidade do processo judicial), para que o infrator possa negociar livremente (princípio do contraditório), para que, com isso, possa usar os serviços de um profissional judiciário experiente (direito de ser representado por um advogado) etc. Em resumo, o Estado estabelece com o infrator no quadro leal de um negócio comercial, e é nisso que consiste a assim chamada garantia do processo penal. (PACHUKANIS, 2017, p. 179)
5 No Brasil, o filósofo do Direiro Alysson Mascaro desenvolve suas pesquisas com forte inspiração na trajetória de Evguiéni Pachukanis, a tal ponto de afirmar (MASCARO, 2016, p. 63/78), dentre tantas outras coisas, que o estudo da norma jurídica nos mostra que, para ser efetiva, no moderno Estado de Direito (capitalista), precisa do aval do poder econômico.
23
Com efeito, dentre as variadas vertentes da criminologia crítica, foi a de Eugênio
Raul Zaffaroni – que não é histórico-materialista, registre-se – que melhor desenvolveu a
teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade (ZAFFARONI, 2010, p. 268 ss.),
aprimorando, assim, o princípio da coculpabilidade que surgiu com a teoria criminológica
liberal.
24
3 A TEORIA DA CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE
A teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade, não obstante sua relevância para
a individualização da pena, é constantemente neglicenciada pela literatura jurídica e
jurisprudência nacionais.
Referida teoria reconhece que o sistema penal, dentre toda a gama dos casos que
seleciona, desenvolve uma preferência, com grande frequência, pelos praticados por
sujeitos mais vulneráveis.
E é neste sentido que ensina a literatura jurídica:
Os dados sociais demonstram que a seletividade criminalizante é arbitrária e recái sobre pessoas vulneráveis, que acabam criminalizadas por sua vulnerabilidade e não pelo delito praticado. (ZAFFARONI et al, 2010, p. 51)
Registre-se que aludida realidade não é exclusiva das sociedades de capitalismo
periférico, mas, ao contrário, parece estar entranhada nas bases do próprio sistema
punitivo contemporâneo:
(...) a seletividade é estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato, sem prejuízo de que, em alguns, esta característica estrutural atinja graus e modalidades aberrantes. Por isso, a criminalização corresponde apenas supletivamente à gravidade do delito (conteúdo injusto do fato): esta só é determinante quando, por configurar um fato grotesco, eleva a vulnerabilidade do candidato. Em síntese: a imensa disparidade entre o programa de criminalização primária e suas possibilidades de realização como criminalização secundária obriga a segunda a uma seleção que, em regra, recai sobre fracassadas reiterações de empreendimentos ilícitos que insistem em seus fracassos, através dos papéis que o próprio poder punitivo lhes atribui ao reforçar sua associação com as características de certas pessoas mediante o estereótipo seletivo. (ZAFFARONI et al, 2013, p. 65)
A bem da verdade, diante da chamada cifra negra, resultante dos processos de
criminalização secundária, parece inclusive lógico uma predileção natural do próprio
sistema penal pelos delitos mais grotescos e vulgares. Consideravelmente vulneráveis,
portanto, à persecução criminal, na medida em que é absolutamente inviável, conforme
destaca Zaffaroni et al (2019, p. 110) uma estrutura punitiva em que as agências estatais
deem conta de todas as realizações de todos os inúmeros – e exagerados, diga-se – tipos
penais previstos em leis – notadamente as brasileiras.
Daí que, naturalmente, coincide-se que a prática de tais desvios banais e toscos
seja realizada por sujeitos em situação de vulnerabilidade, de tal forma a serem
25
desprovidos de condições materiais e, não raro, intelectuais, de sofisticarem as condutas
para, assim, camufla-las da persecução criminal.
Em linhas gerais, como ensinado por Zaffaroni:
É o grau de vulnerabilidade ao sistema penal que decide a seleção e não o cometimento do injusto, porque há muitíssimos mais injustos penais iguais e piores que deixam o sistema penal indiferente. (ZAFFARONI, 2010, p. 268)6
Noutra vertente, há grupos sociais mais vulneráveis à repressão estatal tanto pela
precariedade de suas práticas desviantes, quanto pelo fato de a condição vulnerável de
seus membros atrair mais a atenção da força policial, na medida em que vê menos
resistência na sua ação, quando direcionada a determinadas “condições socioeconômicas,
etárias, étnicas, de gênero e de opção sexual” (CARVALHO, 2018, p. 241).
Com efeito, considerando a situação evidentemente desfavorável que estes
selecionados se encontram em face do poder punitivo estatal – muito mais expostos à
persecução criminal e, notadamente, haja vista a condição de exclusão social que lhes é
imposta – constata-se uma injustiça que, a princípio, deslegitimaria o exercício
repressivo, exatamente por estar evidenciada a predileção policial por determinados
grupos vulneráveis, e, por conseguinte, a carência de isenção por parte das agências
penais.
Uma das mais importantes soluções propostas para compensar referida injustiça
foi a do princípio da coculpabilidade, que, conforme será analisado, propõe uma
corresponsabilidade por parte do Estado quando do desvio do indivíduo em estado de
vulnerabilidade.
Adiante também será constatado que referido princípio se mostrou insuficiente
para a solução do aludido problema (CARVALHO, 2018, p. 234), exigindo, assim, uma
teoria mais elaborada, tal qual a da culpabilidade pela vulnerabilidade, que será estudada
posteriormente.
3.1 O princípio da coculpabilidade e as suas limitações
Principalmente por ter sido positivado tão somente no século XIX, não é pacífico
na literatura jurídica a fonte originária do princípio da coculpabilidade, a tal ponto de se
6 Em sentido semelhante: Zaffaroni et al (2013, p. 46 e ss.).
26
sobressair três principais correntes para tentar explicar as suas bases históricas, todas após
o surgimento do Estado Liberal (MOURA, 2019, p. 65).
A primeira corrente a se candidatar a explicar a origem histórica da
coculpabilidade situa suas bases nas ideias iluministas do século XVIII (MOURA, 2019,
p. 66) que fundaram o Estado Liberal e os direitos de primeira geração.
Como se sabe, o surgimento do Estado Liberal – idealizado por autores como
Adam Smith (1723 a 1790), John Locke (1632 a 1704) e Jeremy Bentham (1748 a 1832)
– se consolidou após as revoluções liberais do século XVIII, mirando desnudar e derrubar
o absolutismo que neste período vigia (BOBBIO et al, 1998, p. 689).
Daí que o Estado Liberal promoveu o capitalismo, que, por sua vez, superou o
mercantilismo vigente na chamada Idade Média, já que passou a privilegiar um capital
trocado que gerasse mais capital, e não a mera mercantilização do produto, uma vez que
gerava um lucro “estático”.
Foi com o liberalismo que surgiram os denominados direitos de primeira
geração, de cunho eminentemente individual, como a propriedade, as garantias penais e
os direitos da personalidade, ou seja, resguardando o cidadão da interferência do Estado
nestas esferas. (BOBBIO et al., 1998, p. 689 ss.7).
É esta, para Moura (2019, p. 66) a corrente acertada para explicar a origem
histórica do princípio da coculpabilidade, na medida em que, para o autor, o princípio se
inscreve nos ideiais iluministas, ainda que implicitamente.
A segunda corrente defende o surgimento do princípio da coculpabilidade com
o advento dos direitos socialistas (MOURA, 2019, p. 67).
É que, como se sabe, já no século XIX o liberalismo entra em crise, sendo
questionado diante da falta de direitos sociais. Daí que, conforme se extrai de Bobbio et
al. (1998, p. 401 ss.), surge espaço para a teorização do Estado Social8, ou seja, por um
Poder Público que intervenha na sociedade para promover aqueles que seriam os direitos
de segunda geração, como a saúde, o trabalho etc.
7 Os estreitos limites desta pesquisa não permitem aprofundar neste conceito, contudo, em boa medida, Bobbio et al. (1998, p. 686 ss.) aborda o Liberalismo. 8 Válido destacar que, conforme se extrai de Pereira (2014, p. 37 e ss.), a Constituição da República de 1988 promove uma harmônica combinação entre o Estado Social e o Liberal, de modo a edificar um Estado Democrático de Direito, já que demonstra a sua preocupação com o bem-estar social e, ao mesmo tempo,
com a iniciativa privada (PEREIRA, 2014, p. 38).
27
Neste sentido, para esta corrente (MOURA, 2019, p. 67), o Estado Social9 teria
gestado o princípio da coculpabilidade.
Assim entende Juan Andrés Cumiz no seu texto denominado Un derecho penal
igualitário: la culpablidade por la vulnerabilidad, un estado sujeto a los derechos
humanos:
Antes da exposição destes temas, em particular, considero imprescindível uma sucinta explicação da co-culpabilidade social e sua inclusão em nossa legislação, destacando assim esta teoria que considero criação nos ordenamentos jurídicos socialistas, ainda que se pode encontrar uma raiz anterior, no século XVIII, ou nos princípios do século XX, com as sentenças do juiz Magnaud, como antecedente fundamental da culpabilidade pela vulnerabilidade.10 (tradução livre de CUMIZ, 2008, p. 07, apud MOURA, 2019, p. 67).
Segundo esta perspectiva, que soa coerente, tão somente com o Estado Social
seria possível o surgimento da coculpabilidade, na medida em que, conforme admitido
por Moura (2019, p. 68), foram os postulados socialistas que acrescentaram a igualdade
material à formal – que é, por sua vez, produto do Estado Liberal.
Ora, ainda que se reconheça, conforme defendido por Moura (2019, p. 68), que
o contratualismo liberal já exigia do Estado o cumprimento da prometida garantia de
igualdade, de tal sorte ao descumprimento configurar uma inadimplência estatal, não
parece plausível encontrar nos postulados liberais sequer algo que indiciasse o princípio
da coculpabilidade, mas, tão somente, as evidências de limitação do Estado Liberal para
apresentar solução adequada à esta questão.
Pelo contrário, no bojo teórico liberal do século XVIII não estavam presentes os
direitos econômicos e sociais – bases imprescindíveis para a coculpabilidade em sua
versão originária –, mas tão somente com o surgimento do Estado Social apareceram.
Em sentido semelhante, sendo inclusive um tanto quanto mais preciso, Zaffaroni
e Pierangeli identificam no direito penal socialista as bases da coculpabilidade, fincadas
por Jean Paul Marat (1743-1793):
9 A exemplo do Estado Liberal, também para o Social um aprofundamento não caberia nesta pesquisa, podendo este, todavia, ser encontrado em Bobbio et al. (1998, p. 401 ss.). 10 No original: Previo a la exposición de estos temas en particular considero imprescindible una sucinta
explicación de la co-culpabilidad social y su inclusión en nuestra legislación, destacando así a esta teoría,
que se consideró creación de los órdenes jurídicos socialistas, aunque se le puede encontrar una raigambre
anterior en el siglo XVIII o en los principios del siglo XX con las sentencias del juez Magnaud, como
antecedente fundamental de la culpabilidad por la vulnerabilidade.
28
Tem-se afirmado que este conceito de co-culpabilidade é uma idéia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de Marat (ver n. 118) e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado Social de Direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no Código Penal mediante a disposição genérica do art. 66. (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2009, p. 525)11
E parece ter sido no seu “Plano de Legislação Criminal” que Jean Paul Marat
fincou as raízes do princípio da coculpabilidade:
A natureza tem estabelecido grandes diferenças entre os homens e a fortuna estabelece diferenças maiores; quem não vê que justiça deve ter sempre em consideração as circunstâncias em que o culpado se encontra, circunstâncias que podem agravar ou atenuar o crime. (MARAT, 2000, p. 81, apud PINTO, 2009, p. 52).
Extrai-se, portanto, do trecho transcrito da obra de Marat, a teorização da
coculpabilidade, na medida em que o autor sugere que a pena do cidadão “culpado” seja
atenuada a depender das “circunstâncias em que o culpado se encontra” (MARAT, 2000,
p. 81, apud PINTO, 2009, p. 52).
Válido transcrever outro trecho escrito por Marat que caminha no mesmo
sentido: “Se dois homens praticam o mesmo roubo, o que apenas tem o necessário é
menos culpável do que o que vive no supérfluo” (MARAT, 2000, p. 82, apud PINTO,
2009, p. 52).
Com efeito, é forçoso reconhecer que a coculpabilidade não apareceria se não
tivesse emergido o Estado Liberal, uma vez que o Estado Social não seria teorizado sem
a contribuição do liberalismo.
Mas isto não implica, como pretende Moura (2019), na conclusão de que o
“contratualismo” (MOURA, 2019, p. 68), a “secularização e laicização” (MOURA, 2019,
p. 66) fundariam a coculpabilidade. Isto porque, muito embora tais postulados liberais
sejam legítimos pressupostos lógicos da existência do princípio em estudo – já que são a
razão do surgimento do Estado Social –, não parece ser possível um princípio da
coculpabilidade sem o seu cerne, composto pelos “direitos econômicos e sociais”
(ZAFFARONI e PIERANGELI, 2009, p. 525).
Assim sendo, se apresenta coerente a proposição de Zaffaroni e Pierangeli (2009,
p. 525) de que o princípio da coculpabilidade teve suas bases fincadas pelo Estado Social.
11 No mesmo sentido, entendendo surgir da obra de Marat o aludido princípio, Carvalho (2018, p. 431), Zaffaroni (2002) e Loureiro (2019, p. 146).
29
A última corrente que tenta delimitar a origem histórica do princípio da
coculpabilidade se pauta nas sentenças de um juiz francês do século XX (MOURA, 2019,
p. 67).
Referido juiz se chamava Paul Magnaud1213 (1848-1926) e ficou conhecido por
suas sentenças aplicando o princípio da coculpabilidade ainda quando se avizinhava o
século XX (PINTO, 2009, p. 53).
Muito embora o juiz francês realmente se valha do princípio da coculpabilidade
em suas decisões, é forçoso reconhecer que tal conceito já tinha sido teorizado antes –
conforme estudado em Jean P. Marat alhures –, não sendo originado, portanto, da
apontada “prática jurisprudencial de vanguarda”, como qualificou Carvalho (2018, p.
431), mas, sim, do Estado Social14, como já analisado.
Delimitada as suas bases, importante estudar que o princípio da coculpabilidade
acabou, ao longo do tempo, recebendo influências de legitimadade duvidosa, de tal sorte
a emergir a controvertida “coculpabilidade às avessas”.
Como lembrado por Moura (2019, p. 68), a chamada “coculpabilidade às
avessas”, já tinha sido questionada por Rusche e Kirchheimer (2004, p. 112), na medida
em que propõe, por um lado, um abrandamento de penas para a classe dominante
(MOURA, 2019, p. 68), e, por outro, um agravamento repressivo para os menos
favorecidos.
Registre-se que, em ambas as situações, o fundamento é única e exclusivamente
a condição social do indivíduo, portanto, elemento fundante do princípio em sua
formulação original.
Trata-se, como se oberva, de uma falsificação conceitual da coculpabilidade, de
forma que, na sua modulação “às avessas”, se encontra uma exarcerbação do Estado
Social em detrimento das garantias liberais.
12 Curioso observar que o famigerado juiz Magnaud ganhou o apelido de “O bom juiz”, sendo válida a transcrição das palavras de Aroldo Plínio Gonaçalves para sintetizar o chamado “Fenômeno Magnaud”: Le phénomène Magnaud é expressão de GÈNY, quando, na segunda edição do Méthode d’Interprètation et Sources en Droit Privè Positif, analisou os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud,
que presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château-Thierry, cujas decisões se
celebrizaram (e o celebrizaram como le bon juge Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes:
Les Jugements du Prèsident Magnaud (1900) e Les Nouveaux Jugements du Prèsident Magnaud (1904).
Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser o bom juiz favorável aos miseráveis e severo
com os privilegiados. Não se preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se
comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN Logique Juridique – Nouvelle Rhètorique, Paris: Dalloz, 1979, pp. 71/72. (GONÇALVES, 2012, p. 37) 13 Um resumo da biografia profissional de Magnaud pode ser lido em Freitas (2020). 14 Entendendo também que o juiz Magnaud se inspirou em Marat, LOUREIRO (2019, p. 140).
30
Neste sentido, a “coculpabilidade às avessas” é, ainda, antiliberal, uma vez que
desconsidera os mais básicos direitos individuais do cidadão, promovendo traços de um
verdadeiro Estado totaliário que desconhece os mais rasos postulados liberais.
Já o princípio da coculpabilidade, a seu turno, apesar de ter sido edificado no
bojo do Estado Social, atende bem à pauta liberal de contenção do poder punitivo – no
caso, em face dos menos favorecidos –, na medida em que, inspirado por pretensões
socialistas, visa compensar a vulnerabilidade social com uma atenuação de pena,
corresponsabilizando o Estado pela omissão social.
Nesta toada, o princípio da coculpabilidade, foi difundido no Brasil
especialmente pela obra de Zaffaroni e Pierangeli (2009), como observado Pinto (2009,
p. 67), sintetizado, por Nilo Batista da seguinte forma: “em certa medida, a co-
culpabilidade faz sentar no banco dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade que os
produziu” (BATISTA, 2013, p. 102).
De forma um pouco mais detalhada, segundo síntese de Grégore de Moura, a
coculpabilidade é entendida como:
Inicialmente cabe ressaltar que o prefixo “co” quer dizer estar junto, em comum, que divide algo, etc. Daí a noção de que o Estado está junto, participa indiretamente, é também responsável indireto pelo cometimento de delitos (...) E o complemento ao prefixo, isto é, o termo culpabilidade, significa que o Estado, em virtude de sua reiterada inadimplência no cumprimento de seus deveres, em especial aqueles relativos à inclusão socioeconômica de seus cidadãos, deve proporcionar aos acusados, que se encontram na situação de hipossuficientes e desde que esta situação tenha influência na conduta delitiva, menor reprovabilidade. (...) Poderíamos dizer, em suma, que, na realidade, não se trata de uma responsabilização penal do Estado, mas apenas se reconhece sua inoperância em cumprir seus deveres, o que, em contrapartida, gera uma menor reprovação social ao acusado. (MOURA, 2019, p. 63).
Com efeito, conforme argumenta Carvalho (2018, p. 430), seguindo Zaffaroni,
o cerne do conceito é a própria sociedade como corresponsável, por ter negado as
possibilidades à população vulnerável.
Por fim, válido transcrever a acertada análise acerca da coculpabilidade na
publicação da dissertação de Bruna Loureiro:
A coculpabilidade funciona como o reverso da culpabilidade normativa, determinando a redução – ou até mesmo, na opinião de alguns, a exclusão – da reprovabilidade do autor de um ilícito, a partir da análise do contexto social no qual está inserido; (...). (LOUREIRO, 2019, p. 137).
31
E este modelo de corresponsabilidade da sociedade chegou a ser difundido em
legislações de numerosos países15, conforme minuciosa pesquisa realizada por Moura
(2019, p. 99 ss.), que elencou as seguintes nações que positivaram o princípio a
coculpabilidade: Argentina16 (p. 101), México (p. 103), Peru (p. 104), Costa Rica (p. 107),
Bolívia (p. 109), Colômbia (p. 113), Equador (p. 114), El Salvador (p. 115), Paraguai (p.
115) e Portugal17 (p. 116).
Curioso observar que Nilo Batista destaca uma previsão legal que abriria espaço
para o princípio na antiga República Democrática da Alemanha:
O artigo 5º, inciso 1º do código penal da hoje inexistente República Democrática da Alemanha, de 1968, abria as portas a essa orientação: “uma ação é cometida de forma reprovável quando seu autor, não obstante a possibilidade de uma conduta socialmente adaptada que lhe tenham sido oferecidas, realiza, por atos irresponsáveis, os elementos legalmente constitutivos de um delito ou de um crime”. (BATISTA, 2013, p. 102).
Como se observa, referido dispositivo legal dava abertura para o princípio, na
medida em que qualificava de reprovável tão somente a ação realizada por autor que tinha
“a possibilidade de uma conduta socialmente adequada”. Ou seja, quem não recebia as
oportunidades para a dita ação adequada para a sociedade, não teria a sua ação reprovada
– pelo menos da mesma forma.
Já no Brasil, nota-se uma tímida ressonância do princípio da coculpabilidade,
fragmentado de maneira bem escassa em leis e na jurisprudência, o que será analisado a
seguir.
3.1.1 A sua dispersa recepção legal e jurisprudencial no Brasil
De início, importante ressaltar que a Constituição da República de 1988 traz uma
série de regras e princípios para embasar a coculpabilidade, notadamente a igualdade, a
dignidade humana, individualização da pena e a proporcionalidade.
15 É necessário destacar a análise que Moura (2019, p. 110 ss.), a partir da obra Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos de Loïc Wacquant, faz sobre a diferença que o princípio poderia realizar nos Estados Unidos da América. 16 Moura (2019, p. 65 e 101), respectivamente nas notas 154 e 261, faz referência a Eugenio Raúl Zaffaroni (Teoria del delito) informando que no Código Penal argentino há previsão da coculpabilidade desde o ano de 1921, sendo, segundo Loureiro (2019, p. 145), a primeira legislação a albergar a previsão do princípio. 17 Importante ressaltar a previsão da coculpabilidade no Código Penal português, por se tratar de um país que não sofre das desigualdades sociais e seletividade presentes nos países latinoamericanos, inclusive nos Estados Unidos da América, conforme se extrai de Wacquant (2011).
32
Assim sendo, a começar pela igualdade (art. 5º, caput, CR/88), a sua dimensão
material, conforme observa Loureiro (2019, p. 149), exigiria do Estado uma contrapartida
diante do desamparo de direitos sociais que acomete o desviante, ou seja, uma menor
reprovabilidade assegurada pelo princípio da coculpabilidade.
Já em relação à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CR/88), vetor fundante
do Estado Democrático de Direito, esclarece Loureiro (2019, p. 152) que é pressuposto
da inclusão social. Neste sentido, justificada restaria uma menor reprovabilidade ao
desvio.
Quanto à individualização da pena, prevista no artigo 5º, XLVI, CR/88, Loureiro
(2019, p. 155) destaca que a coculpabilidade é abarcada pelas circunstâncias pessoais do
acusado, sendo imprescindível, portanto, ser considerado em respeito à uma pena
legitimamente individualizada.
Faz-se necessário acrescentar, ainda, o princípio da proporcionalidade que,
segundo Cirino dos Santos (2017, p. 29) estaria implícito no artigo 5º, caput, da CR/88,
na medida em que, no seu aspecto estrito, consistiria em uma:
(...) proibição de penas excessivas ou desproporcionais em face do desvalor
da ação ou do desvalor do resultado do fato punível, lesivas da função de
retribuição equivalente do crime atribuída às penas criminais nas sociedades
capitalistas. (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 29-30).
Em síntese, como se observa, as bases constitucionais da corresponsabilidade
estatal pelos desvios daqueles que se encontram em estado de vulnerabilidade foram bem
delineados pela Constituição da República de 1988. No mesmo sentido, ensina Salo de
Carvalho:
É inegável que em um Estado Democrático de Direito, fundamentado na cidadania (art. 1º, II, da Constituição) e na dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição), que projeta como um dos objetivos da República a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais (3º, III, da Constituição), devem ser criados mecanismos de minimização do impacto da inefitividade da burocracia estatal no que tange à satisfação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Um destes espaços privilegiados de análise é o processo penal, local em que emergem as principais contradições da sociedade excludente. A análise concreta do absenteísmo estatal na esfera dos direitos sociais, econômicos e culturais permite, pois, uma valoração compensatória das responsabilidades dos indivíduos inferiorizados por condições adversas, nos termos apontados por Juarez Cirino dos Santos. (CARVALHO, 2018, p. 429-430)
33
Com efeito, de maneira um tanto quanto recatada, a legislação
infraconstitucional brasileira positivou a coculpabilidade, implicitamente em alguns
dispositivos legais.
Parte da literatura jurídica18, de maneira acertada, entende que o princípio da
coculpabilidade cabe dentro do artigo 66 do Código Penal, configurando uma destacada
atenuante inominada para viabilizar a individualização da pena, de tal sorte à redução da
censura.
Neste sentido, válido transcrever a síntese realizada por José Antonio Paganella
Boschi:
Além das hipóteses listadas no art. 65, a Lei 7.209/84 veio permitir no artigo 66 a atenuação da pena “em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime”. Fatos excepcionais justificam a redução da censura quando relacionados ao agente antes ou depois do cometimento da infração. Jamais quando forem concomitantes com esta. (BOSCHI, 2014, p. 239) (...) É no âmbito dessa disposição ou do art. 59 do CP. que a teoria da coculpabilidade poderia ser situada. Nas palavras de Zaffaroni, o idealizador da teoria, “ao lado do homem culpado por seu fato, existe uma coculpabilidade – da reprovação pelo fato – com a qual a sociedade deve arcar em razão das possibilidades sonegadas”. A coculpabilidade, sendo uma valorização compensatória, propõe que se aceitem com o fator de redução de pena essas variáveis sociais que alijaram ou contribuíram para o alijamento do indivíduo do processo de inserção e o colocaram à margem do consumo, da educação, da saúde, do emprego, da renda, etc. (BOSCHI, 2014, p. 240)
Interessante observar, como destacado por Carvalho (2018, p. 430), que a própria
legislação penal brasileira, para além da atenuante genérica do artigo 66 do Código Penal,
estabelece algumas situações em que o Estado se corresponsabiliza pelo desvio do
cidadão.
Neste sentido, como alertado por Carvalho (2018, p. 430), encontramos a
coculpabilidade nas seguintes disposições legais: no artigo 187, § 1º, do Código de
Processo Penal, quando estabelece que na inquirição do acusado deverá conter perguntas
sobre os meios de vida ou profissão e as oportunidades sociais oferecidas; no Código
Penal, que prevê a condição econômica do condenado como causa de redução da pena de
multa, no seu artigo 60; na lei dos crimes ambientais (Lei 9.605/98), em que se tem, no
artigo 14, I, uma causa de atenuação de pena em face do baixo grau de escolaridade ou
instrução do agente.
18 Para ficar em poucos exemplos: Moura (2019); Cirino dos Santos (2017); Carvalho (2018); Zaffaroni e Pierangeli (2009); Zaffaroni (2002); Boschi (2014); Loureiro (2019); Pinto (2009).
34
A coculpabilidade também está inserida na Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), na
medida em que, conforme lembrado por Moura (2019, p. 138), há o reconhecimento da
vulnerabilidade do dependente químico no artigo 5º, I, bem como propostas de redução
de vulnerabilidade nos artigos 18, 19, IV e VII, 21 e, mais recentemente, o 26-A, III,
incluído pela Lei 13.840/19.
Para além dessas disposições legais, importante ressaltar que há entendimentos
na literatura jurídica, como o de Cirino dos Santos (2017, p. 336-337) no sentido de que
a coculpabilidade seria, inclusive, uma causa supralegal de exculpação, por configurar
inexigibilidade de conduta diversa quando praticada por sujeito que, diante de completo
abandono de direitos sociais, chega a possuir “motivação anormal da vontade em
condições sociais adversas” (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 337).
Não obstante, válido ressaltar que também se encontra na legislação brasileira
algumas disposições que positivaram a chamada coculpabilidade às avessas (MOURA,
2019, p. 71 e 130 ss.).
Neste sentido, a título de ilustração, temos: o artigo 76, IV, a, da Lei 8.78/90
(Código de Defesa do Consumidor), agravando a pena de “pessoa com condição
econômico-social seja manifestamente superior à da vítima” (MOURA, 2019, p. 71); o
artigo 4º, §2º, da Lei 1.521/51 (Lei dos crimes contra a economia popular), que agrava a
pena naquelas situações que evidenciam a desigualdade entre agressor e vítima
(MOURA, 2019, p. 71); os artigos 59 e 60 do Decreto-Lei 3.688/41 (Lei de
Contravenções Penais), que proibem criminalmente, respectivamente, a “ociosidade
habitual” e a “mendincância”, ou seja, quem não possui atividade economicamente
produtiva (MOURA, 2019, p. 131).
Analisada as disposições legais, é necessário verificar como tem sido a recepção
jurisprudencial brasileira da coculpabilidade.
Para tanto, a seguinte ementa de Apelação Criminal n. 70002250371 (RIO
GRANDE DO SUL, TJRS, 2020) deu guarida à coculpabilidade:
Núm.:70002250371 Tipo de processo: Apelação-Crime Tribunal: Tribunal de Justiça do RS Classe CNJ: Apelação Relator: Amilton Bueno de Carvalho Órgão Julgador: Quinta Câmara Criminal Comarca de Origem: NOVO HAMBURGO Seção: CRIME Assunto CNJ: Decisão: Acordao Ementa: ROUBO. CONCURSO. CORRUPCAO DE MENORES. CO-CULPABILIDADE . – SE A GRAVE AMEACA EMERGE UNICAMENTE EM RAZAO DA SUPERIORIDADE NUMERICA DE AGENTES, NAO SE
35
SUSTENTA A MAJORANTE DO CONCURSO, PENA DE “BIS IN IDEM” - INEPTA E A INICIAL DO DELITO DE CORRUPCAO DE MENORES (LEI 2.252/54) QUE NAO DESCREVE O ANTECEDENTE (MENORES NAO CORROMPIDOS) E O CONSEQUENTE (EFETIVA CORRUPCAO PELA PRATICA DE DELITO), AMPARADO EM DADOS SEGUROS COLETADOS NA FASE INQUISITORIAL. - O PRINCIPIO DA CO-
CULPABILIDADE FAZ A SOCIEDADE TAMBEM RESPONDER
PELAS POSSIBILIDADES SONEGADAS AO CIDADAO – REU. - RECURSO IMPROVIDO, COM LOUVOR A JUIZA SENTENCIANTE. (16FLS.)(Apelação-Crime, Nº 70002250371, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em: 21-03-2001). Assunto: (16 FLS) 1. ROUBO. CONCURSO DE PESSOAS. MAJORANTE. CO-AUTORIA. DISTINCAO. 2. CORRUPCAO DE MENOR. NAO CARACTERIZACAO. MENOR JA CORROMPIDO. 3. CORRUPCAO DE MENOR. REQUISITOS. 4. PENA. FIXACAO. BIS IN IDEM. CARACTERIZACAO. 5. PENA. FIXACAO. BIS IN IDEM. QUANDO OCORRE.. Referência legislativa: LF-2252 DE 1954.[0] Data de Julgamento: 21-03-2001 (destaquei)
Como se observa, referida ementa evidencia a coculpabilidade diante das
“possibilidades sonegadas ao cidadão”, de tal sorte a, acertadamente, reconhecer uma
menor reprovabilidade à conduta daquele condenado.
