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  • Grolla (2006) - Material didtico desenvolvido para o Curso Letras LIBRAS (UFSC)

    A AQUISIO DA LINGUAGEM

    Elaine Grolla

    1. Propriedades da Aquisio de Linguagem

    Considere as sentenas abaixo, ditas por N., uma criana adquirindo o portugus brasileiro como sua lngua materna, aos 2 anos e oito meses de idade (dados retirados de Grolla (2000)):

    (1) a. Eu vou ver esse daqui. Esse, eu vou ver.

    b. Me: Quem deu a boneca? Criana: A boneca, foi o papai que comprou na loja.

    Notemos a complexidade das sentenas enunciadas pela criana. Em (1a), a criana produz primeiramente uma sentena com a ordem cannica para o portugus brasileiro: sujeito (eu) verbo (vou ver) objeto (esse daqui). Depois, ela modifica esta ordem, produzindo uma estrutura chamada de tpico-comentrio, em que o objeto direto posicionado frente do sujeito. Tal construo perfeita em portugus brasileiro e aos 2 anos e oito meses, N. j produz estruturas como esta com freqncia. Em (1b), N. produz outra estrutura de tpico-comentrio, retomando o tpico da conversa, a boneca, e explica que ela foi dada pelo pai, que a comprou numa loja. Para dar tal explicao, a criana utilizou uma estrutura sinttica chamada de clivada, realada no exemplo acima em negrito. Esta estrutura possui o verbo ser no passado e focaliza o sujeito da ao, neste caso o papai. Neste enunciado, a criana mostra que domina construes complexas de sua lngua, antes mesmo de completar 3 anos de vida.

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    Neste texto, discutiremos como as crianas adquirem uma lngua. Comecemos por observar que todas as crianas adquirem (pelo menos) uma lngua, seja essa uma lngua oral ou manual. Esse fato surpreendente dada a complexidade das lnguas naturais, como veremos mais abaixo. Alm disso, as crianas adquirem uma lngua quando ainda so muito novinhas, numa fase em que elas mal conseguem amarrar os sapatos ou desenhar em crculos. Ou seja, o processo de aquisio de linguagem, alm de ser universal, tambm rpido, uma vez que, por volta dos 4 anos de idade, quase toda a complexidade de uma lngua aprendida. Considerando tal complexidade das lnguas naturais, podemos nos perguntar como todas as crianas adquirem uma lngua, aparentemente sem esforo algum e sem serem explicitamente ensinadas. Neste texto, refletiremos sobre essa questo e apresentaremos uma teoria que se prope a explicar este processo de aquisio postulando que parte do conhecimento lingstico geneticamente determinado. Tambm consideraremos outras teorias que foram propostas ao longo dos anos e discutiremos por que elas no so capazes de explicar tal processo de aquisio. Como mencionado acima, toda criana normal adquire uma lngua natural, sem nenhum treinamento especial e sem um input1 lingstico seqenciado, ou seja, sem nenhuma preocupao com a ordem em que as sentenas so faladas s crianas. Essa propriedade da aquisio de linguagem chamada de universalidade da linguagem (Crain e Lillo-Martin (1999)). Embora as lnguas naturais sejam muito diversas, o curso de aquisio de linguagem o mesmo em qualquer lngua, como tem sido observado translingisticamente. Para explicar o processo de aquisio de linguagem, uma teoria lingstica tem de dar conta dessa universalidade da linguagem e responder o que especial sobre linguagem, e sobre as crianas, que garante que elas iro dominar um sistema de regras rico e complexo num perodo em que elas esto apenas entrando em idade escolar. Outra observao que deve ser ressaltada se relaciona com os dados lingsticos primrios a experincia lingstica da criana e com a qual ela adquire linguagem. Em algumas comunidades, a criana passa bastante tempo com os adultos, que do muita ateno a elas. Se esse fosse sempre o caso, poderamos sugerir que a linguagem ensinada s crianas pelos seus pais ou responsveis. No entanto, encontramos comunidades em que as crianas recebem menos ateno individual dos adultos, mas mesmo assim acabam adquirindo linguagem da mesma forma que aquelas que recebem mais ateno. Existem at mesmo comunidades em que os adultos no conversam diretamente com as crianas, que se

