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CRIATIVIDADE: UMA ABORDAGEM CONTEMPORÂNEA
Resumo
O entendimento de como acontece o fenômeno da criatividade tem estimulado, há muito tempo, pesquisa nas áreas de psicologia, filosofia e arte. Hoje, busca-se respostas para esta questão no campo da história, sociologia, estética, educação, psicopedagogia, neurologia e, principalmente, na ciência cognitiva como a inteligência artificial e a psicologia cognitiva. Como são processadas as informações criativas na mente humana? Este também é a perspectiva das neurociências¹, na qual a psicologia se insere, propondo novos conceitos sobre este temário. A criatividade deixa, aqui, de ser entendida como um “dom” ou uma predisposição sobrenatural. Buscaremos entender a criatividade no contexto e se a criatividade pode ser definida e medida de forma objetiva. ¹ Neurociências: agrupam diferentes disciplinas para o estudo do cérebro, em particular a neurologia, a neurobiologia, a neuropsicologia, a neurofarmacologia e também a psicologia.
O CONTEXTO DA DESCOBERTA
Ao longo da história humana a palavra “descoberta” tem sido
utilizada como marco referencial do progresso. Um estereótipo deste termo
envolve a idéia de ser “descoberta” um evento subjacente a um processo
exclusivamente mental e individual, restrito a pessoas especiais, por que
não dizer “diferentes”.
Existe uma associação inerente e muito forte do descobridor, uma
personalidade incomum, como autor individual e reconhecível da invenção.
Este modelo de personalidade criativa é facilmente identificado em
homenagens e cerimoniais como as premiações nas ci6encias, apresentando
os gênios e as descobertas revolucionárias. O filósofo Gilbert Ryle (1947) já
demonstrava essa ficção quando dizia que o conceito da mente criativa está
diretamente relacionado com o ideal de conquista, ou seja, mais com o
resultado final das ações criativas, claramente situadas no tempo, e menos
com as ações em si mesmas, sobretudo com o processo que as levaram a
acontecer. Este entendimento de “descoberta” pressupõe um modelo
atribuído às ações ligadas ao sujeito “descobridor”, após a sua realização. O
sociólogo Augstini Brannigan diz que “(...) eventos são descobertas não
pela maneira como aparecem na mente, mas como são definidos por um
critério cultural” (1981, p.90).
Esta acentuada relevância aos critérios culturais que definem as
descobertas criativas e as diferem das não criativas, traz problemas para a
abordagem psicológica na medida em que o estudo da criatividade não é
uma questão que pode ser explorada com ferramentas e técnicas apenas
psicológicas, atualmente empregadas. Assim, convidamos a pensar sobre o
processo de reconhecimento do ato criativo e da criatividade propriamente
dita, defendendo a premissa de que o trabalho que não conseguir
valorização em um dado espaço sociocultural também não constitui a
descoberta em si. Precisamos, então, também levar em consideração a
existência do processo cultural anterior ao ponto final criativo e do
reconhecimento do resultado deste processo pela comunidade que o
interpreta.
René van der Veer e Jaan Valsiner (1999) em pesquisa investigativa
sobre a psicologia soviética, vida e obra de Vygotsky², salientam a
perspectiva vygotskyana sobre a criatividade destacando que o processo
criativo e seu inventor são consequências de seu tempo e ambiente. Isto
porque a criatividade deriva das necessidades que foram estabelecidas
antes do inventor/criador e, portanto, baseia-se nas possibilidades que
existem fora dele. Isto nos leva a entender a continuidade existente no
desenvolvimento histórico da tecnologia e da ciência. Vygotsky (1998)
entende a criatividade a partir de um processo histórico e contínuo em que
cada forma seguinte é determinada pelas precedentes. Neste processo,
para que a descoberta aconteça, antes dela, é preciso que sejam criadas
condições materiais, sociais e psicológicas necessárias para o seu
surgimento.
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²L. S. Vygotsky: Pesquisador do desenvolvimento humano. Realizou estudos nas áreas da psicologia, educação, arte, literatura, teatro, desordens auditivas e afasias. Colocou a linguagem como principal instrumento de mediação entre o ser humano e o meio social na formação das funções psicológicas superiores como a memória, a percepção e a atenção voluntária.
As grandes invenções que certamente levaram tempo, talvez décadas
ou mais para serem descobertas não podem ser reduzidas a um único
momento.
O entendimento do contexto da descoberta parece-nos menos
individual e específico, e mais um processo árduo, demorado e dedicado em
um conjunto indissociável de redes sociais, materiais e psicológicas
complexas. Veja por exemplo o processo de descoberta/invenção da luz
elétrica, permeado de esforços desastrosos, absurdos e determinados:
A inovação é talvez menos um produto de atitudes criativas individuais e peculiares (...) e mais uma questão de estar situada numa posição central durante essas breves passagens da história da indústria em que a balança da escolha coletiva pode pender tanto para um quanto para outro lado. Thomas Edison demonstrou isso (David, 1992, p.176)
Howard Gardner³ (1994) no livro: A Criança Pré-Escolar: como pensa
e como a escola pode ensiná-la, faz um paralelo comparativo entre três
tipos de personagens ou aprendizes (o intuitivo, o tradicional e o
disciplinar). Neste enquadre, detalha as características do especialista
disciplinar que, no caso, nos é interessante. Diz, então, que este tipo de
aprendiz é um indivíduo de qualquer idade que tem domínio dos conceitos e
habilidades de uma disciplina ou área do conhecimento, podendo aplicá-lo
de uma forma criativa em situações reais. Esta capacidade de utilização
criativa dos conhecimentos aprendidos, somente é possível devido à mestria
que foi, muitas vezes, dolorosamente obtida ao longo de uma série de anos
de dedicação.