Com efeito, esse entendimento jurisprudencial tem sido muito escasso nos
tribunais brasileiros. Mas é do mesmo Tribunal que se extrai mais uma ementa que
reconheceu o princípio, agora um Emargos Infringentes n. 70000792358 (RIO GRANDE
DO SUL, TJRS, 2020a):
Núm.:70000792358 Tipo de processo: Embargos Infringentes Tribunal: Tribunal de Justiça do RS Classe CNJ: Não Classificado CNJ Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo Órgão Julgador: Quarto Grupo de Câmaras Criminais Comarca de Origem: SANTO ANTÔNIO DA PATRULHA Seção: CRIME Assunto CNJ: Decisão: Acordao Ementa: EMBARGOS INFRINGENTES. TENTATIVA DE ESTUPRO. FIXACAO DA PENA. AGENTE QUE VIVE DE BISCATES, SOLTEIRO, COM DIFICULDADES PARA SATISFAZER A CONCUPISCENCIA, ALTAMENTE VULNERAVEL A PRATICA DE DELITOS OCASIONAIS. MAIOR A VULNERABILIDADE SOCIAL, MENOR A
CULPABILIDADE. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE
(ZAFFARONI). PREVALENCIA DO VOTO VENCIDO, NA FIXACAO DA PENA-BASE MINIMA. REGIME CARCERARIO INICIAL. EMBARGOS ACOLHIDOS POR MAIORIA. (Embargos Infringentes, Nº 70000792358, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo, Julgado em: 28-04-2000). Assunto: 1. EMBARGOS INFRINGENTES. QUANDO CABE. 2. ESTUPRO. TENTATIVA. DISPOSICOES DOUTRINARIAS E JURISPRUDENCIAIS. 3. CRIME HEDIONDO. ESTUPRO. NAO CARACTERIZACAO. INOCORRENCIA DE LESAO CORPORAL GRAVE OU MORTE. 4. PENA. REGIME SEMI-ABERTO. ESTUPRO.[0] Data de Julgamento: 28-04-2000 (destquei)
36
Note-se a ocorrência também de uma acolhida explícita ao princípio, de tal sorte
a reduzir a reprovação à conduta praticada por sujeito socialmente vulnerável, agora, com
uma ementa fazendo referência expressa a Zaffaroni como fonte na literatura jurídica.
É importante destacar que também é possível encontrar julgamentos de primeira
instância no mesmo sentido, conforme trecho desta sentença do processo de n.
0702.11.020753-8 (ANEXO)19:
Entretanto, no caso concreto, o fato da ré confessar o crime, se dizendo usuária e que vendia a droga para sustentar o próprio vício, demonstra que atua no varejo e é mais uma vítima do descaso social, exsurgindo a coculpabilidade
do Estado que não desenvolve políticas de redução de danos eficientes e
rotineiras, mas sim ocasionais e pontuais, mas preocupado, na sua ineficácia, em tratar dos efeitos do que das causas, promovendo uma constante exclusão
social, razão pela qual, no caso, a natureza e quantidade da droga apreendida não se sobrepõem à coculpabilidade do Estado, por isso a redução deve alcançar o seu grau máximo. (destaquei)
Contudo, forçoso reconhecer que a tendência geral é no sentido de não
reconhecimento da coculpabilidade, conforme se extrai desta ementa do Superior
Tribunal de Justiça do AgRg no Agravo em Recurso Especial n. 1.318.170/PR (BRASIL,
STJ, 2020)20:
AgRg no AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.318.170 - PR (2018/0154969-6) RELATOR: MINISTRO REYNALDO SOARES DA FONSECA AGRAVANTE: JOSE RICARDO FONTES LAURIA ADVOGADO : SÉRGIO ODILON JAVORSKI FILHO - PR042391 AGRAVADO: MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. FURTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. CONFISSÃO. NÃO RECONHECIMENTO. TEORIA DA CO-CULPABILIDADE DO
ESTADO. NÃO CONFIGURAÇÃO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE, IN CASU. RECURSO DESPROVIDO. 1. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que não se acolhe alegação de nulidade por cerceamento de defesa, em função do indeferimento de diligências requeridas pela defesa, porquanto o magistrado é o destinatário final da prova, logo, compete a ele, de maneira fundamentada e com base no arcabouço probatório, analisar a pertinência, relevância e necessidade da realização da atividade probatória pleiteada. 2. In casu, o magistrado sentenciante indeferiu o pedido de exame toxicológico ao concluir pela inexistência de qualquer elemento indiciativo de que o recorrente fosse usuário de drogas. 3. Não há que se falar em confissão, isso porque consta dos autos que o recorrente, em nenhum momento, reconheceu que praticara o
19 Encontra-se a aplicação do princípio, também, na Apelação Criminal n. 70013886742 (RIO GRANDE DO SUL, RS, 2020b). 20 No mesmo sentido, por amostragem: HC 213481/SP (BRASIL, STJ, 2020a); HC 63251/ES (BRASIL, STJ, 2020b); Apelação Criminal nº 1.0518.19.004059-3/001 (MINAS GERAIS, TJMG, 2020); e Apelação Criminal nº 1.0045.15.000212-4/001 (MINAS GERAIS, TJMG, 2020a).
37
delito. 4. Quanto à tese de concorrência de culpa, vale registrar que esta
Corte Superior não tem admitido a aplicação da teoria da co-
culpabilidade do Estado como justificativa para a prática de delitos. A propósito: HC 187.132/MG, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Sexta Turma, DJe 18/02/2013. 5. Também não há que se falar em aplicação do princípio da insignificância, porquanto, como bem destacado no acórdão recorrido à e-STJ fl. 563, "o apelante possui um extenso histórico de crimes, sendo reincidente em delitos contra o patrimônio, incluindo receptação, furto qualificado e furto simples". 6. Agravo regimental não provido. (destquei)
Registre-se que, mesmo sendo uma ementa do Superior Tribunal de Justiça, se
limitou ao modesto argumento de que aquela Corte não reconhece referido princípio,
resultando, portanto, em uma frágil e infundada argumentação para sustentar este
entendimento.
E esta é exatamente a tônica jurisprudencial brasileira, sendo válido, por
derradeiro, transcrever um último fragmento de ementa, na medida em que se apresenta
como emblemático este trecho da Apelação Criminal nº 1.0045.15.000212-4/001
(MINAS GERAIS, TJMG, 2020a): “Inadmissível é o reconhecimento da atenuante
genérica prevista no artigo 66 do Código Penal com base na co-culpabilidade do Estado
sob pena de incentivar a delinquência”.
A bem da verdade, o que se extrai desta tendência é uma falsificação conceitual
da coculpabilidade, iludida com o grosseiro equívoco do exercício de futurologia, ou seja,
uma prática impregnada de inspirações presas à escola criminológica positivista,
notadamente no chamado Direito Penal do autor, próprio de realidades autoritárias,
conforme ensina Zaffaroni et al (2013, p. 131/133).
Talvez a má recepção jurisprudencial e legal, permeadas por falácias
argumentativas, se soma às deficiências do princípio da coculpabilidade, que, em sua
feição original, sugere uma inclinação exagerada ao determinismo economicista que
despreza o conhecimento criminológico erigido após o surgimento do paradigma da
reação social.
Para tanto, faz-se necessário diagnosticar as limitações da coculpabilidade
tradicional, que justificaram a sua correção pela teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade.
3.1.2 As limitações do princípio da coculpabilidade
38
O princípio da coculpabilidade, como analisado acima, emergiu-se como um
importante instrumento com o propósito de amenizar a vulnerabilidade, muito embora
não seja suficiente para apresentar respostas à altura para a resolução desta questão
criminológica.
Registre-se que apesar de o referido princípio ter sido desenvolvido no Estado
Social por Jean Paul Marat, como estudado acima, não deixa de ser produto da
criminologia liberal.
Isto porque, conforme já adiantado alhures, Alessandro Baratta, lucidamente,
asseverou que o pensamento criminológico anterior à criminologia crítica estaria
comprometido com as bases da recente criminologia liberal. Assim nos ensinou: “As
teorias que até aqui examinamos pertencem à criminologia liberal contemporânea”.
(BARATTA, 2016, p. 147).
Neste sentido, por estar amarrado à estas bases criminológicas, restou evidente
as limitações do princípio da coculpabilidade, na medida em que se encontra defasado
diante da superação paradigmática pela reação social – acima estudada –, e, sobretudo,
pela criminologia crítica (LOUREIRO, 2019, p. 185).
Daí que decorre a necessidade de enxergar a vulnerabilidade através de uma
lente criminológica que dê conta de algo para além das preocupações do positivismo
criminológico, ou seja, daqueles problemas evidenciados pela teoria do etiquetamento
(BECKER, 1997) e, em seguida, pelos próprios discursos da criminologia crítica
(BARATTA, 2016).
É dizer, o paradigma etiológico tem a vulnerabilidade como algo do sujeito, não
do sistema, de tal sorte a, elegendo o método positivista, se limitar a buscar características
de vulnerabilidade no sujeito.
Desta forma, a coculpabilidade possui consideráveis dificuldades de se
desvincular um pouco do “determinismo economicista” (CARVALHO, 2018, p. 431) e
programar suas verificações para além daquelas dos “delitos em que a miserabilidade de
suas condições sociais e econômicas tenha sido determinante para a redução do seu
espaço de autodeterminação, como ocorre em alguns delitos patrimoniais” (LOUREIRO,
2019, p. 184).
Neste sentido, assim sintetizou Eugenio Raúl Zaffaroni:
A coculpabilidade (Mit-Schuld) é insuficiente porque: a) em princípio resulta no preconceito de que a pobreza é a causa de todos os delitos; b) em segundo lugar, se fosse corrigido esse preconceito, concluiria habilitando mais poder
39
punitivo para as classes hegemônicas e menos para as subalternas, o que pode conduzir a um direito penal classista de duas velocidades; c) Por fim, seja rico ou pobre o selecionado, sempre o será com bastante arbitrariedade, com o qual não considera a seletividade estrutural do poder punitivo.21 (tradução livre de ZAFFARONI, 2002, p. 06)
Observe-se que os problemas da coculpabilidade apontados por Eugenio
Zaffaroni giram em torno de uma dependência excessiva ao determinismo economicista,
de tal sorte a, num primeiro momento, confundir pobreza e miséria com desvio; em
seguida, referida confusão desemboca num fortalecimento da classe dominante e num
maior controle penal das classes inferiores; por conseguinte, em última instância, o
princípio da coculpabilidade ignora a estrutural seletividade do aparelho penal, que é
capaz de atingir qualquer sujeito que esteja em situação de vulnerabilidade, ainda que
proveniente da elite econômica (LOUREIRO, 2019, p. 184-185).
Destarte, é perceptível que a formulação tradicional da coculpabilidade, como
visto no item anterior, encontra séria resistência jurisprudencial, na medida em que
apresenta consideráveis deficiências argumentativas, exatamente por pecar com uma
exagerada afeição pelo referido determinismo economicista apontado por Eugenio
Zaffaroni.
Lado outro, como informado por Salo de Carvalho, destaca-se a necessidade de
correção do princípio, notadamente, pela culpabilidade pela vulnerabilidade que melhor
se apresentou para tanto:
A tese da coculpabilidade, porém, apesar de representar um notório avanço no que tange à seletividade do sistema punitivo e operar a partir de um necessário critério de justiça social na quantificação da pena das pessoas e dos grupos marginalizados que cometeram delitos, apresentou insuficiências significativas. Em decorrência destas insuficiências a culpabilidade pela
vulnerabilidade apresenta-se como um corretivo à teoria da coculpabilidade. (CARVALHO, 2018, p. 234)
Daí que a teoria da “culpabilidade pela vulnerabilidade não nega, mas aprimora
a teoria da coculpabilidade” (CARVALHO, 2018, p. 235), de modo a se deslocar de seu
eixo central de orientação causal-economicista – que vê na exclusão social a causa do
crime – para, não só a partir do paradigma da reação social, mas, sobretudo pela
21 No original: La co-culpabilidad (Mit-Schuld) es insuficiente porque: a) en principio evoca el prejuicio
de que la pobreza es la causa de todos los delitos; b) en segundo lugar, si se corrigiese ese prejuicio,
concluiría habilitando más poder punitivo para las clases hegemónicas y menos para las subalternas, lo
que puede conducir a un derecho penal clasista a dos velocidades; c) en tercer término, sea rico o pobre
el seleccionado, siempre lo será con bastante arbitrariedad, con lo cual no logra hacerse cargo de la
selectividad estructural del poder punitivo.
40
criminologia crítica, se dar conta, também, dos processos de criminalização
(LOUREIRO, 2019, p. 185).
Não obstante, é importante registrar que há quem entenda se tratar de
“nomenclaturas sinônimas” (MOURA, 2019, p. 61-65), coculpabilidade e culpabilidade
pela vulnerabilidade.
Ocorre que, referido autor desenvolveu a sua obra (MOURA, 2019) claramente
orientado pela noção tradicional da coculpabilidade, na medida em que, inclusive, se
debruça sobre problemas e soluções com resquícios colhidos no determinismo
economicista.
Destarte, faz-se necessária uma análise pormenorizada da teoria da culpabilidade
pela vulnerabildade, que será realizada a seguir.
3.2 A estrutura e o foco originário da culpabilidade pela vulnerabilidade
Foi demonstrado no item anterior que, graças aos sobreviventes traços do
positivismo criminológico, o discurso original da coculpabilidade restou defasado e
ineficaz para os fins que almejava.
A bem da verdade, como destacado por Carvalho (2018, p. 234) ao lembrar
Zaffaroni, a coculpabilidade já tinha sofrido um grande golpe com as pesquisas referentes
à criminalidade de colarinho branco, principalmente após a publicação da obra de Edwin
Sutherland.
Afinal de contas, a pressuposição de que a pobreza e a exclusão social geram a
criminalidade – discurso de cunho positivista encontrado nas bases da coculpabilidade –
, não consegue explicar, por exemplo, os “barões do roubo e a criminalidade empresarial”,
desvendados por Sutherland (2016, p. 34 ss.; 51 ss.).
Registre-se que a orientação economicista da coculpabilidade faz todo o sentido,
já que, como se sabe, emergiu do direito penal socialista de Jean Paul Marat.
Com efeito, a culpabilidade pela vulnerabilidade se estrutura na “culpabilidade
pelo fato e no legado positivo da teoria da coculpabilidade” (CARVALHO, 2018, p. 240),
propondo, deste modo, um contrapeso, caracterizado pela vulnerabilidade
(ZAFFARONI, 2002, p. 06).
Assim sendo, enquanto “a culpabilidade pelo fato indica o limite máximo do
poder punitivo habilitável” (CARVALHO, 2018, p. 240), o contrapeso da vulnerabilidade
considera a seletividade do sistema penal e “fornece elementos para redução da
41
incidência” do poder punitivo em face do vulnerável, como ressaltado por Carvalho
(2018, p. 240).
Para tanto, esta nova formulação da culpabilidade “leva em consideração a
seletividade e constata que o poder punitivo selecionaria conforme a culpabilidade do
sujeito e não a sua autodeterminação” (FERRAZ, 2016, p. 60).
A rigor, a culpabilidade pela vulnerabilidade sequer se restringe às questões
econômicas, sobretudo por se propor a superar o determinismo economicista. Pelo
contrário, chega a reconhecer, por exemplo, a posição de vulnerabilidade do genocida –
como já afirmado por Eugenio Zaffaroni – em que pese o seu esforço pessoal – 2º grupo
de fator de vulnerabilidade, estudado no item 3.3.2 –, via de regra, inviabilize a contenção
do poder punitivo pela culpabilidade pela vulnerabilidade.
Segundo Loureiro (2019, p. 204), não são suficientes, para um conceito de
culpabilidade, os “pressupostos formais da culpabilidade de ato (imputabilidade,
potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa)”. É necessário que
contenha, também, “como elementos valorativos, o estado de vulnerabilidade do agente
e o esforço pessoal por ele realizado para alcançar a situação concreta de vulnerabilidade”
(LOUREIRO, 2019, p. 204).
Importante observar, neste ponto, que a teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade não corrige a culpabilidade de ato, mas é uma antítese redutora da mesma,
conforme destacado por Eugenio Zaffaroni:
A culpabilidade pela vulnerabilidade não é um corretivo da culpabilidade de ato, mas o seu contraponto, de onde surgirá a culpabilidade penal como síntese. Dado que a culpabilidade pela vulnerabilidade opera como antítese redutora, nunca poderá a culpabilidade penal resultante da síntese superar o grau indicado pela censura da culpabilidade pelo ato.22 (tradução livre de ZAFFARONI, 2002, p. 09)
Com efeito, a leitura mais acertada sobre a culpabilidade pela vulnerabilidade, é
uma reformulação conceitual da própria culpabilidade normativa23, a partir de uma noção
agnóstica da culpabilidade (CARVALHO, 2018, p. 239).
22 No original: La culpabilidad por la vulnerabilidad no es un correctivo de la culpabilidad por el acto,
sino su contracara dialéctica, de la que surgirá la culpabilidad penal como síntesis. Dado que la
culpabilidad por la vulnerabilidad opera como antítesis reductora, nunca podrá la culpabilidade penal
resultante de la síntesis superar el grado indicado por el reproche de la culpabilidad por el acto. 23 Estudos completos acerca da evolução do conceito de culpabilidade podem ser encontrados em Cirino dos Santos (2017, p. 276 ss.), Brandão (2015, p. 117 ss.) e Loureiro (2019, p. 23 ss.). Uma boa síntese em Zaffaroni (2002, p. 01 ss.).
42
É que, conforme Carvalho (2018, p. 239), seguindo Juan Bustos Ramírez, o juízo
de reprovação da culpabilidade normativa vincula a responsabilidade penal a uma
finalidade sancionatória positiva, no caso, de reprovação, que denotaria, assim, um juízo
de cunho moral.
Ou seja, “extrair as hipóteses de julgamento moral não significa extirpar os
elementos que atualmente compõem a culpabilidade (...) mas necessariamente em abdicar
da orientação antissecular fornecida pelo modelo de reprovabilidade.” (CARVALHO,
2018, p. 239).
Para tanto, na esteira de Ramírez, Carvalho (2018, p. 239) propõe um ajuste
conceitual da culpabilidade, substituindo a “reprovabilidade” por “responsabilidade”, em
virtude dos postulados agnósticos que afastam eventuais juízos morais provenientes da
reprovação, instituindo, assim, a antissecular responsabilização.
Esta seria, portanto, a teoria agnóstica da culpabilidade, que realiza esta pequena
– mas significativa – correção na teoria normativa, consistindo em peça fundamental para
a culpabilidade pela vulnerabilidade.
Noutro norte, vale ressaltar que, conforme argumentado por Zaffaroni (2002, p.
09), muito embora possa ser cogitado, referida teoria não resulta numa culpabilidade de
autor, ou, ainda que assim se entenda, não atinge nenhuma garantia do sujeito. Muito pelo
contrário, ainda que não o reduza, o instituto não aumenta o poder punitivo, sendo
falaciosa, portanto, referida crítica.
No mesmo sentido, Eugenio Zaffaroni disserta sobre os efeitos da teoria em
comento:
A escolha da culpabilidade pela vulnerabilidade como regra não é arbitrária, porque além de ser razoável (pareceria que o sacrifício ético é menor quando se ocupa menos dos que mais agem para neutralizar sua própria ação limitadora de violência) nos fatos, quanto maior for a culpabilidade pela vulnerabilidade, menor é o espaço decisório deixado à agência judicial, pois as demais agências e, especialmente, o formidável aparato de propaganda do sistema penal, com sua invenção da realidade, ocupar-se-iam de aniquilar a agência e suas legítimas tentativas limitadoras, sustentando seu exercício de poder deslegitimado e pondo em risco toda a empresa judicial de limitação da violência. (ZAFFARONI, 2010, p. 276)
Feitas essas considerações, faz-se necessário analisar as vantagens da teoria em
relação às deficiências da coculpabilidade. Assim, extrai-se das lições de Zaffaroni et al
(2016) que a teoria apresenta as seguintes vantagens:
43
(a) modifica a indicação que resulta da pura culpabilidade de ato sem afetá-la quanto à função redutora que deve cumprir na teoria do delito; (b) prescinde de indagar-se se é culpabilidade de ato ou de autor, uma vez que só pode dispor de efeito redutor; (c) não legitima o exercício de poder punitivo, mas tão somente – ao implicar o esgotamento do espaço de poder decisório da agência – a decisão. (ZAFFARONI et al, 2016, p. 65)
Assim sendo, a teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade não se reduziria a
uma mera corresponsabilização do Estado com uma atenuação de pena, mas integraria a
própria Teoria do Crime como uma segunda etapa de verificação do elemento da
culpabilidade. Nas palavras de Bruna Loureiro, a culpabilidade penal, quando aprimorada
pela consideração da vulnerabilidade, provoca os seguintes efeitos práticos:
Para realizar esse juízo normativo-valorativo, deve o julgador verificar primeiramente a presença dos requisitos normativos da culpabilidade – imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa – e, uma vez constatada a existência de tais elementos, é que passará a perquirir o grau de esforço empreendido pelo agente para colocar-se na situação de vulnerabilidade, extraindo-se dessa análise o nível máximo de poder limitador que poderá exercer para refrear o processo criminalizante. (LOUREIRO, 2019, p. 214)
Percebe-se, portanto, que a valoração da vulnerabilidade é verificada após
constatada a culpabilidade de ato, apresentando-se, deste modo, como mais uma barreira
para refrear o poder punitivo estatal.
Todavia, o estudo dos fatores de vulnerabilidade, que será realizado a seguir,
deixará mais claro ainda o quão vantajosa é a eleição da teoria da culpabilidade pela
vulnerabilidade.
3.3 Os dois grandes grupos dos fatores de vulnerabilidade
Consistindo num dos pilares da teoria, a identificação da vulnerabilidade, como
adiantado alhures, apesar de aproveitar-se do “legado positivo da teoria da
coculpabilidade” (CARVALHO, 2018, p. 240), o aprimora, em tal ponto de apresentar
uma noção mais complexa de vulnerabilidade.
Para tanto, Eugenio Raúl Zaffaroni, ao desenvolver a culpabilidade pela
vulnerabilidade, a apresenta numa subdivisão em dois grupos: “Esta situação de
vulnerabilidade é produzida pelos fatores de vulnerabilidade, que podem ser
classificados em dois grandes grupos: posição ou estado de vulnerabilidade e o esforço
pessoal para a vulnerabilidade.” (ZAFFARONI, 2010, p. 270)
44
Diante disto, faz-se necessário um estudo mais detalhado sobre os aludidos
grupos, o que se fará adiante.
3.3.1 A posição ou estado de vulnerabilidade
Nas palavras de Eugenio Zaffaroni o estado ou a posição de vulnerabilidade é
apresentado da seguinte maneira:
A posição ou estado de vulnerabilidade é predominantemente social (condicionada socialmente) e consiste no grau de risco ou perigo que a pessoa corre só por pertencer a uma classe, grupo, estrato social, minoria, etc., sempre mais ou menos amplo, como também por se encaixar em um estereótipo, devido às características que a pessoa recebeu. (ZAFFARONI, 2010, p. 270)
Esta noção, como pode ser extraído da citação acima, nos remete à aferição do
grau de vulnerabilidade que o sujeito se encontra, involuntariamente, pelo simples fato
de pertencer àquele segmento mais sucetível à criminalização estatal.
Sendo assim, quanto mais o indivíduo se enquadrar naquele estereótipo de
vulnerável, maior a sua chance de ser selecionado pelo aparelho penal (LOUREIRO,
2019, p. 200).
Registre-se que, via de regra, os “casos de (a) analfabetismo; (b) baixo grau de
instrução ou escolaridade; (c) miserabilidade; e (d) desemprego” (CARVALHO, 2018, p.
433) denotam a vulnerabilidade social referida por Zaffaroni (2010, p. 270), na medida
em que transparecem as carências dos direitos sociais.
Não obstante, para além da vulnerabilidade social apontada por Eugenio
Zaffaroni como predominante (ZAFFARONI, 2010, p. 270), é necessário, concordando
com Carvalho (2018, p. 433), também lançar os olhos para as situações de vulnerabilidade
individual e processual.
Isto porque, como soa evidente, é imperiosa a constatação, como demonstrado
por Carvalho (2018, p. 433), de que a vulnerabilidade social está também, em grande
medida, sediada na formulação original da coculpabilidade, conforme visto acima.
Neste sentido, no que tange à feição individual, Carvalho (2018, p. 433) aponta
traços de vulnerabilidade presentes em problemas pessoais e familiares sensíveis sob o
ponto de vista humanitário:
45
(...) hipóteses elencadas nos Decreto de Indulto: (a) pessoas com filho ou filha menor de dezoito anos ou com deficiência que necessite cuidado (art. 1º, VI, do Decreto n. 7.648/2011); (b) pessoas com paraplegia, tetraplegia ou cegueira (art. 1º, X, a e b do Decreto n. 7.648/2011); (c) pessoas com doença grave e permanente que apresentem limitação de atividade e restrição de participação ou exijam cuidados contínuos (art. 1º, X, c do Decreto n. 7.648/2011). Além dos casos em que a própria lei prevê redução da pena em sede de execução, conforme assinalado, outros fatores são passíveis de análise, como, p. ex., os casos de (d) dependência química; e de (e) sofrimento ou desordem psíquica, nas hipóteses em que não se adéquem ao art. 26, caput e parágrafo único, do Código Penal. (CARVALHO, 2018, p. 433)
Ainda, a partir de Carvalho (2018, p. 434), se enquadra também dentre as
situações de vulnerabilidade as de ordem processual, presentes em casos em que: (a) a
autoridade excedeu no prazo da prisão processual; (b) ocorreu excessiva demora para
instrução e/ou julgamento do caso pena; (c) o condenado já tenha sido injustiçado
anteriormente quando absolvido em processo que amargou prisão processual; (d) quando
o sujeito já tenha sido injustiçado anteriormente por ter cumprido pena em condições que
desrespeitem a Constituição da República de 1988 e/ou a Lei 7.210/84 (Lei de Execução
Penal)24.
Portanto, o estado ou a posição de vulnerabilidade se manifesta nestes três
grupos apontados por Carvalho (2018, p. 433-434), podendo incidir, assim, nas
dimensões individual, social ou processual.
Contudo, a posição/estado do sujeito não é suficiente para, sozinha, dar conta da
totalidade dos fatores de vulnerabilidade apontados por Zaffaroni (2010, p. 270), sendo
necessário, também, o segundo grupo consistente no esforço pessoal, como será visto a
seguir.
3.3.2 O esforço pessoal para a vulnerabilidade
No que diz respeito ao esforço pessoal para a vulnerabilidade, assim entende
Eugenio Zaffaroni.
O esforço pessoal para a vulnerabilidade é predominantemente individual, consistindo no grau de perigo ou risco em que a pessoa se coloca em razão de um comportamento particular. A realização do “injusto” é parte do esforço para a vulnerabilidade, na medida em que o tenha decidido com autonomia. (ZAFFARONI, 2010, p. 270)
24 Nunca é demais repetir que a execução da pena privativa de liberdade no Brasil, em larga escala, não respeita nem mesmo as garantias legais do preso, muito menos os Direitos Humanos, a tal ponto de até o próprio Supremo Tribunal Federal declarar, na ADPF 347/DF, a execução penal brasileira um estado de
coisas inconstitucional.
46
Percebe-se que se trata de uma “exposição à seletividade criminalizante”
(CARVALHO, 2018, p. 432), caracterizada por um comportamento pessoal do agente que
aumenta o risco da seleção, conforme apontado por Carvalho (2018, p. 237).
Diante disto, Bruna Loureiro, na esteira de Zaffaroni et al (2013, p. 49),
apresenta três hipóteses (LOUREIRO, 2019, p. 202-203) para ilustrar o esforço pessoal
para a vulnerabilidade: (a) quando o sujeito, apesar de ostentar um baixo grau de
vulnerabilidade, se expõe ao entrar em uma arriscada disputa por poder; (b) o sujeito que,
mesmo se encontrando numa situação extrema de vulnerabilidade, não esforça para sair
dela, como ocorre “em delitos que são praticados com brutalidade, tais como estupros,
homicídios entre pessoas da mesma família, roubos com maior emprego de violência
etc.” (LOUREIRO, 2019, p. 202); (c) e, a mais frequente que as demais, ocorre quando o
sujeito, embora não empreenda esforço para se tornar vulnerável, como já possui uma
evidente posição de vulnerabilidade, a seleção lhe resulta inevitável.
Referidas hipóteses tornam mais claro, como se observa, o significado do esforço
empreendido pelo sujeito para a vulnerabilidade. Ou seja, como demonstrado por
Zaffaroni (2010, p. 271), quanto menor o estado/posição de vulnerabilidade do sujeito,
tanto maior teria de ser o seu esforço pessoal para se colocar em uma situação de
vulnerabilidade e vice-versa.
A título de ilustração, um sujeito que possui ocupação lícita com reconhecimento
social e é pego portando drogas, precisará de um esforço pessoal muito maior do que
aquele que não a possui para se colocar em situação de vulnerabilidade e, assim, ver
configurado o tipo de tráfico de drogas previsto no artigo 33 da Lei 11.343/06 (Lei de
Drogas) ao invés do porte para uso pessoal do artigo 28 da mesma lei.
Registre-se que, em boa medida, é a partir do grau de sofisticação da prática
delitiva que se afere o esforço pessoal para a vulnerabilidade.
É dizer, para um funcionário público de alto escalão ser selecionado a uma
persecução criminal referente à corrupção passiva do artigo 317 do Código Penal, é
necessário um esforço pessoal muito maior – ou um grau de sofisticação muito menor ou
muito mais tosco – do que é exigido a um funcionário público de baixo escalão.
Portanto, percebe-se que, para a análise do esforço pessoal para a
vulnerabilidade, faz-se necessário levar em conta a posição de vulnerabilidade que aquele
sujeito ostenta, integrando ambos os elementos, portanto, a culpabilidade pela
vulnerabilidade.