    1 Input designa o que a criana ouve ao seu redor, ou seja, as sentenas da lngua que est adquirindo.

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    comunicam apenas com outras crianas. Apesar dessas grandes diferenas de experincia lingstica, em todos esses casos, as crianas numa comunidade adquirem a lngua daquela comunidade. As consideraes acima nos levam a uma outra caracterstica da aquisio da linguagem: uniformidade. Ou seja, crianas numa mesma comunidade tm experincias lingsticas bastante diversas (com inputs diferentes) e os dados lingsticos primrios que cada criana recebe so diferentes do que as outras recebem; mesmo com essa diversidade no input, todas elas acabam aprendendo a mesma lngua. Outro ponto a ressaltar que algumas crianas aprendem vrias lnguas, apesar de a maioria aprender apenas uma. Em comunidades onde mais de uma lngua falada, as crianas aprendem todas as lnguas da comunidade. Nesse sentido, a aquisio de linguagem uma funo do input. Se uma criana filha de brasileiros levada para a China, ela aprender chins. Se uma criana filha de chineses for levada Frana, ela aprender francs. Assim, a lngua dos pais no determina que lngua a criana falar; o que determina a lngua da criana a lngua que falada ou sinalizada ao seu redor. Assim, toda criana exposta ao ingls falar ingls, toda criana exposta lngua de sinais brasileira sinalizar a lngua de sinais brasileira e assim por diante. Alm de ser universal e uniforme, o processo de aquisio de linguagem tambm muito rpido. Como mencionado acima, quase toda a complexidade de uma lngua adquirida por volta dos 4 anos de idade; ou seja, antes mesmo de as crianas comearem a freqentar a escola. O que elas levam mais tempo aprendendo so as palavras da lngua algo que continua para a vida toda, j que mesmo os adultos esto sempre aprendendo palavras novas. Entretanto, por volta dos 4 anos de idade, as crianas j dominam quase todos os tipos de estruturas usadas na sua lngua. Nessa mesma idade, no entanto, elas esto apenas comeando a contar e muitas vezes nem sabem ainda amarrar os sapatos. Finalmente, a ltima propriedade que notaremos a seqncia de estgios pelos quais as crianas passam ao adquirir uma lngua. Crianas aprendendo uma lngua seguem um padro quase idntico. Elas progridem atravs dos mesmos estgios de aquisio e na mesma ordem, embora a rapidez com que uma criana muda de um estgio para outro seja varivel. Assim sendo, o melhor indicador sobre o nvel de desenvolvimento lingstico de uma criana o estgio em que ela se encontra e no a sua idade. Na seo a seguir, apresentaremos os estgios da aquisio em maior detalhe.

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    2. Os Estgios da Aquisio de Linguagem

    Nessa seo, observaremos os estgios pelos quais as crianas passam em seu desenvolvimento lingstico. Esses estgios foram observados em crianas que foram gravadas periodicamente por meses ou anos (como no estudo apresentado em Brown (1973)). Por isso, os dados aqui reportados so chamados de dados longitudinais. Como as crianas eram livres para dizer o que quisessem e como quisessem, sem serem orientadas a produzir construes especficas, tais dados so tambm chamados de espontneos. Como dito acima, a idade em que tais estgios acontecem pode variar de criana para criana; as idades mencionadas abaixo so apenas as mais comumente observadas. O importante observar que a seqncia de estgios no varia de criana para criana.

    Primeiros meses de vida

    Nos primeiros meses, a criana chora e comea a balbuciar, emitindo sons que no tm nenhum significado. Diversos estudos com bebs muito novos (desde recm-nascidos at bebs com 12 meses de vida) indicam que desde os primeiros dias de vida os bebs mostram uma sensibilidade impressionante s propriedades e estruturas da fonologia das lnguas naturais. Por exemplo, com 4 dias de vida, eles conseguem discriminar uma grande variedade de lnguas, algumas que eles nunca ouviram, ao se basear em seu ritmo. Eles podem distinguir sua lngua nativa de uma lngua estrangeira e at mesmo duas lnguas estrangeiras uma da outra (alguns estudos investigando essa habilidade dos recm-nascidos so: Bosch e Sebastin-Galls (1997); Christophe e Morton (1998); Mehler et al. (1988); Moon, Cooper e Fifer (1993); entre outros).