Howard Gruber (1981), psicólogo da Rutgers University, diz que uma
pessoa criativa busca relacionar vários pontos e teorias espalhados por sua
área de interesse, formando assim um mapa cognitivo cada vez mais amplo
com o intuito de chegar a uma síntese coerente e abrangente.
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³H.Gardner: Criador da Teoria das Intelig6encias Múltiplas. Professor e pesquisador da Universidade de Harvard, EUA, onde estuda o funcionamento das capacidades cognitivas e do processamento das informações.
Pode também gerar uma complexa rede de atividades, ou seja, uma
infinidade de buscas incansáveis que prendem sal curiosidade por longos
períodos de tempo.
O modelo heróico do descobridor/criador, difundido durante toda a
história, foi permeado de escolhas coletivas e reducionistas (visão apenas
do ponto final, desconsiderando o processo necessário para chegar ao
xeque-mate) de avaliação, transformando longos e complexos processos de
criação em momentos divinos de inspiração instantânea e individual. Os
descobridores tornavam-se heróis da cultura, especialmente importantes
para a narrativa histórica.
Nas artes, este processo de identificação “heróica” não foi diferente,
basta nos ater às formas padronizadas de como são descritos os artistas
“mais importantes” ou as suas obras; características estas identificadas
geralmente após a sua morte; o gênio inato, um renomado mestre e assim
por diante. Assim as artes e as técnicas adquiriram status ao longo da
história, através de alguém em especial, um fundador ou um mentor;
alguém supostamente autodidata e especial.
Fernando Hernández propõe a questão: se a criatividade é tomada
como um “dom” individual, o ensino da arte não é necessário:
(...) a lenda se impõe sobre a realidade, e leva a que se continue pensando que ser artista seja um Dom recebido por alguns poucos eleitos. Disso decorre que o ensino de arte não seja necessário, pois quem não tiver o Dom do gênio (de genes) não poderá chegar à categoria de artista (Hernández, 2000, p.86).
O surgimento das pessoas criativas pressupõe uma visão do indivíduo
por parte da cultura e dos próprios indivíduos. Desta forma, Kuhn (1962)
habilmente coloca as descobertas diretamente ligadas a eventos julgados
importantes pela comunidade em questão, e os descobridores, os indivíduos
que aquelas comunidades julgam reconhecer.
A relevância do processo de reconstituição da descoberta é evidente:
• Nos mostra a forma como as comunidades de pesquisadores se
organizam com o propósito de validar aquilo que apresentam
como sucesso;
• Identifica a importância de uma avaliação positiva quando do
surgimento de uma idéia nova pelo grupo social se quisermos que
ela seja reconhecida como criativa pela maioria;
• Entende a descoberta e o fenômeno criativo como parte
indissociável das redes sociais nos eximindo da possível tentativa
de distinção entre descoberta e invenção ou entre ciência e arte;
• Desmitifica a descoberta como algo sobrenatural ou individual
favorecendo a análise das reais condições de progresso.
É interessante notar que a análise psicológica que serve para explicar
o processo de descoberta serve também para desacreditá-lo. Isto porque
para desacreditar uma descoberta ou seu descobridor a análise psicológica
utiliza um vocabulário coletivo mais amplo; uma “psicologia da multidão”,
como argumenta Simon Scaffer (1999), professor do departamento de
História, Filosofia e Ciência da Free School Lane na Inglaterra, em artigo
publicado no livro Dimensões da Criatividade. Para isto, vincula-se a
descoberta a muitos exploradores e não a alguém em especial.
Assim, tanto a análise retrospectiva do processo criativo como a
celebração heróica de seu produto criativo desempenham papéis
importantes na produção e no entendimento da descoberta. Destacamos
aqui a importância do processo e do momento cristalizado da descoberta,
concordando com a idéia de Gruber (1981, p.49) que a descoberta deve ser
entendida em um contexto histórico: “(...) naquele período houve um
processo altamente social de colaboração, controvérsia e diálogo”.
Podemos dizer, talvez, que a pessoa criativa é uma invenção da
sociedade ocidental e que esta pode ser incondicionalmente desconhecida
em culturas que valorizam a adaptação a um modelo de comportamento
culturalmente estabelecido de outra maneira.
ESPAÇO CONCEITUAL
Margaret A. Boden, pesquisadora da School of Cognitive and
Computing Sciences, Inglaterra, nos traz algumas questões interessantes
sobre o que é a criatividade e, principalmente, sobre a idéia da exploração e
transformação de espaços conceituais. Afirma que, apesar dos artistas, dos
inventores, dos psicólogos e de muitos profissionais que vivenciam o
fenômeno criativo comprovem que ele existe, raramente sabem como suas
idéias tornaram-se inovadoras. A criatividade ainda nos parece misteriosa.
Como a ciência pode explicar acontecimentos absolutamente novos? Poderá
uma teoria unificar esta idéia e chegar a um consenso aceitável?
A psicologia esclarece muitos processos inconscientes e funções como
a linguagem, a memória, a atenção voluntária e o raciocínio, no entanto a
criatividade permanece misteriosa pelo motivo do próprio conceito ser
aparentemente paradoxal. Boden (1999) explica que se ficarmos restritos à
definição dos dicionários sobre criatividade, como por exemplo: “a
capacidade de criar ou formar do nada”; a criatividade será tomada como
um momento de inspiração, impossível de ser compreendido
cientificamente.
Para tornar esta questão possível de ser detalhada e também para
fugir do romantismo da idéia anterior sobre criatividade, os “teóricos da
combinação” a explicam de uma forma diferente: a criatividade se processa
através de combinações sucessivas e inusitadas, isto é, uma combinação
original de idéias já conhecidas. Porém, em suas explicações, acabam
omitindo a própria definição de criatividade quando pressupõe que estas
combinações inusitadas são sempre interessantes ou criativas. Assim, os
“teóricos da combinação” deixam de esclarecer o ponto mais importante de
sua teoria: como a combinação original aconteceu?
