Córregos ocultos em São Paulo
Vladimir Bartalini – professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo
Resumo Historicamente os rios e córregos das nossas cidades são vistos como
incômodos e, por isso, afastados do olhar. Mais recentemente, em diversos órgãos
da administração pública e mesmo no discurso oficial dos planos diretores, nota-se a
intenção de rever esta postura propondo e adotando medidas de valorização de
fundos de vale com alguma visibilidade. Há, porém, uma “rede hídrica capilar” de
córregos ocultos – cujos únicos vestígios são becos, vielas, bueiros atípicos ou
sobras de terreno resultantes da canalização e enterramento dos cursos d’água –
que é despercebida e desatendida, e tida como fato consumado, diante do qual
nada há a fazer a não ser dar-lhe um tratamento asséptico ou incorporá-la no interior
dos novos empreendimentos. Busca-se aqui argumentar no sentido contrário,
sugerindo possibilidades de tratamento destes casos com base em parâmetros
outros que não os de cunho estritamente ecológico-ambiental ou cosmético.
Estando os cursos d’água intimamente associados ao nascimento e
desenvolvimento das cidades, supõe-se que eles ocupem um lugar importante na
imaginação coletiva, ainda que este lugar seja o inconsciente. Defende-se que, por
meio do fazer poético, os vestígios enjeitados dos córregos ocultos ganhem a força
de imagens e encontrem um lugar na paisagem, de modo a vivificar a memória
coletiva e a re-significar os laços que unem, inevitavelmente, o fazer humano à base
primordial com a qual ele opera.
Palavras chave: paisagem urbana / arte e paisagem / rios urbanos
Abstract In the historical point of view, urban rivers and small streams are seen, in
our cities, as annoyances, therefore they are shut out of sight. Recently, signs of
change on this matter can be noticed in some public offices and even in master
plans, by means of advises and practical measures aiming to recover river valleys
that own some visibility. However, there is a “capillary hydrological net” of hidden
streams – which the only traces are lanes, odds drainage devices or scraps of opens
spaces originated by the plumbing and putting streams under earth – unnoticed and
disdained, as if nothing could be done about it, unless giving it an aseptic treatment
or hiding it inside new developments. Here, the argumentation takes an opposite
direction, by suggesting treatment for these cases based not in strict ecological or
environmental issues, neither in cosmetic tricks. As rivers and streams are closely
related to the birth and development of cities, they are supposed to occupy an
important place in the collective imagination, even if they lie in the unconscious.
Once shaped by poetic tools, the neglected traces of hidden streams could be
brought to light and become strong images, able to vivify collective memory, giving
new meanings to the ever present relationship between man and the primordial basis
with which he operates.
Key words: urban landscape / art and landscape / urban rivers
Córregos ocultos em São Paulo Vladimir Bartalini – professor doutor da Fau-Usp
Introdução O assunto do presente trabalho está centrado em pequenos córregos,
muitos deles anônimos, que, devido a obras viárias ou de saneamento, praticamente
não fazem mais parte da paisagem urbana. Por conseqüência, não encontram lugar
na consciência atual ou mesmo na memória, embora sua existência subterrânea se
expresse na superfície sob a forma de becos, vielas, escadarias, fragmentos de
áreas livres e até de insurgências de água.
Isto pode ser observado corriqueiramente em muitas cidades brasileiras. É
importante, porém, diferenciar as situações que se pretende tratar aqui dos casos
em que a canalização deu lugar a grandes eixos viários pois, nestas circunstâncias,
as marcas dos rios tamponados ainda funcionam como guias para a leitura da
paisagem – mesmo que sob a forma de canteiros centrais ou taludes laterais
ajardinados ou arborizados.
Nos casos a serem considerados, ao contrário, a existência do córrego é
apenas sugerida pelos seus vestígios, dispersos no espaço e diversos na forma.
Pode-se passar constantemente por estes lugares, pode-se até morar em suas
proximidades, sem se dar conta de que, sob variados disfarces, ali existe um curso
d’água. Revelar sua existência a partir destes indícios – que normalmente escapam
ao olhar comum, à cartografia convencional e às fotografias aéreas, e que só o
palmilhar acurado do território pode recuperar – demanda um trabalho semelhante
ao do arqueólogo ou do detetive que, a partir de fragmentos, busca reconstituir uma
cena ou um contexto.
Dentre os inúmeros casos de cursos d’água capilares, anônimos e
desaparecidos sob o chão das cidades, os interesses da pesquisa se voltam às
situações com urbanização já consolidada, com alto índice de ocupação do solo, e
em processo mais ou menos acelerado de transformação (verticalização, mudanças
de uso do solo), a ponto de só restarem vestígios pálidos da existência do córrego,
exigindo, portanto, maior esforço de decodificação.
Entende-se que ao trazer à luz fatos espaciais ocultados do olhar ou
recalcados na memória coletiva pode ocorrer o reconhecimento e uma efetiva
assunção dos espaços associados à rede capilar dos córregos urbanos. O trabalho
de revelação, ou re-apresentação dos córregos ocultos, justifica-se, além do efeito
simbólico da operação, pela possibilidade desta rede vir a constituir, através de seus
elementos devidamente trabalhados, mais uma das camadas ou estratos
disponíveis para as múltiplas associações que as práticas cotidianas não cessam de
criar.