47
4 A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL EMPRESARIAL E O COMPLIANCE
Nas últimas décadas, sobretudo no Ocidente, os legisladores deram início a um
processo de criminalização de variadas e numerosas condutas (FRAGOSO, 2015, p. 315),
notadamente práticas eminentemente vinculadas à atividade empresarial, conforme foi
percebido por Silva Sánchez (2001, p. 20).
Com efeito, o Brasil não ficou de fora desta tendência, de tal sorte a, a partir da
década de 1990 (SILVEIRA, 2018, p. 25; SAAD-DINIZ, 2018, p. 174), aderir a este
processo de expansão da repressão penal, notadamente no seguimento empresarial.
Registre-se que referida preocupação de expansão da repressão penal
empresarial encontrou guarida, dentre outros campos, especialmente na sociologia do
risco identificada por Beck (1998).
E foi todo esse movimento que proporcionou o surgimento e consolidação do
criminal compliance, atividade que se comprometeu a auxiliar na prevenção e contenção
dos riscos de práticas criminais no ambiente corporativo (SANTANA e TAMBORLIN,
2015, p. 13).
Não obstante, o que se tem observado na persecução criminal empresarial
brasileira, é uma desconsideração dos direitos individuais (COUTINHO, 2019, p. 153)
daqueles que sofrem investigações e acusações, promovendo grandes operações que
deslocam a condição de sujeito para objeto (COUTINHO, 2019, 135 ss.).
E uma das importantes razões da problemática talvez esteja na acrítica
transplantação de tecnologias jurídicas estrangeiras, ora desconsiderando as
especificidades brasileiras, ora deformando os institutos. O exemplo mais bem acabado
desta questão talvez seja a declarada inspiração da famigerada “Operação Lava Jato” na
conhecida Mani Pulite, como bem estudado em Coutinho (2019, 135 ss.).
Neste sentido, é importante verificar se também o criminal compliance não
sofreu uma acrítica importação estrangeira, sobretudo para o que propõe este estudo, no
sentido de verificar as consequências de uma tendência de imposição do instituto,
também, para os micro e pequenos empresários, ignorando as suas limitações
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 85).
Para tanto, faz-se necessário que este capítulo analise a contribuição da
sociologia do risco para a expansão do Direito Penal empresarial e, por conseguinte, para
o criminal compliance.
48
Logo após, será estudado como tem sido a importação brasileira de tecnologias
jurídicas e um pouco dos efeitos da transmutação do sistema penal no sentido de ignorar
as garantias individuais do cidadão, amparado em discursos do Direito Penal do inimigo
(JAKOBS e MELIÁ, 2003) e no lawfare (COMAROFF e COMAROFF, 2006).
Ao final, serão lançadas possíveis óbices à eleição da culpabilidade pela
vulnerabilidade, a fim de solucionar o problema apontado de vulnerabilidade do micro e
pequeno empresário, no Direito Penal empresarial – e, por consequência, no criminal
compliance.
4.1 O paradigma sociológico da sociedade de risco e a globalização financeira
A sociedade pós-industrial gerou um novo paradigma social, pautado nos riscos
do cotidiano, presente desde elementos mais ordinários, como na alimentação, na saúde,
na natureza etc. (BECK, 1998, p. 42).
Este paradigma é mais perceptível graças à globalização, como demonstra Ulrich
Beck:
Isto se torna mais claro ainda se tomamos em consideração o modelo especial de distribuição de riscos da modernização: estes possuem uma tendência imanente à da globalização. A produção industrial é acompanhada de uma universalização de perigos, independentemente dos lugares de sua produção: as cadeias de alimentos conectam na práctica com todos os habitantes da Terra. Atravessam as fronteiras. O conteúdo de ácidos do ar não ataca somente as esculturas e a os tesouros artísticos, mas já está dissolvido há tempos nas barreiras alfandegárias modernas. Também no Canadá os lagos têm muito ácido, também nas cimeiras da Escandinavia as florestas morrem.25 (tradução livre de BECK, 1998, p. 42)
E os riscos se agravam mais ainda a partir dos avanços tecnológicos (SANTANA
e TAMBORLIN, 2015, p. 04), que passam a ostentar uma característica dúbia, ou seja,
se por um lado facilitam a vida humana, por outro, a expõem a incontáveis e sucessíveis
riscos.
25 No original: Esto queda más claro aún si tomamos en consideración el modelo especial de reparto de
los riesgos de la modernización: éstos poseen una tendência inmanente a la globalización. A la producción
industrial le acompaña un universalismo de los peligros, independientemente de los lugares de su
producción: las cadenas de alimentos conectan en la práctica a todos los habitantes de la Tierra.
Atraviesan las fronteras. El contenido en ácidos del aire no ataca sólo a las esculturas y a los tesoros
artísticos, sino que ha disuelto ya desde hace tiempo las barreras aduaneras modernas. También en
Canadá los lagos tienen mucho ácido, también en las cumbres de Escandinavia se mueren los bosques.
49
Lado outro, forçoso reconhecer, acompanhando Silva Sánchez (2001, p. 38), que
nem sempre a sensação do cidadão corresponde à realidade, já que, não raro, é obnublada
por um amontoado de informações que chegam a distorcer as reais proporções dos riscos,
notadamente pela atuação dos meios de comunicação e das próprias agências estatais de
segurança pública (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 38).
Não obstante, essa percepção do novo paradigma começou a ficar mais evidente,
aos olhos da Sociologia, a partir de graves tragédias, tal qual a do acidente nuclear
ocorrido na cidade ucraniana denominada Chernobil (BECK, 1998, p. 12), em 26 de abril
de 1986, devido à sua inegável magnitude e impacto, ao atestar a inerente periculosidade
do desenvolvimento científico, quando lançado sem os devidos mecanismos de controle
e prevenção.
Ditos riscos, a rigor, muito embora não se constituam daqueles danos que
prometem, “são antecipações de tragédias que possuem previsibilidade e probabilidade
de ocorrência, [ou seja,] são perigos iminentes” (SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p.
04).
Interessante destacar que, como observou Beck (1998, p. 42), a miséria é
hierárquica, mas a poluição é democrática.
É dizer, há, de certa forma, uma relativização das desigualdades sociais na
sociedade de risco, na medida em que, não obstante, as classes mais abastadas reunirem
melhores condições para comprar a segurança indicada para a prevenção de riscos,
paradoxalmente, o produto adquirido por este poderio econômico não será suficiente para
apresentar uma certeza integral de afastar o perigo.
Ora, afinal de contas, riscos de danos como os causados por uma crise hídrica,
são capazes de atingir a todos, ricos e pobres, já que bebem da mesma água proveniente
da fonte de tratamento e distribuição (SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p. 06).
Para melhor ilustrar, basta observarmos as consequências possíveis em uma
pandemia viral – como a Covid-19 –, ainda que as classes mais favorecidas possuam
acesso às melhores fontes de saúde – como alimentação balanceada e de qualidade,
atividade física sob orientação, medicina preventiva etc. – e de condições de isolamento,
não estarão completamente garantidas do contágio ou mesmo de cura, já que, mesmo em
isolamento, podem chegar a ter contato com objetos advindos de outras localidades, além
de, caso contagiada, podem não encontrar vagas nem nos melhores Hospitais particulares
– diante de uma situação de colapso.
50
E não é só. Há também aquilo que Beck (1998, p. 29) denominou de “efeito
bumerangue”, que, igualmente proveniente da sociedade de risco, consiste num fenômeno
em que os mesmos poderosos grupos econômicos os causadores dos riscos são afetados
por eles mesmos.
Referido efeito bumerangue se manifesta através de uma espécie de fenômeno
social circular que caracterizaria um padrão de distribuição dos riscos, ou seja, grandes
produtores de riscos acabam sendo afetados por estes, como ocorre, por exemplo, em
grandes desastres ambientais produzidos paulatinamente em sucessivas produções de
riscos e, quando finalmente estourados, secam ou pelo menos reduzem a fonte de riquezas
daquelas grandes empresas.
Outra transformação social importante é um considerável incremento de
sensação de medo (BECK, 1998, p. 55), de tal sorte a emergir o elemento segurança a um
dos valores mais cobiçados pela sociedade.
É que, com efeito, uma sociedade capaz de inadvertidamente produzir variadas
e sucessivas situações de risco, a busca por segurança se torna um objetivo comum, capaz
de, inclusive, se converter em um produto comercializável e extremamente rentável, já
que para cada “ameaça civilizacional ‘vende-se’ diversas formas para lidar com os
sintomas e mitigá-los” (SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p. 09).
Com efeito, o paradigma sociológico do risco provocou, também, consideráveis
transformações no campo da economia global, se mostrando imprescindível essa
constatação para compreender, inclusive, a expansão do Direito Penal nas atividades
empresariais, o que será estudado especificamente no próximo item.
Antes, contudo, estudemos a economia na sociedade de risco.
O primeiro elemento para entender a influência do paradigma do risco no campo
econômico advém da natureza pós-industrial deste período em que vivemos,
configurando, nas palavras de Jesus Maria Silva Sánchez:
Desde a enorme difusão da obra de Ulrich Beck, é um lugar comum caracterizar o modelo social pós-industrial em que vivemos como “sociedade do risco” ou “sociedade de riscos”. Com efeito, a sociedade atual aparece caracterizada, basicamente por um quadro econômico que sofre mudanças rápidas e pelo aparecimento de avanços tecnológicos sem comparação ao longo da história da humanidade. O extraordinário desenvolvimento da técnica teve e continua a ter, obviamente, repercussões diretas em um aumento do bem-estar individual. Como também o dinamismo dos fenômenos econômicos.26 (tradução livre de SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 26-27)
26 No original: Desde la enorme difusión de la obra de Ulrich BECK, es un lugar común caracterizar el
modelo social postindustrial en que vivimos como «sociedad del riesgo» o «sociedad de riesgos»
51
Este lugar comum, conforme definido por Silva Sánchez (2001, p. 26-27), tem
sido analisado por todos os que pretenderam se inteirar desse novo paradigma de
expansão do sistema penal (BONACCORSI, 2013, p. 18; RODRIGUES, 2013, p. 113;
SALLES, 2016, p. 18; SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p. 04 etc.).
E a pós-industrialização, que se define por esse modelo de frequentes e
sucessivas transformações econômicas numa velocidade nunca antes vista (SILVA
SÁNCHEZ, 2001, p. 26-27), ganha contornos mais agudos a partir da quarta parte do
século XX, notadamente com a financeirização da economia, que emprestou um novo
significado aos códigos do liberalismo.
O grande marco temporal para essa “nova era”, na Europa e na América do
Norte, se consolidou em meados do início da década de 1980 (DOWBOR, 2016, p. 46),
respectivamente, desde os governos de Margaret Thatcher (Primeira-Ministra do Reino
Unido de 1979 a 1990) e Ronald Reagan (Presidente dos Estados Unidos da América
entre 1981 e 1989).
Já no Brasil, foi da pena do governo de Fernando Collor de Mello (Presidente do
Brasil entre 1990 e 1992) que se anunciou o advento desse novo modelo de “globalização
financeira” (BONACCORSI, 2013, p. 55), a partir de privatizações de estatais para o
capital estrangeiro.
Registre-se, por oportuno, que a década de 1990 foi o período inicial de expansão
do Direito Penal empresarial brasileiro, conforme observado por Silveira (2018, p. 25) e
Saad-Diniz (2018, p. 174), se adequando às recomendações internacionais, que, conforme
será visto no próximo item, são provenientes da abertura mercadológica.
Com efeito, uma das feições do conceito pós-industrial é a característica que a
chamada globalização financeira adquire, quando proporciona, a partir da especulação,
uma multiplicação financeira, sem, contudo, gerar propriamente riquezas com a
transformação da matéria física (DOWBOR, 2016, p. 46), tal qual foi essencial na
sociedade industrial.
É que, no atual sistema econômico, não raro, é mais lucrativo aplicações
financeiras do que o tradicional empreendedorismo. Isto porque é possível notáveis
(Risikogesellschaft). En efecto, la sociedad actual aparece caracterizada, básicamente, por un marco
económico rapidamente cambiante y por la aparición de avances tecnológicos sin parangón en toda la
historia de la humanidad. El extraordinario desarrollo de la técnica ha tenido y sigue teniendo,
obviamente, repercusiones directas en un incremento del bienestar individual. Como también las tiene la
dinamicidad de los fenómenos económicos.
52
rendimentos da renda pela simples aplicação, de modo que o dinheiro vai se multiplicando
através de uma ficção especulativa, sem qualquer correspondência fática/física, como
ocorre no caso do sujeito que compra um bezerro por determinado valor e o vende por
valor superior – agregado pelo ganho de peso e tamanho –, sendo possível ainda, além de
comercializar a carne, uma indústria fabricar objetos como bolsas, sapatos e cintos com
o couro, e comercializar ainda com lucro.
Ou seja, no tradicional modelo industrial o valor agregado possui ressonância no
mundo dos fatos, diante da transformação do produto. Já no financeiro, não passa de uma
ficção, alçada a partir de expectativas de investidores.
Não por outra razão que, conforme alertado por Dowbor (2016, p. 46), o mercado
financeiro chegou a produzir contratos que chegam a quatorze vezes o PIB (produto
interno bruto) anual global.
Por isto que, se todos decidirem simultaneamente sacar o dinheiro que se
encontra nas contas bancárias, os Bancos não poderão entregar, já que grande parte do
numerário é representado por mera especulação financeira, sem qualquer relação com
riquezas físicas próprias da sociedade industrial.
Este novo modelo é duramente criticado por Dowbor (2016, p. 49), a ponto de
afirmar que um “efeito mais amplo é a tendência de dominação geral dos sistemas
especulativos sobre os sistemas produtivos”.
Para o sucesso da financeirização da economia, Dowbor (2016, p. 46) explica
que tanto Ronald Reagan (EUA), quanto Margaret Thatcher (Reino Unido), reduziram os
impostos dos ricos e desmantelaram as leis que regulavam as instituições financeiras
(2016, p. 46-47), facilitando, assim, a circulação de capitais.
No Brasil a situação foi um pouco diferente, haja vista que, como se sabe, em
meados da década de 1980, as instituições brasileiras estavam adotando como discurso
oficial o empenho para uma redemocratização, especialmente a partir de 1985, momento
coroado em 1988 com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil
(CR/88), conforme lembrou Saad Filho e Morais (2018, p. 23).
Registre-se que esses esforços constitucionais brasileiros foram forjados a partir
de um outro arcabouço teórico que, bem diverso do pano de fundo do pós-industrial,
visava a junção dos antigos paradigmas liberal e social. Ou seja, em poucas palavras, o
Poder Público não interferiria nas liberdades individuais e, ao mesmo tempo, se incumbia
de assegurar os direitos e garantias fundamentais – especialmente os previstos no artigo
53
5º da CR/88 – e o de promoção de direitos sociais – previstos, principalmente, no artigo
6º da CR/88.
Assim, com a junção das perspectivas de Estado Liberal e Social é que foi
promulgada, tardiamente no Brasil, a Constituição da República de 1988, com todas as
conhecidas promessas da modernidade, com inspirações no já à esta altura, registre-se,
abandonado pelos EUA e Reino Unido, Estado de bem-estar social.
Com efeito, este novo modelo econômico da sociedade do risco tem recebido
diversas denominações, desde a já referida pós-industrial (BECK, 1998; SILVA
SÁNCHEZ, 2001), até “era do capital improdutivo (DOWBOR, 2016), ou até mesmo, de
neoliberalismo”27 (DARDOT e LAVAL, 2018; FOUCAULT, 200828; SAAD FILHO e
MORAIS, 2018; WACQUANT, 2011; ZAFFARONI e SANTOS, 2019).
Assim, numa perspectiva mais pessimista sobre a atual economia global, os
professores Pierre Dardot e Christian Laval apresentam o que seria o aludido
“neoliberalismo”:
(...) o neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação. O termo racionalidade não é empregado aqui como um eufemismo que nos permite evitar a palavra “capitalismo”. O neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo, de um capitalismo desimpedido de suas referências arcaizantes e plenamente assumido como construção histórica e norma geral de vida. O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência. (DARDOT e LAVAL, 2018, p. 17)
27 Desde uma perspectiva crítica, Sozzo (2017, p. 12 ss.), ao analisar a expansão carcerária, nega que a América do Sul já tenha sediado o neoliberalismo, defendendo se tratar, a bem da verdade, de um pós-
neoliberalismo. Assim, Máximo Sozzo afirma que, diverso do neoliberalismo, aqui tivemos uma forte
intervenção estatal na economia, os processos de reestatização de diversas atividades produtivas e serviços
públicos, as políticas de relações exteriores afastadas do Norte Global e a expansão das políticas sociais
são algumas faces das inovações introduzidas no marco destes processos de mudança política que
implicaram substância a uma identidade “pós-neoliberal” Sozzo (2017, p. 14). Pensam diferente, vislumbrando o neoliberalismo na América do Sul: Dardot e Laval (2018); Foucault (2008); Saad Filho e Morais (2018); Wacquant (2011); Zaffaroni e Santos (2019); bem como Dowbor (2016), ainda que não utilize referida terminologia, mas o conteúdo do que chama de capital improdutivo guarda muitas semelhanças. 28 Interessante observar que Foucault (2008, p. 107) atesta que o neoliberalismo é calcado em dois grandes marcos: o primeiro remonta à crise de 1929 da Alemanha que desembocou num movimento intelectual crítico ao nazismo, e, após, ter se reestruturado no pós-guerra; o segundo remonta ao modelo estadunidense, erigido no pós-guerra. O foco de ambos é o mesmo, obstruir a assistência social do intervencionismo estatal e a planificação econômica, idealizada por John Maynard Keynes (1883-1946).
54
Essa racionalidade concorrencial acaba por, de certa maneira, desmerecer a
atividade estatal de regulação da atividade econômica – dentre tantos outros seguimentos,
à exceção da segurança pública e da saúde –, fenômeno que mereceu de Michel Foucault
o diagnóstico de uma “fobia do Estado” (FOUCAULT, 2008, p. 104), manifestada por
um discurso que gera crises de governamentalidade que remontam pelo menos ao século
XVI, passando pelos autoritarismos do século XVIII, nazismo, experiência soviética etc.
(FOUCAULT, 2008, p. 104).
A rigor, todo esse processo de redução do âmbito de atuação estatal
proporcionou um novo tratamento para a questão da gestão dos riscos, de tal sorte a, ainda
que relegando boa parcela para o Direito Penal – inclusive com uma ampliação, a exemplo
dos delitos de perigo (SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p. 11) –, surgiu a necessidade
da democratização da gestão dos riscos.
Desta sorte, retira-se do Estado o monopólio da gestão dos riscos, inclusive
alguns de natureza criminal, como pode ser observado, a título de ilustração, no “dever
de entidades privadas comunicarem operações suspeitas ao Conselho de Controle de
Atividade Financeira” (COAF) (SANTANA e TAMBORLIN, 2015, p. 12), previstas
num extenso rol no artigo 9º da Lei n. 12.683/12, no intuito de impedir e/ou atestar a
lavagem de dinheiro da Lei n. 9.613/98.
Na mesma esteira, como soa evidente, a importância de implantação de
programas de compliance nas empresas surge também, de certa forma, como uma espécie
de privatização/democratização da gestão dos riscos (BUSATO, 2020, p. 03-04;
BUSATO, 2018, p. 97).
Com efeito, o Estado vem perdendo a importância que já teve diante do atual
capital globalizado (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 73), através de um discurso de
minimização dos custos e não imposição de barreiras ao capital estrangeiro. O mercado
financeiro prescinde – e de certa forma até menospreza – do desenvolvimento do território
estatal, mas brada por uma economia globalizada, sem fronteiras, que é especulativa, e
não produtiva, emergindo, daí, governos cooptados pelo mercado (DOWBOR, 2016, p.
118/119).
Nas palavras de Ladislau Dowbor:
O gigante corporativo, que abraça muito mais recursos do que a sua capacidade de gestão, é demasiado fechado e articulado para ser regulado por mecanismos de mercado, e poderoso demais para ser regulado por governos eleitos. Veremos adiante os desmandos que provoca este gigantismo em termos de capacidade de gestão. O resultado é que o sistema financeiro mundial gira
55
solto, jogando com valores que representam muitas vezes o PIB mundial. (DOWBOR, 2016, p. 50)
Desde este ponto de vista, constata-se certa sobreposição do mercado sobre o
Estado (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 73), fenômeno econômico contemporâneo
que se encontra difundido em diversas localidades (pelo menos) ocidentais, de tal sorte a
corporações mandarem em políticos (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 77).
Partindo da perspectiva da política criminal Silva Sánchez (2001, p. 103) chega
à mesma conclusão de apequenamento dos governos nacionais.
Neste contexto, é necessário reconhecer que o novo paradigma sociológico do
risco reformulou não apenas o cotidiano da sociedade, mas, em decorrência, nos
apresentou um novo modelo de mercado e de Estado, de tal sorte a, numa aparente
ambiguidade, tanto reduzir o âmbito de atuação estatal dando espaço ao privado – que
proporciona novos institutos, como o próprio compliance, que será estudado no item 4.3
– como ampliar o local de incidência do Direito Penal, notadamente o empresarial, a
seguir estudado.
4.2 A expansão da repressão penal empresarial
A expansão do Direito Penal na chamada “Era da sociedade de risco” tem
provocado, em uma frequência alucinante, processos de criminalizações – primária, com
edições de leis, e secundária, com persecuções pelas agências de segurança pública e
ações penais –, em variados seguimentos do cotidiano social.
Com isso, o Direito Penal liberal, antes na posição de ultima ratio para a
resolução tão somente dos conflitos mais importantes, passou a se modular com uma
orientação para fiscalizar/reprimir inúmeras e incontáveis modalidades de relações
sociais, se ampliando para quase todos os fatos do cotidiano.
Nesta esteira, especialmente as grandes potências econômicas europeias, os
Estados Unidos e o Canadá, presenciaram, desde a década de 1980 (SILVA SÁNCHEZ,
2001), uma expansão do chamado Direito Penal econômico – e, em ato contínuo, o
empresarial. Não obstante, países de capitalismo tardio, como o Brasil, também têm
presenciado tal transformação do controle penal, que desafia o postulado liberal de
utilização do Direito Penal como a ultima ratio.
Com efeito, o fenômeno ocidental da expansão do Direito Penal econômico –
notadamente em face da atividade empresarial – está umbilicalmente ligado à estudada
56
sociedade do risco (SILVA SÁNCHEZ, 2019, p. 5) e, por conseguinte, à globalização
financeira (BONACCORSI, 2013, p. 55).
E um dos “carros-chefes” – talvez o maior – da ampliação da repressão penal
empresarial é, em grande medida, o tratamento penal ao perigo – notadamente o abstrato
–, que, a partir da globalização, a máquina punitiva passou a prescindir do dano para a
sua habilitação (HASSEMER, 1994, p. 49; SILVEIRA, 2018, p. 41), de forma a modular
o sistema penal para antecipar a repressão com o fim de prevenir o dano (HASSEMER,
1994, p. 50).
Como adiantado, a expansão da repressão penal ocidental teve início nos países
de economia central, na Europa Ocidental (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 69;
HASSEMER, 1994, p. 41) e, principalmente a partir do medo ao terrorismo, nos Estados
Unidos da América (BONACCORSI, 2013, p. 36), naturalmente pelo fato de ter sido eles
– conforme visto no item acima – os pioneiros na experimentação do paradigma do risco
bem como a globalização financeira.
E aqui é interessante ressaltar a análise do professor Silva Sánchez (2019, p. 5),
que admite que a expansão do Direito Penal econômico na sociedade de risco se deu com
o discurso de proteção do Estado do bem-estar social do avanço da liberdade econômica
empresarial – proveniente da globalização financeira –, como questões de corrupção,
proteção do meio ambiente, finanças públicas etc.
A bem da verdade, “cada sistema econômico produz sua criminalidade própria”
(CASTILHO, 1996, p. 77), ou seja, a economia da globalização financeira trouxe um
novo tipo de criminalidade original e único, inteiramente dependente de suas bases,
inclusive o paradigma do risco. Neste sentido, extrai-se da pesquisa da Prof.ª Ela Wiecko
Volkmer de Castilho:
A criminalidade econômica que é objeto da investigação empírica é uma criminalidade própria da ordem econômica capitalista brasileira. Só pode ser pensada dentro do quadro estrutural dessa ordem e só poderá ser erradicada por outra ordem econômica. (CASTILHO, 1996, 77)
A partir desta lente, percebe-se que uma das causas do referido giro
criminológico reside na transformação das normas de cultura da sociedade globalizada
pelos riscos e pela economia, que, por conseguinte, modulam as normas jurídicas, na
medida em que estas, tal qual defendia Mayer (2000, p. 57), buscam fundamento na
57
cultura. De maneira semelhante – sem, contudo, partir de Mayer –, também entendeu
Silva Sánchez (2001, p. 109).
Com Hassemer (1994, p. 44-45), contatamos três características presentes na
nova criminalidade: presença de vítimas coletivas ao invés de individuais – como em
questões ecológicas ou macroeconômicas; baixa visibilidade dos danos – nem sempre
perceptível por sentidos comuns humanos, como a visão; e novas formas de agir – mais
sutis e menos evidentes.
Daí que referidas características promovem consideráveis modificações na
criminalidade tradicional, emergindo campos como o comércio exterior, o ecológico, uma
nova criminalidade econômica etc. (HASSEMER, 1994, p. 44). A título de ilustração,
assim expõe Winfried Hassemer sobre a nova criminalidade econômica:
A criminalidade econômica como tal sempre existiu, no sentido de que uma pessoa causa danos aos interesses econômicos de uma outra pessoa, fraude, falta de fidelidade econômica etc. Mas a criminalidade econômica moderna é bem diferente. Não se trata de casos individuais, não se trata de apenas uma pessoa como vítima, mas se trata de estratégias. A criminalidade econômica moderna é difusa - eu volto a especificar isso – mas repito que a criminalidade econômica moderna é diferente da criminalidade clássica; as vítimas, de regra, são pessoas jurídicas. (HASSEMER, 1994, p. 43-44)
Trata-se, portanto, de um novo paradigma penal e processual penal, com o foco
numa criminalidade com menos vestígios que a já conhecida (CALDEIRA, 2017, p. 145).
Neste sentido, de maneira um tanto quanto mais detalhada, assim sintetizou o Prof. Felipe
Caldeira:
As novas pesquisas jurídicas e criminológicas dos anos setenta, passaram a questionar este modelo tradicional. Crimes como a dissolução fraudulenta de sociedade, as fraudes bancárias e de crédito e outros crimes econômicos, por regra, não deixaram rastros visíveis, senão dados contábeis e documentos interpretáveis, cujo significado só seria acessível aos magistrados por meio de peritos especialistas. São os crimes não perceptíveis sensorialmente, ou quase invisíveis ou de difícil percepção sensorial. Em crimes como estes, a prova testemunhal é irrelevante, porém a constatação dos elementos legais do crime, em geral, dependem da interpretação técnica dos peritos especialistas, capazes de reconstruir complexos movimentos de dinheiro, que tem o mesmo aspecto exterior que qualquer operação bancária lícita. Por outro lado, enquanto o modelo de crime clássico o autor ou os autores atuavam individualmente e eram facilmente identificáveis, nos crimes econômicos o autor do crime pode se diluir em diversos sujeitos que domam decisões apenas parciais. (CALDEIRA, 2017, p. 145)
Noutra ponta, quanto à antecipação da repressão penal para prevenir o dano,
apontada por Hassemer (1994, p. 50), advém do medo e da sensação de insegurança
58
causados pelos riscos, não apenas de situações mais drásticas como o terrorismo
(BONACCORSI, 2013, p. 36), mas, notadamente, por questões do cotidiano, como o
próprio tráfego de veículos automotores.
Não obstante, válido ressaltar, igualmente, que a sociedade e as instituições
adquiriram uma complexidade tal que dá vazão a uma insegurança de outra natureza, qual
seja a jurídica. Esta é mais evidente ainda em localidades de economia periférica – como
o Brasil –, razão pela qual a consultoria jurídica – daí o próprio compliance, que será
analisado no próximo tópico – assumiu uma posição de destaque na sociedade
contemporânea.
Ora, afinal de contas, em qual outro período histórico foi importante para uma
pessoa, por exemplo, contratar um escritório de advocacia para formular um parecer de
risco jurídico para verificar o (des)cumprimento de TAC para reformar uma casa de
veraneio.
Com efeito, para além das penalidades de um descumprimento de um TAC –
que por si só já configurariam um dano –, responder a um processo – ainda que
administrativo, como no MP –, constitui-se num incontestável risco jurídico, quando não
num próprio dano, na medida em que, a partir da pesquisa de Feeley (1992, p. 199), o
processo já é, em si, uma punição.
O processo penal é uma punição/dano por variados fatores. A começar pelo fato
de o novo Direito Processual Penal “usar e abusar” do modelo da justiça negociada, que,
a exemplo do Plea Bargaining (FEELEY, 1992, p. 185), permite trocar o processo por
uma punição (menor, mas) imediata, de tal sorte a, todo aquele que responder a um
processo já estará sujeito a todas as formas de pressão para já receber uma punição ao
invés do prosseguimento da acusação.
Mas é o processo penal dano/punição também pela possibilidade de diversas
medidas cautelares, tal qual a própria prisão preventiva do artigo 311 do CPP, ou mesmo
as alternativas, como as do artigo 319 do CPP.
Ora, afinal de contas, as medidas cautelares processuais penais configuram
danos tais quais – ainda que temporariamente – aqueles das penas, diante de restrições de
bens como a liberdade e o patrimônio.
Isto sem considerar toda a carga emocional de angústias e ansiedade que
acompanha um processo, provocando danos muitas vezes inesquecíveis e irreparáveis à
memória do indivíduo.
59
Como já adiantado alhures, o Direito Penal brasileiro presenciou, desde a década
de 1990 (SILVEIRA, 2018, p. 25; SAAD-DINIZ, 2018, p. 174), a expansão da repressão
econômica e, inclusive, empresarial, se adequando às recomendações internacionais,
provenientes da abertura mercadológica (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 103;
BONACCORSI, 2013, p. 55), num giro epistemológico da repressão aos street crimes
para os white-collar crimes (SAAD-DINIZ, 2018, p. 174).