Boden questiona a teoria combinatória quando diz:
Eles tomam como certa, por exemplo, que associar idéias semelhantes e reconhecer analogias mais distantes, sem indagar como tais feitos são possíveis. Mas em muitos dos casos aclamados nos livros de história, é o reconhecimento da analogia original que é surpreendente. Uma teoria psicológica da criatividade
precisa explicar como funciona o pensamento análogo. (Boden, 1999, p.82).
Apesar de concordarmos com a afirmação de que realmente muitas
idéias criativas partiram da reorganização de idéias anteriores em
combinações incomuns como na pintura, na música e nos poemas, o que
poderemos dizer daquelas idéias, também criativas, que nos surpreendem
pelo se conteúdo original?
Para responder esta questão, Boden (1999) distingue a criatividade
em dois sentidos:
• Criatividade – P (sentido psicológico): uma idéia é P-criativa
quando, não importando quantas vezes outras pessoas a
tiveram, alguém a organiza pela primeira vez em sua mente.
• Criatividade – H (sentido histórico): uma idéia é P-criativa
quando ela for P-criativa e ninguém mais, até a data do
acontecimento, a teve antes. Assim, para esta explicação,
todas as idéias H-criativas são, necessariamente, P-criativas.
Desta forma, toda a explicação psicológica da criatividade pressupõe
um critério valorativo considerável. Se para muitas pessoas uma idéia pode
ser considerada comum, para outro alguém, esta mesma idéia, pode ser
expressa como algo original. Porém, nem todas as idéias psicologicamente
originais serão valorizadas como tal, pela pessoa que a criou ou pelo grupo
cultural que esta pessoa pertence. Os julgamentos de valor de idéias
criativas estão intrinsecamente ligados à cultura nos seus momentos de
elogio, promoção e preservação. Desta forma, os critérios de valor,
possivelmente entram como variáveis importantes no processo de validação
da idéia criativa. Assim, a distinção é analítica, psicológica e cultural.
Quando questionamos se uma idéia é ou não criativa, devemos antes
nos perguntar como ocorreu a produção ou geração deste processo e
considerar as suas variáveis: cultural, histórica, psicológica, entre outras.
Assim, poderemos distinguir as idéias novas das absolutamente originais.
Uma idéia nova é aquela que pode ser descrita pela mesma organização de
idéias gerativas⁴ ou regras que já produziram idéias conhecidas. Uma idéia
original ou genuinamente criativa não pode, pois é aquela que faz um
movimento além do conjunto de regras ou de idéias gerativas existentes. É
aquela idéia que não poderia ter surgido do paradigma preexistente.
Em uma frase como: “as melancias estão no armário dos sapatos,
embaixo dos discos da Elis Regina”, existe o componente criativo? Até que
ponto? Até o ponto desta frase nunca ter sido pensada antes.
Noam Chomsky, um notável lingüista e ativista político norte-
americano preocupou-se com a natureza da mente, mais especificamente
com a formação da linguagem humana. Defendia a idéia de que o
conhecimento é em grande parte inato. Em seus estudos explorou a idéia
dos seres humanos poderem produzir sentenças absolutamente novas,
chamando esta linguagem de criativa. Entendia que todos somos capazes
de produzir sentenças nunca antes pronunciadas, porém, a palavra criativa
talvez tenha sido mal-escolhida. Mesmo que a frase sobre as melancias e os
discos da Elis fosse original ela poderia ter ocorrido antes, dita por outra
pessoa, ou ainda, produzida por um computador equipado com regras
gramaticais e de vocabulário. Proferir uma frase nova não é,
necessariamente, fazer algo criativo.
Após termos feito este esclarecimento de significados, poderemos
explorar a idéia de espaços conceituais.
Os espaços conceituais são as premissas que organizam, dão forma,
delimitam e unificam um dado pensamento, ou seja, são sistemas, que em
sua linhas básicas ou gerativas, dentro de um certo domínio, como por
exemplo uma melodia de bossa-nova, um jogo de cartas ou de xadrez, um
paradigma educacional ou uma pintura cubista, permitem um conjunto de
possibilidades.
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⁴ Idéias gerativas: Linhas fundamentais dentro de um domínio de espaço conceitual.
Um espaço conceitual também pode ser entendido como um estilo de
pensar – em pintura, em escultura, em música, em literatura, em
matemática, etc.
Pode também ter diferentes dimensões, limites ou níveis, permitindo
interferências de diferentes maneiras, de forma superficial ou de forma
profunda. Quanto maior for a exploração de um espaço de possibilidades.
Perkins (1999), pesquisador da Universidade de Educação em
Massachussets entende o espaço conceitual propondo a exploração de um
espaço de possibilidades. Esse movimento evoca um dos pontos mais
relevantes da moderna psicologia cognitiva: a noção de busca em um
espaço problematizador.
É interessante notar que os limites ou estruturas de um dado espaço
conceitual podem ser mapeados e percorridos por representações mentais.
Estes mapas mentais podem ser usados (consciente ou inconscientemente)
para transitar ou mudar estes mesmos espaços.
Para superar uma limitação ou criar em um espaço conceitual é
preciso mudá-lo. Mas esta mudança pode ser feita sem, necessariamente,
chegar aos seus limites:
Uma pequena mudança (...) em uma dimensão relativamente superficial de um espaço conceitual é como abrir uma porta para um quarto não visitado em uma casa verdadeira. Uma grande mudança (uma transformação), especialmente em uma dimensão relativamente fundamental, é mais como a construção instantânea de uma casa nova, de um tipo fundamentalmente diferente do primeiro (embora relacionado com ele) (Boden, 1999, p.86).