    Seis meses

    Por volta dos 6 meses de vida, as crianas balbuciam um maior nmero de sons. Elas produzem vrias slabas diferentes, que so repetidas exausto, como ba, ba, ba, bi, bi, bi. Crianas adquirindo lnguas diferentes apresentam o mesmo tipo de balbucio. O fato mais marcante que at mesmo crianas surdas balbuciam neste estgio, embora elas no ouam nenhum input lingstico (Karnopp (1999); Newport e Meier (1986)). Isto indica que o

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    balbucio no uma resposta estimulao externa, mas um comportamento guiado internamente.

    A partir desta idade, os bebs comeam a separar as palavras no fluxo contnuo dos enunciados. Bebs tambm conseguem discriminar uma grande variedade de sons de sua lngua nativa ou de uma lngua estrangeira (Jusczyk (1997)).

    Dez meses

    Aos 10 meses, o balbucio das crianas muda e elas comeam a balbuciar somente os sons que ouvem. As crianas tambm usam o acento e contornos entoacionais de sua lngua. Nesta idade, a criana surda deixa de balbuciar (Petitto e Marentette (1991)). Por volta desta idade, os bebs comeam a mapear som ao significado. Para extrair palavras do fluxo contnuo dos enunciados, os bebs se baseiam em vrias fontes de informao especfica de linguagem: a forma prosdica das palavras, regularidades distribucionais, informao fontica e restries fonotticas. Essas habilidades de percepo de linguagem altamente sofisticadas so cruciais para se aprender o lxico da sua lngua nativa.

    Um ano

    Ao completar um ano de vida, a habilidade de discriminar sons de lnguas estrangeiras decai. Os bebs comeam como potencialmente falantes de qualquer lngua humana e sua capacidade para linguagem pode se adaptar a qualquer input lingstico. Enquanto ao nascer eles tm capacidade para lidar com variaes globais, depois de um ano de experincia suas capacidades ficam mais refinadas. Durante esse desenvolvimento, eles perdem algumas habilidades (por exemplo, lidar com contrastes de consoantes de lnguas estrangeiras), mas ganham outras que os preparam para aprender as unidades da lngua que ouvem ao seu redor (i.e., palavras). Nesta idade, a criana, alm de balbuciar, tambm comea a produzir suas primeiras palavras (Elbers (1982); Vihman e Miller (1988)). Elas geralmente usam palavras que nomeiam objetos em seu ambiente, como mame, papai, auau, etc. Nesse estgio, os enunciados das crianas so compostos por apenas uma palavra. Esses enunciados de uma palavra geralmente tm o significado de uma sentena completa. Por exemplo, aos 15 meses,

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    o beb estudado por McNeil (1966) usou a palavra door (porta) para significar feche a porta e water (gua) para significar tem gua em meus olhos. A criana de um ano pode tambm usar gestos para se comunicar, como erguer os braos para indicar que quer que algum a pegue no colo. A criana tambm combina gestos com palavras, como, por exemplo, apontar para um cachorro e dizer auau. Neste estgio, as crianas surdas tambm comeam a produzir seus primeiros sinais. No lado da compreenso, a criana entende ordens, como por exemplo, me d um beijo.

    Um ano e seis meses

    Por volta de um ano e meio, as crianas comeam a combinar duas palavras isoladas, por exemplo, auau ... gua. O padro de entonao usado pela criana o padro de palavra isolada, com uma pausa entre elas. Essas combinaes de palavras no so ainda sentenas. Nesta idade, o vocabulrio aumenta rapidamente, pois as crianas aprendem vrias palavras novas a cada dia.

    O mais surpreendente, no entanto, que mesmo antes de as crianas comearem a combinar palavras, elas podem detectar e usar a ordem de palavras para compreender enunciados. Tal concluso obtida num estudo de Hirsh-Pasek e Golinkoff, de 1996, em que eles testaram bebs de 17 meses (que produziam apenas enunciados de uma palavra) num mtodo chamado de paradigma do olhar preferencial (do ingls: preferential looking paradigm). As crianas estavam adquirindo o ingls como lngua materna. Em tal teste, a criana era colocada sentada no colo de sua me diante de duas TVs coloridas. A me tinha uma venda nos olhos para que ela no indicasse para a criana, sem querer, onde ela tinha que olhar. Entre as duas TVs existia um alto falante que dava instrues criana. No teste de Hirsh-Pasek e Golinkoff, as TVs mostravam dois personagens, Big Bird e Cookie Monster. Numa tela, Big Bird lavava Cookie Monster e na outra, Cookie Monster lavava Big Bird. Do auto falante, a criana escutava a sentena: Big Bird is washing Cookie Monster (Big Bird est lavando o Cookie Monster).