Neste sentido, não obstante o legislador penal brasileiro já conservar, desde o
Código Penal de 1940, uma cultura de multiplicação de leis penais, com 91 leis, decretos-
lei e decretos (FRAGOSO, 2015, p. 299) até março de 1985, após este período a situação
ficou ainda mais evidente, somando 111 leis entre 1985 e 2011, tempo em que foi
concluída a tese do Prof. Fragoso (2015, p. 302)29:
(...) análise da quantidade de leis penais mostra que a média anual de leis penais no período de 26 anos entre 1985 e 2011 (cerca de 4,27 leis por ano) é mais do que o dobro da média anual de leis penais editadas no período de 44 anos entre 1941 e 1985 (2,07 leis por ano), o que indica que, nas últimas décadas, houve uma aceleração da tendência à expansão da criminalização primária. (FRAGOSO, 2015, p. 309)
Noutro contexto, também é possível observar outro elemento que, paralelo às
questões do risco e da globalização financeira, impulsionou a expansão do Direito Penal
em diversas dimensões, inclusive na econômica. Trata-se da nova agenda criminal de
partidos de esquerda.
Isto porque, a partir de Silva Sánchez (2001, p. 69-70), constata-se que, muito
embora o discurso punitivista ganhasse mais adeptos em movimentos políticos da direita,
notadamente através da ideologia da “lei e ordem” – enquanto a esquerda defendia a
contenção do poder punitivo – percebeu-se um giro político criminal dos partidos de
esquerda de tal sorte a se filiarem à agenda expansionista da repressão penal.
Na pesquisa da professora Maria Lúcia Karam, isso que ela denominou de
“esquerda punitiva”30 ganhou vida nos movimentos feministas da década de 1970
bradando por resposta penal mais severa às violências contra mulheres, chegando,
posteriormente, a angariar demais movimentos da esquerda, a começar pela pauta
ambiental (KARAM, 1996, p. 79).
29 O professor Christiano Fragoso enumerou, em notas de rodapé da publicação de sua tese de Doutorado (FRAGOSO, 2015, p. 299-310) todas as referidas leis, decretos-lei e decretos. 30 Críticas à referida esquerda punitiva também podem ser encontradas em Carvalho (2010, p. 98) e em Rodrigues (2013, p. 120).
60
Noutro norte, registre-se que, não obstante a repressão penal empresarial e
econômica vir se alastrando no Ocidente da década de 1980 em diante, trata-se, na
realidade, de uma expansão mais intensa (SILVA SÁNCHEZ, 2001), mas não do seu
surgimento. Aliás, inclusive no Brasil, conforme se extrai de Castilho (1996, p. 72), a
título de ilustração, encontra-se leis provenientes do Direito Penal econômico pelo menos
desde a década de 1940, como o Decreto-lei n. 7.661/45 (crimes falimentares, arts. 186 a
199) a Lei n. 1.521/51 (crimes contra a economia popular) etc.
E a preocupação com a necessidade da criminalização econômica já havia se
manifestado inclusive há mais tempo, pelo menos desde Edwin H. Sutherland que, ainda
na década de 1930, já estudava aquilo que denominou crime de colarinho branco,
chegando a diferenciar, por exemplo, o ladrão convencional do criminoso de colarinho
branco (SUTHERLAND, 2016, p. 338-339), expor os estereótipos que podem imunizar
este e criminalizar aquele (SUTHERLAND, 2016, p. 340-341), além de já – dentre tantas
outras questões – relacionar condenações criminais de empresas (SUTHERLAND, 2016,
p. 106).
Portanto, o que pode ser observado nos últimos quarenta anos é uma
intensificação – e não instauração – da criminalização de empresas.
Com efeito, essa intensificação da criminalização econômica e empresarial se
inscreve numa agenda internacional coordenada por instituições poderosas – como o
próprio Banco Mundial – que impõem aos países obediências a, por exemplo, programas
internacionais de cooperação anticorrupção (PALIFKA e ROSE-ACKERMAN, 2016, p.
446).
Referido processo foi descrito pelos professores Bonnie Palifka e Susan Rose-
Ackerman:
Instituições internacionais, especialmente o Banco Mundial, começaram a promover uma agenda anticorrupção em meados da década de 1990. O fim da Guerra Fria facilitou essas iniciativas porque as regras corruptas não podiam continuar a jogar um bloco contra o outro. Por um tempo, a agenda anticorrupção das instituições internacionais e seus poderosos apoiadores dos países ricos não encontrou oposição significante; o poder de barganha dos defensores nacionais da anticorrupção também aumentou.31 (tradução livre de PALIFKA e ROSE-ACKERMAN, 2016, p. 446)
31 No original: International institutions, especially the World Bank, began to promote an anticorruption
agenda in the mid-1990s. The end of the Cold War facilitated these initiatives because corrupt rules could
not continue to play off one bloc against the other. For a time, the anti-corruption agenda of international
institutions and their powerful backers in wealthy countries faced no significant opposition; the bargaining
power of domestic anticorruption advocates also increased.
61
Note-se, por oportuno, que a agenda expansionista é um fenômeno
extremamente complexo, se valendo de bases multifatoriais – paradigma do risco,
globalização financeira, medo/insegurança etc. – e atores multifacetados – domésticos e
internacionais.
Mas não é só. Não obstante a mutação legal imposta pela agenda expansionista,
o modo de agir das agências penais também tem sofrido profundas transformações, não
raro, para além das novas previsões legais e inclusive em confronto com o próprio
ordenamento jurídico, cujas regras garantistas vêm se esvaindo paulatinamente.
Neste contexto, o caso mais emblemático brasileiro é o da apelidada “Operação
Lava Jato”, que, como já adiantado alhures, importou mecanismos persecutórios da
italiana Mani Pulite (COUTINHO, 2019, 135 ss.).
Daí que, em que pese a legislação doméstica já prever tecnologias jurídicas como
a colaboração premiada, transplantada do estrangeiro (ZILLI, 2019, p. 118), as agências
penais acabaram se valendo de práticas espúrias e ilegais, como a de, entre outras, usar a
prisão para pressionar a confissão e “métodos de colaboração” com a Justiça
(COUTINHO, 2019, p. 149; SAAD, 2019, p. 182).
No que diz respeito ao menosprezo à legalidade, assim resumiu o Prof. Jacinto
Coutinho:
Em largos aspectos, o que se consome é a legalidade, mas, antes, a solidariedade, sem a qual a qual a sociedade aponta para a barbárie. Por parte dos órgãos do Estado, o uso do poder tende a ser arbitrário, com os fins justificando os meios. Dentre os cidadãos, sem um poder pré-constituído, cada um tendo que fazer por si, aponta-se para a ilegalidade ou, no mínimo, comportamentos que se coloquem na fronteira entre o lícito e o ilícito. É como se todos fossem empurrados para esse lugar. (COUTINHO, 2019, p. 140).
Percebe-se, portanto, que a prática expansionista da legislação e formas de agir
penais foi irresistível, acometendo inclusive, e de maneira notável, o cenário brasileiro,
cuja recepção nem de todo se deu em apreço à legalidade.
Mas, em boa medida, como se observa, a recepção brasileira obedece uma
espécie de globalização jurídico-penal, com o propósito de apresentar respostas
uniformes e harmônicas à criminalidade transnacional (SILVA SÁNCHEZ, 2001, p. 88),
diante de práticas delituosas que perpassam sucessivamente diversos países, os que
criminalizam, compelem os demais a qualificarem a repressão (SILVA SÁNCHEZ, 2001,
p. 110), sob pena de, por exemplo, não ingressarem em grupos econômicos.
62
Registre-se que, um dos mais genuínos produtos da universalização jurídica é o
Compliance, notadamente em sua feição criminal que, é forçoso reconhecer, dificilmente
chegaria ao Brasil de maneira espontânea.
4.3 O instituto do criminal compliance: panorama geral
Como soa evidente, a discussão acerca do criminal compliance não teria sentido
antes do já analisado período de intensa profusão da repressão penal – notadamente em
face de atividades correlacionada à seara empresarial – (BUSATO, 2020, p. 03), e muito
menos a importação brasileira do instituto pareceria possível sem o fenômeno da
globalização.
Entretanto, em que pese o estudo do compliance na seara criminal ser um tanto
quanto recente (BUSATO, 2020, p. 02), o direito empresarial já o conhece há mais tempo,
sendo apontado como seu antecedente histórico nas tentativas de regulação do mercado
financeiro após a crise de 1929 referente à Bolsa de Valores de Nova Iorque (SILVEIRA
e SAAD-DINIZ, 2015, p. 247).
Desta feita, o compliance, também conhecido como programa de conformidade
(ou de integridade), no sentido de cumprimento (to comply) das normas, surgiu nos
Estados Unidos da América como resposta à chamada “Grande Depressão” (SALLES,
2017, p. 95), com o “claro propósito de prevenção de delitos econômicos empresariais
através de uma correlação estatal e privada” (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 114).
Já a feição criminal do compliance program é produto mais recente, tendo suas
bases estabelecidas na década de 1990 a partir de um novo conceito administrativo
estadunidense, o Good Corporate Citizen (Bom Cidadão Corporativo), enunciando uma
nova ética empresarial, de “fidelidade/lealdade” ao Direito (SILVEIRA e SAAD-DINIZ,
2015, p. 118), com o propósito de superar práticas como a do suborno por parte de grandes
corporações que, a título de ilustração, como apresentado por Silveira e Saad-Diniz (2015,
p. 118), recebia inclusive previsão legal (§ 370, AO) para dedução tributária capitulada
como gastos na Alemanha até 1996.
E não poderia ser diferente, na medida em que o universo corporativo assumiu
outros patamares, conforme destacou Prof. Paulo C. Busato:
No plano da política criminal, o estudo dos sistemas de cumprimento das empresas inscreve-se como um dos mais importantes desta quadra histórica. Isto em virtude de, ao menos, três fatores: a) as empresas sofreram uma ampla
63
transformação estrutural desde o seu surgimento até hoje, convertendo-se em uma imensa fonte de poder, por vezes superior aos próprios Estados; b) existe hoje uma realidade criminológica que aponta na direção de um envolvimento cada vez maior das empresas em práticas delitivas; e c) o desenvolvimento de ambientes corporativos fortemente hierarquizados e com tarefas divididas impõe viéses de atuação coletiva que desgarram completamente das intervenções individuais. (BUSATO, 2018, p. 89)
Não obstante, em que pese o discurso oficial dos entusiastas do instituto de se
tratar de uma nova ética empresarial de fidelização da atividade ao Direito, note-se que,
em certa medida, o compliance está também inserido na agenda da globalização
financeira32 de um “Direito mundial” (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 122),
constituindo-se numa ferramenta que se dispõe a prevenir e regular disfunções e crises –
concretas e em potencial – advindas de uma economia que se pretende sem qualquer
regulação do Poder público.
É dizer, a regulação privada proporcionada pelo compliance sustenta o discurso
de desnecessidade do Estado para intervir diretamente – inclusive na seara criminal – na
economia, reduzindo o Estado (DOWBOR, 2016, p. 118/119) e privatizando a gestão dos
riscos (BUSATO, 2020, p. 03-04; BUSATO, 2018, p. 97). Reafirma-se, portanto, aquele
diagnóstico foucaultiano de presença de uma fobia ao Estado (FOUCAULT, 2008, p.
104).
Não obstante, os programas de compliance ganharam o mundo, chegando ao
Brasil principalmente a partir da Lei de Lavagem de Capitais (Lei 9.613/98) que
regulamentou deveres como a “criação de sistema de identificação dos clientes e
manutenção de registros (art. 10) e o dever de comunicação de operações financeiras às
autoridades financeiras (art. 11) e a derivada previsão de responsabilidade administrativa
pelo descumprimento dos deveres (art. 12)” (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 175-
176).
Desencadeia-se, a partir daí, um acolhimento em série do instituto por parte de
instituições brasileiras, que passaram a emitir normas regulamentando a sua implantação
(SAAVEDRA, 2011, p. 11; SAAVEDRA, 2012, p. 22; SILVEIRA e SAAD-DINIZ,
32 O GAFI, com o propósito de influenciar a regulação da globalização financeira, atribui como a primeira
das suas quarenta recomendações a identificação, avaliação e compreensão dos riscos (compliance):
https://www.cfatf-gafic.org/es/documentos/gafi40-recomendaciones/407-fatf-recomendacion-1-
evaluacion-de-riesgos-y-aplicacion-de-un-enfoque-basado-en-riesgo. Ainda, emitiu minucioso documento
intitulado National Money Laundering and Terrorist Financing Risk Assessment: https://www.fatf-
gafi.org/media/fatf/content/images/national_ml_tf_risk_assessment.pdf
64
2015, p. 181), notadamente o Conselho Monetário Nacional com a edição da Resolução
n. 2.554/98 e o Banco Central do Brasil com a Carta Circular n. 3.461/99, posteriormente
aprimorada pela Carta Circular n. 3.542/12.
Contudo, os programas de integridade receberam maior relevância no cotidiano
brasileiro a partir da criação do COAF pela Lei n. 12.683/12, que alterou, principalmente,
os artigos 10 e 11 da Lei 9.613/98 (SALLES, 2017, p. 97), e, finalmente (SILVEIRA e
SAAD-DINIZ, 2015, p. 183), pela chamada Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/13), que,
regulamentada posteriormente pelo Decreto n. 8.420/15, teve “ancestralidade
paradigmática no ordenamento internacional, sobretudo nas leis cogêneres dos Estados
Unidos e Reino Unido (FCPA e U.K. Bribery, respectivamente)” (WALKER JÚNIOR,
2017, p. 261)33.
Neste sentido, a importação brasileira do instituto prometia às empresas e toda a
gama que com ela relaciona – como o Poder Público, os investidores, os empregados, os
clientes etc. – um instrumento de implementação de legalidade à atividade empresarial,
com a consequente “diminuição dos riscos” (BRODT, 2019, p. 32).
O Prof. James Walker Júnior explica melhor o instituto:
O Compliance, do verbo inglês to comply, significa observar, obedecer ou cumprir algo que lhe seja imposto, garantido-se a “conformidade” das condutas esperadas pelos entes coletivos. O conjunto de medidas tendentes a conduzir o processo de “conformidade”, denomina-se Compliance Corporativo, o qual se materializa pela conjugação dos esforços de governança implementados na estrutura administrativa das corporações, tanto quanto pela adoção de procedimentos de controles internos e externos (estes últimos relativos aos atos terceirizados). (WALKER JÚNIOR, 2017, p. 261)
Curioso observar que esse conceito de Compliance originalmente surgira no
campo da medicina, no sentido de aferição do grau conformidade do paciente aos
protocolos de comportamento exigidos para o procedimento prescrito pelo médico
(BRODT, 2019, p. 31; SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 65).
Contudo, é necessário observar que entender o instituto como mero programa de
conformidade às normas jurídicas configura um reducionismo estéril e, notadamente,
tautológico, na medida em que nenhuma seara do conhecimento que toca o Direito chegou
a admitir agir desconforme aos postulados normativos.
33 Um estudo mais aprofundado sobre as origens e repercussões globais do FCPA e do U.K. Bribery Act é possível ser encontrado em Filho (2017, p. 30 ss.).
65
A bem da verdade, para além da referida redundância, o compliance foi pensado
para pessoas jurídicas, no sentido de prevenção e gestão de riscos eventualmente
provocados por terceiros, “empregados e dirigentes da empresa” (WALKER JÚNIOR,
2017, p. 261).
É que, estar em conformidade não garante a inexistência de risco de um ou outro
funcionário violar uma norma.
Com efeito, o mesmo padrão conceitual é observado no Compliance
Corporativo, na medida em que à atividade empresarial também é prescrita protocolos de
comportamento, sendo estes, contudo, proferidos pelas leis e regulamentações34 às
mesmas, de tal sorte à implantação do programa implementar um sistema de análise de
risco cujos mecanismos de controle internos da instituição deem conta de uma efetiva
redução de riscos de transgressões legais que gerem sanções, prejuízo econômico e
reputacional, provocando uma efetiva mudança cultural que preze pela legalidade (ABBI
e FEBRABAN, 2004, p. 9).
Como já adiantado alhures, o Compliance se apresenta, pelo menos no discurso
oficial, como um instrumento de efetivação da subsidiariedade do Direito Penal, na
medida em que incide na prevenção, se valendo, em boa medida, de normativas
administrativas.
Não obstante, forçoso reconhecer, como mencionado por Silveira e Saad-Diniz
(2015, p. 285), que há uma diferença do Direito Penal tradicional em relação à dimensão
criminal do instituto, na medida em que este atua preventivamente, e aquele, como se
sabe, posteriormente à ocorrência criminal.
Ao contrário do que se possa pensar, como também ressaltado por Silveira e
Saad-Diniz (2015, p. 285), a função do compliance não se limita à dimensão preventiva,
mas inclusive a de induzir punições à figura do compliance officer3536, que é aquele que,
conforme afirmado por Silveira e Saad-Diniz (2015, p. 142), é “a cabeça de ponte do
programa”, coordenando a fiscalização interna – em substituição, ou pelo menos, em
subsidiarização ao Estado, como destacado por Busato (2020, p. 03-04).
34 Para além das regulamentações de instituições internas, como as já referidas circulares e resoluções, um bom exemplo de regulamentações são as regras ISO 19.600, 31.000 e 37.001, consistentes em documentos internacionais que regulam, respectivamente, o Sistema de Gestão de Compliance, Sistema de Gestão de Riscos e Sistema de Gestão Antissuborno. 35 Para aprofundar na questão da responsabilidade por omissão imprópria do compliance officer: Alban (2017, p. 445), Busato (2020, p. 17 ss.), Planas (2016, p. 245 ss.), Silveira e Saad-Diniz (2015, p. 142 ss.). 36 Interessante a análise realizada por Alban (2017, p. 438) em relação ao conflito entre as incumbências do compliance officer de comunicar/denunciar os desvios às autoridades públicas e o direito a não produzir provas contra si mesmo (art. 5º, LXIII, CR/88).
66
Registre-se que, conforme se extrai de Planas (2016, p. 245-246), a figura do
compliance officer mereceu maior atenção do Direito Penal, em termos globais, quando
de um julgamento pelo Bundesgerichtshof (Tribunal Federal Alemão) em 17/07/2009.
Anteriormente, muito embora já existente, se limitava, como destacado por Silveira e
Saad-Diniz (2015, p. 143), à jurisprudência estadunidense.
No referido julgamento, o BGH julgou responsável criminalmente um
funcionário de determinada instituição de Direito Público (SILVEIRA e SAAD-DINIZ,
2015, p. 143), entendendo-o como garante da comissão que dirigia e, na função, se omitia
dos erros referentes aos cálculos sobre taxas que eram pagas pela população. Ou seja, a
posição de Diretor que ocupava se assemelhava-se à de um compliance officer, passível
de omissão imprópria.
Segue trecho do sentenciado pelo BGH:
Essa diretriz, que foi chamada de “conformidade” em grandes empresas nos últimos anos, foi implementada no mundo dos negócios e criou os chamados “responsáveis pela conformidade” (ver BGHSt 52, 323, 335; Hauschka, Corporate Compliance 2007 S. p. 2). Sua área de responsabilidade é a prevenção de violações da lei, especialmente crimes cometidos pela empresa, que podem causar danos consideráveis para o cliente, devido a riscos de responsabilização jurídica ou perda de reputação (ver Bürkle em Hauschka op. cit. p. 128). Esses representantes autorizados cumprem regularmente uma obrigação de garantidor, na acepção do artigo 13, parágrafo 1 do Código Penal alemão, a fim de impedir tais crimes de membros da empresa relacionados às atividades empresariais. Essa é a desvantagem necessária do dever desses agentes para com a administração, a fim de evitar violações legais e, em particular, ofensas criminais (ver Kraft/Winkler CCZ 2009, 29, 32).37 (tradução livre de ALEMANHA, 5 StR 394/08, 2009).
Noutro norte, importante registrar, a partir de Busato (2020, p. 12) que o criminal
compliance adquiriu relevância tamanha nas pesquisas jurídico-penais que chegou a ser
positivado nos parágrafos 2 e 4 do artigo 31-bis do Código Penal espanhol em 2015, como
causa excludente de responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
37 No original: Eine solche, neuerdings in Großunternehmen als "Compliance" bezeichnete Ausrichtung,
wird im Wirtschaftsleben mittlerweile dadurch umgesetzt, dass so genannte "Compliance Officers"
geschaffen werden (vgl. BGHSt 52, 323, 335; Hauschka, Corporate Compliance 2007 S. 2 ff.). Deren
Aufgabengebiet ist die Verhinderung von Rechtsverstößen, insbesondere auch von Straftaten, die aus dem
Unternehmen heraus begangen werden und diesem erhebliche Nachteile durch Haftungsrisiken oder
Ansehensverlust bringen können (vgl. Bürkle in Hauschka aaO S. 128 ff.). Derartige Beauftragte wird
regelmäßig strafrechtlich eine Garantenpflicht im Sinne des § 13 Abs. 1 StGB treffen, solche im
Zusammenhang mit der Tätigkeit des Unternehmens stehende Straftaten von Unternehmensangehörigen zu
verhindern. Dies ist die notwendige Kehrseite ihrer gegenüber der Unternehmensleitung übernommenen
Pflicht, Rechtsverstöße und insbesondere Straftaten zu unterbinden (vgl. Kraft/Winkler CCZ 2009, 29, 32).
67
Em que pese a importância do instituto para imprimir mais transparência e
integridade na atividade empresarial, atributos essenciais para uma orientação para o
lícito e hígido desenvolvimento econômico, é forçoso reconhecer a frequente má-
utilização do instituto.
Não por outra razão que Saad-Diniz (2019, p. 23), citando William Laufer,
qualifica de compliance game as “iniciativas corporativas de fachada” em que um jogo
entre os reguladores e os regulados simula a implantação do programa para ludibriar a
fiscalização e legitimar a atividade empresarial.
Desde um ponto de vista ainda mais pessimista, o Prof. Paulo Busato faz duras
críticas ao desvirtuamento do compliance, reconhecendo como uma privatização do
processo penal para blindar as empresas das investigações mais importantes (BUSATO,
p. 2020, p. 05). Extrai-se deste trecho uma síntese da sua inquietação:
Por muitas nuances que podem ser impostas, tal opção, naturalmente, converte a empresa em juiz de si mesma. Afinal, se a descoberta das violações das regras de cumprimento ocorre internamente, é a mesma empresa que decide quando houve ou não um evento digno de se noticiar para as autoridades públicas, para sua persecução. Assim, não apenas se seleciona se o delito chega ou não a ser conhecido pelas autoridades, como também, incluído em tais casos, se estabelece como chegará, selecionando entre os dados que vão facilitar o Ministério Público.38 (tradução livre de BUSATO, 2020, p. 04)
Não obstante as críticas – a propósito, muito bem-vindas para um aprimoramento
do instituto –, nota-se, para além da já mencionada imposição global, um acordo – pelo
menos tácito – entre grandes empresas e Poder Público na recepção e ampliação do
âmbito compliance, notadamente após a Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/13) elencar
benesse sancionatória no seu artigo 7º, VIII e parágrafo único.
Isto porque, se por um lado o Poder Público declina a responsabilidade
fiscalizatória, as grandes empresas ganham mais autonomia na gestão do risco além de
agradar o mercado internacional.
E com a presente revolução legislativa que temos presenciado nos últimos anos,
notadamente em relação aos crimes empresariais, a presença da advocacia criminal nas
38 No original: Por muchos matices que se pueda imponer, tal opción, naturalmente, convierte la empresa
en juez de si misma.
Afinal, si la descubierta de las violaciones de las reglas de cumplimento ocurre internamente, es la misma
empresa quien decide cuando hubo o no un evento digno de se noticiar a las autoridades públicas, para su
persecución. Con ello, no sólo se selecciona si el delito llega o no a ser conocido por las autoridades, como
también, incluso en tales casos, se establece cómo llegará, seleccionando entre los datos que se va a
facilitar al Ministério Público.
68
empresas deixa de ser um “artigo de luxo” para configurar elemento essencial para o
regular desenvolvimento das atividades, sobretudo as que tocam o Direito, como
negociação de cotas, processos de fusão, planejamentos tributários, e demais riscos que
podem acarretar questões penais.
Para tanto, o compliance criminal tem ganhado espaço de destaque para a gestão
de referidos riscos, essencial para as grandes empresas e já chamando a atenção das
menores.
Contudo, antes de analisarmos esta questão, que será retomada no Capítulo 5,
para melhor entender este novo mundo jurídico-penal, é necessária uma rápida análise
acerca do overcompliance.
4.3.1 A questão do overcompliance
Tem sido analisado neste trabalho que a expansão da criminalização econômica
só foi possível com a “globalização financeira” (BONACCORSI, 2013, p. 55), inserida
no presente paradigma do risco (BECK, 1998, p. 12).
Mas não é só! Soma-se a isto, como um dos elementos centrais, a superação
daquela lógica de segurança individual do anterior quadro punitivista, capitaneado,
sobretudo, pela questão das drogas.
É como se o inimigo, sobretudo o ocidental, deslocasse da figura do traficante,
para a do terrorista, temido principalmente pelos Estados Unidos da América
(BONACCORSI, 2013, p. 36), e o discurso de segurança pública fosse modulado para a
segurança financeira.
Daí a necessidade de controle financeiro, já que, é claro, o discurso de livre
circulação do capital precisa conservar, também, uma face seletiva, não de todo
extraoficial, mas, sobretudo, para restringir o financiamento do terrorismo.
Para além do discurso oficial, aquilo que foi chamado de “totalitarismo
financeiro” (ZAFFARONI e SANTOS, 2019) adquire, como discurso real/extraoficial, o
controle de circulação financeira dos mercados emergentes (DOWBOR, 2016, p. 49;
ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 44).
Este pode ser um dos prismas para se analisar o overcompliance, ainda muito
pouco pesquisado no Brasil, mas que é caracterizado por conformidades além daquelas
do próprio compliance. Deste modo, “ocorre quando as organizações vão acima e além
69
do que é exigido pelos regulamentos” (tradução livre de RORIE, 2020, p. 0239) se
adequando, assim, a protocolos ainda mais rígidos.
Com efeito, dentre as razões declaradas para a implantação do overcompliance
estão a melhoria na reputação da empresa (ARORA e GANGOPADHYAY, 1995, p. 291,
RORIE, 2020, p. 29) a tal ponto de, via de consequência, assegurar os investidores a
aumentarem o financiamento do negócio (ARORA e GANGOPADHYAY, 1995, p. 290).
E mais, acaba sendo também um bom aliado para recuperação da boa aparência com a
fiscalização após alguma violação (RORIE, 2020, p. 29).
Sobre o instituto, assim dissertou Seema Arora e Shubhashis Gangopadhyay:
Comprometimentos voluntárias de padrões ambientais é um fenômeno recente: Se a lei exige que todas as empresas reduzão as emissões tóxicas em 50 por cento; algumas empresas voluntariamente se comprometem a metas ambientais que são muito mais rogorosas do que os requisitos regulamentares. Esses comprometimentos são intencionais e não acidentais. Overcompliance não é apenas devido a grandes investimentos de capitais. É mais comum exigir gastos substanciais com pesquisa e desenvolvimento para reformular produtos e redesenhar processos de produção.40 (tradução livre de ARORA e GANGOPADHYAY, 1995, p. 290)
Observe-se que, diante do exposto pelos autores, já em meados da década de
1990 o overcompliance já era prática comum das empresas em território estadunidense,
inclusive de forma voluntária, especialmente por grandes corporações empresariais
(ARORA e GANGOPADHYAY, 1995, p. 305).
Não obstante as referidas tendências corporativas, é forçoso reconhecer, com
Eduardo Saad-Diniz, que a imposição de programas pode chegar a inviabilizar que
pequenas empresas (no caso do texto dele, mineradoras) “posicionem-se no mercado”
(SAAD-DINIZ, 2020 p. 04).
Ora, afinal de contas, um incremento de custo no programa já implantado de, por
exemplo, quinze por cento, a partir dos novos protocolos do overcompliance, não fará a
diferença no orçamento de uma grande empresa que faz numa menor que, muitas vezes,
sequer o compliance tem conseguido contratar.
39 No original: (...) occurs when organizations go above-and-beyond what is required by regulations. 40 No original: Voluntary overmeeting of environmental standards is a recent phenomenon: If the law
requires all firms to reduce toxic emissions by 50 percent; some firms voluntarily pledge environmental
goals that are far more stringent than regulatory requirements. This overmeeting is intentional and not
incidental. Overcompliance is not merely due to bulky capital investments. It more commonly requires
substantial research and development expenditures to reformulate products and redesign production
processes.
70
Assim sendo, é razoável constatar que o overcompliance também está inscrito
em uma agenda de globalização financeira, acabando por, ainda que indiretamente,
assegurar algum controle de circulação financeira dos mercados emergentes (DOWBOR,
2016, p. 49; ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 44), na medida em que impede que
empresas menores tenham condições de participar da concorrência mercadológica e,
muito pelo contrário, é confrontada com esta poderosa ferramenta de dominação
estratégica de mercado que inviabiliza o ideal da livre concorrência.
Diante deste contexto, é fundamental um aprofundamentendo acerca da
importação acrítica de tecnologia jurídicas externas.
4.4 A acrítica importação periférica dos discursos do centro
Como já adiantado alhures, em grande medida, a presente expansão jurídico-
penal é um fenômeno proveniente da globalização financeira coordenado por organismos
internacionais e nações de primeira grandeza econômica.
Aliás, esta questão já tinha sido observada por Silva Sánchez (2001, p. 103),
quando, na nota de rodapé de número 256, expunha a imposição do Conselho Nacional
de Inteligência dos Estados Unidos de normativas para serem seguidas por outras nações,
reduzindo os seus poderes de regulação de fluxos de armas, drogas, informação etc. Com
isto, naturalmente, subentende-se incluídas influências acerca de reformas legislativas
com conteúdo penal.
Registre-se, por oportuno, que não parece razoável simplesmente menosprezar
importações de institutos jurídicos extrangeiros. A uma pelo fato de grande parte do nosso
arcabouço teórico-jurídico já ser de origem estrangeira; a duas diante da possibilidade de
algumas importações – bem estudadas e pensadas, é claro – melhor se adequarem aos
ditames constitucionais, a exemplo de positivações na legislação infraconstitucional de
elementos oriundos do sistema processual penal acusatório, que, de origem inglesa
(COUTINHO, 2009, p. 106), foi o adotado pela nossa Constituição (arts. 5º, LV, 129,
CR/88 etc.).