O que alimenta e conduz este tema ressoa da produção de áreas distintas,
mas, de certo modo, sintonizadas: as relações entre o homem e a Terra postas em
destaque por Eric Dardel, cujo interesse se afasta do saber positivo em prol de uma
geografia entendida “como uma dimensão originária da existência humana” (BESSE,
2006, p.85); as práticas de espaço, trabalhadas por Michel de Certeau; a memória
como “um apoio sólido da vontade, matriz de projetos” (BOSI, E. 2004, pg. 33); a
“imaginação da matéria” como manancial farto para o fazer poético, a que se
dedicou Bachelard.
Camadas recalcadas e as tramas do fazer e do lembrar Dentre os domínios que compõem a base física primitiva de qualquer
agrupamento humano minimamente estável, sobressaem os cursos ou corpos
d’água, na medida em que proporcionam algumas das condições indispensáveis à
vida urbana, como o saneamento, o abastecimento e os transportes. Nem os
assentamentos em regiões desérticas escapam a esta regra, pois não dispensam a
água dos oásis. As orlas marítimas ou lacustres e as beiras dos rios estão
indissociavelmente relacionadas ao nascimento e desenvolvimento de quase todas
as cidades, de todas as culturas, e não é por menos que se justifica o seu peso
semântico e o lugar que ocupam na imaginação coletiva.
Ao discorrer sobre o espaço geográfico, DARDEL (1990, p.26) reserva um
lugar para o que ele denomina espaço aquático, “um espaço líquido (que) desliza,
(que) movimenta o espaço”, e não deixa de registrar as associações afetivas que o
vocabulário e as expressões da língua estabelecem com este domínio: o riso, o
murmúrio, o silêncio, a incerteza, a fúria das águas.
Muito já se falou e fez sobre os rios, os urbanos em particular. Sabe-se
como a razão técnica se serviu deles, seja para a produção de energia, seja para o
lançamento de esgotos, seja como base viária. Sabe-se também dos seus usos
marginais, reprimidos ou estimulados, ou apenas consentidos: os banhos e a pesca,
o lazer e os esportes oficiais e não oficiais, a exploração econômica e as invasões
das várzeas.
Por tudo isto, por terem participado de momentos marcantes da vida das
cidades – do seu nascimento e desenvolvimento e também dos seus desastres e
mazelas –, pela intimidade com o fazer humano e urbano, não podem deixar de ter
um lugar na coletividade, mesmo que este lugar seja o inconsciente, o que talvez
explique o encobrimento e as desfigurações a que foram sujeitados.
Encara-se agora a possibilidade de recuperação das águas e das margens
degradadas, invocam-se as leis que as protegem, programam-se parques lineares
ao longo dos rios em áreas urbanizadas. Apesar de necessárias e oportunas, estas
novas atitudes continuam a servir, de certo modo, à razão técnica, agora sob a
regência da ecologia e das ciências ambientais. No entanto, ainda com DARDEL
(1990, p.31), há de se por em questão a precedência da ciência, “que tende a
reduzir o mundo a um mecanismo, (diante) da experiência vivida, que apreende o
mundo exterior como fenômeno”.
O tamponamento dos córregos impede que eles se apresentem plenamente
no mundo dos fenômenos visíveis. Nos casos que aqui interessa considerar, a
ocupação do solo antiga, consolidada e densa, não dá oportunidades para a
expressão clara dos cursos d’água. As marcas da sua presença são indiretas e,
muitas vezes, imperceptíveis.
O primeiro passo será, portanto, a revelação das marcas, a emersão do
subjacente até torná-lo percebido, participante da paisagem. Obsessão pelo visível?
Sim e não. Sim, porque a paisagem é, em senso estrito, uma operação do olhar. Os
sentidos e os sentimentos a ela associados transitam por redes mais extensas e
complexas, mas é a retina atingida que conserva a marca. Por outro lado, a alma
tem outras janelas, e o mundo dos fenômenos (as águas nele incluídas) também se
faz ouvir, sentir pelo tato e pelo olfato, pelos movimentos.
Há, portanto, dentro do campo fenomenológico (e não ecológico, bem
entendido), outros modos de expressar a existência de cursos d’água que não a da
sua explicitação cabal. Aliás, o sugestivo, mais do que o enunciado exato, alarga a
percepção do mundo e aumenta as possibilidades de recriá-lo.
Não é demais enfatizar a precisão e a urgência de cuidar condignamente
dos nossos rios, de suas águas, margens e várzeas. Tê-los vivos, saudáveis e
aprazíveis é mais do que desejável. Mas não é disto que se trata aqui. Aqui se trata
de mutilações, deformações, cicatrizes a serem assumidas e superadas, mas sem
obliteração ou esvaecimento.
As iniciativas de “re-naturalização” de rios, como as realizadas no Japão e
na Coréia do Sul, não escapam, porém, da lógica da destruição criativa e da
espetaculosidade, em que pese terem propiciado efetiva melhoria da qualidade
urbana e, particularmente no caso coreano, a recuperação das antigas e artísticas
pontes sepultadas com o rio, bem como o desagravo à invasão japonesa do início
do século 20, quando se cometeu, entre outras, aquela agressão. Significaram
também investimentos pesados de capital e, certamente, não a fundo perdido.