    Os resultados mostram que as crianas preferem olhar para a tela que corresponde ao que elas ouviram (nesse caso, a tela com o Big Bird lavando o Cookie Monster) ao invs de olhar para a tela que no corresponde.

    Como as duas telas mostravam os mesmos dois personagens, fazendo a mesma ao lavando, a nica maneira de as crianas saberem qual das duas telas correspondia ao que ela ouviu se elas soubessem qual personagem complemento do verbo e qual o sujeito. A

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    concluso que as crianas se basearam na ordem de palavras para saber isso. Portanto, esse estudo de compreenso indica que, mesmo antes de as crianas comearem a produzir enunciados com mais de uma palavra, elas j sabem qual a ordem de palavras em ingls. Aps um breve perodo, a criana entra no estgio de duas palavras, em que ela combina duas palavras num nico contorno entoacional. No h pausas entre as duas palavras e podemos considerar tais enunciados como sentenas, que tm significado de sentenas completas. Por exemplo, a criana pode dizer auau nanar, querendo dizer que o cachorro est dormindo. Por volta desta idade, a criana surda tambm passa pelo perodo de dois sinais (Newport e Meier (1986)). As duas palavras enunciadas encontram-se numa relao semntica, em uma mesma ordem. Os tipos de relaes semnticas produzidas entre os elementos dos enunciados so os seguintes: agente + ao (auau dormir); ao + objeto (pegar nen); agente + objeto (mame nen); ao + lugar (jogar cho); entre outros. A ordem das palavras nesses enunciados de duas palavras a mesma ordem cannica da linguagem do adulto. Estudos mostram que as crianas quase nunca erram a ordem de palavras desde as suas primeiras combinaes de palavras (Bloom (1970); Brown (1973)).

    Dois anos

    Aos dois anos de idade, a criana tem um vocabulrio de aproximadamente 400 palavras e j produz sentenas simples com mais de duas palavras. Nesse estgio, algumas palavras gramaticais, como artigos (o, a) e complementizadores (como que e se), ainda no so usados (Brown (1973)). Entre 2 anos e meio e 3 anos, a criana tem um vocabulrio de aproximadamente 900 palavras e comea a usar palavras gramaticais como artigos e pronomes.

    Nesta fase, a criana apresenta erros, como as formas de passado eu fazi e eu trazi, produzidas por crianas adquirindo o portugus. Tais erros so na verdade indcios de que a criana aprendeu a regra de formao de passado em portugus. Ou seja, ela aprendeu que o passado de verbos terminados em er (como vender) formado adicionando-se i ao radical. O que ela no aprendeu ainda que os verbos fazer e trazer so irregulares e seu passado feito de forma diferente. Tais formas tm que ser aprendidas uma a uma. O importante notar que as crianas detectam regularidades em seu input e vo alm delas, produzindo formas novas, que elas nunca ouviram antes e que so regidas por regras.

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    Mais de trs anos

    Entre 3 anos e 3 anos e meio, o vocabulrio da criana gira em torno de 1200 palavras. Preposies e outras palavras gramaticais continuam a ser adquiridas. Entre 3 anos e meio e 4 anos, as crianas comeam a usar sentenas com mais de uma orao, como oraes relativas e oraes coordenadas. Por volta dos 4 e 5 anos de idade, as crianas tm um vocabulrio de mais ou menos 1900 palavras e j usam oraes subordinadas com termos temporais, tais como antes e depois. importante observar que por volta dos 5 anos de idade as crianas j adquiriram a grande maioria das construes encontradas em sua lngua materna (como oraes relativas, oraes clivadas, perguntas, construes passivas, etc). Apesar de seu input ser constitudo por um nmero finito de sentenas, a criana capaz de produzir um nmero infinito delas. Isto porque o que a criana adquire no uma lista de sentenas, mas um conjunto de regras que a permitir gerar sentenas novas, que ela nunca ouviu antes.