Martindale (1999), em capítulo escrito para o livro Dimensões da
Criatividade, mostra que em sucessivos períodos históricos tem havido
ondas bastante regulares de variações estilísticas, podendo ser observadas
na pintura, na música, na poesia, etc. Sugere, em estudos sobre a
criatividade poética, que quando um dado estilo for explorando
exaustivamente, torna-se cada vez mais conhecido (pelo autor e pelo
público que o experimenta) e empurrado em direção a seus limites, através
de movimentos de pensamento cada vez mais complexos e específicos. Os
efeitos estéticos destas forças surgem das “deformações” ou
‘estranhamentos” provocados, e se estas deformações se tornarem
repetitivas ou automatizadas, então haverá uma pressão constante sobre
sucessivos “criadores” para que produzam novas deformações em objetos
estéticos, praticando assim o ato criativo, necessário e inovador de
exploração ou modificação de um dado espaço conceitual. “Se uma obra de
arte precisa ser original, cada obra de arte posterior precisa ser diferente
das obras anteriores ou nem sequer será uma obra de arte.” (Martindale:
1999, p.166).
A exploração ou trânsito em um espaço conceitual pode levar a novas
idéias que podem ser chamadas de idéias criativas. Assim, a exploração
conceitual também é uma forma de criatividade, porém, transitar em um
espaço conceitual é uma coisa, ultrapassar os seus limites é outra.
Os espaços conceituais podem ter padrões altamente complexos,
podendo então a psicologia computacional⁵ nos ajudar a explorá-los e
transformá-los.
Atualmente os arquitetos, os paisagistas e os desenhistas em geral
tem explorado o espaço conceitual de desenhos através de programas de
computação⁶ para mapear as mudanças possíveis do estilo trabalhado. Nas
artes decorativas por exemplo, desenhos tradicionais de treliças chinesas
foram traduzidos por códigos de computador, que geraram padrões
regulares destes desenhos e irregulares chamados “raios de gelo”. Estes
padrões regulares e também os “raios de gelo” destas treliças, identificados
pelo computador, mostram a análise rigorosa de um espaço conceitual.
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⁵ Psicologia computacional: a psicologia computacional deriva da inteligência artificial (IA) que estuda a natureza da inteligência. O seu método inclui a capacitação de computadores e processarem as informações de forma similar à mente humana: pensar lógica ou analogicamente, ver, falar, etc. O reconhecimento de padrões é uma das possíveis aplicações de IA. A validação da assinatura de um cheque, o reconhecimento de uma impressão digital, ou ainda o reconhecimento de padrões diferenciados na arquitetura, nas artes ou no paisagismo, são alguns exemplos desta aplicação computacional à psicologia. ⁶ Programa de computação; o programa é um sistema gerativo capaz de produzir uma estrutura numérica, narrativa, musical ou gráfica e de concretizá-la em relação a referências específicas.
Isto ocasionou a descoberta de padrões ocultos ou diferenciadores
(neste exemplo os “raios de gelo”), não apenas para fins de codificação
(princípio básico da inteligência artificial⁷ ), mas, sobretudo, para a
compreensão estética do estilo e da identificação de seus momentos de
mudança. A psicologia computacional é capaz de sugerir caminhos possíveis
pelos quais o estilo requerido poderá evoluir para outro diferente.
A criatividade, neste sentido, pode ser atribuída a uma idéia que faz
referência a um sistema gerativo; faz parte ou ainda transcende em espaço
conceitual específico. Quanto mais pudermos detalhar e entender este
espaço, mais clara será a identificação da idéia de criatividade. Um artista
plástico cujo estilo de pintar é identificando como criativo ou original estará
explorando ou talvez ultrapassando os limites do espaço conceitual de
habilidades expressivas.
A utilização do computador para identificar padrões, não significa
dizer que a criatividade humana é previsível, nem que uma idéia original
pode ser identificada apenas através do computador, mas estar atento à
possibilidade destes computadores serem uma ferramenta cada vez mais
importante para ajudar-nos a entender o fenômeno criativo.
UM PARALELO COMPARATIVO ENTRE INTELIGÊNCIA E CRIATIVIDADE
Howard Gardner, professor e pesquisador da Universidade de
Harvard, procurou compreender o desenvolvimento cognitivo humano e a
relação entre inteligência, cultura e sociedade.
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⁷ Inteligência artificial: Resultado da aplicação de técnicas e recursos, pricipalmente de natureza não numérica, viabilizando a solução de problemas que exigiam do ser humano um elevado grau de perícia e raciocínio.
Sua obra Estruturas da Mente foi editada pela primeira vez em 1983
oferecendo resultados de uma série de investigações que o autor realizou
para o “Projeto sobre o Potencial Humano” e para o “Projeto Zero” da
Universidade de Harvard, nos quais estuda o funcionamento e as falhas nas
capacidades cognitivas humanas. No Brasil esta obra foi editada em 1994,
seguida de Inteligências Múltiplas; A Criança Pré-escolar: como pensa e
como a escola pode ensiná-la; Inteligência: múltiplas perspectivas; Mentes
que criam: uma autonomia da criatividade; As Artes e o Desenvolvimento
Humano; e mais recentemente, Arte, Mente e Cérebro.
Não foi intenção deste autor elaborar uma metodologia para a
educação. O principal objetivo de sua obra foi de explicar a existência de
múltiplas inteligências. Esta questão o faz detalhar os fundamentos
biológicos e evolucionistas da cognição, ampliando assim a perspectiva da
psicologia cognitiva e do desenvolvimento humano. Os educadores,
psicopedagogos e demais profissionais que trabalham na área da educação
viram nesta teoria uma possibilidade de valorização das diferenças
encontradas em sala de aula e, a partir delas, educar para a compreensão
de forma significativa e inclusiva.