Intervenções deste tipo não vêm, portanto, ao caso. Por outro lado, com o
recurso da memória e das sugestões que as imagens detonam abrem-se campos
fecundos. Mas antes de tudo é importante dissociar a ideia de memória da de tempo
morto. Vale a pena correr o risco de transpor para a percepção visual as
considerações sobre a rememoração aplicadas por Ecléa Bosi à oralidade:
Ouvindo depoimentos orais constatamos que o sujeito mnêmico não lembra
uma ou outra imagem. Ele evoca, dá voz, faz falar, diz de novo o conteúdo de
suas vivências. Enquanto evoca, ele está vivendo atualmente e com uma
intensidade nova a sua experiência (BOSI, E., 2004, p.44).
Continua a mesma autora, remetendo a Bergson:
Só a intuição é capaz de apreender o movimento contínuo do devir. A intuição
é uma leitura interna da duração. Ela o faz produzindo imagens. A corrente de
imagens desencadeada pela intuição poética alcança mais diretamente o ser
da natureza que um teorema da Física ou uma equação matemática (idem,
p.43).
Se são as imagens do passado ativadas pela memória (e não simplesmente
o passado em si mesmo) que atualizam o tempo, afigura-se lícito supor que os
índices, mesmo que indiretos, da existência de um curso d’água, venham a ter papel
semelhante para a “atualização” do córrego. O índice não diz que ali passava um rio,
e sim que ali passa um rio. Assim sendo, o pretendido resgate da memória dos
córregos ocultos não conota o culto nostálgico de uma condição original
desaparecida, nem requer a enunciação completa do “texto”.
Procedendo assim, as condições de integridade e coerência interna do
“discurso” espacial podem ficar comprometidas, mas nem por isso a paisagem
deixará de existir. Cabe, a propósito, observar a riqueza de sentidos que a ideia de
paisagem encerra, o que permite ampliar esta noção e entendê-la não só como
campo visual, mas também como circunstância (situação em um dado momento) em
que se dá a apreensão instantânea, num relance. Apreensão de uma totalidade, ou
seu equivalente estético (RITTER, 1997), como se quis no início da modernidade?
Não necessariamente, ou, segundo Charles Péguy, necessariamente não. Para este
original poeta e pensador francês do início do século 20, o melhor ponto de vista não
está no alto (a visão panorâmica), mas embaixo, em contato íntimo com o mundo. É
nesta situação que se pode acolher o “evento”, o que vem ao encontro, tocar o
“ponto sensível” que, uma vez “atingido e conquistado é como a fratura ou a brecha
(as palavras são de Péguy), por onde a ordem estabelecida das coisas escapa, é
recolocada em movimento, é propriamente reanimada.” (BESSE, 2006, p.99).
Este ponto sensível, para Péguy comentando Bergson, é o momento
presente; ele se instala “imediatamente no próprio coração e no segredo do
presente” (PÉGUY, 1957, p.1459), possibilitando o contato com o “evento”, que é
“uma espécie de paisagem não homogênea” (BESSE, 2006, p.100). Assim, além de
não ser aquela vista do alto, a paisagem, para Péguy, “também não é acumulação
de memórias, depósito de signos, patrimônio constituído, nostalgicamente
consultável. Ela é evento, ela é passagem, incompleta, da vida” (BESSE, 2006,
p.100); nasce de baixo, humilde (vem do húmus); é precária, não tem repouso.
O mesmo interesse pelo chão – agora no sentido mais estrito, das práticas
de espaço, e não como metáfora de uma condição do pensamento – estará
presente em Michel de Certeau. Opondo a visão totalizadora de Ícaro, acima das
águas, às astúcias de Dédalo, em labirintos instáveis e sem fim, Certeau põe em
cena os
(...) praticantes ordinários da cidade (...) cujo corpo obedece aos cheios e
vazios de um “texto” urbano que escrevem sem poder lê-lo (...). Tudo se passa
como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da
cidade habitada (CERTEAU, 1994, p.171-172).
Estas formas específicas de operar no espaço criam uma “outra
espacialidade” que não se deixa mapear, representar, nem, por conseqüência, ser
trabalhada e reproduzida.
Soam distantes as noções de paisagem e o mundo das formas com que –
arquitetos, urbanistas, paisagistas – operamos comumente, e difíceis, se não
subvertidas por parte dos “praticantes ordinários”, as relações da nossa prática com
as suas práticas.
Mas isto não leva, forçosamente, à anulação do compromisso estético que
selou o nascimento da noção de paisagem. Se a paisagem deixa de ser o
sucedâneo estético da contemplação teórica do cosmos (RITTER, 1997); se ela não
representa mais – mediante um recorte seletivo operado na natureza e informado
pela pintura paisagística – o mundo entendido como “unidade na diversidade”, ela
continua a ser o resultado de uma seleção deliberada de informações (elementos da
paisagem), não mais praticada a partir de um ponto de vista, e sim de vários pontos
de vista.
Se os recortes, se os modos de articulação das informações se alteraram,
nem por isso desapareceu aquela condição tão intrinsecamente ligada à ideia de
paisagem, e que a aproxima do fazer poético: a da formação instantânea de um
sentido. Para tanto, não é indispensável a exposição integral dos córregos, sua
completa exumação. Uma vez evidenciadas as marcas que evocam sua existência
dissimulada, elas passam a estar disponíveis para integrar não uma paisagem dos
córregos ocultos – o que pode pressupor uma seqüência alinhavada, com começo,
meio e fim – mas uma paisagem com córregos ocultos, em que as pegadas
deixadas pelo ato de ocultação, ao emergirem como imagens por intermédio da arte,
ganham a força de atos falhos denunciando a trama subterrânea.