Neste sentido, a título de ilustração, cite-se tanto a Lei 11.690/08, quanto a Lei
13.964/19 que, respectivamente, positivaram os conhecidos institutos extrangeiros cross
examination (art. 212, CPP), e o juiz de garantias (art. 3º-B ss., CPP), ambas importações
que, por terem partido de pesquisas comprometidas com a boa técnica, melhor
71
conformaram o Código de Processo Penal ao constitucionalmente assegurado modelo
acusatório.
Neste ponto, a grande questão é exatamente as transposições que desprezam
critérios técnicos para a filtragem, fenômeno que, em especial no Brasil, se manifestou
numa quantidade significativa de leis penais editadas nas útimas décadas (FRAGOSO,
2015, p. 299 ss.), acompanhada de uma vacilante jurisprudência sedenta por institutos
alienígenas, nem sempre compatíveis com o nosso ordenamento.
A começar pelos nossos tribunais, observa-se uma atividade judicante que, com
certa frequência, se empolga com tecnologias jurídicas de países centrais, se valendo, às
vezes, inclusive de falsificações conceituais para empregar teorias41 como a do domínio
do fato, que teve a sua deturpação mais emblemática na AP 470/STF (LEITE, 2014), de
tal sorte a sequer ser possível encontrar uniformidade na compreensão dos Ministros do
STF em relação à teoria do domínio do fato (LEITE, 2014, p. 130), emergindo daí
equívocos conceituais inaceitáveis.
Já no tocante às transposições acríticas de conceitos extrangeiros pelo legislador,
tal qual na jurisprudência, o discurso do combate à corrupção assume um papel muito
importante no cenário global, desde os esforços para a criação do FCPA e convenções
internacionais anticorrupção, como a de fevereiro de 1999, que, ratificada por todos os 34
países da OCDE, mais sete não membros, estendeu a principiologia do FCPA (PALIFKA
e ROSE-ACKERMAN, 2016, p. 461-462)42.
Em que pese ter se originado de um escândalo a princípio doméstico nos Estados
Unidos da América, qual seja o da crise de Watergate de 1974 (FILHO, 2017, p. 30;
PALIFKA e ROSE-ACKERMAN, 2016, p. 463), como se denota da própria
nomenclatura, o FCPA configura um conjunto de práticas para o enfrentamento da
corrupção no exterior, ou seja, já na esteira de uma espécie do já alhures referido “Direito
mundial” (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 122).
Isto porque, a partir do escândalo de Watergate, as investigações apuraram que
em torno de 400 empresas estadunidenses teriam subornado autoridades estrangeiras em
41 Os estreitos limites desta pesquisa não permitem um aprofudamento em demais importações ilegítimas de conceitos extrangeiros. Contudo, a título de exemplificação, cabe lembrar da cegueira deliberada (willful
blindness), utilizada a preço da desconsideração dos elementos subjetivos do tipo (dolo e culpa), e a utilização inadequada da delação/colaboração premiada, inspirada em posturas estadunidenses, embora em desrespeito às regras legais. 42 Uma minuciosa descrição e enumeração das diversas convenções internacionais anticorrupção pode ser encontrada em Palifka e Rose-Ackerman (2016, p. 462-469).
72
troca de favores comerciais (FILHO, 2017, p. 31), donde surgiu a necessidade de uma
resposta, representada pelo FCPA.
Para além dos países e das organizações internacionais, é possível constatar um
esforço da própria iniciativa privada, representada por multinacionais fazendo referências
ao FCPA, “representando mera reação a situações de crise ou como mecanismo de
extorsão e estratégias de negócio, sem resultados efetivos em termos de melhora do
ambiente negocial” (SAAD-DINIZ, 2017, p. 735).
E num quadro de economia globalizada, com centros econômicos, empresas
periféricas se vêm obrigadas a se adequar aos padrões normativos ditados pelo centro,
demonstrando o caráter extraterritorial de, por exemplo, regulamentações do DOJ
estadunidense, na medida em que impõe às empresas estrangeiras que realizam negócios
lá, conforme destacam Luciano Feldens e Marcelo Araújo:
Assim, considerando o amplo alcance das normas estadunidenses, bem como uma interpretação do DOJ que reforça sua extraterritorialidade, são muitas as empresas com atuação em território nacional sujeitas ao FCPA e às normas concorrenciais. A estas empresas, neste contexto, não resta outra alternativa senão a adoção de um elevado standard de conformação a esse “novo” ambiente normativo, o que parece impactará em suas posturas de compliance, investigação ou colaboração mesmo quando executadas para fins internos (nacionais). Exemplo da atualidade desse tema é o fato amplamente noticiado de que empresas brasileiras como Braskem S.A., Petrobras S.A., Centrais Elétricas Brasileiras S.A. - Eletrobrás e Embraer S.A. figurarem atualmente como investigadas junto à SEC. Além disso, já se tem notícia, por meio de veículos de comunicação, que o ex-gerente da Petrobrás Pedro Barusco e alguns empresários relacionados ao denominado “complexo investigatórios da Operação Lava Jato” pretendem firmar acordo de colaboração com as autoridades norte americanas. Para além da imediata incidência das novas orientações do DOJ no dia-a-dia das empresas com atividades no Brasil, é preciso reconhecer que as diretrizes fixadas pelo governo norte americano, por sua influência no cenário mundial, não raro são incorporadas por outros países. Isso ocorreu, por exemplo, com a promulgação da Lei Anticorrupção, com clara inspiração no FCPA e no UK
Bribery Act. (FELDENS e ARAÚJO, 2016, p. 207-208)
Com efeito, todo este emaranhado de atos e normativas vem impondo aos países
– notadamente os de economia periférica, como o Brasil – uma conformação legislativa,
sob pena de acarretar prejuízos político-econômicos no cenário global de ordem
avassaladora, a tal ponto de comprometer relações mercadológicas oferecidas pela
“globalização financeira” (BONACCORSI, 2013, p. 53 ss.).
Como se não bastasse as imposições que vêm dos países centrais, há também
alguns movimentos internos que, se afirmando como espontâneos, procuram
73
“modernizar/internacionalizar” a legislação nacional, tal qual o projeto de reforma global
do Código Penal brasileiro do PLS 236/1243 (BRASIL, 2017; LEITE, 2015), que, com
um ufanismo de importar teorias alemãs, chegou a cometer falhas dogmáticas
insuperáveis, como, para ficar em três exemplos: na tentativa de positivar a teoria da
imputação objetiva inteiramente deturpada (CIRINO DOS SANTOS, 2015, p. 39-40);
combina duas teorias sobre o dolo – a da indiferença, de Engisch, e a do consentimento,
de Mezger – que, em suas formas puras, são incompatíveis (CIRINO DOS SANTOS,
2015, p. 41); uma confusão hibridística de teorias sobre o concurso de pessoas (CIRINO
DOS SANTOS, 2015, p. 50), no afã de positivar a do “domínio do fato” misturada com
a “unitária”, a “objetivo-formal” e a “subjetiva”.
A rigor, como analisado por Zaffaroni e Santos (2019, p. 44), trata-se de um
produto da fase avançada do colonialismo ou colonialismo tardio, que, tendo ganhado
vida na globalização, centraliza um poder punitivo planetário:
A acelerada concentração de riqueza cria uma plutocracia mundial, um governo de ricos que concentram mais riqueza, que se valem da livre atuação das corporações transnacionais (massas de dinheiro), que desconhece a condição de pessoas e suas correspondentes dignidade das pessoas reais, tanto humanas como não humanas (natureza). O controle social punitivo de nossos dias responde a um marco de poder planetário diferente ao que gerou as críticas criminológicas – tanto moderadas como radicais – da segunda metade do século passado.44 (tradução livre de ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 44)
Neste sentido, é identificável processos de centralização global do poder
punitivo que emanam mandados punitivos para as demais localidades que, com menor ou
maior quantidade e qualidade na filtragem, incorporam as normas.
Ao que tudo indica, a exemplo de diversos institutos do Direito Penal
econômico/empresarial, a importação brasileira do compliance se deu de forma acrítica
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 85), desconsiderando as dificuldades – de longe
inferiores às de realidades europeias e norte-americanas – que micro e pequenas empresas
teriam para a implantação.
43 Para um estudo mais aprofundado sobre o aludido projeto, especialmente sobre a parte geral, consultar os artigos em Leite (2015a), de autoria de importantes pesquisadores brasileiros: Adriano Teixeira, Alaor Leite, Gustavo Quandt, Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Luís Greco, Miguel Reale Jr., Paulo César Busato e René Ariel Dotti. 44 No original: La acelerada concentración de riqueza crea una plutocracia mundial, un gobierno de ricos que concentran más riqueza, validos de la libre actuación de las corporaciones transnacionales (masas de
dinero), que desconoce la condición de personas y su correspondiente dignidad a las personas reales, tanto
humanas como no humanas (naturaleza). El control social punitivo de nuestros días responde a un marco de poder planetario diferente al que generó las críticas criminológicas – tanto moderadas como radicales
– de la segunda mitad del siglo pasado.
74
Esta questão será melhor estudada no Capítulo 5. Antes, porém, faz-se
necessário estudar a função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito e a sua
frequente burla.
4.5 A função do Direito Penal no Estado Democrático de Direito e os ataques que
recebe
A noção de República possui como pressuposto a impessoalidade (art. 37, caput,
CR/88), na medida em que, se a coisa (res) é pública, resta vedado ao detentor do poder
proferir decisões fundadas na sua vontade pessoal.
Daí que o Direito Penal liberal, consolidado após as revoluções burguesas,
fundou, como uma de suas principais promessas, o efetivo cumprimento, pelo Estado, das
garantias fundamentais que limitam o poder punitivo frente ao cidadão, como a da
legalidade (FERRAJOLI, 2010, p. 40).
Registre-se que o discurso da legalidade emergiu exatamente da necessidade
republicana de empurrar para fora do detentor do poder, quando da emissão de decisões,
a pessoalidade, que lhe é própria em modelos em que a res não é pública.
Não por outra razão que, por exemplo, o princípio da legalidade, consagrado no
artigo 5º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, limita o Estado
a restringir as liberdades individuais tão somente na forma prevista em lei, desde que,
naturalmente, coerente com os direitos fundamentais.
Nesta quadra, Luigi Ferrajoli apresenta os dois efeitos basilares da reserva legal:
(...) O primeiro é a garantia para os cidadãos de uma esfera intangível de liberdade, assegurada pelo fato de que, ao ser punível somente o que está proibido na lei, nada do que a lei não proíba é punível, senão que é livre ou está permitido: por jus entende Hobbes a ‘liberdade que a lei me confere para fazer qualquer coisa que a lei não me proíba, e de deixar de fazer qualquer coisa que a lei não me ordene.’ O segundo é a igualdade jurídica dos cidadãos perante a lei: as ações ou os fatos, por quem quer que os tenha cometido, podem ser realmente descritos pelas normas como ‘tipos objetivos’ de desvio e, enquanto tais, ser previstos e provados como pressupostos de igual tratamento penal; enquanto toda pré-configuração normativa de ‘tipos subjetivos’ de desvio não pode deixar de referir-se a diferenças pessoais, antropológicas, políticas ou sociais e, portanto, de exaurir-se em discriminações apriorísticas. (FERRAJOLI, 2010, p. 40)
Com efeito, na parte que toca o Direito Penal, após as revoluções burguesas, a
legalidade assume um papel de destaque, emergindo daí uma dogmática penal norteada
75
pela contenção do Poder Punitivo estatal, a partir da “cientificidade [que confere] para o
direito penal porque ela representa um método”. (BRANDÃO, 2015, p. 01).
Não por outra razão que o estado de direito, habitat natural do Direito Penal45,
“não passa de uma barreira a represar o estado de polícia que invariavelmente sobrevive
em seu interior” (ZAFFARONI e BATISTA, 2013, p. 41), e, para tanto, o progresso do
estado de direito imprescinde uma dogmática penal bem elaborada.
Desde outro ponto de vista, a dogmática jurídico-penal pode ser comparada, para
Jacson Zilio (ZILIO e MARTINS, 2020), à gramática das línguas, na medida em que, por
esta via, o Direito comunica o lícito e o ilícito.
Ou seja, da mesma forma que a língua portuguesa ou alemã permite uma
comunicação entre os interlocutores mesmo sem a gramática, ainda que
desordenadamente e de forma obscura, é possível uma comunicação do Direito sem uma
boa dogmática penal, muito embora incompreensível para o cidadão (ZILIO e MARTINS,
2020).
Entretanto, o grande problema de uma dogmática penal precária é dar vazão a
um poder desordenado, sem um adequado controle ou regramento, mas à disposição do
arbítrio de quem dita o Direito, ao arrepio da República.
É dizer, a dogmática, quando não distorcida/manipulada, como pelo lawfare ou
mesmo pelo Direito Penal do inimigo, não serve às preferências político-partidárias,
religiosas ou qualquer outro elemento subjetivo do detentor do poder, mas serve, para
todos, como uma necessária condição para a habilitação do exercício do poder penal.
Neste norte, pode-se entender o Direito Penal do inimigo e o lawfare como
ferramentas para neutralizar as condições dogmáticas para a criminalização secundária,
afouxando os freios de contenção do poder punitivo.
Quanto à prática de lawfare (“guerra jurídica”) consistiria na manipulação
(ilegítima) de institutos legais para atingir fins de perseguição política (COMAROFF e
COMAROFF, 2006), se valendo sobretudo do campo penal. Assim tem sintetizado as
pesquisas sobre o instituto:
Guerra jurídica-o recurso a instrumentos legais, para a violência inerente à lei, para cometer atos de coerção política, ainda apagamento (J. L. Comaroff 2001)-é igualmente mercado em pós-colônias, é claro. Como uma espécie de deslocamento político, se torna ainda mais facilmente visível quando aqueles que agem em nome do Estado associarem-se com legalidades para agir contra
45 Sempre importante relembrar que, como ensina Zaffaroni e Batista (2013, p. 38), não há que se confundir o Direito Penal com o poder punitivo, na medida em que este é contido por aquele.
76
alguns ou todos dos seus cidadãos.46 (tradução livre de COMAROFF e COMAROFF, 2006, p. 30)
Como se observa, a tecnologia política do lawfare, vastamente utilizada em
localidades que já foram colonizadas – como o próprio Brasil –, manipula os pressupostos
de incidência de sanções legais – sobretudo as penais –, para habilitar o exercício do poder
em face daqueles “politicamente indesejáveis”, ou, para seguir a trilha de Jacson Zilio
(ZILIO e MARTINS, 2020), afastar a gramática para a comunicação punitiva fluir sem
barreiras, arrancando daqueles indivíduos, portanto, a Cidadania.
Um tanto quanto mais amplo e já mais aprofundado em pesquisas, há também o
instituto do Direito Penal do inimigo (JAKOBS e MELIÁ, 2003).
A seu turno, o Direito Penal do inimigo foi inclusive defendido abertamente por
renomados juristas, sobretudo Günther Jakobs e Manuel Cancio Meliá, que melhor
desenvolveram as pesquisas sobre o instituto. A bem da verdade, o “inimigo” já deitava
suas raízes não apenas no “Programa de Marburgo” de von Lizst47, mas, notadamente, na
“caça às bruxas”, que recebeu seu marco inicial na Idade Média, tendo a sua teorização
mais bem acabada em Kramer e Sprenger (2010)48, que identificava claramente um
inimigo do poder.
A teoria do Direito Penal do inimigo propõe uma divisão dos membros da
sociedade entre os “amigos” e os “inimigos”, qualificando-os a partir de uma régua que
medirá a capacidade de adequação às regras legais.
Desta sorte, aos inimigos não caberia o Direito Penal do cidadão – caracterizado
pelas garantias –, uma vez que se esvaíram as expectativas de adequação normativa sobre
aquele indivíduo (JAKOBS e MELIÁ, 2003, p. 47), que apresenta qualidades extremistas,
como o faz os terroristas49 (JAKOBS e MELIÁ, 2003, p. 49).
46 No original: Lawfare-the resort to legal instruments, to the violence inherent in the law, to commit acts
of political coercion, even erasure (J. L. Comaroff 2001)-is equally market in postocolonies, of course. As
a species of political displacement, it becomes most readily visible when those who act in the name of the
state conjure with legalities to act against some or all of its citizens. 47 Franz von Liszt (1851/1919) foi um penalista austríaco que apresentou, em 1882, a famigerada obra Programa de Marburgo. – A ideia do fim no Direito Penal. Lá defendia uma política criminal que, grosso modo, assegurava as garantias liberais tão somente até a condenação, afirmando que, a partir da fase de execução penal, o Estado não possuía mais a obrigação de assegurar os direitos fundamentais do condenado, retirando-lhe, por assim dizer, a sua cidadania. 48 O Malleus Maleficarum – título original da obra – estruturava e organizava as principais características daquilo que criava como bruxa, bem como indicava o procedimento de busca de provas, num coerente sistema integrado pela Criminologia, Direito Penal e Processo Penal. Talvez a mais antiga obra de criminologia que se tenha notícia. 49 Necessário registrar que em Zaffaroni (2017) descobrimos o Direito Penal do inimigo não é exclusivo da questão do terrorismo e muito menos utilizado apenas em países de economia central, mas, muito pelo
77
Registre-se que, em que pese o Direito Penal do inimigo não ostentar a qualidade
de dissimular a conformidade legal, ponto essencial do lawfare, conserva o mesmo
objetivo de habilitar uma comunicação punitiva sem os freios da dogmática. É dizer,
enquanto o lawfare manipula a “gramática” para dissimular a conformação legal, o
Direito Penal do inimigo simplesmente a ignora!
Não por outra razão que a dogmática jurídico-penal proporciona uma segurança
jurídica, calcada na previsibilidade e na uniformização das decisões, constituindo, assim,
em uma importante ferramenta para sistematizar e racionalizar o Direito Penal.
Com a dogmática a legitimação do poder se dá pelo caminho, não pela chegada.
É dizer, a decisão penal deve ser dada após ser percorrida toda a gramática penal, e não
antes de se verificar a adequação fática à teoria do crime. A partir daí que se extrai a
legitimação do Direito Penal, quando, conforme ensina Zaffaroni (2002, p. 05), através
do saber sobressai a capacidade de limitar o poder punitivo.
Para tanto, o juiz penal não pode decidir condenar ou absolver sem antes
verificar todo o caminho dogmático.
Lado outro, é forçoso reconhecer que, via de regra, os discursos punitivistas que
desmerecem a dogmática são bradados com o pensamento voltado para o “eles/outro”
mas nunca para o “nós”. É dizer, salvo raríssimas e pontuais exceções, ninguém vai
defender, por exemplo, a redução da maioridade penal pensando que “o próprio filho”
pode ser alvo da repressão penal, mas, a bem da verdade, pensa-se “no outro” – de
preferência, ignorando a (in)existência de pais.
Não obstante o exposto a respeito do lawfare e do Direito Penal do inimigo, é
necessário acrescentar também que as persecuções criminais do Direito Penal econômico
– sobretudo o brasileiro – têm provocado diversas violações das garantias liberais
previstas em leis e na CR/88, somado à já mencionada acrítica importação, legal e
jurisprudencial, de conceitos extrangeiros.
Nesta esteira, o novo intervencionismo penal estatal que provocou o nascimento
do Direito Penal econômico tem afetado sobremaneira as micro e pequenas empresas
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84), desde a imposição de barreiras adminitrativas
(licenças ambientais, compliance, exigência de boas relações com órgãos fiscalizadores,
serviços de contabilidade e advocacia permanentes nas empresas etc.), que acabam por
garantir o monopólio das grandes corporações, aliada a uma poderosa malha
contrário, embora nem sempre de forma declarada, está presente inclusive na América Latina, notadamente na política de drogas.
78
criminalizadora que, se por um lado costuma ignorar as grandes corporações (SAAD-
DINIZ, 2019a, p. 154; ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 143-144), por outro assola e
praticamente inviabiliza – a menudo – o micro e pequeno empresário selecionado
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84).
Assim, o Direito Penal ambiental, por exemplo, acaba por, tal qual a
criminalização das drogas, garantir o monopólio dos grandes que, além dos custos
proporcionalmente altos para os pequenos se inserirem no mercado, há um
superfaturamento do produto, como demonstrou Dowbor (2016, p. 101/102) ao tratar das
commodities.
Estes elementos, acrescidos da impunidade jurídica das grande corporações, já
inteiramente financeirizadas (DOWBOR, 2016, p. 87/89), faz do Direito Penal
econômico, em determinada medida, um importante aliado das grandes corporações, já
que é selecionado pela criminalização secundária com uma frequência muito menor.
O diagnóstico de Wacquant (2011) está desatualizado, já que focava o Direito
Penal no neoliberalismo tão somente nas classes menos favorecidas. Com o novo
paradigma econômico-sociológico, a imunidade se restringe tão somente ao “1%”.
É como se, na metáfora criminológica do Estado-centauro de Loïc Wacquant, a
parte humana diminuísse, e, correspondendo o “1%” apenas ao rosto, o resto seria cavalo.
Nesta esteira, emerge a necessidade de pesquisar, também, a tão menosprezada
vulnerabilidade penal-empresarial, na medida em que, se a função do Direito Penal é de
garantia frente ao poder punitivo, a já analisada expansão penal-econômica abre uma
ferida carente de uma culpabilidade pela vulnerabilidade penal-empresarial.
Ora, uma boa dogmática penal, além de rechaçar o lawfare e o Direito Penal do
inimigo, deve erigir uma teoria da culpabilidade que forneça subsídios para o
reconhecimento da vulnerabilidade (ZAFFARONI, 2002, p. 06), sobretudo a penal-
empresarial.
4.6 Resistências à culpabilidade pela vulnerabilidade aplicada ao Direito Penal
empresarial
Para além dos já estudados esforços de superação da insuficiente teoria da
coculpabilidade, tão bem apresentados por Zaffaroni (2002, p. 06) e Carvalho (2018, p.
240), com a recente expansão penal-econômica, faz-se necessário lançar luzes na
vulnerabilidade penal-empresarial, a fim de uma teoria da culpabilidade que dê conta,
79
tanto de sua feição de ato, quanto da vulnerabilidade (ZAFFARONI, 2002, p. 09), recém
alastrada para a seara empresarial.
Ora, afinal de contas, se já é possível constatar uma forte resistência à
culpabilidade pela vulnerabilidade para os setores do Direito Penal tradicional, como já
estudado alhures (itens 3.1, 3.2 etc.), quanto mais para o presente seguimento penal-
empresarial.
Nesta esteira, fortemente agarrada no positivismo criminológico (LOUREIRO,
2019, p. 185), literatura jurídica e jurisprudência nacionais tem fechado os olhos para as
questões apresentadas pelo paradigma da reação social e especialmente pela criminologia
crítica, se reduzindo àquela orientação causal-economicista, conforme estudado no item
3.1 acima.
Para tanto, sem se desvencilhar dos grilhões do positivismo criminológico, o
tímido reconhecimento da vulnerabilidade estaria, quando presente, reduzido
exclusivamente às classes menos favorecidas (LOUREIRO, 2019, p. 184-185),
alimentando aquele “preconceito de que a pobreza é a causa de todos os delitos”
(ZAFFARONI, 2002, p. 06).
A partir desta lógica, os pequenos empresários já seriam preliminarmente
excluídos do conceito de vulnerabilidade, de tal sorte a ignorar, de maneira um tanto
quanto peremptória, por exemplo, uma das possibilidades de vulnerabilidade social
ostentada por quem possui um “baixo grau de instrução ou escolaridade” (CARVALHO,
2018, p. 433).
Ou seja, quando se apresenta insustentável a lógica causal-economicista –
sobretudo por ser indefensável o positivismo criminológico – qual a razão de reconhecer
aludida vulnerabilidade social num empregado com baixo grau de instrução – à luz da
coculpabilidade – e negá-la, por exemplo, a um empregador – de pequeno porte – que se
encontra na mesma condição?
Portanto, faz-se necessária, em busca de uma efetiva superação dos ditames da
coculpabilidade, a investigação acerca da culpabilidade pela vulnerabilidade no Direito
Penal econômico, sobretudo no campo empresarial, propondo esta pesquisa um estudo
específico na questão do criminal compliance.
80
5 A FALTA DE ACESSO A PROGRAMAS DE COMPLIANCE COMO
EVIDÊNCIA DE VULNERABILIDADE
Desde o ponto de vista que esta pesquisa aborda, a exemplo da expansão penal-
econômica, não parece razoável dissociar a difusão do instituto do compliance do
fenômeno da globalização jurídico-econômica e do vigente paradigma de economia pós-
industrial.
É que, como soa evidente, a abertura mercadológica dos Estados-nações para o
capital estrangeiro pressupõe uma adequação ao presente padrão jurídico-global de um
Direito mundial (SILVEIRA e SAAD-DINIZ, 2015, p. 122), de tal sorte a oferecer
segurança jurídica para o capital estrangeiro tanto “pisar em terrenos jurídicos” já
conhecidos, quanto não encontrar barreiras normativas à livre circulação do capital
(DOWBOR, 2016, p. 46), eventualmente presentes naquele novo local.
Por outro lado, a atual estrutura estatal de comedida intervenção na economia
não apresentaria qualquer segurança se, ao invés de privatizar a gestão dos riscos
(BUSATO, 2020, p. 03-04; BUSATO, 2018, p. 97), simplesmente a ignorasse, já que,
independente se regulado pelo Estado ou pelo “mercado”, os riscos continuarão existindo,
com todo o potencial de gerar inseguranças que lhes são próprios.
Daí que se extrai o fundamento do compliance, como uma ferramenta que, à sua
maneira, visa monitorar e controlar os riscos do livre-mercado, sobretudo na presente era
de sociedade de risco (BECK, 1998), capaz de produzir inumeráveis possibilidades de
riscos e decorrentes inseguranças.
Por outro lado, não deixa de ser o compliance, também, é importante registrar,
uma forma de atribuição privada de controle público à violação de bens jurídicos, a partir
das investigações internas, empurrando, assim, o controle estatal para fora do terrotório
empresarial.
Como se observa, é este o contexto mais adequado para se tornar compreensível
as razões de importação do instituto do compliance para a legislação brasileira, uma
análise sobre as lentes da sociedade de risco, que se encontra historicamente localizada
num contexto de globalização jurídico-financeira.
Assim, como o instituto do compliance é um importante aliado na gestão dos
riscos – como aponta o discurso oficial –, de modo que, a empresa que não o tem à
disposição – ou sequer uma consultoria de escritório de advocacia – poderia se encontrar,
81
em certa medida, vulnerável, sobretudo juridicamente, a episódios de riscos e, por
consequência, mais sucetível à seleção criminalizante.
É que, como já abordado, as relacões que a empresa assume com investidores,
clientes, funcionários, e com o próprio Poder Público, provoca inúmeros riscos que fogem
do controle do gestor, justificando, para tanto, a implantação de um programa de
compliance a fim de assegurar a “diminuição dos riscos” (BRODT, 2019, p. 32).
Neste sentido, a pergunta que não se cala é: há evidência de vulnerabilidade
quando não se tem à disposição um programa de compliance minimamente efetivo na
gestão de riscos?
Para tanto, é imprescindível verificar questões relativas ao compliance para
micro e pequenas empresas.
5.1 Compliance para micro e pequenas empresas
A primeira questão a ser enfrentada aqui é se há, efetivamente, alguma
necessidade ou mesmo relevância em implantações de programas de compliance para o
pequeno empresariado, na medida em que, do contrário, não haveria sentido analisar
vulnerabilidade empresarial sob o prisma aqui investigado.
Em caso positivo, desde o ponto de vista proposto por Zaffaroni e Santos (2019,
p. 84), há sim um forte indício de vulnerabilidade empresarial quando não se tem acesso
a programas de compliance, já que quanto menor o poder econômico da empresa, maior
é a sua vulnerabilidade (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84).
Neste sentido, a proposta deste capítulo é analisar a questão em três dimensões:
a do mercado; a legal; e a da (in)nexistência de riscos a gerenciar.
Comecemos pela competividade no mercado do pequeno empresário com ou
sem os programas de integridade.
5.1.1 Competitividade no mercado
Um dos discursos oficiais mais vistosos da sociedade pós-industrial é o de elevar
à máxima potência a competitividade no mercado (DOWBOR, 2016, p. 47), a fim de
estimular a livre concorrência para democratizar as riquezas a partir da desmantelação
dos monopólios de mercados.
82
Nesta esteira, o pequeno empresariado assumiria um papel de destaque, na
medida em que constitui peça fundamental para construir uma alternativa ao poder
absoluto de grandes grupos econômicos.
Lado outro, o que tem se apresentado é uma agenda político-econômica
internacional cujos parâmetros têm provocado a inviabilização do pequeno
empreendedor, em benefício das grandes corporações (DOWBOR, 2016, p. 47;
ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84).
Assim destacou Ladislau Dowbor:
Quando há milhões de empresas, há concorrência real. Ninguém consegue “fazer” o mercado, ditar os preços e muito menos ditar o uso dos recursos públicos. Com grande número de pequenas e médias empresas, os desequilíbrios de poder se ajustam com inúmeras alterações pontuais, assegurando uma certa resiliência sistêmica. Com a escalada atual do poder corporativo, as oscilações adquirem outra dimensão, tornam-se estruturais. (DOWBOR, 2016, p. 47)
Como se não bastasse, para além da predominância de grandes grupos
econômicos dominando os mercados, não é incomum a saúde financeira da empresa de
pequeno porte depender de parceirias comerciais advindas de contratos celebrados com
essas maiores empresas.
Daí que, depreende-se da prevenção de riscos nos programas de integridade
implementados nas grandes corporações a busca por parceiros e/ou fornecedores –
inclusive os pequenos – adaptados a estes valores corporativos, a tal ponto de,
logicamente, ser exigido dos parceiros comerciais a implantação de programas de
compliance.
É que os riscos que os programas de integridade visam prevenir podem acarretar
a responsabilidade da empresa não apenas pelos causados por seus empregados diretos,
mas, igualmente, por membros de toda a cadeia produtiva (BENINI, 2017, p. 122), a partir
do disposto no §2º do artigo 4º da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13)50.
50 Art. 4º Subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica na hipótese de alteração contratual,
transformação, incorporação, fusão ou cisão societária.