Em 1985 publicou A Nova Ciência da Mente. Neste obra propôs uma
“revolução cognitiva”, na qual oferece um estudo aprimorado da ciência
cognitiva e o desenvolvimento de outras ciências que contribuem para a
compreensão do fenômeno cognitivo como a filosofia, a lingüística, a
antropologia, a inteligência artificial e a neurologia. O que mais diferencia a
obra de Gardner de outros autores que trabalham o desenvolvimento
humano e as questões sobre a inteligência é a busca de conexões entre
dados da cultura e as possibilidades da neurologia. Trata do ser humano
biológico interatuando com a cultura com a qual pertence. Os resultados
intelectuais desta relação derivam da combinação do potencial neurológico
com o meio sociocultural em que se desenvolve.
Gardner defende a idéia de que existem várias inteligências humanas,
relativamente autônomas, cujo número preciso não é possível determinar
ou quantificar. São as “estruturas da mente” ou “inteligências múltiplas”,
que os indivíduos e culturas podem moldar ou combinar em uma
multiplicidade de maneiras. Seu ponto de partida leva em conta tanto as
premissas biológicas de desenvolvimento como as variações culturais da
cognição. Sua teoria se completa a partir do caráter da relação do indivíduo
com seu entorno, que é mediado pela cultura. Esta relação é indispensável
para a análise do desenvolvimento cognitivo.
Gardner entende por inteligência o domínio de um conjunto de
habilidades para planejar, resolver ou encontrar problemas, estabelecendo
assim as bases para a aquisição de novos conhecimentos. Porém estes
conhecimentos precisam ser genuinamente úteis e valorizados em pelo
menos um meio cultural.
Esta noção é imprescindível para o entendimento da teoria de
Gardner e explica porque não aceita os testes padronizados como
instrumento único para medir a intelig6encia. Para ele, tais instrumentos
psicométricos representam a quantificação de algumas potencialidades
intelectuais baseados na classificação preestabelecida pelo experimentador
e, portanto, são um fator limitador. Estas potencialidades não são
igualmente valorizadas por diversas culturas. Em vez de tratar-se de um
fenômeno mediável em termos universais, a inteligência é um conceito
relativo, que vai mais além do conjunto de habilidades gerais, referindo-se
a metas e objetivos culturais dependentes de cada sócio-histórico. Parece-
nos que as premissas da não universalidade e de ser um conceito relativo,
dependente da cultura, principalmente pela sua aceitação em um grupo
cultural e social também se aplicam para a questão da criatividade. Então
nos questionamos: a criatividade pode ser pensada como um elevado grau
de inteligência? Em que medida a inteligência pode se construir como uma
parte necessária da criatividade? Estas são questões intrigantes, com
consideráveis diferenças em suas respostas tendo em vista o paradigma
escolhido para respondê-las.
Sem que se suponha a exclusão de outras possibilidades, Gardner
identifica estas inteligências: a linguística, a lógico-matemática, a espacial,
a corporal-cinestésica, a musical, a interpessoal, a naturalista e ainda em
estudo a existencialista.
A habilidade linguística é a capacidade de expressar-se e
compreender os outros através de códigos linguísticos. É encontrada
fortemente nos escritores e nos poetas. Apesar da maioria de nós não
sermos poetas, ainda assim possuímos estas sensibilidades em grau
significativos, diz Gardner (1994). Não seria possível nos interessarmos pela
poesia ou pela leitura de um bom livro sem possuirmos pelo menos um
certo domínio dos aspectos da linguagem. Esta competência intelectual
parece-nos a mais ampla, compartilhada na espécie humana. Todo o
professor sabe de sua importância e de sua valorização em um contexto
escolar.
Esta capacidade de processar informações através da linguagem e
também através das outras inteligências não se dá igualmente em todas as
culturas, requerendo assim caminhos mentais também distintos. É
importante notar que no Ocidente a leitura é fundamenta nas áreas do
cérebro que processam sons linguísticos, porém, no Oriente o sistema de
leitura ideográfica é o preferido, dependendo mais intensamente dos
centros interpretativos de materiais pictóricos. Os japoneses por exemplo,
dispõem tanto de um sistema de leitura silábica quanto de um sistema
ideográfico, abrigando cerebralmente dois mecanismos ativos para a leitura.
Crianças com problemas de leitura ou até mesmo incapacitação de
aprendizagem por motivo de lesão cerebral poderão explorar a “outra via”,
não necessariamente aquela estimulada em sua cultura.
A inteligência lógico/matemática não se origina das capacidades
auditivo-oral como acontece nas inteligências linguísticas e musical. Esta
forma de processar informações acontece na troca com o mundo dos
objetos. “(...) é o confrontando objetos, ordenando-os, reordenando-os e
avaliando sua quantidade que a criança pequena adquire seu conhecimento
inicial e mais fundamental sobre o domínio lógico-matemático.” (Gardner
1994, p.100). Se dá através da compreensão dos princípios subjacentes aos
princípios casuais, isto é, esta habilidade pode ser desenvolvida, não
necessariamente através de números, mas através de organização lógica de
idéias como faz o cientista e o advogado, por exemplo. As “oficinas de
desmontes”, organizadas em escolas norte-americanas que trabalham com
esta teoria, exploram esta inteligência ao criarem espaços onde as crianças
desmontam e montam brinquedos ou objetos pessoais como relógios,
eletrodomésticos e equipamentos diversos sob orientação de um professor
ou de um profissional habilitado. Neste fazer sequencial e lógicco de
desmontagem e montagem de peças exercita-se este tipo de inteligência.
Muitas outras possibilidades podem ser criadas para a exploração.
A inteligência musical explora a habilidade de pensar em música,
reconhecer padrões e compor. Certamente á aquela pessoa que identifica
música em qualquer ruído diário: “(...) um compositor pode ser
prontamente identificado pelo fato de ter constantemente sons na cabeça –
ou seja, está sempre, em algum lugar perto da superfície de sua
consciência, ouvindo sons, ritmos e padrões musicais maiores.” (Gardner,
1994, p.79).