Sendo assim, o córrego oculto, para comparecer na paisagem, não exigiria
nem o literal vir à tona, nem a obediência a um roteiro linear e lógico – por exemplo,
de montante a jusante ou vice-versa – na leitura dos seus vestígios / imagens. Já
plenas de significados, estas imagens, ao integrarem as inúmeras paisagens
possíveis, provocam a recorrência do córrego.
Uma vez persistindo o fundamento estético da paisagem, mantém-se
também a possibilidade de entendê-la como um discurso. Não seria então
descabido fazer valer para a paisagem com córregos ocultos (ou com suas imagens)
o que diz Alfredo Bosi em seu ensaio sobre imagem e discurso na poesia: “A
imagem nunca é um ‘elemento’: tem um passado que a constituiu; e um presente
que a mantém viva e que permite a sua recorrência” (BOSI, A., 2004, p.22). E mais
adiante, sobre as táticas da linguagem para recuperar a sensação de
simultaneidade (tão presente na noção de paisagem): “A palavra criativa busca, de
fato, alcançar o coração da figura no relâmpago do instante” para a realização da
“proposta de simultaneidade como efeito último do poema” (BOSI, A., 2004, p.46).
As “palavras criativas” podem ser entendidas como os vestígios do córrego
convertidos em imagens; a paisagem, como “poema” que estes vestígios / imagens,
entre outras tantas “palavras criativas”, constroem.
Cidade, história, terra e água Histórias têm a ver com tempo, memórias e relatos. Têm a ver com a “fala
dos passos perdidos” e os “relatos de espaço” de Michel de Certeau e com os
“relatos de paisagem”, parafraseando o mesmo autor. Ainda segundo Certeau, há
no discurso urbanístico operações claras que comandam a construção das cidades:
a organização racional, um não-tempo (em oposição tanto às resistências das
tradições como ao “tempo oportuno” dos que usam a cidade), a suposição de um
sujeito universal (CERTEAU, 1994a, p. 173).
A vida urbana, no entanto, transcorre driblando estas operações. Os
pedestres avançam, recuam, inflectem, aceleram, retardam seus passos sem
previsibilidade ou obediência estrita às regras de um espaço organizado segundo
uma lógica que lhes escapa ou, muitas vezes, lhes é hostil. Caso conseguissem
apreender esta lógica do alto de uma torre ou da cobertura dos edifícios, este
conhecimento não teria como ser transposto ao praticar a cidade lá embaixo, onde
não há visão totalizadora possível, e onde seus corpos obedecem “aos cheios e
vazios de um ‘texto’ urbano que escrevem sem poder lê-lo. (...)” (CERTEAU, 1994b,
p. 171).
Apesar disso eles escrevem este “texto”, de modo que, no espaço da
cidade visível, desenvolve-se uma escrita invisível, que remete a uma outra
espacialidade. São “práticas microbianas (...), táticas ilegíveis mas estáveis a tal
ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias (...)”
(CERTEAU, 1994c, p. 175).
Mas não há como registrar os “textos” produzidos por estas práticas do
caminhar sem perder justamente a operação que os gerou, ou seja, registra-se algo
já morto. Analogamente, certas partes das cidades, embora derivadas da lógica dos
planos e condicionadas por eles, se evadem, desgarram da norma. Nas fotos
aéreas, nas imagens de satélite, elas mal são vistas. No nível do chão fazem
insinuações discretas, quase imperceptíveis, mas é ali que suas “histórias”
acontecem e estão inscritas, e é ali que tantas outras táticas e práticas do caminhar
escrevem ou podem escrever seus “textos” invisíveis.
Ao contrário da “fala dos passos perdidos”, porém, estas partes
desgarradas da cidade, dada sua materialidade, deixam marcas, emitem
mensagens, ainda que curtas e cifradas. Muitas vezes interrompem o “discurso” e se
escondem por completo. De todo modo estão “vivas” e continuam a “falar”, mesmo
na “clandestinidade”. São documentáveis em sua atualidade, o que permite escrever
sua história, “desbobinar a película”1. Entretanto, neste remontar do tempo, a
matéria mesma da película reclama a atenção do operador. Ela não é mero suporte
dos fatos (da história), ela é constitutiva deles.
Considere-se a história e a geografia, ou de modo mais restritivo,
provisoriamente, a história e a cartografia. Diz-se que a carta, o mapa, ajudam a
compreender a história na medida em que fazem ver os lugares onde os fatos
ocorreram. Não se há de negar a contribuição destes instrumentos, a sua utilidade,
mas, se não se for além desta constatação, pode-se muito bem endossar a ideia de
que a geografia não passa de um pano de fundo da história. Convém observar a
esta altura, à guisa de parêntesis, que não se trata aqui de história e geografia
enquanto disciplinas, mas enquanto dimensões da existência. O homem é histórico 1 Marc Bloch defendia como postura metodológica começar a investigação pelo que é mais conhecido (ou menos mal conhecido), pela apreensão do que é vivo, pelo contato direto com o presente, pelas próprias experiências cotidianas: “O que o historiador deseja captar é exatamente uma mudança. Mas no filme que observa, só está intacta a última película. Para reconstituir os vestígios apagados das restantes é forçoso, primeiro, desbobinar a película no sentido inverso das filmagens” (BLOCH, 1949a, p. 16).
e geográfico. Sua ligação com a Terra é incontornável, pois foi nela, ou melhor, com
ela, que ele criou o seu mundo. Mesmo que venha a viver em outros mundos, o
homem, com tudo o que ele é e pode hoje, é o homem da Terra.