    Como ilustrao deste fato, tomemos as sentenas abaixo, produzidas pela criana N., a mesma que produziu os enunciados em (1) acima (as idades em que as sentenas foram produzidas encontram-se em parnteses. Por exemplo, 3;06.20 = trs anos, seis meses e vinte dias. Dados retirados de Grolla (2000)):

    (2) Eu gosto de astonauta, mas aquele que anda assim, eu num gosto, ele feio. (3;06.20) (3) Eu quero brincar com qu? (3;11.23) (4) O que que ela est pegando? (3;09.01)

    A estrutura em itlico em (2) bastante complexa. A orao relativa aquele que anda assim o tpico da sentena eu num gosto. muito improvvel que a criana tenha ouvido essa sentena em seu input antes de a produzir. O mesmo ocorre com (3), em que a criana produz uma pergunta com a palavra interrogativa (qu) no final da sentena.

    interessante observarmos que (3) uma pergunta com a palavra interrogativa in situ, ou seja, localizada na posio em que interpretada. J a pergunta em (4) possui a palavra interrogativa (o que) no incio da sentena. Em portugus brasileiro, as perguntas com um elemento interrogativo (por exemplo: quem, quando, o que, como, porque, onde), chamadas de perguntasQU, podem ser construdas dessas duas maneiras: ou com o elemento interrogativo no incio da sentena ou no lugar em que ele interpretado, in situ.

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    No entanto, no so todas as lnguas que exibem essa opcionalidade. Em algumas lnguas, como o ingls, o elemento interrogativo s pode estar localizado no incio da sentena, como ilustrado abaixo:

    (5) What did you buy? O que voc comprou?

    Em outras lnguas, como o chins, os elementos interrogativos devem ficar no lugar em que so interpretados, como ilustrado abaixo (dado de Cheng (1991)):

    (6) Qiaofong mai-le sheme ne Qiaofong compra-ASP o que QU O que Qiaofong comprou?

    Resumindo, existem trs tipos de lnguas com relao ordem de palavras em perguntas-QU. Num grupo, onde se inclui o ingls, as palavras interrogativas tm que aparecer no incio da sentena. Num segundo tipo, as palavras interrogativas aparecem no local em que so interpretadas, como o chins. E no terceiro tipo, as palavras interrogativas podem aparecer no incio da pergunta ou no local em que so interpretadas. O portugus brasileiro uma lngua desse terceiro tipo2. Retornando s perguntas feitas por N., sua produo indica que, antes mesmo de completar 4 anos de idade, ela j sabe a qual tipo de lngua o portugus brasileiro pertence e se mostra capaz de produzir sentenas novas, que ela nunca ouviu antes, usando a ordem de palavras corretamente.

    A exposio acima sobre os estgios da aquisio foi baseada na fala espontnea das crianas e indicam como o desenvolvimento da linguagem rpido. Vrios estudos investigando a aquisio de vrias lnguas diferentes encontraram estgios similares em

    2 As perguntas-QU consideradas na discusso do texto no incluem as chamadas perguntas-eco, em que o

    falante faz a pergunta, mas no espera uma resposta: ele est apenas expressando indignao, como no exemplo abaixo: (i) A: O Joo comprou aquele carro carssimo. B: O Joo fez o qu? Tais perguntas possuem uma entonao diferente da pergunta-QU que pede uma informao. Mesmo em ingls, que no permite QU in situ, as perguntas-eco possuem o elemento-QU in situ. Essa perguntas no sero discutidas no texto.

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    idades tambm parecidas. Tais estgios mostram que os erros que as crianas produzem so muito limitados. Por exemplo, as crianas produzem formas de passado que no so encontradas na lngua adulta, mas elas no produzem outros tipos de erros que seriam possveis, tais como erros na ordem das palavras. Por fim, considerando a universalidade da linguagem, natural que crianas surdas, expostas lngua de sinais, apresentem um paralelo em relao aos estgios de aquisio das lnguas orais. Crianas surdas inicialmente balbuciam com as mos. Depois, comeam a produzir enunciados com um nico sinal, passando mais tarde para a fase de enunciados de dois sinais e, em seguida, combinam sinais, formando sentenas simples, exatamente como as crianas ouvintes em relao s palavras (Lillo-Martin (1999) e Newport e Meier (1985)). Levando em conta o que foi exposto acima, uma teoria de aquisio de linguagem deve explicar no s a universalidade da linguagem, como tambm sua uniformidade, rapidez, os estgios observados no processo de aquisio e o fato de as crianas serem capazes de produzir e entender um nmero infinito de sentenas, apesar de ouvirem um nmero finito delas. No que se segue, exploraremos algumas teorias e abordagens de aquisio de linguagem, avaliando se elas so capazes de dar conta deste processo.