§ 1º Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de
pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe
sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data
da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente
comprovados.
§ 2º As sociedades controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as
consorciadas serão solidariamente responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei, restringindo-
se tal responsabilidade à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado. (destaquei)
83
Sobre aludida norma, assim tem entendido a literatura jurídica:
Ao atender o disposto no art. 265 do Código Civil, a Lei Anticorrupção respeita o princípio da legalidade (OLIVEIRA, 2017, p. 75). Além disso, nos termos da norma, permite- se que diante da condenação de sociedades que mantenham relação de controle ou coligação, o Poder Público poderá cobrar a integralidade da dívida (multa e reparação dos danos) de qualquer um daqueles descritos no §2º do art. 4º, da Lei Anticorrupção. No âmbito interno do grupo caberá àquela sociedade que pagou a dívida cobrar o valor contra aquele que efetivamente praticou o ato de corrupção (LEITE, NOBRE, 2014, p. 321). (BENINI, 2017, p. 115)
Com efeito, ainda que referida solidariedade esteja restrita “às sociedades
controladoras, controladas, coligadas ou, no âmbito do respectivo contrato, as
consorciadas” (art. 4º, § 2º, da Lei 12.846/13), é forçoso reconhecer uma tendência
mercadológica de se exigir, igualmente, para os parceiros comerciais.
A título de ilustração, uma situação em que determinada empresa de médio ou
grande porte firme contrato com determinado restaurante de pequeno porte para
fornecimento de alimentação para os funcionários, desde a perspectiva da chamada boa
governança corporativa, há argumentos razoáveis para ser exigido que este parceiro
ostente um programa de integridade implantado, a fim de prevenir riscos de investigações
e/ou responsabilizações de qualquer ordem.
Para além das responsabilidades propriamente jurídicas – civis, criminais,
administrativas, trabalhistas etc. –, há que se considerar também a preservação da boa
imagem da empresa – perante parceiros, funcionários, fornecedores etc. –, que seria
reforçada pela implantação de um programa de integridade e valorizaria o seu patrimônio
imaterial.
Destarte, se o mesmo restaurante aqui mencionado fornecer alimentação para
determinado Hospital, faz-se necessário o oferecimento de segurança para o contratante
que não há riscos de, por exemplo, veiculação na imprensa ou mesmo nas redes sociais
que há um desrespeito a protocolos sanitários, já que poderia ser devastador para a
imagem para a empresa contratante.
Daí que os mercados têm entendido que os programas de integridade oferecem
uma segurança a mais aos negócios jurídicos celebrados, de tal sorte a empurrar ao
pequeno empresariado essa obrigação de ostentar as pautas de cuidado emanadas do
compliance.
84
Neste sentido, ao contrário do que se possa pensar, esta realidade corporativa
não é mais restrita ao empresariado que reune as condições de incluir em suas despesas
os elevados custos de um programa de compliance, sem prejuízo da saúde financeira de
sua empresa. A bem da verdade, a tendência mercadológica é de expandir inclusive para
os micro e pequenos negócios.
Portanto, parte do pequeno empresariado acaba refém da obrigação de
implantação de programas de autorregulação para preservar um mínimo de
competividade no mercado.
E mais, como se não bastasse, tal qual já analisado alhures, tem-se difundido o
instituto do overcompliance, que, independente se voluntária (ARORA e
GANGOPADHYAY, 1995, p. 290) ou obrigatória a sua implantação – como em casos
de busca de retomada da boa aparência com os órgãos de fiscalização, visto em Rorie
(2020, p. 29) – é uma pressão a mais para o empresariado que sequer do regular tem dado
conta, e se depara com este perigoso mecanismo de dominação estratégica de mercado.
Acrescente-se ainda à competitividade que, para além das exigências
mercadológicas – conforme se verá no item a seguir – uma série de entes federativos
brasileiros têm exigido, para contratações do poder público, que as empresas –
independente do porte – possuam programas de integridade implantados.
Assim sendo, em 2015, a CGU lançou, em conjunto com o SEBRAE, uma
Cartilha de “Integridade para pequenos negócios”, com uma série de recomendações de
integridade (BRASIL, 2020c), pressionando ainda mais a competitividade
mercadológica.
Mas não é só! Já se encontra, também, regulamentações legais obrigando as
empresas de todo e qualquer porte a ostentar a autorregulação, conforme se verá no item
a seguir.
5.1.2 Exigências legais
Para além da competividade no mercado, e, de certa forma, de maneira ainda
mais cogente, exigências legais regulamentando a implantação de programas de
conformidade como requisito para determinadas atividades ou mesmo operações,
dificultam ainda mais a sobrevivência do pequeno empresário.
Neste sentido, a Lei Anticorrupção (Lei n. 12.846/13) veio sucedida de uma série
de regulamentações legais em todos os níveis federativos, a começar pelo Decreto nº
85
8.420/2015 que trouxe inúmeros parâmetros para a implantação dos programas de
integridade, especificamente nos seus artigos 41 e seguintes.
No que tange às regulamentações estaduais51 e municipais52, algumas previsões
legais trouxeram inclusive exigência de implantação de programas de compliance
incluída dentre os requisitos para as empresas contratarem com o Poder Público, como é
o caso do artigo 1º53 da Lei n. 7.753/17, promulgada pelo Estado do Rio de Janeiro.
Em outras situações, muito embora não imponha a existência de programas
internos para a contratação com o poder público, reconhece a credibilidade e o esforço da
empresa que o detenha, a tal ponto de, a exemplo da Lei Anticorrupção (12.846/13, art.
7º, VIII), prever benefício na dosimetria da pena. A título de ilustração, o §1º54, do artigo
16 e o artigo 3455, ambos do Decreto 46.782/15 do Estado de Minas Gerais, seguem esta
tendência de prever benefícios na dosimetria da pena.
51 Em nível estadual: Alagoas (Decreto 48.326/16); Amazonas (Lei 4.730/18); Bahia (PL 22.614/17); Ceará (Lei 16.192/16); Distrito Federal (Decreto 37.296/16 e Lei 6.112/18); Espírito Santo (Decreto 3.956/16 e Lei 10.793/17); Goiás (Lei 18.672/14, PL 52/18 e 51/18); Maranhão (Decreto 31.251/15); Mato Grosso do Sul (Decreto 14.890/17); Mato Grosso (Decreto 522/16 e Portaria 08/16); Minas Gerais (Decreto 46.782/15); Pará (Decreto 2.289/18); Paraíba (Decreto 38.308/18); Pernambuco (Lei 16.309/18 e Decreto 46.967/18); Paraná (Decreto 10.271/14); Rio de Janeiro (Lei 7.753/17 e Decreto 46.366/18); Rio Grande do Norte (Decreto 25.117/15); Rio Grande do Sul (Lei 15.228/18); Santa Catarina (Decreto 1.106/17); São Paulo (Decreto 60.106/14); Tocantis (Decreto 4.954/13 e PL 8/18); e, mais recentemente, Rondônia (Decreto Estadual nº 23.907/19). 52 Já em relação aos municípios, além da maioria das capitais, vários, de um conjunto de estados, já regulamentaram (CONJUR, 2020), como, a título de ilustração: Belo Horizonte (Decreto 16.954/18); Rio Branco (Decreto 948/14); Rio de Janeiro (Decreto RIO 45.385/18); São Paulo (Decreto 55.107/14); Vitória (Decreto 16.522/15). 53 Art. 1º - Fica estabelecida a exigência do Programa de Integridade às empresas que celebrarem contrato,
consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a administração pública direta, indireta
e fundacional do Estado do Rio de Janeiro, cujos limites em valor sejam superiores ao da modalidade de
licitação por concorrência, sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e
serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo
que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta)
dias.
§ 1º Aplica-se o disposto nesta Lei às sociedades empresárias e às sociedades simples, personificadas ou
não, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado, bem como a quaisquer
fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou
representação no território brasileiro, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente.
§2º VETADO.
§3º VETADO.
§ 4° Em 1º de janeiro de cada exercício posterior a 2018, o valor estabelecido no art. 1º, caput e §3º, será
atualizado pela UFIR-RJ -Unidade Fiscal de Referência. 54 Art. 16. Encerrada a fase de instrução, a comissão emitirá relatório final, contendo:
(...)
§ 1º Caso a pessoa jurídica apresente, em sua defesa, informações e documentos referentes à existência e
ao funcionamento de programa de integridade, a comissão deverá examiná-lo segundo os parâmetros
indicados no Capítulo IV, para a dosimetria das sanções a serem aplicadas. 55 Art. 34. A comprovação pela pessoa jurídica da existência da implementação de um programa de
integridade, observado o disposto no Capítulo V deste Decreto, configurará causa especial de diminuição
da multa e deverá se sobrepor a qualquer outra circunstância atenuante no respectivo cálculo.
86
Soma-se, ainda, às regulamentações estaduais e municipais, o fato de haver
normativas especificamente direcionados às micro e pequenas empresas, como a da
Portaria Conjunta CGU-SMPE nº 2.279, de 9 de setembro de 2015 que regulamenta o
Decreto nº 8.420/15, dispondo sobre a avaliação dos programas de integridade de
microempresas e empresas de pequeno porte.
Importante ressaltar que, como se extrai das disposições legais, o legislador não
faz distinção em relação ao porte da pessoa jurídica, incluindo toda e qualquer que venha
a ter alguma relação contratual com Poder Público, inclusive as “sociedades simples”
(§1º, art. 1º, Lei n. 7.753/17 do Estado do Rio de Janeiro).
E mais, ainda que em grau inferior às pessoas jurídicas de maior porte (BRASIL,
2020c, p. 61), conforme informado pelo §3º, do artigo 42 do Decreto nº 8.420/15, as
exigências dos programas de integridade para o microempresário e de pequeno porte são
por demais rigorosas, representadas por nada menos que dezesseis incisos no caput do
artigo 4256 do referido Decreto.
56 Art. 42. Para fins do disposto no § 4º do art. 5º, o programa de integridade será avaliado, quanto a sua
existência e aplicação, de acordo com os seguintes parâmetros:
I - comprometimento da alta direção da pessoa jurídica, incluídos os conselhos, evidenciado pelo apoio
visível e inequívoco ao programa;
II - padrões de conduta, código de ética, políticas e procedimentos de integridade, aplicáveis a todos os
empregados e administradores, independentemente de cargo ou função exercidos;
III - padrões de conduta, código de ética e políticas de integridade estendidas, quando necessário, a
terceiros, tais como, fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;
IV - treinamentos periódicos sobre o programa de integridade;
V - análise periódica de riscos para realizar adaptações necessárias ao programa de integridade;
VI - registros contábeis que reflitam de forma completa e precisa as transações da pessoa jurídica;
VII - controles internos que assegurem a pronta elaboração e confiabilidade de relatórios e demonstrações
financeiros da pessoa jurídica;
VIII - procedimentos específicos para prevenir fraudes e ilícitos no âmbito de processos licitatórios, na
execução de contratos administrativos ou em qualquer interação com o setor público, ainda que
intermediada por terceiros, tal como pagamento de tributos, sujeição a fiscalizações, ou obtenção de
autorizações, licenças, permissões e certidões;
IX - independência, estrutura e autoridade da instância interna responsável pela aplicação do programa
de integridade e fiscalização de seu cumprimento;
X - canais de denúncia de irregularidades, abertos e amplamente divulgados a funcionários e terceiros, e
de mecanismos destinados à proteção de denunciantes de boa-fé;
XI - medidas disciplinares em caso de violação do programa de integridade;
XII - procedimentos que assegurem a pronta interrupção de irregularidades ou infrações detectadas e a
tempestiva remediação dos danos gerados;
XIII - diligências apropriadas para contratação e, conforme o caso, supervisão, de terceiros, tais como,
fornecedores, prestadores de serviço, agentes intermediários e associados;
XIV - verificação, durante os processos de fusões, aquisições e reestruturações societárias, do cometimento
de irregularidades ou ilícitos ou da existência de vulnerabilidades nas pessoas jurídicas envolvidas;
XV - monitoramento contínuo do programa de integridade visando seu aperfeiçoamento na prevenção,
detecção e combate à ocorrência dos atos lesivos previstos no art. 5º da Lei nº 12.846, de 2013 ; e
XVI - transparência da pessoa jurídica quanto a doações para candidatos e partidos políticos.
§ 1º Na avaliação dos parâmetros de que trata este artigo, serão considerados o porte e especificidades
da pessoa jurídica, tais como:
I - a quantidade de funcionários, empregados e colaboradores;
87
Como se observa, os programas de integridade para o pequeno empreendedor já
constituem, sem sombra de dúvidas, uma realidade que lhe tem sido imposta, tanto por
questões mercadológicas (estudadas no item 5.1.1), quanto por questões legais (aqui
analisado).
Em virtude deste cenário, faz-se necessária, também, uma análise acerca da
gestão de riscos nos pequenos negócios.
5.1.3 Gestão de riscos em micro e pequenas empresas
De forma um tanto quanto original, Busato (2020, p. 23 ss.) faz severas críticas
às eximentes de responsabilidade criminal advindas da existência de programas de
integridade, a ponto de defender uma possível desigualdade entre pessoas físicas e
jurídicas, já que aquelas não teriam à sua disposição os sistemas de compliance para serem
implantados.
Assim expôs o professor Paulo César Busato:
Não se pode esquecer que o sistema de compliance é uma espécie de autorregulação. Se se permite que a autorregulação determine o que é permitido ou não à persecução penal, tal posição privilegiada devería, como mínimo, ser equânime. Se é que “deveríamos dar por bons os standards de prevenção” desenvolvidos pela empresa a efeitos penais, a pergunta que cabe fazer é por qué não aceitar condições similares à pessoa individual? Parece aceitável que, estabelecidas pautas de cuidado efetivas, se pode eximir de responsabilidade penal as pessoas físicas? É dizer, v.gr., a realização de cursos de habilitação para condução profissional de carros, cursos de condução defensiva, etc., permitiriam que a um condutor
II - a complexidade da hierarquia interna e a quantidade de departamentos, diretorias ou setores;
III - a utilização de agentes intermediários como consultores ou representantes comerciais;
IV - o setor do mercado em que atua;
V - os países em que atua, direta ou indiretamente;
VI - o grau de interação com o setor público e a importância de autorizações, licenças e permissões
governamentais em suas operações;
VII - a quantidade e a localização das pessoas jurídicas que integram o grupo econômico; e
VIII - o fato de ser qualificada como microempresa ou empresa de pequeno porte.
§ 2º A efetividade do programa de integridade em relação ao ato lesivo objeto de apuração será
considerada para fins da avaliação de que trata o caput.
§ 3º Na avaliação de microempresas e empresas de pequeno porte, serão reduzidas as formalidades dos
parâmetros previstos neste artigo, não se exigindo, especificamente, os incisos III, V, IX, X, XIII, XIV e XV
do caput.
§ 4º Caberá ao Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União expedir orientações, normas
e procedimentos complementares referentes à avaliação do programa de integridade de que trata este
Capítulo.
§ 5º A redução dos parâmetros de avaliação para as microempresas e empresas de pequeno porte de que
trata o § 3º poderá ser objeto de regulamentação por ato conjunto do Ministro de Estado Chefe da
Secretaria da Micro e Pequena Empresa e do Ministro de Estado Chefe da Controladoria-Geral da União.
88
detido por provocar um acidente de trânsito com provocação de lesões ou morte se eximisse de responsabilidade? Se consideraría aceitável que a um que posua um elevado padrão cultural e de educação e que ademais coordena uma O.N.G. de defesa de mulheres, se eximisse do delito de violéncia de gênero por agredir a sua esposa? Se aceitaría que um padre, ademais adepto da doutrina franciscana, de desapego aos interesses materiais e da não violência, se eximisse de sua responsabilidade por um roubo? Parece razoável aceitar que, diante da complexidade do tratamento de desintoxicação alcoólica, o delito de conduzir sob efeitos do álcool realizado por uma pessoa que frequenta os Alcoólicos Anônimos estaría coberto por uma eximente? Em resumo: uma boa organização de pessoa individual é suficiente para eximir sua responsabilidade penal?57 (tradução livre de BUSATO, 2020, p. 24)
Ora, desde este ponto de vista, se prejudica a isonomia excluir as pessoas físicas
dos benefícios dos programas, quanto mais erigir e considerar um instituto praticamente
inviabilizado para as pessoas jurídicas de pequeno porte que, definitivamente, não
possuem condições de incluir nas suas despesas a implantação de programas. Ou seja, se
há riscos para o pequeno empresariado, deve-se disponibilizar mecanismos de gestão
interna eficazes e acessíveis para os pequenos.
E os riscos são aos montes: como os advindos de movimentações financeiras que
podem resultar em lavagem de dinheiro numa pequena mercearia; ou os riscos ambientais
na atividade do pequeno produtor rural; os riscos referentes a licitações para o pequeno
fabricante; os de concorrência desleal (art. 195, III, da Lei n. 9.279/96); os provenientes
de assédios de ordem moral ou sexual; desvios de recursos por parte de empregados etc.
57 No original: No se puede olvidar que el sistema de compliance es una especie de autorregulación. Si se
permite que la autorregulación determine lo que permita o no la persecución penal, tal posición
privilegiada debería, como mínimo, ser equánime.
Si es que “deberíamos dar por buenos los standards de prevención”56 desarrolados por la empresa a
efectos penales, la pregunta que cabe hacer es ¿por qué no aceptar condiciones similares a la persona
individual?
¿Parece aceptable que, estabelecidas pautas de cuidado efectivas, se pueda eximir de responsabilidad
penal a las personas físicas?
Es decir, v.gr., la realización de cursos de habilitación para conducción profesional de coches, cursos de
conducción defensiva, etc., ¿permitirían que a un conductor detenido por provocar un accidente de tránsito
con provocación de lesiones o muerte se le eximiera de responsabilidad?
¿Se consideraría aceptable que a uno que posee un elevado patrón cultural y de educación y que además
coordina una O.N.G. de defensa de mujeres, se le eximiera del delito de violéncia de género por pegar a
su esposa?
¿Se aceptaría que un cura, además adepto de la doctrina franciscana, de desapego a los intereses
materiales y de la no violencia, se le eximiera de su responsabilidad por un robo?
¿Parece razonable aceptar que, delante de la complejidad del tratamiento de desintoxicación alcohólica,
el delito de conducir bajo efectos del alcohol realizado por una persona que frequenta los Alcohólicos
Anónimos estaría cubierto por una eximente?
En resúmen: ¿una buena organización de la persona indivual es suficiente para eximir su responsabilidad
penal?
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E daí que, para além de propagar a credibilidade agregada à marca, de modo a
“atrair clientes, funcionários, fornecedores e parceiros que adotam a mesma postura”
(BRASIL, 2020c, p. 17), os programas também são capazes de imprimir credibilidade
inclusive em face dos órgãos de fiscalização quando de investigação de eventuais
situações ocorridas.
E a credibilidade em face das autoridades fiscalizadores não é gratuita, na
medida em que facilita as investigações a postura dos bons programas de integridade que
prezam pela eficiência no armazenamento de dados, informações, canais, regras,
organização, transparência etc.
Em outra vertente, como já apontado alhures, constata-se uma demanda
crescente pela gestão de riscos do pequeno empresariado uma vez que as grandes
empresas passam a exigir que dentro de toda a sua cadeia de produção, inclusive seus
parceiros comerciais, tenham programas implantados, uma vez que os riscos dos
pequenos podem acarretar prejuízos de variadas ordens para os demais parceiros.
Neste ponto, válido destacar que, diante de um cenário de economia globalizada,
até empresas estrangeiras optarão por parceiros brasileiros – inclusive os pequenos – que
possuam programas de compliance impantados, conforme se extrai da Cartilha de
Integridade para pequenos negócios da CGU em conjunto com o SEBRAE, no trecho a
seguir:
Isso já está acontecendo atualmente. Hoje em dia é crescente o movimento de empresas que buscam adotar medidas de integridade em seus negócios. Essa tendência deve-se a uma série de razões, mas tem uma em especial: vários países, inclusive o Brasil, estão criando leis que responsabilizam empresas, incluindo pequenos negócios, em caso de cometimento de atos lesivos contra o setor público como, por exemplo, fraudar um processo licitatório ou oferecer propina. Estas leis estabelecem punições inclusive para irregularidades praticadas por empresas parceiras em outros países. Por exemplo, uma empresa norte-americana poderá ser punida, de acordo com a lei dos Estados Unidos, caso uma empresa brasileira parceira ofereça propina a um funcionário público brasileiro. O receio de serem responsabilizadas faz com que grandes empresas multinacionais preocupem-se cada vez mais com as empresas locais com as quais fazem negócios e prefiram contratar parceiros que adotem medidas de integridade. Assim, uma empresa correta e que possua medidas de integridade terá mais chances de ser escolhida. Isso é um importante diferencial! Portanto, se você adota essa postura íntegra, com certeza você estará à frente de outras empresas que não dão importância a isso. (BRASIL, 2020c, p. 17-18)
Ainda, interessante observar que as pequenas Startups têm se deparado com as
exigências de programas implantados para receberem fundos de investimentos, além de,
90
igualmente, créditos bancários, exatamente para prevenirem inadimplências advindas de
riscos comerciais, que poderiam ter sido prevenidos a partir do compliance.
Como se observa, a necessidade de gestão de riscos para o pequeno empresariado
é uma realidade que foi imposta pela sociedade de risco com economia globalizada, de
tal sorte a abrir espaço para os programas de conformidade se apresentarem como um
produto capaz de solucionar a questão.
A grande questão que se apresenta para o pequeno empresariado advém das
dificuldades, sobretudo financeiras, para a contratação de programas de integridade com
um mínimo de eficiência para a gestão de riscos, uma vez que a especificidade e
sofisticação do serviço encarece sobremaneira a prestação.
A título de ilustração, segmentos empresariais muito sensíveis à lavagem de
dinheiro, como o da criação de cavalos, o mercado imobiliário ou mesmo o comércio de
jóias, é composto também por pequenos empresários, como nos casos de pequenas
empresas familiares de joalheria, de construção civil ou mesmo um Haras de pequeno
porte.
Ora, afinal de contas, não é incomum encontrar empresas destes moldes que não
reunem um mínimo de condições econômicas ou mesmo ciência da importância de
contratar um serviço para implantação de programa compliance, muito embora estejam
extremamente vulneráveis a riscos de se incorrerem em práticas ilícitas, como a de
lavagem de dinheiro.
O mesmo se dá em um pequeno consultório médico de ginecologista ou
urologista que, por se tratarem de atividades que demandam exames clínicos e
eventualmente contato com partes íntimas dos pacientes, se apresentam extremamente
vulneráveis a riscos dos delitos contra a dignidade sexual – principalmente quando se
trata de pacientes com baixo grau de instrução que podem não entender bem os
procedimentos –, caso não sigam os protocolos que um bom programa de compliance
implantaria.
Ainda no campo da medicina, é válido lembrar a importância de orientações que
um programa de integridade pode promover acerca de questões atinentes à autonomia dos
pacientes, para prevenir, por exemplo, casos de violência obstétricas, como ocorrem em
situações em que, injustificamente, o médico extrapola as vontades inseridas no plano de
parto da gestante ou mesmo intervenções médicas reprovadas por crenças religiosas –
transfusão de sangue para as Testemunhas de Jeová – etc.
91
Diante deste contexto, não parece nem um pouco absurda a constatação de que
o micro e pequeno empresário, muito embora também necessite, em boa medida, de
programas de compliance, caso não possua acesso a tais, se encontram em situação de
vulnerabilidade ao sistema penal, tal qual, guardadas as devidas proporções, uma pessoa
carente de oportunidades ou com baixo grau de instrução frente aos delitos próprios de
pessoas físicas.
Portanto, superando o determinismo economicista, que é próprio da criminologia
liberal e do conceito de coculpabilidade, a seguir será estudado a culpabilidade pela
vulnerabilidade de cunho empresarial, com foco específico naqueles que não possuem
acesso aos programas de compliance.
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6 A CULPABILIDADE PELA VULNERABILIDADE EM FACE DO CRIMINAL
COMPLIANCE
Em que pese extremamente carente de atenção – teórica e prática –, a
culpabilidade pela vulnerabilidade no campo empresarial, apesar de complexa, não é nada
utópica.
Muito pelo contrário, é plenamente possível – e necessária – a sua investigação,
inclusive em pontos bem específicos, como na questão do criminal compliance,
notadamente em cenários de economia periférica – como o brasileiro –, marcados pelo
desprezo às pequenas economias, em prol do monopólio das grandes corporações
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84; DOWBOR, 2016, p. 47).
Nesta esteira, este capítulo se propõe a, a partir das bases da teoria da
culpabilidade pela vulnerabilidade, construídas por Eugênio R. Zaffaroni, e aprimoradas
por Salo de Carvalho – conforme analisado alhures –, investigar a dimensão empresarial
da teoria, sobretudo seguindo as linhas mestras traçadas por Zaffaroni e Santos (2019, p.
84-85), quando analisaram a questão do criminal compliance na América Latina.
Assim iniciaram a análise da questão os autores:
Deixando de lado a discussão acerca da natureza das sanções às pessoas jurídicas, o certo é que se trata de uma resposta materialmente punitiva e, como o poder punitivo se distribui seletivamente segundo o grau de vulnerabilidade do candidato à criminalização, o resultado é uma relação inversa entre o poder econômico de uma pessoa jurídica e a sua vulnerabilidade: quanto maior o poder econômico, menor é a vulnerabilidade.58 (tradução livre de ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84)
Pois bem, como se observa, o próprio idealizador da teoria já a tinha admitido
aplicável à seara da repressão penal empresarial, sobretudo pela necessidade de superação
do determinismo economicista (ZAFFARONI, 2002, p. 06) que acometia, como visto, a
teoria da coculpabilidade.
Mas não é só! Já estava presente, também, em Zaffaroni e Santos (2019, p. 85),
a questão da vulnerabilidade em face do criminal compliance, na medida em que, se
58 No original: Dejando de lado la discusión acerca de la naturaleza de las sanciones a personas jurídicas,
lo cierto es que se trata de una respuesta materialmente punitiva y, como el poder punitivo se distribuye
selectivamente según el grado de vulnerabilidad del candidato a la criminalización, el resultado es una
relación inversa entre el poder económico de una persona jurídica y su vulnerabilidad: a mayor poder económico menor vulnerabilidad.
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auxilia na gestão dos riscos – como aponta o discurso oficial –, a empresa que não o tem
à disposição se encontra mais vulnerável.
Não obstante, muito embora a questão já se encontra indiciada em Zaffaroni e
Santos (2019, p. 84-85), faz-se necessário um estudo mais aprofundado, sobretudo para
viabilizar a sua recepção, teórica e prática, além de aprofundar o seu desenvolvimento no
âmbito do direito penal empresarial, notadamente no tocante à gestão de riscos criminais.
Portanto, passa-se, a seguir, a partir do cenário brasileiro, à investigação acerca
da estrutura da culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial, em especial no tocante à
questão do criminal compliance.
6.1 A estrutura da culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal
compliance e o seu foco
Ao se debruçar sobre a análise da relação da seletividade com o criminal
compliance, assim asseverou Eugenio Zaffaroni e Ílison dos Santos:
O agora difundido criminal compliance é uma espécie de Compliance
Program, que pretende que as pessoas jurídicas previnam a comissão de delitos dos seus sócios, agentes e representantes, evitando sanções que as prejudicariam. Deste modo, reafirmaríam a fidelidade das normas por parte da corporação. Contudo, estes programas de cuidado penal têm altos custos de implementação, o que, na prática, impede que as pequenas e médias empresas – principalmente de capital local – os desenvolvam. Assim, configuram privilégio das grandes corporações e, em especial, das transnacionais.59 (tradução livre de ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84-85)
Neste contexto, como se observa, a questão aqui proposta já fora especificamente
anunciada pelos autores, muito embora não pormenorizada a sua estrutura, sobretudo com
o foco na realidade brasileira.
Aliás, não é demais lembrar que não é encontrada literatura jurídica, muito
menos nacional, que tenha se debruçado acerca da estrutura da culpabilidade pela
vulnerabilidade empresarial.
59 No original: El ahora difundido criminal compliance es una especie del Compliance Program, que
pretende que las personas jurídicas prevengan la comisión de delitos por sus socios, agentes y
representantes, evitando sanciones que la perjudicarían. De este modo, reafirmarían la fidelidad a las
normas por parte de la corporación.
Sin embargo, estos programas de cuidado penal tienen altos costos de implementación, lo que en la práctica
impide que las pequeñas y medianas empresas – mayormente de capital local – los desarrollen. Así se
convierten en un privilegio de las grandes corporaciones y, en especial, de las transnacionales.
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A rigor, como se tem defendido neste trabalho, careceria de precisão técnica
dissociar a culpabilidade pela vulnerabilidade empresarial, inclusive no tocante ao
criminal compliance, da estrutura da culpabilidade pela vulnerabilidade.
Assim sendo, tal qual a matriz teórica, a culpabilidade pela vulnerabilidade do
criminal compliance também se vale da seletividade criminalizante (ZAFFARONI e
SANTOS, 2019, p. 84-85) para promover aquela releitura da culpabilidade de ato
(LOUREIRO, 2019, p. 204) a partir da consideração do estado de vulnerabilidade e do
esforço pessoal empenhado pelo sujeito.
Entretanto, é necessário reconhecer que, ainda que conserve toda a base da
culpabilidade pela vulnerabilidade, as especificidades da criminalidade econômica
contemporânea, muito bem destacadas por Hassemer (1994, p. 43-44) e Silveira (2018,
p. 41), exige do intérprete uma superação muito mais nítida do determinismo
economicista, ainda vigente no Brasil (CARVALHO, 2018, p. 431; LOUREIRO, 2019,
p. 184).
E este será o propósito de, a seguir, analisar aqueles mesmos dois grandes grupos
dos fatores de vulnerabilidade já estudados no capítulo 3, porém, com um enfoque no que
tange à sua dimensão empresarial.
6.2 Os dois grandes grupos dos fatores de vulnerabilidade em face do criminal
compliance
Em grande medida, como já mencionado alhures, a expansão do Direito Penal
econômico no cenário de globalização financeira da sociedade de risco, ocorreu, para
Silva Sánchez (2019, p. 5), com o discurso de proteger o Estado do bem-estar social do
avanço da liberdade econômica empresarial.