Tal condição terrena levou Eric Dardel a criar o neologismo
“geograficidade”, como um correlato espacial da noção de historicidade. Se o
homem sabe que se encontra numa situação inevitavelmente temporal, ele também
se sabe inapelavelmente ligado ao espaço terrestre. A “geograficidade” se refere
então à geografia, não como disciplina científica, mas como experiência primordial,
pré-reflexiva. Estas relações entre o homem e a Terra “são compreendidas por
Dardel como inscrições do terrestre no humano e do homem sobre a Terra, de tal
modo que nem o humano nem o terrestre são geograficamente pensáveis um sem o
outro” (BESSE, 1990a, p. 137).
Transformar a face da Terra é inerente à atividade humana e é nesta ação
que o homem cria o seu mundo. Do trabalhar e transformar a matéria nasce uma
cumplicidade entre o homem e a Terra, uma intimidade decorrente da oposição
entre a vontade humana e a resistência que a Terra oferece a esta vontade. Atente-
se para a possibilidade de existir nesta relação um erotismo que nada tem a ver com
rudeza ou brutalidade. É desta relação que pode advir a “tonalidade afetiva”,
condição essencial para que, em vez de uma simples justaposição de elementos, de
uma indiferente sucessão de produtos da ação humana, se tenha uma paisagem.
É possível então afirmar, com Besse, que “é pela paisagem que o ser
humano toma consciência do fato de que ele habita a Terra” e que
compreender uma paisagem é “ser-na paisagem”, é “ser nela”, é ser
atravessado por ela, “numa relação que afeta a carne e o sangue”, nas
palavras de Dardel, é ser invadido por sua cor fundamental até fazer dela o
impulso e o ritmo da sua existência” (BESSE, 1994b, p. 147).
Estas considerações, extraídas de um contexto quase epopéico, podem
também se aplicar às ações mais comuns, pois sua natureza é a mesma; o que
muda é a escala. Assim, é possível flagrar a historicidade e a geograficidade e,
concomitantemente, as “tonalidades afetivas” (não forçosamente positivas), ou seja,
as paisagens, nascidas da nossa relação cotidiana com a Terra, examinando,
particularmente, o caso das águas correntes nas cidades.
Muito já se falou sobre a importância dos rios na formação e
desenvolvimento dos núcleos urbanos, seja por suas vantagens ligadas à defesa e
às comunicações, seja no concernente ao saneamento e ao fornecimento de
energia. Há toda uma historiografia dedicada à higienização das cidades que,
praticamente, coincide com as origens do urbanismo enquanto disciplina. É
interessante notar que, de início, foram médicos militares os maiores defensores e
promovedores dos hábitos de higiene que, do corpo humano, passaram ao “corpo”
da cidade2, destacando-se então o papel dos engenheiros sanitaristas.
O disciplinamento das águas sob sistemas de abastecimento, drenagem e
esgotos, acarretou, no mesmo ato, o recalque de todos os demais significados,
muitos até contraditórios, a elas apostos pela imaginação material de que trata
Bachelard, em suas associações com o narcisismo, com a morte, com a purificação,
a violência, o feminino.
Nos estudos de cunho histórico sobre as águas na cidade de São Paulo
pode-se encontrar informações interessantes sobre a religiosidade e o misticismo
que envolviam este elemento3. As crenças que separavam as águas malditas das
benditas se projetavam para o mundo objetivo, refletindo-se diretamente no uso das
águas e dos lugares a elas relacionados.
Estes valores sucumbiram diante da racionalidade dos planos urbanísticos.
Os cursos d’água foram hierarquizados num sistema que nomeou, priorizou, investiu
em alguns deles e relegou os demais ao anonimato, ao tratamento genérico,
independentemente dos significados de que eram eventualmente portadores.
Canalizados e enterrados não só pelo poder público para o cumprimento de planos,
mas, muitas vezes, pelos próprios moradores dos terrenos que cruzavam –
operação justificada pelas precárias condições sanitárias das águas –, saíram de
vista e, com o tempo, deixaram de existir na memória das gerações sucessivas,
embora continuassem a existir de fato.
O interesse crescente de pesquisadores, urbanistas, paisagistas, artistas,
jornalistas, organizações não governamentais, associações de moradores, em
recuperar a história destes córregos, muitos deles anônimos, identificando seus
itinerários, decifrando sua criptografia, bem como o empenho em inventariar os
afetos (positivos e negativos) que despertam e em propor ações sobre seus leitos
2 Sobre a constante recorrência do urbanismo à biologia ver Philip GUNN e Telma de Barros CORREIA “O urbanismo, a medicina e a biologia nas palavras e imagens da cidade”, in Pós – revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da fauusp, no 10, dezembro 2001, p. 34-61. 3 Veja-se, por exemplo, os capítulos “Águas cristãs e pagãs” e “Quando as águas acolhem assombrações...” in SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de, Cidade das águas. Usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822-1901), São Paulo, Editora SENAC, 2007.
mortos, tendem a constituí-los em paisagem e, assim, a reservar-lhes assento na
história das cidades.