A composição toma forma no momento em que as idéias começam a
se reorganizar e assumir um conjunto significativo. A imagem musical
cristalizada pode ser um simples ritmo ou até uma melodia mais elaborada.
Uma idéia inicial capta a atenção do compositor e toda uma organização de
idéias começa a trabalhar sobre ela. Um exemplo desta inteligência está em
Chico Buarque que em tempos passados não utilizou a força para fazer o
seu protesto contra a ditadura militar, mas compôs músicas que tornaram-
se símbolos de mudança.
A inteligência espacial é a habilidade de representar o mundo
espacialmente no interior da mente e no exterior. Ela não é
necessariamente visual, por isto está também caracterizada em pessoas
que não podem ver. Inerente à inteligência espacial estão todas as
capacidades de perceber o mundo visual com precisão “(...) efetuar
transformações e modificações sobre as percepções iniciais e ser capaz de
recriar aspectos da experiência visual, mesmo na ausência de estímulos
físicos relevantes.” (Gardner, 1994, p.135). Encontra-se, por exemplo nos
taxistas, nos arquitetos, nos pintores, nos coreógrafos, em um cirurgião
plástico ou em um anatomista. Oscar Niemayer é um exemplo
extraordinário desta inteligência, tendo planejado e executado uma cidade
como Brasília em um lugar que não havia nada absolutamente, nem mesmo
condições mais indicativas que ali poderia se materializar uma cidade.
Assim, a inteligência espacial trabalha com as seguintes capacidades:
1. Capacidade de reconhecer exemplos de um mesmo elemento
2. Capacidade de transformar ou perceber uma transformação de um
elemento em outro
3. Capacidade de criar formas mentais e transformá-las
4. Capacidade de produzir uma representação pictórica de informações
espaciais
A inteligência corporal-cinestésica acontece através da organização e
utilização do corpo para dizer algo ou para executar uma função.
“Característica desta inteligência é a capacidade de usar o próprio corpo de
maneiras altamente diferenciadas e hábeis para propósitos expressivos
assim como voltados a objetivos.” (Gardner, 1994, p. 161). Uma outra
característica é a capacidade de trabalhar habilmente com objetos,
explorando a motricidade fina ou a mais grosseira. Esta habilidade está nos
atletas de um modo geral, nos mímicos, nos atores, nos dançarinos e
também naquele aluno que não pára sentado na sala de aula. É aquela
pessoa que, para se comunicar, fala com todo o corpo, por exemplo, um
jogador de futebol quando executa uma bela jogada. Se este jogador for
questionado sobre como fez aqueles passes incríveis até chegar ao gol,
talvez não saiba se expressar tão bem verbalmente ou como uma riqueza
de detalhes quando foi a própria jogada. É como se no momento da jogada
todo o seu pensar estivesse espalhado pelo corpo e atuando intensamente.
A inteligência interpessoal está naquelas pessoas que são hábeis em
compreender as outras pessoas e trabalhar com as diferenças destas
pessoas. São aquelas que tem a capacidade de unir os contrários, de
articular situações para um fim em comum. Esta inteligência está voltada
pêra fora, para os outros indivíduos. “A capacidade aqui é a capacidade de
observar e fazer distinções entre outros indivíduos e, em particular, entre
seus humores, temperamentos, motivações e intenções.” (Gardner, 1994,
p.185). Esta não é uma habilidade apenas de contato exterior com o outro,
mas, sobretudo, de trabalho cognitivo árdua de planejamento, de definições
de estratégias e de execuções. Está no professor, nos profissionais da área
de vendas, em médicos ou em enfermeiros que trabalham o relacionamento
qualitativo com o paciente. Luter King foi um expoente nesta habilidade,
que apesar de suas privações, física e cognitiva, conseguiu manter-se fiel às
suas idéias e levar multidões à união de contrários.
A inteligência intrapessoal possibilita a compreensão de si mesmo,
auxiliando distinguir um sentimento de prazer de um de dor, e com base
nestas escolhas tornar-se mais envolvido ou saber retirar-se de uma
situação. Explora a capacidade de perceber com clareza os próprios limites
e o entendimento do que é possível fazer, como fazer e porque fazer. O
auto-conhecimento é a característica forte desta inteligência encontrada nos
terapeutas, nos líderes ou em pessoas que, apesar das suas dificuldades da
vida conseguem ver o seu lado positivo.
A inteligência naturalista tem muitos pontos de contato com
inteligência interpessoal. Encontra-se nas pessoas que se deixam influenciar
pela terra, pelo céu e pelo mar. É a habilidade de discriminação entre seres
viventes ou não como em fazendeiros, folclóricos, botânicos, chefes de
cozinha, jardineiros, etc.
A Inteligência existencialista não foi oficialmente acrescentada na
lista das inteligências múltiplas descritas por Gardner por estar ainda em
estudo. Não existem ainda muitos dados cerebrais ou capacidades
biológicas que indiquem ser esta uma inteligência característica ou até
mesmo na sua diferenciação da intelig6encia interpessoal. Explora a
capacidade de formular e pensar as questões fundamentais da existência
como: por que estou aqui? Por que existo?
Entre os critérios utilizados por Gardner para identificar as diferentes
inteligências se encontra a suscetibilidade à codificação em um sistema
simbólico. Os seres humanos representam e se comunicam por intermédio
de sistemas simbólicos produzidos culturalmente. As potencialidades
intelectuais e as simbólicas não tem valor em si mesmas, assim como as
diferentes inteligências podem ser combinadas de diversas maneiras em um
mesmo indivíduo. Cada cultura aprecia diferentemente estas combinações.
Estará atuando sempre uma dialética entre os papéis e as funções
valorizadas por uma cultura por um lado, e as habilidades intelectuais
individuais por outro.