    3. Teorias sobre Aquisio da Linguagem

    Uma teoria sobre a aquisio de linguagem tem de ser capaz de explicar os fatos apresentados acima. Algumas teorias que discutiremos abaixo so um tanto intuitivas, mas depois de examinadas mais detalhadamente, veremos que elas no so capazes de dar conta dos fatos discutidos acima.

    Tentativa e erro

    A primeira hiptese a ser considerada que a criana adquire linguagem num processo de tentativa e erro. O fato de as crianas passarem por estgios similares de aquisio de linguagem depe contra essa hiptese. Se a aquisio se desse por tentativa e erro, no esperaramos que as crianas passassem pelos mesmos estgios, fazendo as mesmas tentativas e os mesmos erros na mesma ordem. Alm disso, o fato de crianas que recebem inputs muito diferentes dentro de uma mesma comunidade acabarem passando pelos mesmos estgios acaba por trazer mais um argumento contra essa hiptese.

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    Correo dos adultos

    Uma outra teoria prope que as crianas aprendem linguagem porque os adultos as corrigem quando elas dizem algo errado. Um dos problemas enfrentados por esta hiptese que ela no explica como as crianas adquirem conhecimento sobre um nmero infinito de sentenas: elas entendem e produzem sentenas que elas nunca ouviram antes, e para as quais nenhuma correo pode ter sido feita.

    Outro problema para esta hiptese que, como observado anteriormente, as crianas produzem um nmero muito limitado de erros. Se as crianas no produzem alguns tipos de erros, os pais no podem corrigi-las. Tambm geralmente observado que os pais prestam ateno no que as crianas falam, mas no em como elas falam. Ou seja, quando os pais de fato corrigem seus filhos, eles tendem a corrigir sobre a adequao do contedo da fala das crianas relativamente situao discursiva e no sobre a forma gramatical das expresses. Dois exemplos ilustram esse fato. Em (7) abaixo, a criana produz uma sentena com uma estrutura mal-formada, mas, como ela verdadeira, a me concorda com a criana (dado de Brown e Hanlon (1970)):

    (7) Criana: Mama isnt boy, he a girl. Mame no menino, ele uma menina.

    Me: Thats right.

    Est certo.

    A seguir temos o caso em que a criana produziu uma sentena bem-formada, mas, como ela no verdadeira, a me a corrige (dado de Brown e Hanlon (1970)):

    (8) Criana: Walt Disney comes on Tuesday. O Walt Disney vem na tera-feira.

    Me: No, he does not. No, no vem.

    Nos Estados Unidos, Walt Disney aparece na TV aos domingos. Portanto, o enunciado da criana no verdadeiro. A me a corrige, apesar de a criana ter produzido uma sentena perfeitamente gramatical.

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    Outro argumento que depe contra esta hiptese decorre do fato de que, mesmo quando os pais corrigem as crianas, essas no prestam ateno a esta correo. No dilogo abaixo, retirado de McNeil (1970), o pai, um lingista, decide corrigir a criana e ensin-la a forma correta de dizer ningum gosta de mim em ingls, mas a criana parece no entender a correo:

    (9) Criana: Nobody dont like me. Ningum no gosta mim

    Pai: No, say nobody likes me. No, diga nobody likes me

    No, diga ningum gosta de mim. Criana: Nobody dont like me.

    (Oito repeties desse dilogo)

    Pai: No, now listen carefully; say nobody likes me. No, agora oua com ateno; diga ningum gosta de mim Criana: Oh! Nobody dont likes me.

    A criana no aprendeu ainda que, em ingls, sentenas com a palavra nobody (ningum) no vm com a negao dont. Ou seja, ela est usando a negao dupla (nobody dont) que no permitida em ingls. Quando o adulto a corrige, retirando o dont e colocando um s no final do verbo, flexionando-o na terceira pessoa do singular, a criana no adota as modificaes dadas pelo pai, oito vezes em que o dilogo se repete! No fim, a criana parece notar o uso de likes, embora o use incorretamente, mas no aprende o contedo de toda a correo.