Alguns casos Quanto mais consolidada a urbanização, mais cifrados são os sinais da
existência dos córregos. Um dos exemplos extremos é o córrego Anhanguera, que
cruza a área central da cidade de São Paulo. Talvez só os técnicos em drenagem
urbana saibam que ele existe e conheçam seu nome. O levantamento cuidadoso da
cartografia antiga e de documentos técnicos pode revelar seu traçado, permitindo
assinalar, na superfície, os indícios da sua presença subterrânea4. Muitos destes
indícios são sobras de terreno, bueiros e caixas de inspeção, verdadeiras “janelas
indiscretas” que permitem ver o córrego. Mas há também praças e largos, ruas e
avenidas, logradouros muito conhecidos dos paulistanos, como General Jardim,
Arouche, Amaral Gurgel, Alameda Barão de Limeira, sob os quais flui o Anhanguera,
sem ser percebido.
Outro exemplo é o córrego Verde, na região de Pinheiros, cuja ocultação
total é mais recente. Pelo menos até meados da década de 1950, ainda apresentava
vários trechos a céu aberto, em curso livre ou na forma de valetas. A bacia do Verde
é relativamente extensa e apresenta dois leitos relativamente importantes, cada um
com mais de dois quilômetros de comprimento, chamados, no jargão técnico, de 1o e
2o braços. A confluência dos dois braços se dava na altura da praça Gastão Vidigal,
no Jardim Paulistano. Hoje, em conseqüência de adaptações no sistema de
drenagem, o 1o braço foi desviado, na altura do cruzamento das ruas Pinheiros e
Fradique Coutinho, de modo a desaguar a quase dois quilômetros abaixo do ponto
onde antes recebia o afluente (2o braço). Assim, todo um trecho do córrego deixou
de fato de existir, sem deixar rastros. No novo trajeto, nenhum sinal seu aflora à
superfície, a não ser a nova foz no rio Pinheiros, na altura da rua Paes Leme,
reduzida a um simples tubo.
4 A reconstituição do traçado do córrego Anhaguera fez parte do Trabalho Final de Graduação na FAU-USP, em 2009, da então estudante Maria João Cavalcanti Ribeiro de Figueiredo, a partir de pesquisa de campo, interpretação cartográfica e de consultas ao Cadastro de Obras da Secretaria de Infraestrutura Urbana da Prefeitura do Município de São Paulo.
Figura 1 – Viela sob a qual passa, e bueiro por onde se vê, o córrego Verde, na Vila
Madalena.
A montante, porém, suas marcas são pronunciadas, embora se mantenha
escondido5. Becos e vielas o acusam, seja pelo traçado insólito em relação ao
tabuleiro hipodâmico do bairro de Vila Madalena, seja pelas enchentes periódicas.
Por estas razões foram, por muito tempo, espaços estigmatizados, desprezados,
evitados. Há poucos anos, a Organização Não-Governamental Cidade Escola
Aprendiz, trabalhando com a comunidade dos arredores, recuperou uma pequena
“praça” e um dos becos sob os quais passa este braço do Verde. Algumas das
vielas ganharam projeção, já se explora comercialmente seu glamour (são
constantemente usadas como cenário para filmes e fotografias de publicidade), no
5 Sobre o trajeto oculto do 1o braço do córrego Verde e sobre os córregos Bexiga e Uberabinha ver “A trama capilar das águas na visão cotidiana da paisagem”, artigo do autor, em Revista USP, vol. 70, pg. 88-97, jun. jul. ago. 2006, revisto e publicado em Arquitextos, maio 2009,
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.108/51.
entanto são poucos, entre os não moradores, os que sabem e muitos os que se
admiram quando informados da existência do córrego.
Figura 2 – Beco sem saída, formado pelo córrego Verde, ao fim do qual, por uma caixa de passagem
destampada, vê-se a água corrente.
O trajeto do 2o braço é mais disfarçado, apresenta menos
excepcionalidades que o outro, exigindo maior acuidade para ser pressentido.
Vielas, grelhas, bueiros onde seu curso pode ser deduzido e suas águas vistas ou
ouvidas, constituem as provas documentais, na paisagem, da presença do córrego
ocultado6. Um dos espaços de destaque por ele atravessado é a praça Benedito
Calixto, importante ponto de referência que ultrapassa a escala do bairro, recebendo
um grande número de pessoas na feira de objetos e artesanatos que tem lugar aos
sábados. Praticamente nenhum dos freqüentadores e poucos moradores do local
sabiam que o Verde estava (e está) sob os seus pés. 6 Este braço do córrego Verde foi investigado em trabalho de iniciação científica na FAU-USP, em 2008 e 2009, realizado pela então estudante Mariana Martins Yamamoto que restituiu in loco o seu percurso, identificando marcas da sua passagem, da nascente, na altura da rua Oscar Freire, à foz, no rio Pinheiros. Textos, mapas e fotografias correspondentes ao córrego e aos seus indícios foram reunidos em um folheto de divulgação entregue a instituições e associações existentes nos arredores, uma delas a Associação dos Amigos da Praça Benedito Calixto.
As marcas que estes pequenos (nem sempre não tão pequenos) cursos
d’água deixaram na paisagem não se limitam estritamente ao seu leito. Muitas vezes
se ampliam para as áreas em torno, conferindo-lhes aspectos singulares. Tais
excepcionalidades contrastam fortemente com o padrão convencional dos bairros
em que estão inseridas e podem ser percebidas no traçado de algumas ruas, no
parcelamento do solo, na implantação das construções, nos expedientes esdrúxulos
que a presença do córrego forçou.