Muitos esforços tem sido promovidos, a partir da Segunda Guerra
Mundial, com o objetivo de entender ou até medir os processos criativos em
indivíduos normais ou naqueles de talento individual. Apesar de algumas
informações terem sido sistematizadas a partir destas pesquisas, como é o
caso da psicometria onde houve esforços para determinar as características
dos indivíduos criativos, estas não conseguiram se firmar como
suficientemente válidas para a abrangência desta questão. Pesquisas
importantes também foram realizadas no campo da motivação intrínseca,
em comparação com a extrínseca na realização de trabalhos criativos. Outro
enfoque importante para a questão da criatividade foi a abordagem
psicanalítica enfatizando os fundamentos neuróticos ou sublimatórios do
processo criativo, sugerindo, então, descrições da personalidade criativa.
Novas pesquisas sobre criatividade (Boden 1990; Gardner 1988;
Ochse 1991; Weisberg 1998) provêm da psicologia cognitiva, psicologia do
desenvolvimento e ciência cognitiva, enfatizando que grande parte do
trabalho criativo pode ser governada por regras, identificando
detalhadamente o processamento deinformações para a resolução de um
problema. Traçam paralelos intrigantes entre o que chamam de criatividade
“normal” e “excepcional” e ainda entre a resolução de problemas
executados por seres humanos e por sistemas computacionais.
Segundo Gardner (1999) um indivíduo é criativo quando resolver
problemas, percebe e adapta-se a novas situações dentro de um campo do
conhecimento, isto de uma forma diferente da usual, porém, aceita em pelo
menos um grupo cultural. Este autor enfatiza o processo criativo com a
mesma intensidade sob o ponto de vista da resolução de problemas, da
descoberta de problemas e da criação de produtos (teorias científicas, obras
de arte ou fundação de instituições).
Entende que o trabalho criativo pode ocorrer em diferentes campos e
através de um espectro de possibilidades. A criatividade não é vista como
um fator geral (indivíduos criativos ou não-criativos), mas em função dos
campos especiais de realização. Para isto é preciso que os indivíduos
adquiram especializações nestes campos antes que possam realizar
trabalhos criativos considerados ou reconhecidos em seu meio cultural.
Assim, nenhuma pessoa, ação ou produto é criativo ou não em si mesmo,
precisando para isto serem “julgados” ou considerados pela comunidade.
Nesta definição precisamos levar em consideração a
interdisciplinaridade da abordagem. Além de buscar informações na
psicologia para a explicação do processo criativo, o pesquisador precisa ficar
atento para a epistemologia, isto é, para a natureza do conhecimento em
diferentes campos e também para a sociologia, para entender o processo de
julgamento do processo criativo.
A criatividade deixa de ser pensada sobre o enfoque de quem, ou
quanto, ou ainda, o que é ser criativo para ser entendida sob a perspectiva
de onde há criatividade ou de que forma ela se apresenta e se desenvolve?
Para abordar esta questão teremos, então, que considerar em um mesmo
processo:
1. os indivíduos;
2. o campo teórico-prático do conhecimento utilizado e
3. as esferas de valor.
Quem quiser entender os fenômenos da criatividade não pode simplesmente focalizar o indivíduo – o cérebro deste, a personalidade daquela, as motivações daqueles. Ao invés disso, é preciso ampliar o foco para incluir um estudo da área em que o indivíduo criatividade opera e dos procedimentos utilizados para emitir julgamentos de originalidade e qualidade (Gradner apud Boden 1999).
Gardner (1999) desenvolve a tese de que os indivíduos considerados
criativos são caracterizados por uma peculiar tensão, ou ainda pela
ausência dela. Esta tensão chama de assincronia proveitosa. Entende que o
indivíduo criativo apresenta esta assincronia; uma inadaptação temporária
entre capacidades sob o ponto de vista usual que o indivíduo procura atuar.
Ao final desta processo criativo é a conquista destas assincronias que o leva
à realização e à aceitação do trabalho que vinha sendo feito. Esta
assincronia, encontrada em indivíduos criativo, não pode ser confundida
com a atuação de um indivíduo prodigioso, pois neste se adapta muito bem
em um campo já existente e estabelecido em sua sociedade, sendo o seu
trabalho imediatamente reconhecido como competente pelos membros de
sua sociedade.
Graham Wallas em estudos sobre a criatividade enfatizou quatro
estágios no processo criativo, podendo ser considerados especialmente para
as ciências:
1. Preparação: estágio de identificação das idéias onde o sujeito criador
brinca com as mesmas;
2. Incubação: apesar da mente estar envolvida com outros assuntos o
inconsciente está articulando as idéias e as selecionando;
3. Iluminação ou descoberta: estágio onde o criador torna-se consciente
destes elementos ajustando-os em um mesmo complexo;
4. Verificação; onde os detalhes finais são incorporados e o produto final
executado.
Um comparativo sobre os estágios mencionados e a resolução criativa
de problemas científicos e artísticos são importantes se considerarmos os
estágios de preparação e incubação, onde as idéias e habilidades tomam
forma. Porém, enquanto que para o cientista é a descoberta conceitual o
ponto fundamental deste processo, para o artista é na execução de seu
trabalho que dificilmente segue os mesmo padrões de verificação. Para o
artista o “conflito” está em transformar a sua realidade, que é subjetiva ou
abstrata, em aparência objetiva ou concreta, podendo ser percebida e
apreciada por outros.
Pensamos que a idéia de generalizar o que é criatividade no processo
artístico é uma tarefa insensata, podendo ser mais adequado acompanhar o
processo de criação de trabalhos individuais, e, a partir destes, traçar ou
mapear as suas características intrínsecas de ruptura e resoluções.