Não há que se discordar desta afirmação!
Todavia, com o avanço deste cenário de economia global, o sistema de justiça
criminal, caso desconheça a vulnerabilidade empresarial e não construa uma teoria da
culpabilidade que dê conta minimamente de compensar a seletividade criminalizante,
estará a serviço da concorrência desleal (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 85),
criminalizando os menores para perderem mercado.
Foi este o panorama apresentado por Eugenio Zaffaroni e Ílison dos Santos:
95
Se levar em conta que sempre a vulnerabilidade penal é diretamente proporcional à distância do poder e, dado que as corporações transnacionais se encontram hoje no topo do poder, sua vulnerabilidade é ilusória, ainda que algum autócrata lhe retire a cobertura em caso de conflito com outro semelhante. Após observar como opera o poder punitivo, se verifica que as pessoas jurídicas mais vulneráveis são as menores e sobretudo as pequenas e médias, pois carecem de capacidade para montar o complicado aparato de controles internos e cumprir as sofisticadas exigências dos externos, como também de exercer pressão ou lobby político, administrativo e judicial. O efeito paradoxal do punitivismo econômico é o favorecimento da concentração de capital e a conseguinte eliminação das empresas menores, que são as de capital nacional e as pequenas e médias, demandantes majoritárias de emprego produtivo. Em outras palavras: o punitivismo econômico acaba transformando-se em um instrumento de destruição do capitalismo produtivo nacional.60 (tradução livre de ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84)
Portanto, para viabilizar uma tentativa de contenção deste quadro, importante
analisar, com um enfoque na questão do criminal compliance, tanto o estado empresarial
de vulnerabilidade, quanto o esforço pessoal do empresário para se colocar em exposição
ao poder punitivo.
6.2.1 A posição ou estado de vulnerabilidade em face do criminal compliance.
Antes de analisar o estado de vulnerabilidade, importante certificar a necessidade
deste estudo.
Isto porque, em que pese a constatação de que os programas de integridade,
diante de seus altos custos, configuram um privilégio das grandes corporações
(ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 85), dela, em isolado, não se deduz a vulnerabilidade
em face da seleção criminalizante.
Neste sentido, conforme já analisado no item 5.1.3, variadas atividades
econômicas reclamam por programas de integridade não apenas para prevenir riscos de
ilícitos em outras searas jurídicas, mas, sobretudo, nas criminais, como os citados
60 No original: Si se tiene en cuenta que siempre la vulnerabilidad penal es directamente proporcional a la
distancia del poder y, dado que las corporaciones transnacionales se hallan hoy en la cúspide del poder,
su vulnerabilidad es ilusoria, aunque a algún autócrata se le retire cobertura en caso de conflicto con otro
igual. A poco que se observe cómo opera el poder punitivo, se verifica que las personas jurídicas más
vulnerables son las menores y sobre todo las pymes, pues carecen de capacidad para montar el complicado
aparato de controles internos y cumprir las sofisticadas exigencias de los externos, como también de
ejercer presión o lobby político, administrativo y judicial.
El efecto paradojal del punitivismo económico es el favorecimiento de la concentración de capital y la consiguiente eliminación de las empresas menores, que son las de capital nacional y las pymes,
demandantes mayoritarias de empleo productivo. En otras palabras: el punitivismo económico acaba transformándose en un instrumento de destrucción del capitalismo productivo nacional.
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exemplos de “empresas familiares de joalheria, de construção civil ou mesmo um Haras
de pequeno porte” e o do “pequeno consultório médico de ginecologista ou urologista”.
Ou seja, estes pequenos negócios, para além das sanções de natureza civil e
administrativa da Lei Anticorrupção que “poderiam até mesmo aniquilar pequenas e
médias empresas” (SAAD-DINIZ, 2017, p. 742), é possível constatar, igualmente, que a
ausência de programas de integridade poderia dificultar a prevenção de práticas capazes
de acarretar responsabilidade criminal (ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 84-85).
Para tanto, no que toca à atividade empresarial, parece também se enquadrar
perfeitamente naquele diagnóstico de Zaffaroni (2010, p. 270) de que o estado de
vulnerabilidade é de natureza “predominantemente social”.
É que, muito embora não poder se descartar a possibilidade de ocorrência das
situações de vulnerabilidades individual e processual apresentadas por Carvalho (2018,
433), a vulnerabilidade empresarial, por excelência, parece residir na dimensão social,
sobretudo em três das quatro apresentadas por Salo de Carvalho: “(a) analfabetismo; (b)
baixo grau de instrução ou escolaridade; (c) miserabilidade” (CARVALHO, 2018, p. 433).
Daí que, no tocante ao analfabetismo ou ao baixo grau de instrução do
empresário, não parece nada razoável deixar de reconhecer tais posições como de
vulnerabilidade, na medida em que, tal qual perante a criminalidade tradicional, os
colocam verdadeiramente em situação de desvantagem em relação aos mais instruídos,
quando da tomada de decisões que podem configurar ilícitos penais.
Esta situação se agrava ainda mais diante da modulação típica que sofre a
criminalidade econômica contemporânea, representada pelas já referidas alhures três
características apontadas por Hassemer (1994, p. 44-45)61, a ponto de tornar difícil até a
tarefa do jurista, sobretudo a do empresário em verificar a (i)licitude de práticas.
Já no que diz respeito à “miserabilidade” apontada por Carvalho (2018, p. 433),
merece uma adaptação, devendo-se considerar a baixa condição econômica do
empresário para disponibilizar mecanismos de prevenção de riscos (programas de
integridade) como caracterizante deste estado de vulnerabilidade.
Aliás, é possível inclusive encontrar na legislação pátria, uma situação de
consideração da culpabilidade pela vulnerabilidade na atividade empresarial, inserida no
61 Ausência de vítimas individuais; a pouca visibilidade dos danos causados; e o novo modus operandi. (HASSEMER, 1994, p. 44-45)
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artigo 168, §4º, da Lei 11.101/05 (Lei de Falência)62, em que o legislador disponibiliza a
redução ou substituição da pena em que o micro ou pequeno empresário se enquadre
naqueles requisitos, presumindo-se, portanto, o seu estado de vulnerabilidade.
Diante disto, é necessário acrescentar que, reconhecendo que o criminal
compliance permitiria a redução de riscos de criminalização para o pequeno empresário,
caso este não possua condições econômicas ou mesmo intelectuais (“grau de instrução”)
para entender a importância da implantação no seu negócio, há sim uma posição de
vulnerabilidade.
Não obstante a tendência de culpabilidade pela vulnerabilidade ser, como
concordado com Zaffaroni (2010, p. 270), por excelência advinda de situação de
vulnerabilidade social, o caso aqui estudado parece se encaixar melhor na dimensão
processual.
Observe-se que, em que pese a ausência de programa de integridade criminal
não estiver à disposição do pequeno empresário seja por carência financeira ou grau de
instrução – desinformação sobre a importância do investimento –, por fornecer um
elemento processual para a redução da vulnerabilidade, a sua ausência se enquadra melhor
na situação de vulnerabilidade processual, já que a consultoria jurídica, advinda do
criminal compliance, teria o objetivo de prevenção de riscos de investigações criminais e
Ações judiciais.
Em sentido semelhante, assim discorreu Eugenio Zaffaroni e Ílison dos Santos:
A presença do criminal compliance na corporação adquire relevância penal direta na hipótese de comissão de algum delito empresarial, porque influi nos critérios de imputação, dado que o considera um indício de máximo cuidado preventivo. Deste modo, as corporações contam a seu favor com um elemento processual que reduz a sua vulnerabilidade à criminalização, ao que, diante de seu custo, não é acessível às empresas de menor dimensão. Em realidade, o criminal compliance não deixa de ser um assessoramento para que as corporações se deslizem pelas bordas dos tipos penais, sem cair neles.63 (tradução livre de ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 85)
62 Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial
ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos
credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
(...) Redução ou substituição da pena
§ 4º Tratando-se de falência de microempresa ou de empresa de pequeno porte, e não se constatando
prática habitual de condutas fraudulentas por parte do falido, poderá o juiz reduzir a pena de reclusão de
1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) ou substituí-la pelas penas restritivas de direitos, pelas de perda de bens
e valores ou pelas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas. 63 No original: La presencia del criminal compliance en la corporación adquiere relevancia penal directa
en el supuesto de comisión de algún delito empresarial, porque influye en los criterios de imputación, dado
que se lo considera un indicio de máximo cuidado preventivo. De este modo, las corporaciones cuentan a
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Válido ressaltar que, não obstante o foco dos autores incidir primordialmente em
cenário de responsabilidade penal de pessoa jurídica, a restrição do ordenamento jurídico
brasileiro às questões ambientais (arts. 173, §5º e 225, §3º, ambos da CR/88; art. 3º, Lei
9.605/98), nas demais matérias criminais, os sócios, dirigentes e demais envolvidos
também se colocam na posição de vulnerabilidade quando não se tem um programa de
integridade – ou possui algum, embora ineficaz, diante de sua precariedade –,
justificando, portanto, o reconhecimento.
Muito bem, antes de analisarmos o tratamento jurídico-penal merecido, é
fundamental entendermos um pouco acerca do esforço pessoal para a vulnerabilidade no
contexto aqui estudado.
6.2.2 O esforço pessoal para a vulnerabilidade em face do criminal compliance.
A partir da constatação, no caso concreto, da posição de vulnerabilidade do
sujeito, é que se verifica o esforço necessário a ser empreendido para a seleção
criminalizante, uma vez que, conforme destacado por Carvalho (2018, p. 237), prescindir
deste segundo grupo, incorreria no absurdo de responsabilizar alguém pela mera posição
(vulnerável) que se encontra.
E a estrutura do esforço pessoal para a vulnerabilidade no que tange ao criminal
compliance segue aquela mesma base traçada por Zaffaroni (2010, p. 270 ss.), estudada
no item 3.3.2.
Ou seja, é necessário, com as lentes focadas para a questão do criminal
compliance, ler aquelas mesmas três hipóteses elencadas em Loureiro (2019, p. 202-203),
a partir de Zaffaroni et al (2013, p. 49).
Recordando, as aludidas hipóteses que iluminam o esforço pessoal para a
vulnerabilidade são: (a) o sujeito que, apesar de ostentar um baixo grau de
vulnerabilidade, se coloca em exposição ao entrar em uma arriscada disputa por poder;
(b) o sujeito que, mesmo se encontrando numa situação extrema de vulnerabilidade, não
esforça para sair dela; (c) e, um pouco mais comum, o sujeito que, embora não empreenda
su favor con un elemento procesal que reduce su vulnerabilidad a la criminalización, al que, por su costo,
no pueden acceder las empresas de menor dimensión. En realidad, el criminal compliance no deja de ser
un asesoramiento para que las corporaciones se deslicen por los bordes de los tipos penales, sin caer en
ellos.
99
esforço para se tornar vulnerável, como já possui uma evidente posição de
vulnerabilidade, a seleção lhe resulta inevitável.
Referidas hipóteses, se lidas a partir do contexto aqui proposto, assumiriam
formatos bem específicos.
A primeira hipótese, desde a perspectiva do criminal compliance, representa
seleções criminalizantes em situações em que a empresa possui um programa implantado
mas, contudo, um ou mais sujeitos – seja sócio, diretor, ou qualquer funcionário ou
parceiro –, testa(m) os limites para buscar algum benefício, por exemplo, concorrencial.
Uma situação concreta que, a partir da proposta deste estudo, ilustraria bem esta
primeira hipótese seria a de um pequeno negócio – como uma joalheria ou um
comerciante de cavalos de um Haras – que, para fazer frente a um grande concorrente,
viola os protocolos fiscais implantados pelo programa, se expondo à persecução criminal
de crimes tributários ou até mesmo lavagem de dinheiro.
Como se observa, muito embora a implantação de um programa de integridade
deixasse a empresa (e os sujeitos) com uma posição de baixo grau de vulnerabilidade, a
prática descuidada e/ou assoberbada dos sujeitos pode gerar uma exposição à seleção das
agências penais.
Já no que diz respeito à segunda hipótese, pode ser exemplificada com casos
como o de pequenos negócios de bairros ou pequenas cidades, como mercearias ou
farmácias tradicionais e familiares, passadas de geração em geração a ponto de, seja por
um baixo grau de instrução do gestor, e/ou mesmo à baixa condição econômica do
negócio, não ter sido implantado um programa de compliance. Como se não bastasse a
elevada posição de vulnerabilidade, aquele gestor, pressionado pelos grandes
concorrentes que chegaram nas suas imediações, se expõe, com o objetivo a conseguir
preços minimamente competitivos que poderiam assegurar a sobrevivência do seu
negócio, a riscos de crimes tributários, lavagem de dinheiro, crimes contra o consumidor
etc.
Veja-se que, junto do alto grau da posição de vulnerabilidade deixado mais ainda
em evidência com a ausência do criminal compliance, a exposição impensada e
assoberbada a riscos de práticas criminais, ainda que com o nobre objetivo de
sobrevivência do negócio, promove a seleção criminalizante.
Por fim, na última hipótese aqui tratada, poderia ocorrer com um sujeito na
mesma posição de vulnerabilidade da segunda hipótese mas, contudo, a concorrência não
o estimulou a correr mais riscos. Por outro lado, apesar de adotar uma postura mais
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comedida, a ausência de um programa para corrigir as práticas das gerações anteriores,
hoje consideradas ilícitas – como crimes tributários, lavagem de dinheiro, crimes contra
o consumidor etc. –, não impede a seleção das agências penais.
Extrai-se dos exemplos acima que, em pese não estar à disposição de grande
parte do pequeno empresariado – seja por ausência de condições econômicas, ou mesmo
de instrução suficiente para entender a importância –, um programa de criminal
compliance bem implantado pode, tanto assegurar uma baixa posição de vulnerabilidade,
quanto inibir esforços pessoais para o sujeito se expor à seleção criminalizante.
A seguir, será analisado a necessidade de contenção do poder punitivo pela
culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal compliance.
6.3 A contenção do poder punitivo pela culpabilidade pela vulnerabilidade em face
do criminal compliance
Não é demais recordar, com Zaffaroni et al (2013, p. 51), que “a seletividade é
estrutural e, por conseguinte, não há sistema penal no mundo cuja regra geral não seja a
criminalização secundária em razão da vulnerabilidade do candidato”.
Todavia, com o objetivo de redução de danos, faz-se necessária a contenção do
poder punitivo estatal, sobretudo em situações em que se verifica a vulnerabilidade após
verificar a culpabilidade de ato, tal qual em casos em que a empresa não conta com um
programa de criminal compliance eficaz para gestão do risco de práticas criminalizáveis.
À primeira vista, talvez uma proposta de uma técnica mais cômoda de resolver
a questão, de imediato, seria sugerir o mesmo tratamento que foi dado à própria
coculpabilidade (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2009, p. 525; BOSCHI, 2014, p. 240;
CARVALHO, 2018, p. 429). Qual seja, a partir da atenuante genérica do artigo 66 do
Código Penal, deixar a solução para a segunda fase do cálculo da pena e, assim, atenuar
a pena do sujeito cuja vulnerabilidade decorre da ausência ou ineficiência do programa
de criminal compliance.
Em situações de extrema vulnerabilidade, uma proposta um tanto quanto mais
elaborada, compreenderia acoplar a culpabilidade pela vulnerabilidade – inclusive a aqui
estudada, em face do criminal compliance – à teoria do crime, precisamente como uma
causa supralegal de exculpação, pela inexigibilidade de conduta diversa, tal qual fora
proposto, por Juarez Cirino dos Santos, para casos de coculpabilidade:
101
Hoje, como valoração compensatória da responsabilidade de indivíduos inferiorizados por condições sociais adversas, é admissível a tese da co-culpabilidade da sociedade organizada, responsável pela injustiça das condições sociais da população marginalizada, determinantes de anormal motivação da vontade nas decisões da vida. (...) Concluindo, se a motivação anormal da vontade em condições sociais adversas, insuportáveis e insuperáveis pelos meios convencionais pode configurar situação de conflito de deveres jurídicos, então o conceito de inexigibilidade de comportamento diverso encontra, no flagelo real das condições sociais adversas que caracteriza a vida do povo das favelas e bairros pobres das áreas urbanas, a base de uma nova hipótese de exculpação supralegal, igualmente definível como escolha do mal menor – até porque, em situações sem alternativas, não existe espaço para a culpabilidade. (CIRINO DOS SANTOS, 2017, p. 336-337)
Em que pese a importância de ambas propostas, é necessário reconhecer, no que
tange à causa supralegal de exculpação proposta por Cirino dos Santos (2017, p. 336-
337), que amenizaria os efeitos da seletividade apenas em situações de extrema
vulnerabilidade pela ausência ou ineficiência do criminal compliance, “absolvendo” o
sistema penal mazelas que promove nos demais casos.
Quanto à proposta de atenuar a pena pelo artigo 66, é importante ressaltar que,
relegar para o cálculo da pena uma questão grave como a necessidade de amenizar a
seletividade penal, além de configurar uma pequena – e, portanto, desproporcional –
redução da pena, resulta em menosprezar a capacidade da teoria do crime para oferecer
um mínimo de contenção ao poder punitivo, no sentido de redução de danos da
seletividade do sistema.
Ora, dentro da teoria do crime a culpabilidade é, por excelência, o espaço para
ser tratada essa questão, notadamente após o aprimoramento da sua configuração pela
culpabilidade pela vulnerabilidade, como antítese redutora da culpabilidade de ato, como
defendeu Zaffaroni (2002, p. 09), incidindo como uma segunda etapa de análise da
culpabilidade, após a fase normativa.
Assim destacou Bruna Loureiro:
Nesse contexto, uma vez verificada a presença dos pressupostos da culpabilidade de ato, e estabelecido o limite máximo da reprovabilidade do indivíduo, em razão da conduta por ele praticada, a aferição da culpabilidade pela vulnerabilidade poderá reduzir, ou até mesmo excluir, essa culpabilidade pelo injusto, mas nunca majorar, tratando-se, portanto, de uma etapa redutora da culpabilidade de ato. (LOUREIRO, 2019, p. 211)
O único reparo necessário ao referido trecho seria a sugestão daquele ajuste
conceitual da culpabilidade, no sentido de substituir a “reprovabilidade” por
102
“responsabilidade”, conforme defendido por Carvalho (2018, p. 239), a partir do que
desenvolveu Juan Bustos Ramírez.
Neste sentido, a contenção da “responsabilidade penal”, se dará, pela
culpabilidade pela vulnerabilidade – inclusive a aqui estudada, em face do criminal
compliance –, pela aferição do nível da posição de vulnerabilidade e do esforço pessoal
do sujeito para se expor à seleção, resultando do contraste destes dois grandes grupos dos
fatores de vulnerabilidade, notadamente da análise do esforço pessoal (ZAFFARONI,
2010, p. 273-274), a (des)necessidade de contenção do poder punitivo.
Portanto, conforme constatou Loureiro (2019, p. 206), seguindo Eugenio
Zaffaroni, quanto maior o esforço pessoal do agente para se expor, menor será a
necessidade de contenção do poder punitivo pela culpabilidade pela vulnerabilidade, na
medida em que aumentará a sua responsabilidade penal.
Em relação às três hipóteses elencadas no item 6.2.2, seria possível as seguintes
conclusões.
Como na primeira hipótese, além do sujeito se encontrar numa posição de baixa
vulnerabilidade pelo programa de integridade implantado, empenhou grande esforço para
a exposição criminalizante, não se vislumbra necessidade de contenção do poder punitivo
pela culpabilidade pela vulnerabilidade.
Já na segunda, embora ostente um alto nível de vulnerabilidade, por ausência de
criminal compliance, por ter se esforçado de maneira considerável para a exposição à
fiscalização, verifica-se uma reduzida, apesar de presente, necessidade da culpabilidade
pela vulnerabilidade para frear a repressão penal.
Por fim, na terceira hipótese verifica-se uma considerável necessidade de barrar,
ou pelo menos reduzir, a responsabilização penal pela culpabilidade pela vulnerabilidade,
já que diante de um alto grau de vulnerabilidade somado a um baixo esforço de exposição
às práticas criminalizáveis.
Ou seja, constata-se um vasto campo de estudo no que toca à culpabilidade pela
vulnerabilidade em face do criminal compliance, sobretudo na realidade brasileira em
que grande parte do pequeno empresariado não tem acesso a tais programas, apesar da
presente realidade de expansão penal-empresarial.
É que, como estudado alhures, a presente sociedade do risco (BECK, 1998, p.
42; SILVA SÁNCHEZ, 2019, p. 5), impulsionada pela globalização financeira
(BONACCORSI, 2013, p. 55; ZAFFARONI e SANTOS, 2019, p. 73), trouxe um
emaranhado de incumbências ao empresariado, de tal sorte a, paulatinamente, regras
103
legais advindas de variadas legislações – como o CDC, a Lei de Lavagem de capitais, Lei
dos crimes tributários, Lei dos crimes ambientais etc. – vêm pautando a atuação das
agências penais, orientando fiscalizações direcionadas, inclusive, para o pequeno
empresariado.
Em contrapartida, a resposta mercadológica representada pelos programas de
integridade para prevenir os riscos de práticas de tais irregularidades não alcançou todo o
empresariado, evidenciando a vulnerabilidade processual daqueles esquecidos pela
governança corporativa.
104
7 CONCLUSÃO
Como foi possível constatar, o estudo da culpabilidade pela vulnerabilidade no
que tocante ao criminal compliance flui de forma mais natural quando se parte dos
discursos da criminologia para entender os processos que deram causa à coculpabilidade
e, posteriormente, à teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade.
A partir daí, pesquisar a expansão penal empresarial e a estruturação daquilo que
hoje se chama criminal compliance, desde uma perspectiva social-econômica – sociedade
do risco e globalização financeira –, viabiliza, igualmente, uma compreensão normativa
e concreta mais sólida, de tal sorte a explicar a culpabilidade pela vulnerabilidade em face
do criminal compliance.
Ora, não parece possível ler os aspectos normativos e concretos das principais
questões criminais contemporâneas sem uma efetiva superação do positivismo
criminológico, marcado pelo paradigma etiológico e tudo que decorre da
insuficiente/ineficaz busca das causas da criminalidade.
É que, conforme analisado alhures, as deficiências do princípio da
coculpabilidade guardam relação com suas amarras ao positivismo criminológico, na
medida em que, com sua forte inclinação ao determinismo economicista, se reduz a
verificar as repercussões da carência estatal na constituição patrimonial do selecionado
pelo sistema de Justiça Criminal, se manifestando como uma resposta à falta de políticas
públicas para redução de desigualdades econômicas e culturais.
Neste sentido, no intento de identificar a pobreza econômico-sociais como causa
para o crime, buscando compartilhar – ou empurrar para, quando de exclusão do crime –
com o Estado a responsabilidade penal, a coculpabilidade cai na armadilha de restringir
a sua configuração às classes menos afortunadas, além de desprezar constatações como a
de Edwin Sutherland nos crimes de colarinho branco.
Entretanto, em que pese a importante contribuição do paradigma da reação social
de superação da orientação causal-economicista, conforme apontado na dissertação de
mestrado de Bruna Loureiro, a construção teórica da culpabilidade pela vulnerabilidade
só se fez possível a partir da identificação dos processos de criminalização pelos discursos
da criminologia crítica.
As lentes crítico-criminológicas viabilizaram a constatação, no tocante à
coculpabilidade, que sua configuração alicerçada no determinismo economicista não só
confundia erroneamente a condição social como causa da criminalidade, mas, conforme
105
indicado pelo professor Eugenio Zaffaroni, daria elementos para justificar um direito
penal classista com maior repressão às classes dominantes para compensar a
desigualdade, além de ignorar a seletividade estrutural do sistema punitivo, capaz de
atingir não apenas as classes baixas, mas qualquer sujeito que esteja em situação de
vulnerabilidade.
Não por outra razão que a teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade se alicerça
na seletividade do poder punitivo aos vulneráveis.
Para tanto, sem desprezar completamente as contribuições da coculpabilidade,
aprimora a sua concepção com a consideração da vulnerabilidade no sentido de contenção
do poder punitivo a ser habilitado pela culpabilidade de ato (imputabilidade, potencial
consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa).
Ou seja, para além de uma singela corresponsabilização do Estado a partir de
uma atenuação de pena, o novo conceito se acoplaria na Teoria do Crime como uma
segunda face da culpabilidade que reduz – ou mesmo cancela, a depender das
circunstâncias da configuração – o poder punitivo quando da combinação dos dois
grandes grupos de fatores de vulnerabilidade.
Com efeito, conforme alertado por Salo de Carvalho, deve pressupor a
reformulação conceitual da culpabilidade, não mais vista como reprovabilidade – que
carrega uma conotação moral –, mas responsabilidade, a partir de uma concepção
agnóstica da culpabilidade desenvolvida por Juan Bustos Ramírez.
Quanto aos dois grupos de fatores de vulnerabilidade, são formados pelos
elementos valorativos da posição ou estado de vulnerabilidade e do esforço pessoal para
a vulnerabilidade.
No tocante à análise do estado de vulnerabilidade, no sentido de observar o grau
de vulnerabilidade do sujeito caracterizado por questões sociais, individuais e/ou
processuais, de tal sorte a se constatar que quanto mais o indivíduo se enquadrar naquele
estereótipo de vulnerável, maior a sua chance de ser selecionado pelo aparelho penal.
No tocante às questões sociais, constata-se vulnerabilidades com carências
materiais – condições econômicas e de (des)empregabilidade – e culturais – grau de
escolaridade e de instrução.
Já em relação à vulnerabilidade de ordem individual, representada por problemas
pessoais e familiares sensíveis sob o ponto de vista humanitário, não apenas podem ser
encontradas em questões específicas na legislação, tal qual condições de dependência
química ou mesmo de sofrimento ou desordem psíquica previstas no artigo 26, caput e
106
parágrafo único, do Código Penal, como também comumente recebe a atenção de
Decretos de Indulto para assegurar a contenção do poder punitivo na fase de execução
penal, em casos de graves limitações físicas por deficiências ou doenças, tanto no(a)
executado(a), quanto em dependentes.
Por fim, no que diz respeito à dimensão processual da vulnerabilidade,
encontram-se presentes em situações em que: (a) a autoridade excedeu no prazo da prisão
processual; (b) ocorreu excessiva demora para instrução e/ou julgamento do caso; (c) o
condenado já tenha sido injustiçado anteriormente quando absolvido em processo que
amargou prisão processual; (d) quando o sujeito já tenha sido injustiçado anteriormente
por ter cumprido pena em condições que desrespeitem a Constituição da República de
1988 e/ou a Lei 7.210/84 (Lei de Execução Penal).
Complementando a posição de vulnerabilidade do sujeito, faz-se necessário
analisar o esforço pessoal por ele realizado para alcançar a situação concreta de
vulnerabilidade para, assim, melhor precisar o grau de vulnerabilidade a ser valorado.
Entende-se por esforço pessoal para a vulnerabilidade o conjunto de elementos
que caracteriza ou aumenta do risco à seleção criminalizante pelo comportamento pessoal
do agente. Ou seja, quanto o sujeito contribuiu para se expor ao poder punitivo?
Para tanto, três ocasiões se apresentam como parâmetros para a aferição do
empreendimento para a vulnerabilidade: a que o sujeito, mesmo ostentando um baixo
grau de vulnerabilidade, se expõe ao entrar em uma arriscada disputa por poder; a que o
sujeito, apesar de se encontrar numa situação extrema de vulnerabilidade, não esforça
para sair dela, como se extrai dos excessos da criminalidade violenta; e, por fim, a mais
frequente que as demais, ocorre quando o sujeito, embora não empreenda esforço para se
tornar vulnerável, como já possui uma evidente posição de vulnerabilidade, a seleção lhe
resulta inevitável.
Como se observa, a lógica de aferição da vulnerabilidade é representada pela
seguinte fórmula: quanto menor o estado/posição de vulnerabilidade do sujeito, tanto
maior teria de ser o seu esforço pessoal para se colocar em uma situação de
vulnerabilidade e vice-versa. Ou seja, é imprescindível a conjugação dos dois grupos de
fatores de vulnerabilidade.
Para exemplificar, veja-se a situação do sujeito que possui ocupação lícita com
reconhecimento social e é pego portando drogas. Este precisará de um esforço pessoal
muito maior do que aquele que não possui referida posição de baixa vulnerabilidade para
agravar esta situação e, assim, ver configurado o tipo de tráfico de drogas previsto no
107
artigo 33 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas) ao invés do porte para uso pessoal do artigo
28 da mesma lei.
Com efeito, em boa medida, parece que é a partir do grau de sofisticação da
prática delitiva que se afere o esforço pessoal para atingir a vulnerabilidade.
Tal qual ocorre com um funcionário público de alto escalão quando selecionado
pelo poder punitivo em face corrupção passiva do artigo 317 do Código Penal. Será
necessário deste um esforço pessoal muito maior – ou um grau de sofisticação muito
menor ou muito mais tosco – do que é exigido a um funcionário público de ocupante de
cargo com menor prestígio.
Neste contexto, a proposta da presente pesquisa foi aferir condições de
possibilidades para uma culpabilidade pela vulnerabilidade em face do criminal
compliance, exatamente em função daqueles que não têm à disposição um programa desta
natureza.
Isto porque, num cenário de economia globalizada associada a um modelo de
sociedade do risco, a presente expansão do Direito Penal, inclusive empresarial – a partir
de um processo de criminalização de variadas e numerosas condutas –, resulta inevitável.
É que, se por um lado o presente paradigma pós-industrial (do capital
improdutivo ou neoliberal) viabiliza a globalização econômica a partir da financeirização,
é perceptível um considerável incremento do risco de descontrole da circulação facilitada
do capital global, exigindo da economia central imposições normativas – advindas, por
exemplo, FCPA e do U.K. Bribery etc. – aos mercados emergentes, sobretudo as de
natureza criminal, obrigando-os a expandirem as criminalizações primárias e secundárias,
sob pena de serem barrados dos grupos econômicos.
E foi daí que fertilizou-se o terreno para o surgimento do criminal compliance,
na medida em que, com o aumento da possibilidade de criminalização, alerta-se para a
necessidade de gestão dos riscos. Ou seja, não parece possível dissociar o compliance de
uma agenda da globalização financeira de um Direito mundial, ainda que se apresente
como viabilizador de uma nova ética empresarial de fidelização da atividade ao Direito.