Por serem comumente desprezadas, estas áreas próximas aos córregos,
nos loteamentos triviais, foram inicialmente ocupadas por pessoas ou famílias
remediadas ou de baixa renda. Desassistidas pelo poder público, viam-se impelidas
a resolver por conta própria o seu assentamento naquelas terras, o que lhes
facultava improvisações, muitas vezes grotescas, mas também inventivas, que até
podem ter valor como testemunhos de um modo de lidar com os cursos d’água
menos proeminentes. Os novos empreendimentos imobiliários e as ações do poder
público que os acompanham são mais sofisticados: não só não recuperam o córrego
como removem, ao imporem um novo desenho, os indícios deixados, mesmo que
involuntariamente, pela ocupação anterior. É mais uma camada a recobrir o já
encoberto, numa operação de disfarce sem vestígios.
Figura 3 – Formas de ocupação características do vale do Água Preta, na Vila
Pompéia.
Em vários trechos do percurso do Água Preta7, outro córrego totalmente
ocultado que atravessa os bairros da Vila Pompéia e da Vila Romana, pode-se ainda
recolher exemplos de tais indícios. São documentos que tendem a desaparecer à
medida em que os lugares se valorizam e passam a receber “melhoramentos”.
Figura 3 – Tubulado e enterrado, o córrego Água Preta entra disfarçadamente num
beco...
7 Um estudo sobre o Água Preta, do autor, pode ser encontrado no artigo “Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos”, em Pós- Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da fauusp, 2004, pg. 82-96, revisto e publicado em Arquitextos, março 2009,
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.106/64.
Figura 4 – ... e só se exibe, “perigoso”, depois da “cerca elétrica”.
Redes de percursos Uma vez expostos os argumentos que justificam a importância destes
vestígios materiais não só como receptáculos, mas também pelo seu poder de
ignição da memória, cabe evidenciar as possibilidades de formação de redes
concretas que os conectem e os tornem partícipes da paisagem cotidiana.
Dos casos pesquisados até o momento, cinco mostraram-se especialmente
auspiciosos para a constituição de tramas conectivas: os das bacias dos córregos
Água Preta, Verde, Aclimação, Sapateiro e Pirituba.
As nascentes do Água Preta distribuem-se por um arco que coincide,
grosso modo, com trechos de vias importantes dos bairros em que se situam: Dr.
Arnaldo, Alfonso Bovero, Heitor Penteado, Aurélia. Uma delas, que vem diretamente
ao caso, localiza-se nas proximidades da estação de metrô Vila Madalena, na
avenida Heitor Penteado. Em seu percurso, após cruzar quadras e vielas, atravessar
pequenas praças e sobras de áreas, adentra o terreno do SESC Fábrica Pompéia e
passa sob a ferrovia da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) entre
as estações Barra Funda e Água Branca, antes de desaguar, logo adiante e sempre
incógnito, no rio Tietê. Da nascente à foz, perfaz um trajeto da ordem de quatro
quilômetros.
Não mais que quinhentos metros separam esta nascente daquela do
córrego Verde, que pertence à bacia oposta, do rio Pinheiros. Do mesmo modo,
depois de formar becos e ziguezagues, cortar praças e esconder-se no interior dos
quarteirões ou sob o leito das ruas, findo o percurso em torno também de quatro
quilômetros, o Verde desemboca no rio Pinheiros, na altura de outra estação da
CPTM, a Hebraica-Rebouças.
São oito quilômetros de extensão, interligando duas estações de trem e
alinhavando, no caminho, uma estação de metrô, espaços livres públicos, diversas
instituições e equipamentos de serviço, cujas oportunidades de constituírem
caminhos adequados aos pedestres e mesmo rotas para meios de transporte
alternativos, como as bicicletas, passam despercebidas.
Relação semelhante pode ser estabelecida entre as bacias dos córregos
Aclimação e Sapateiro, opostas pelo chamado espigão central de São Paulo. O
Aclimação, um dos formadores do lago existente no parque homônimo, nasce
próximo à rua Vergueiro, implantada sobre o divisor de águas dos rios Tamanduateí
e Pinheiros. Simetricamente, a pouca distância da outra, situa-se a nascente do
Sapateiro, contribuinte do lago do Ibirapuera, já na bacia do Pinheiros. Ambos os
cursos d’água passam pelos mesmos incidentes dos demais córregos – vielas,
becos, escadarias, ziguezagues – em seus trajetos dissimulados. O Sapateiro corre
dois quilômetros até chegar ao seu único momento expressivo, o lago do parque
Ibirapuera; o Aclimação, pouco mais de um, até o seu lago8. Portanto, cerca de
apenas três quilômetros separam os grandes pontos de atração destes dois
concorridos espaços de lazer dos paulistanos; suas cabeceiras quase se tocam,
mas tudo se passa, na paisagem, como se nada tivessem a ver entre si.
8 A jusante do lago do Ibirapuera, o córrego Sapateiro prossegue, grosso modo, sob o leito da avenida Juscelino Kubitschek até desaguar no rio Pinheiros. O Aclimação e o Pedra Azul formam o lago da Aclimação. A jusante do lago, o córrego passa a se chamar Cambuci o qual, após um trajeto bastante tortuoso sob ruas, vielas e entre quadras, encontra sua foz no rio Tamanduateí.
Figura 5 – Os córregos Água Preta e Verde interligam as estações de trem
Hebraica-Rebouças e Água Branca, enquanto os da Aclimação e Sapateiro
interligam parques.
Outro exemplo é o Pirituba, um córrego extenso, com quase sete
quilômetros de extensão do começo, um pouco ao norte da estação Vila Clarice da
CPTM, à foz, no rio Tietê. Corre a céu aberto até a estação Pirituba. Nos restantes
três quilômetros está tubulado sob a estreita faixa verde que margeia a ferrovia. Esta
faixa, apesar de sua pequenez e precariedade, é vista e usada informalmente por
moradores lindeiros como um “parque” ou, ao menos, como local de encontro e
descanso.