Mesmo quando o processo de criação artística é mapeado em
estágios, comunicando o seu conhecimento em objetos estéticos, ele é
único. Podemos talvez, encontrar regularidades, identificando o modo como
o artista desenvolve habilidades em um dado estilo. Neste sentido a criação
artística é também um processo de resolução de problemas onde a
execução é enfatizada, marcando um estilo em suas peculiaridades.
É interessante notar que existem diferenças consideráveis entre a
criança e o adulto que participam do processo estético. Enquanto que o
adulto desenvolve seu trabalho artístico em um dado estilo, com seus
códigos específicos, a criança se expressa através dos meios mais próximos
de comunicação, onde os gestos, as brincadeiras e os desenhos são sua
própria caligrafia. “(...) os talentos da criança a controlam, ao passo que o
artista controla o seu talento” (Gardner, 1997, p. 297). Esta diferença
também está na esfera da atenção voluntária, memória, percepção,
abstração e auto-consciência. Enquanto que a criança brinca com os meios
de expressão artística, o adulto luta com eles. Enquanto que para o artista
esta é um processo árduo de domínio de técnicas e organização de idéias já
concebidas, para a criança esta organização é prazerosa pelo fato de,
através destes objetos, (brinquedos, gestos e desenhos) ocorrer a
organização do seu pensamento e domínio de suas idéias. Notamos, então,
que o processo é inverso: enquanto o artista luta para organizar o seu
pensamento e idéias em um contexto material como a escultura, a pintura e
a música, a criança parte da manipulação do contexto para organizar o seu
pensamento.
Muitos teóricos da aprendizagem vêem o processo criativo
minimizado com o avanço da idade cronológica. Entendem que o indivíduo
mais velho dispõe da cada vez menos recursos para a criatividade e
flexibilidade de pensamento:
Nesta visão (...) a criança pequena é um prisioneiro de suas capacidades e talentos, que podem existir numa forma requintada, mas também encontram-se em esplêndido isolamento entre si, incapaz de ser produtivamente ligados; enquanto o indivíduo maduro é capaz de ter acesso consciente às suas várias capacidades; modulá-las e mobilizá-las para diversos fins. (Gardner 1994, p. 241).
Piaget trouxe-nos a idéia de estágios de desenvolvimento ligados a
etapas cronológicas pré-estabelecidas. Conforme articulado por este autor
existem estágios distintos de desenvolvimento, qualitativamente diferentes
entre si, estipulando visões de mundo características. Como parte deste
ponto de vista, a criança que não passar adequadamente por cada estágio,
na idade apropriada, terá seu desenvolvimento subsequente será
irremediavelmente comprometido.
Para Piaget, “(...) os estágios tendem a formar uma sequência
estável. Um indivíduo não pode alcançar o estágio das operações concretas
sem passar pela do pensamento pré-operatório. Um estágio posterior deve
ser desenvolvido depois do anterior, porque alcançar o posterior implica
dominar operações cognitivas que são logicamente mais complexas do que
as que caracterizam uma etapa anterior. O pensamento só se desenvolve
em relação ascendente para um maior equilíbrio.” (Hernández, 2000,
p.108).
A partir desta posição nos perguntamos: como o processo criativo
pode acontecer em um desenvolvimento humano preso a etapas
sequenciais programadas? Será mais plusível pensar que cada domínio de
inteligência (linguística, corporal-sinestésica, lógico-matemática, musical,
etc.) e, por consequência, cada domínio simbólico, que são diferentes em
sua complexidade, guardem suas próprias séries de etapas através dos
quais a pessoa pode explorar criativamente, avançando ou retrocedendo em
alguns momentos de seu desenvolvimento. Não há qualquer motivo para
pensar que o espectro de intelig6encias se alinhe igualmente lado a lado.
A intervenção precoce por parte de um professor ou de um igual mais
capacitado pode desempenhar um papel decisivo na determinação do
desempenho do indivíduo em seu processo de desenvolvimento e na sua
criatividade:
Se um comportamento particular é considerado importante por uma cultura, se consideráveis recursos são dedicados a ele, se o próprio indivíduo está motivado a operar nesta área e se os meios próprios para a cristalização e aprendizagem são colocados à
disposição, quase todo o indivíduo normal pode atingir competência impressionante em um domínio intelectual ou simbólico. (Gardner 1994, p. 243).
Autores como Bruner, Gardner e Vygotsky sustentam a concepção de
aprendizagem refletindo sobre a construção da subjetividade individual
junto com a construção social da compreensão. Isto significa dizer que
quando as crianças chegam à escola, trazem consigo, não apenas as
experi6encias que afetam as suas construções cognitivas em conteúdos
trabalhados em aula. Estes meninos e meninas fazem parte de um contexto
sociocultural concreto e de época histórica específica, representando
determinados tipos de valores. Trazem consigo conhecimentos, mas,
sobretudo, construções da sociedade e de si mesmos, fundamentadas em
experiências socioculturais, cognitivas e afetivas anteriores.
Analisando estas idéias, a educação pode contribuir para a construção
da identidade pessoal em relação às diferentes construções da realidade
que estas crianças precisam aprender a interpretar e a considerar; este é o
princípio da Educação Estética.
Assim, criatividade pode ser entendida como a capacidade de um
indivíduo para produzir idéias, produtos artísticos, invenções e concepções
novas ou originais aceitas como tendo valor científico, estético, técnico ou
social. Teóricos como Vernon (1989) e Gardner (1999) sugerem também
que é preciso considerar aceitabilidade ou ainda a adaptação do produto
criativo, apesar desta aceitação poder vir a mudar com o passar do tempo.
Outros como Mednick (1962) definem a criatividade a partir da associação
de elementos em novas combinações, satisfazendo exigências ou sendo
úteis. Muitas são as definições de criatividade, porém, todas suscitam a
relação entre inteligência e criatividade. Parece-nos que a inteligência é
uma condição necessária para o entendimento da criatividade, porém não
necessariamente é parte suficiente.
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