    A discusso acima indica que correo dos pais no pode ser a maneira pela qual as crianas adquirem linguagem.

    Imitao dos adultos

    Uma outra hiptese sobre a aquisio prope que as crianas aprendem linguagem imitando o que os adultos dizem, tentando repetir o que elas ouvem. Existem vrios problemas com essa hiptese. Primeiramente, estudos sobre a linguagem que os adultos usam

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    com as crianas mostram que as crianas no so influenciadas pelo estilo de linguagem usada pelos adultos. Enquanto a linguagem que os adultos usam para se dirigir s crianas cheia de perguntas e ordens (e apenas 25% de declarativas), a linguagem usada pelas crianas em sua maioria composta de declarativas (dados de Newport, Gleitman e Gleitman (1977)). Outro fator a ser observado que as crianas produzem estruturas que nunca ouviram antes: elas produzem erros, como as formas de passado trazi e fazi, que no so produzidas por adultos e, portanto, no podem ser imitaes. Note tambm um fato que mencionamos anteriormente de que as crianas ouvem um nmero finito de sentenas, mas produzem e entendem um nmero infinito delas at mesmo sentenas que elas nunca ouviram antes. Por esses fatos, podemos afirmar que imitao no tem uma importncia central no processo de aquisio de linguagem e isso por si s no pode explicar tal processo.

    Simplificao da linguagem pelo adulto

    Finalmente, uma ltima hiptese que discutiremos aquela que prope que os pais simplificam a sua fala quando se dirigem s crianas. Os pais usariam formas mais simples no incio do processo de aquisio e iriam gradualmente aumentando a complexidade de seus enunciados para estar no mesmo nvel do desenvolvimento da criana. De fato, j foi observado que os adultos falam de uma forma diferente com as crianas, no que conhecido como materns (em ingls, motherese). Quando falando com crianas pequenas, os adultos usam sentenas mais curtas e freqentemente usam um padro de entonao diferente. No entanto, em um estudo comparando crianas cujos pais usavam o materns com crianas cujos pais no usavam, Newport, Gleitman e Gleitman (1977) no descobriram nenhuma diferena no desenvolvimento da linguagem das crianas. Portanto, o materns no parece ser o mtodo pelo qual as crianas adquirem linguagem.

    Concluindo, as crianas adquirem linguagem independentemente da qualidade interativa e independentemente da cultura. Ou seja, basta que sejam expostas a uma lngua que as crianas iro adquiri-la. No entanto, se hipteses como tentativa e erro, correo dos adultos, imitao ou simplificao da linguagem pelos adultos no so capazes de explicar como as crianas adquirem uma lngua, como ento podemos explicar esse processo? A teoria que iremos explorar na seo 5 prope que as crianas possuem um conhecimento lingstico inato que as guia no processo de adquirir uma lngua. Em outras palavras, as crianas j nascem equipadas com vrios aspectos das lnguas humanas, que

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    so geneticamente determinados. Porm, antes de nos debruarmos sobre esta teoria, na seo seguinte discutiremos alguns dos mtodos utilizados por pesquisadores da rea de aquisio de linguagem para acessar e avaliar o conhecimento lingstico das crianas.

    4. Metodologias em Aquisio de Linguagem

    Dependendo do fenmeno lingstico a ser investigado, o pesquisador tem sua disposio uma variedade de mtodos de coleta de dados. Os dados podem ser de produo ou de compreenso. Comeando com dados de produo, comentaremos sobre os dados de produo espontnea e os dados de produo eliciada. A seguir, discutiremos dados de compreenso, em que duas metodologias sero expostas, a tarefa de julgamento de valor de verdade e a tarefa de julgamento de gramaticalidade. Por questes de espao, a exposio abaixo bastante simplificada. Para uma discusso mais abrangente sobre os mtodos aqui mencionados e sobre vrios outros mtodos em aquisio de linguagem no discutidos aqui, referimos o leitor a Crain e Thornton (1998) e McDaniel, McKee e Cairns (1996).