Figura 6 – O córrego Pirituba passa, tubulado, sob a faixa verde, paralela à ferrovia.
Moradores usam a tampa do poço de inspeção do córrego como banco e tratam a
exígua faixa como
“nosso parque”.
Um pouco abaixo da estação Pirituba, já oculto, o córrego recebe
contribuintes, igualmente encobertos, que vêm de dois loteamentos projetados sob
os princípios dos bairros jardins, divulgados entre nós pela Companhia City:
Chácara Inglesa e Jardim Felicidade. O que atravessa o Jardim Felicidade forma o
lago existente no parque municipal de mesmo nome.
Figura 7 – Por vielas e escadarias as águas chegam ao lago do parque Jardim
Felicidade.
Figura 8 – O córrego Pirituba e seus contribuintes interligam dois parques de
bairros.
Entre os dois parques, um de fato, outro assim considerado por falta de
alternativa, interpõe-se a linha do trem. Apesar da proximidade (menos que
quinhentos metros os separam), parecem fazer parte de mundos diferentes. No
entanto, estão unidos pelo sistema hídrico camuflado. A evidenciação dos percursos
dos córregos, tanto do principal como de seus afluentes, por intermédio dos
vestígios deixados na superfície, e uma transposição da ferrovia favorável aos
pedestres, cadeirantes e ciclistas, enriqueceriam as possibilidades de fruição destes
espaços públicos e promoveriam novos modos de leitura da base física sobre a qual
se assentam.
Palavras finais
Há muitas situações como as expostas, acredita-se, em todas as cidades,
mas são sempre diversas, contingentes. O que têm em comum é o modo
improvisado, meio canhestro, de lidar com as constrições que os acidentes impõem.
Daí resultam formas insólitas, logo rejeitadas, mas reveladoras de um modo de agir,
uma poética a contrapelo. De alguma maneira, os vestígios destas desajeitadas
operações de ocultação ganham a importância dos depoimentos, na medida em que
expõem um certo ethos no lidar com a Terra, este “fundo escuro” ao qual tudo volta,
nas palavras de Dardel. Os novos empreendimentos imobiliários, ao implantarem-se
em locais antes preteridos nos quais, portanto, ainda persistem fartos exemplos
destes testemunhos, tendem a apagá-los em nome de um “decoro” que se limita às
aparências, pois nada alteram do antigo ethos. Os vestígios têm muito a dizer, daí a
importância de preservá-los e deixá-los “falar” sua fala necessariamente singular,
mas que pode conduzir além das particularidades de cada caso. Não se está muito
distante do fazer artístico.
Apresentados os casos e as oportunidades que eles encerram, convém,
concluindo, reforçar que o interesse desta pesquisa não se atém às vantagens
práticas que podem advir da integração dos espaços, em geral depreciados,
associados aos córregos, mesmo depois de tubulados. Supõe-se que ele resida,
principalmente, no poder evocativo dos vestígios, o que permitiria atualizar as
relações mais primordiais e elementares entre as cidades e os sítios em que se
assentam, aumentando, em consequência, as possibilidades de habitá-las
poeticamente.
Referências bibliográficas BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1989. BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade. Ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1991. BARTALINI, Vladimir. “Os córregos ocultos e a rede de espaços públicos urbanos”. In Pós- Revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da fauusp, 2004, pg. 82-96. Revisto e publicado em Arquitextos, março 2009, http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.106/64. BARTALINI, Vladimir. “A trama capilar das águas na visão cotidiana da paisagem”. In Revista USP, vol. 70, pg. 88-97, jun. jul. ago. 2006. Revisto e publicado em Arquitextos, maio 2009, http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.108/51. BESSE, J.-M. Ver a terra – seis ensaios sobre a paisagem e a geografia. Tradução: Vladimir Bartalini. São Paulo, Perspectiva, 2006. BESSE, Jean-Marc. “Geographie et existence, d’aprés l’oeuvre d’Eric Dardel”. In: DARDEL, Eric. L’Homme et la Terre. Nature de la réalité géographique. Paris: Éditions du CTHS, 1990. BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Publicações Europa-América, 5a edição, [s.d.]. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo, Companhia das Letras, 2004. BOSI, Ecleá. O tempo vivo da memória. Cotia-SP, Ateliê Editorial, 2004. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano, tomos 1 e 2. Petrópolis: Editora Vozes, 1994 (tomo 1), 1996 (tomo 2).
CORREIA, Telma de Barros e GUNN, Philip. “O urbanismo, a medicina e a biologia nas palavras e imagens da cidade”, in Pós – revista do programa de pós-graduação em arquitetura e urbanismo da fauusp, no 10, dezembro 2001. DARDEL, Eric. L’Homme et la Terre. Nature de la réalité géographique. Paris: Éditions du CTHS, 1990 (1ª edição Paris, PUF, 1952). PÉGUY, C. Note conjointe sur M. Descartes et la philosophie cartésienne – Oeuvres completes en prose 1909-1914. Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 1957. RITTER, Joachim. Paysage – fonction de l’esthétique dans la societé moderne. Besançon, Les Éditions de l’Imprimeur, 1997. SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Cidade das águas, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo (1822- 1901). São Paulo, SENAC, 2007.