Desde outra perspectiva, os programas de compliance não deixam de representar
uma substituição à atividade estatal, a partir de uma regulação privada para intervir
diretamente – inclusive na seara criminal – na economia, com uma efetiva privatização
da gestão dos riscos, além confirmar aquele diagnóstico foucaultiano de presença de uma
fobia ao Estado do presente paradigma econômico.
108
Noutro norte, em que pese o discurso oficial de gestão de riscos dos programas
de integridade, é necessário constatar, na prática corporativa, frequentes desvirtuamentos
dos programas de compliance, transformando-se em uma privatização do processo penal
para blindar das investigações as empresas e diretores que os têm à disposição.
Como se não bastasse, quando presente imposições de implantação de
overcompliance para menores empresas se posicionarem no mercado, caracterizado por
incrementos de obrigações/condições nos programas, é possível se tornar inviável o ideal
da livre concorrência, a partir desta poderosa ferramenta de dominação estratégica de
mercado.
Não obstante, o ideal da livre concorrência não é ameaçado apenas pelo
overcompliance, mas também pelo próprio compliance, que vem sendo imposto às micro
e pequenas empresas, seja pela competitividade no mercado – parcerias com maiores
empresas que exigem os programas de integridade dos pequenos –, por exigências legais
– como participações em licitações públicas, paulatinamente institucionalizadas em
inúmeros estados e municípios brasileiros –, ou mesmo pela necessidade de gestão de
riscos.
Quanto aos riscos, a título de ilustração, há os de concorrência desleal (art. 195,
III, da Lei n. 9.279/96); os ambientais na atividade do pequeno produtor rural ou pequena
mineração; os de movimentações financeiras que podem resultar em lavagem de dinheiro
numa pequena imobiliária, construtora, joalheria, mercearia ou num Haras; os referentes
a licitações para o pequeno fabricante; os provenientes de assédios de ordem moral ou
sexual nas relações laborais; desvios de recursos por parte de empregados; os de um
pequeno consultório médico de ginecologista ou urologista quanto aos delitos contra a
dignidade sexual; os relativos à autonomia dos pacientes no tocante às intervenções
médicas reprovadas por crenças religiosas – transfusão de sangue para as Testemunhas
de Jeová – ou mesmo a violências obstétricas na extrapolação das vontades inseridas no
plano de parto da gestante etc.
Paulo César Busato chega inclusive a comparar os programas de compliance ao
cursos de habilitação para direção de veículo automotor e questionar a presença de
minorantes penais naqueles, dentre outros exemplos, para questionar a legitimidade de
um produto exclusivo para a realidade corporativa.
A falta de isonomia entre pequenos e grandes negócios quanto à disponibilidade
(material, cultural etc.) do acesso aos programas de integridade é ainda mais gritante!
109
Como se observa, os programas de integridade configuram uma realidade já
imposta aos micro e pequeno empresário, de tal sorte a os empurrar para uma situação de
vulnerabilidade ao sistema penal, caso não possuma acesso a tais.
Daí a necessidade de superar o determinismo economicista, que é próprio da
criminologia liberal e do conceito de coculpabilidade, para, assim, viabilizar uma
culpabilidade pela vulnerabilidade de cunho empresarial, inclusive para aqueles que não
possuem acesso aos programas de integridade.
Neste sentido, é importante reconhecer que a seletividade do aparelho penal não
é restrita à criminalidade tradicional, mas, muito pelo contrário, está igualmente presente
na empresarial, de tal sorte a também ser atraída pela vulnerabilidade, que será tanto
maior quanto menor for o poder da empresa.
Ou seja, quanto menos disponível (economicamente, culturalmente etc.) à
empresa estiver a implantação de programas de integridade, mais vulnerável estará à
seleção criminalizante.
Ao que tudo indica, em que pese ser irresponsável descartar a possibilidade de
ocorrência das situações de vulnerabilidades individual e processual, a vulnerabilidade
empresarial, por excelência, parece residir na dimensão social, sobretudo a partir do
analfabetismo; do baixo grau de instrução ou escolaridade, ou da miserabilidade.
Ora, sobretudo diante de um cenário de modulação típica que sofre a
criminalidade econômica contemporânea, extremamente complexa – quando não confusa
–, não parece nada razoável deixar de reconhecer estados de analfabetismo ou baixo grau
de instrução dos membros das empresas como característicos de vulnerabilidade.
Da mesma forma, é necessário reconhecer a vulnerabilidade da baixa condição
econômica do empresário (miserabilidade), tal qual as possibilidades de redução ou
substituição da pena presentes no artigo 168, §4º, da Lei 11.101/05 (Lei de Falência). Da
mesma, não soa desarrazoado incluir na miserabilidade a falta de condições materiais para
o empresário se valer de mecanismos de prevenção de riscos como os programas de
integridade.
Já no tocante à estrutura do esforço pessoal para a vulnerabilidade em face do
criminal compliance, conservará a mesma base geral, representada por aquelas três
hipóteses. Contudo, no contexto aqui proposto, as bases para estas hipóteses vão assumir
formatos específicos.
Neste sentido, na primeira hipótese, o sujeito, por ter implantado um programa
de integridade, ostenta um baixo grau de vulnerabilidade, entretanto, se coloca em
110
exposição quando um ou mais sujeitos – seja sócio, diretor, ou qualquer funcionário ou
parceiro –, entra em uma arriscada disputa por poder testando os limites para buscar
algum benefício, por exemplo, concorrencial de um pequeno negócio – como uma
joalheria ou um comerciante de cavalos de um Haras – que, para fazer frente a um grande
concorrente, viola os protocolos fiscais implantados pelo programa, se expondo à
persecução criminal de crimes tributários ou até mesmo lavagem de dinheiro.
Veja-se que, neste caso, o criminal compliance não foi suficente para preservar
o baixo grau de vulnerabilidade, diante do empreendimento do(s) sujeito(s) que
provocou(aram) essa exposição à seleção criminalizante.
E assim, por ter empenhado grande esforço para a exposição criminalizante, não
se vislumbra necessidade de contenção do poder punitivo pela culpabilidade pela
vulnerabilidade.
Quanto à segunda hipótese, é representada por situação em que o sujeito, apesar
de se ver em uma situação de elevada vulnerabilidade, não empreende esforço para
reduzí-la.
Para tanto, imagine-se casos como o de pequenas farmácias ou mercearias
tradicionais e familiares, cujos gestores ostentam um baixo grau de instrução, e/ou mesmo
o negócio não possui míminas condições econômicas para a contratação de um programa
de integridade. Aliada à esta intensa posição de vulnerabilidade, se vendo pressionados
por grandes concorrentes que o avizinham, este(s) gestor(es) se expõe(m) a riscos de
crimes tributários, lavagem de dinheiro ou crimes contra os direitos do consumidor, com
o intuito de alcançar preços minimamente competitivos e, assim, assegurar a
sobrevivência da empresa.
Note-se que, não bastasse o elevado estado de vulnerabilidade, a ausência de um
programa de criminal compliance à disposição e as práticas do(s) gestor(es) promovem
uma exposição ainda mais grave a riscos de práticas criminais, ainda que com o nobre
objetivo de sobrevivência do negócio.
Aí sim se apresenta, embora bem reduzida, uma necessidade da culpabilidade
pela vulnerabilidade para frear a repressão penal, na medida em que, em que pese o
esforço para a exposição à fiscalização, já conservava um elevado estado de
vulnerabilidade, diante da ausência de criminal compliance.
No que diz respeito à terceira e mais frequente hipótese, se dá quando o
indivíduo, apesar de não se esforçar para se tornar vulnerável, por já possuir uma elevada
posição de vulnerabilidade, a seleção criminalizante se torna irresistível.
111
Neste caso, em que pese a mesma mercearia ou farmácia familiar da segunda
hipótese se pautar por uma postura mais comedida e não ser levada pela concorrência a
correr mais riscos, a vulnerabilidade que lhe acomete é tão grave, diante da ausência de
um programa de integridade para corrigir as práticas das gerações anteriores, hoje
consideradas ilícitas, que a sua ausência de esforço para se expor não é suficiente para lhe
preservar do poder punitivo.
Nesta uma hipótese a necessidade de contenção do poder punitivo se apresenta
ainda mais necessária, uma vez que, diante de um alto grau de vulnerabilidade, somado a
um baixo esforço de exposição às práticas criminalizáveis, a seletividade estrutural do
sistema penal pelo vulnerável é ainda mais evidente.
Como se observa, apesar de não estar à disposição de grande parte do pequeno
empresariado – seja por ausência de condições econômicas ou culturais –, um eficiente
programa de criminal compliance se apresentaria não apenas para preservar uma baixa
posição de vulnerabilidade, mas inclusive para inibir esforços pessoais para o sujeito se
expor ao poder punitivo estatal.
Portanto, insistir em ignorar a teoria da culpabilidade pela vulnerabilidade no
Direito Penal empresarial, notadamente na questão aqui proposta do criminal compliance,
agravará mais ainda a seletividade estrutural da persecução criminal, notadamente no
cenário de feroz expansão penal empresarial proposto pela globalização financeira da
sociedade do risco.
112
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ANEXO
Autos nº. 0702.11.020753-8
Comarca de Uberlândia
3ª Vara Criminal
Autor: Ministério Público do Estado de Minas Gerais;
Ré: Vanessa Gonçalves de Oliveira;
Infração Penal: Art. 33, caput, da Lei nº. 11.343/2006;
S E N T E N Ç A
Vistos etc.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS, por
meio de seu Órgão oficiante neste juízo, DENUNCIOU VANESSA GONÇALVES DE
OLIVEIRA, brasileira, solteira, do lar, natural de Uberlândia/MG, nascida em
21.10.1992, filha de Cícera Aparecida de Oliveira, residente à Rua da Safra, nº. 2078,
bairro Minas Gerais, nesta cidade, com incurso nas sanções do Art. 33, caput, c/c art. 40,
III, ambos da Lei nº. 11. 343/2006.
Sustenta a denúncia, em síntese, que no dia 23 de março de 2011, por volta
das 01h00min, nas imediações do estabelecimento de ensino Escola Estadual Professora
Juvenilia, a denunciada trazia consigo drogas, par fins de mercancia (f. 02/04 - Cr).
Oferecida a denúncia, houve a regular notificação da denunciada nos
termos da Lei nº. 11.343/2006 (f. 46/47 - Cr), a defesa preliminar foi apresentada a tempo
126
e modo (f. 50/53 - Cr). A denúncia foi recebida em 27.05.2011 (f. 54 - Cr), tendo sido a
acusada devidamente citada (f. 59-v - Cr).
Em audiência de instrução e julgamento, a Acusada foi devidamente
qualificada e interrogada nos termos da Lei nº. 11.343/06, tendo sido ouvida uma
testemunha. Após referida audiência foi concedido às partes para apresentação de
alegações finais (f. 63/67 - Cr).
Em alegações finais o Ministério Público pugnou pela condenação da
acusada como incursa nas sanções do art. 33, caput, c/c art. 40, III, ambos da Lei
11.343/2006 (f. 70/72 - Cr). Por sua vez, a defesa em sede de preliminar requereu a
substituição da pena corporal por restritiva de direitos (f. 73/79 - Cr).
É o relatório. Fundamento e Decido.
A materialidade de referido delito encontra-se comprovada por Intermédio
do APFD (f. 06/11 - Cr), BOCBPCPM/MG (f. 12/17 - Cr), Autos de Apreensão (f. 18 e
19 - Cr), Laudo de Constatação (f. 21/22 - Cr) e pelo Laudo Toxicológico Definitivo (f.
24 - Cr), assim como a autoria restou devidamente comprovada, no curso do devido
processo penal.
A acusada VANESSA, em juízo, declarou sobre o fato (f. 65/66 - Cr):
“que a denúncia é verdadeira em parte; que é verdade que eu estava vendendo drogas,
mas era para eu sustentar meu vício; que já tinha uns três meses que estava
comercializando droga, depois que eu sai de casa, estando sem trabalho, sendo que eu
estava morando na casa de uma amiga; que eu comercializava a droga na rua; (…); que
cada dola estava sendo comercializada por R$ 5,00 reais; que eu fui presa na praça que
tem ao lado da Escola Estadual Prof. Juvenilia”. (Grifo nosso).
Fornecendo solidez à confissão judicial da acusada, há o depoimento
judicial do policial Cícero, o qual devidamente compromissado, afirmou (f. 67 - Cr):
127
“que acredita que a abordagem se deu por volta das 0:00 horas, pois começou a
trabalhar às 23:00 horas; que no horário da abordagem não havia mais aulas e a escola
estava fechada; que reconheço a acusada presente como aquela que foi presa”.
Assim, a confissão judicial da acusada, amparada pelas demais provas
constantes nos autos, sobretudo as produzidas em sede do contraditório, como o
depoimento acima, não há outro caminho a trilharmos senão o da condenação, em face
do sólido caderno probatório produzido em desfavor da acusada.
Desta forma, não há qualquer dúvida de que a acusada trazia consigo a
droga apreendida, tal fato, aliado à natureza (maconha, cocaína e crack), a quantidade e
forma de acondicionamento das 19 (dezenove) pedras de crack, armazenadas em
papelotes de plástico, pesando aproximadamente 4,21g (quatro gramas e vinte e uma
centigramas), 01 (uma) porção da droga cocaína, acondicionada em material plástico,
pesando aproximadamente 0,71g (setenta e uma centigramas) e 01 (uma) porção da droga
maconha, acondicionada em material plástico, pesando aproximadamente 2,22g (dois
gramas e vinte e duas centigramas), o que permitia a pronta distribuição (mercancia), bem
como o local (na via pública, próximo a estababelecimento de ensino), as condições em
que desenvolveu a ação, à luz do que dispõe o §2º do art. 28 da Lei n. 11.343/2006,
somado ao fato de ter sido apreendido R$ 77,25 (setenta e sete reais e vinte e cinco
centavos), sem qualquer comprovação lícita quanto à origem (f. 15 - Cr), forçoso
reconhecer que o destino das drogas era, sem qualquer dúvida, a mercancia.
Sobre esse aspecto, colaciono o seguinte julgado:
TRÁFICO - ABSOLVIÇÃO OU DESCLASSIFICAÇÃO PARA USO -
IMPOSSIBILIDADE - DELITO CARACTERIZADO. Impossível o
acolhimento dos pedidos de absolvição ou de desclassificação, quando
confessada de forma espontânea a propriedade da droga pelo réu, restando
comprovada de forma inequívoca sua destinação mercantil, mormente pela
quantidade, natureza, variedade e forma de acondicionamento das drogas
apreendidas, somada aos demais indícios estampados nos autos, inclusive
a existência de várias denúncias anônimas sobre a atividade ilícita do
apelante. TRÁFICO PRIVILEGIADO - CRIAÇÃO DOUTRINÁRIA
128
QUE NÃO AFASTA A NATUREZA DO DELITO - REGIME
INICIALMENTE FECHADO - OBRIGATORIEDADE -
PRECEDENTES STJ E STF - SUBSTITUIÇÃO DE PENA E 'SURSIS' -
INCOMPATIBILIDADE. A Lei Federal 11.464/07, que deu nova redação
ao § 1º do art. 2º da Lei Federal 8.072/90, passou a determinar o regime
inicial fechado para o cumprimento da pena aos condenados por crimes
hediondos e a eles equiparados, sendo o tráfico crime equiparado
constitucionalmente, o que desautoriza a conclusão de que o regime inicial
da pena possa ser diverso daquele previsto na lei, ainda que aplicada a
causa de diminuição prevista no § 4º ao art. 33 da Lei Federal 11.343/06,
que não afeta ou descaracteriza o crime como hediondo, se mostrando
ilegal a fixação do regime diverso daquele declinado na norma que é
plenamente vinculada, na forma dos precedentes dos Tribunais superiores,
ou que seja possível a substituição ou o 'sursis' pela só incompatibilidade.
Recurso não provido. (TJMG - ACrim nº 1.0702.09.588015-0/001/001,
Rel. Des. JUDIMAR BIBAR, j. 22.05.2012, pub. 01.06.2012). (Grifo
nosso).
Assim, extrai-se dos autos, que a ré, com sua conduta típica e antijurídica,
trazia consigo, substâncias entorpecentes que causam dependência sem autorização de
autoridade competente, bem como culpável, em sendo imputável, tendo potencial
consciência da ilicitude de sua conduta que era exigível conduta diversa, razão pela qual
não há outro caminho senão a condenação, conforme requerido pelo Ministério Público,
em face das desfavoráveis provas diretas e indiretas constantes dos autos.
No mais, a causa de aumento de pena do art. 40, III, da Lei 11.343/2006
(infração cometida nas imediações de estabelecimento de ensino), restou devidamente
comprovada, seja pelo depoimento da testemunha ou pelas próprias declarações da
acusada, de onde extraímos que o fato se deu nas imediações do estabelecimento de
ensino Escola Estadual Prof. Juvenilia.
Sobre esse aspecto, colaciono o seguinte julgado:
129
APELAÇÃO CRIMINAL - TRÁFICO E ASSOCIAÇÃO PARA O
TRÁFICO - IRRESIGNAÇÃO DEFENSIVA - TRÁFICO -
ABSOLVIÇÃO - IMPOSSIBILIDADE - ALEGAÇÃO DE CONDIÇÃO
DE USUÁRIO - CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL - RETRATAÇÃO EM
JUÍZO - IRRELEVÂNCIA DIANTE DO CUNJUNTO PROBATÓRIO E
CIRCUNSTÂNCIAS CONSTANTES DOS AUTOS - APLICAÇÃO DO
PRIVILÉGIO - INVIABILIDADE - ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO -
INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS PARA SUA CONFIGURAÇÃO -
ABSOLVIÇÃO - POSSIBILIDADE -IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL
- AUMENTO DA PENA-BASE - ADMISSIBILIDADE - MAUS
ANTECEDENTES - RECONHECIMENTO DA CAUSA DE
AUMENTO PREVISTA NO ART.40, III DA LEI DE DROGAS -
NECESSIDADE - (…). 7. Para a aplicação da majorante prevista no
art. 40, III, da Lei nº 11.343/06 não se faz imprescindível que a infração
tenha por objetivo atingir especificamente os estudantes da escola
vizinha ao local da traficância, sendo suficiente para a aplicação da
acusa de aumento a sua prática nas imediações ou dependências dos
locais legalmente descritos, desde que o agente tenha ciência disso,
como assim o foi. (…). (TJMG - ACrim nº 1.0223.11.011473-1/001, Rel.
Des. WALTER LUIZ, j. 12.06.2012, pub. 06.07.2012). (Grifo nosso).
Insta salientar que, deve ser reconhecida em favor do (a) (s) Acusado (a)
(s), quando da aplicação da pena, a causa especial de diminuição de pena prevista no § 4º
do art. 33 da Lei nº. 11.343/06, uma vez que a prova dos autos demonstra que o (a) (s)
acusado (a) (s) é (são) primário (a) (s), de bons antecedentes, não havendo provas de que
se dedique(m) a atividades criminosas ou integre(m) organização criminosa, na esteira do
que dispõs a Resolução do Senado n. 05/2012.
No que tange ao regime inicial de cumprimento de pena, há de se
considerar que a causa de diminuição de pena prevista no § 4º, art. 33, da Lei 11.343/2006,
não tem o condão de criar um tipo penal diverso ou figura autônoma de forma a se
desatender o comando do art. 2º, § 1º, da Lei n. 8.072/1990.
130
Sobre esse aspecto, mutatis mutandis, o Superior Tribunal de Justiça já
pacificou a questão que vem sendo seguida por diversos Tribunais de Justiça:
“- A minorante prevista no § 4º, do art. 33, da Lei 11.343/06, não cria
tipo penal diverso ou figura delitiva autônoma, e, portanto, seu
reconhecimento não conduz à inaplicabilidade do disposto no art. 2º,
§1º, da Lei nº. 8.072/90, que dispõe expressamente que as penas
advindas do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins serão
cumpridas em regime inicialmente fechado. (TJMG-ACr
1.0702.11.000199-8/001, Rel. Des. CÁSSIO SALOMÉ, j. 15.12.2011, p.
21.01.2012). No mesmo sentido: TJMG - ACr 0030586-
66.2010.8.13.0443, Rel. Des. AGOSTINHO GOMES DE AZEVEDO; j.
24.11.2011, p. 23.02.2012.” (Grifo nosso)
A aludida causa de diminuição de pena (art. 33, § 4º, da Lei n.
11.343/2006) não afasta a hediondez do crime, tampouco suprime a gravidade do mesmo,
apenas tem o condão de reduzir a pena se presentes a (primariedade, bons antecedentes,
não se dedicar a atividades criminosas, nem integrar organização para este fim).
Nesse sentido o Superior Tribunal de Justiça pacificou a questão:
“2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou o
entendimento no sentido de que a aplicação da causa de diminuição
de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06 não altera a
natureza hedionda do crime de tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins.”(STJ-EDcl no AgRg no REsp 1193540 / MG, 5ª Turma,
Rel. Min. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU, j. 17.11.2011, p.
16.12.2011). (Grifo nosso)
Assim, a aplicação da referida causa de diminuição de pena do § 4º do art.
33, caput, da Lei 11.343/2006 não autoriza desconsiderar o disposto no art. 2º, §1º, da Lei
8.072/1990, o qual dispõe que as reprimendas em crimes hediondos ou assemelhados,
como é o caso, por se tratar de tráfico de drogas, o regime de cumprimento da pena se
inicia pelo fechado.
131
Entretanto, recentemente o STF, por maioria (HC 111.840), declarou
incidentalmente inconstitucional o regime inicial fechado constante do art. 2º, § 1º, da Lei
n. 8.072/1990.
Nessa linha, também recentemente a Corte Superior do Tribunal de Justiça
de Minas Gerais, por meio do Incidente de Uniformização de Jurisprudência-CR nº
1.0145.09.558174-3/003, também por maioria, além de decidir pela possibilidade
acertada da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, nas
hipóteses do § 4º do art. 33 da Lei Antitóxico, decidiu também que nesses casos seria
possível regime mais brando, ou seja, diverso do inerente fechado do art. 2º da Lei n.
8.072/1990.
Coadunamos do posicionamento de que o disposto no art. §2º, §1º, da Lei
8.072/1990 fere o princípio da individualização da pena na esfera judicial, tendo o
legislador engessado o mesmo ao caminhar por essa trilha de forma a ir além do que lhe
competia na individualização, retirando do Magistrado a possibilidade, no caso concreto,
de aplicar um regime de pena proporcional à pena aplicada.
É certo que coadunamos igualmente do entendimento de NELSON NERY
JUNIOR de que, com base no art. 469 do CPC, não se pode falar que há decisão, nesses
casos, sequer transitada em julgado inter partes, sendo impróprio conferir esse status à
causa de pedir em processo judicial subjetivo que não alcançaria as partes, tornando na
prática equiparável o controle concreto ao abstrato64, contudo em respeito ao princípio
da segurança jurídica, embora me filie às minorias supracitadas, entendemos por bem
passar adotar esse posicionamento majoritário, embora saibamos que não é vinculante e
que os seus reflexos nos crimes hediondos serão inevitáveis, voltando-se tudo ao tempo
anterior à Lei n. 11.464/2008 e posterior à declaração de inconstitucionalidade do
malfadado regime integralmente fechado previsto inicialmente na Lei n. 8.072/1990.
64 NERY JUNIOR, Nelson. Anotações sobre mutação constitucional – Alteração da Constituição sem
modificação do texto, decisionismo e Verfassungsstaar. Et al. Direitos Fundamentais e Estado
Constitucional: Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: RT; Coimbra (Pt): Coimbra
Editora, 2009.
132
Lado outro, rotineiramente, em face da quantidade e natureza da droga
apreendida, entendemos ser necessário e adequado se fixar regime proporcional à pena
aplicada com base no art. 33 do CP, bem como que seja aplicada a causa de diminuição
de pena do §4º, do art. 33, da Lei 11.343/2006, em grau mediano, considerando o disposto
no art. 42 da Lei de Tóxicos.
Entretanto, no caso concreto, o fato da ré confessar o crime, se dizendo
usuária e que vendia a droga para sustentar o próprio vício, demonstra que atua no varejo
e é mais uma vítima do descaso social, exsurgindo a coculpabilidade do Estado que não
desenvolve políticas de redução de danos eficientes e rotineiras, mas sim ocasionais e
pontuais, mas preocupado, na sua ineficácia, em tratar dos efeitos do que das causas,
promovendo uma constante exclusão social, razão pela qual, no caso, a natureza e
quantidade da droga apreendida não se sobrepõem à coculpabilidade do Estado, por isso
a redução deve alcançar o seu grau máximo.
Destarte, comprovadas a materialidade e a autoria de um fato típico,
antijurídico e culpável, na falta de excludentes e/ou dirimentes, há de se dar procedência
à imputação contida na exordial acusatória.
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE A DENÚNCIA para
CONSIDERAR VANESSA GONÇALVES DE OLIVEIRA, como incurso nas sanções
do art. 33, caput, da Lei nº. 11.343/2006. Atento ao princípio constitucional da
individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF), ao disposto ao art. 59 e 68 do CP e ao
preceituado no art. 42 da Lei nº. 11.343/2006, passo a dosimetria:
CULPABILIDADE: não extrapola a reprovabilidade inerente ao tipo
penal imputado. ANTECEDENTES: imaculados, à luz do disposto no art. 64, I, do CP.
CONDUTA SOCIAL: nada há que seja digno de consideração em seu desfavor.
PERSONALIDADE: nada há de concreto nos autos que permita uma correta aferição.
MOTIVOS: desfavoráveis, tendo declarado em juízo que a prática do crime visava
sustentar o seu vício por drogas. CIRCUNSTÂNCIAS: inerentes à ação desenvolvida
para consumação do delito. CONSEQUÊNCIAS: sem registro na seara extrapenal.
COMPORTAMENTO DA VÍTIMA: sem registro em face da natureza jurídica do
sujeito passivo do crime em tela, por se tratar de crime vago.
133
Em sendo assim, JULGO NECESSÁRIO E SUFICIENTE PARA A
REPROVAÇÃO E PREVENÇÃO DO CRIME, A PENA-BASE NO MÍNIMO LEGAL
DE 05 (CINCO) ANOS DE RECLUSÃO, E 500 (QUINHENTOS) DIAS-MULTA
(atento ao enunciado que coadunamos da Súmula nº. 43 do Grupo de Câmaras Criminais
do Eg. TJMG).
Embora presentes as circunstâncias atenuantes da confissão e da
menoridade relativa, deixo de considerá-las para redução da pena, uma vez que a mesma,
nesta fase, não pode ficar aquém do mínimo legal já fixado, na esteira do enunciado na
Súmula nº. 231 do STJ e do enunciado na Súmula nº. 42 do 1º Grupo de Câmaras
Criminais do TJMG.
Ausentes circunstâncias agravantes, mas presente a causa especial de
diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei nº. 11.343/06, conforme
fundamentação acima DIMINUO A PENA EM 2/3 (DOIS TERÇOS) PARA FIXÁ-
LA EM 01 (UM) ANO E 08 (OITO) MESES DE RECLUSÃO, E 166 (CENTO E
SESSENTA E SEIS) DIAS-MULTA. Presente também, a majorante prevista no art. 40,
III, da Lei 11.343/2006 (infração praticada nas imediações de estabelecimento de ensino)
AUMENTO A PENA EM 1/6 TORNANDO-A DEFINITIVA EM 01 (UM) ANO, 11
(ONZE) MESES E 10 (DEZ) DIAS DE RECLUSÃO, E 193 (CENTO E NOVENTA
E TRÊS) DIAS MULTA, à razão de 1/30 do maior salário mínimo vigente à época do
fato, considerando à situação econômica do réu, devendo ser atualizada quando de sua
execução, nos termos do art. 49, § 2º, do CP.
O regime inicial de cumprimento da pena será o aberto, nos termos do
art. 33, §§2º, “c” e §3º do CP.
Presentes, no caso, os requisitos do art. 44 do CP, substituo a pena
privativa de liberdade por duas restritivas de direitos (§ 2º do art. 44 do CP) de prestação
de serviços a comunidade e de limitação de final de semana.
Destarte, deverá o réu prestar serviços à comunidade, junto ao NPCU -
Núcleo de Prevenção à Criminalidade de Uberlândia (Avenida Getúlio Vargas, nº.
134
1533 - Bairro Tabajaras - CEP: 38.400-299), devendo as tarefas serem cumpridas durante
sete horas semanais, aos sábados, domingos e feriados ou em dias úteis, de modo a não
prejudicar sua comprovada jornada normal de trabalho, ficando ciente que poderá cumprir
em menor tempo, nunca inferior à 1/2 (metade) da pena privativa de liberdade fixada, nos
termos do art. 55 c/c 46, § 4º, do CP.
Limitação de final de semana, consistente na obrigação de permanecer,
aos sábados e domingos, por 05 (cinco) horas diárias, em estabelecimento destinado à
recuperação de drogados, a ser definido pelo juízo da execução, podendo durante a sua
permanência ser ministrados cursos e palestras visando à recuperação dos viciados em
drogas.
Considerando a pena aplicada e o fato da Acusada ter respondido o
processo em liberdade, concedo-lhe o direito de recorrer em liberdade, como já se
encontra.
Transitada em julgado:
1 - Lancem-se (e-se) o (s) nome (s) do (a) (s) réu (ré) (s) no rol dos
culpados;
2 - Comuniquem-se (e-se) a (s) condenações (ão) ao TRE para atendimento
ao art. 15, III da CF/88, e aos órgãos de identificação criminal nos termos do art. 809 do
Código de Processo Penal;
3 - Expeçam-se (e-se) guia (s) de recolhimento para a Execução Criminal;
bem como guia para pagamento da multa, no prazo de 10 dias, consoante dispõe a LEP,
recolhendo-se o valor ao Fundo Penitenciário;
4 - Oficie-se à autoridade policial competente, para que promova à
destruição oficial da droga, comunicando a sua ocorrência vinculada nos autos, bem
como ao NPCU para nos enviar bimestralmente uma declaração de assiduidade e
empenho às tarefas designadas a sentenciada.
135
Isenta de custas, nos termos da legislação vigente.
P. R. Intimem-se, pessoalmente.
Uberlândia (MG), 14 de janeiro de 2013 .
Antonio José F. de S. Pêcego