    Produo Espontnea

    Dados de produo espontnea so geralmente coletados periodicamente (uma vez por semana, uma vez a cada quinze dias, ou uma vez por ms) ao longo de um perodo de tempo (por um ano, por exemplo). Embora tais dados sejam de grande importncia no estudo de aquisio de linguagem, eles so teis somente quando so coletados sistematicamente e com ateno especial a detalhes que afetam a qualidade do corpus, como explicado e explorado no sistema computadorizado disponvel nos arquivos de dados do CHILDES, de McWhinney e Snow (1985) e MacWhinney (1991). Os dados de produo espontnea permitem uma anlise da freqncia de uso de construes, auxiliando na anlise de como a aquisio de tais construes se d. Uma das maiores vantagens dos dados de produo espontnea que eles podem fornecer um grande nmero de informaes sobre vrios aspectos do desenvolvimento gramatical das crianas. Eles ajudam na identificao de tendncias gerais de desenvolvimento, fornecendo uma viso geral do curso da aquisio para uma lngua em particular.

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    Outra vantagem que tais dados incluem os enunciados dos interlocutores da criana, o que pode fornecer informaes importantes acerca da freqncia de certas construes numa lngua. Isso auxilia o investigador a determinar se um fenmeno em particular difcil para a criana adquirir ou se simplesmente ela no aparece por conta de fatores particulares lngua sendo adquirida, como baixa freqncia. Dados de produo espontnea podem fornecer informaes sobre variaes individuais no curso de aquisio de linguagem. Por exemplo, Brown (1973) descobriu que uma das crianas sendo estudada por ele, Eve, era muito precoce ao aprender a morfologia do ingls ao passo que as outras duas crianas que ele estudava, Adam e Sarah, eram mais lentas. Isso nos fornece uma idia da variao que se pode considerar normal no desenvolvimento da linguagem. Apesar destas vantagens, existem alguns aspectos negativos em tal mtodo. O primeiro deles o seguinte. Como analisar a ausncia de uma dada construo nos dados? Como os dados so coletados periodicamente, pode-se atribuir a ausncia de uma determinada construo ao acaso, ou seja, por coincidncia tal construo no foi produzida pela criana em determinada sesso de gravao. No entanto, tal ausncia pode se dever tambm falta de conhecimento da criana. Portanto, dados de produo espontnea podem fornecer evidncia positiva para a presena de uma construo gramatical, mas so de uso limitado em determinar se a ausncia de uma construo particular devida falta de capacidade lingstica, falta de exposio construo ou falta de contextos discursivos apropriados na amostra. Outra desvantagem desse mtodo que geralmente assumido que a compreenso pela criana de algumas construes gramaticais precede a produo de tais formas (Shipley, Smith e Gleitman (1969)). Assim sendo, investigadores usando dados de produo espontnea podem acabar por subestimar a capacidade da criana, se somente a produo for tomada como representando seu conhecimento lingstico. Resumindo, dados de produo espontnea podem fornecer informaes acerca do curso de desenvolvimento de linguagem, variaes individuais nesse desenvolvimento, aspectos especficos do input que a criana recebe e as situaes do discurso nas quais a aquisio acontece.

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    Produo Eliciada

    Outra forma de se investigar o desenvolvimento lingstico das crianas por meio de dados de produo eliciada. Produo eliciada uma tcnica experimental designada a revelar a gramtica das crianas fazendo-as produzir sentenas particulares. Existem diversas maneiras de se conduzir um experimento usando este mtodo. A metodologia discutida a seguir baseada na exposio de Thornton (1996). As estruturas sintticas relevantes (como por exemplo sentenas passivas ou oraes relativas) so elicitadas no contexto de uma brincadeira, de um jogo, em que a criana interage com um boneco fantoche. O jogo formulado de maneira a conter apenas o contexto associado a um significado especfico e destinado a ser apropriado para a produo da estrutura sendo estudada. Por exemplo, suponha que queiramos que a criana produza sentenas passivas. O jogo poderia evoluir da seguinte forma. A criana entrevistada individualmente, numa sala em que estaro somente ela e dois pesquisadores. Um deles manipula um fantoche e outro conversa com a criana, sendo o mediador das brincadeiras. A criana instruda a fazer perguntas para o fantoche, baseada no contexto apresentado pelo pesquisador. Todos sentam-se em volta de uma mesa com bonecos e brinquedos, que so manipulados pelo investigador. Suponha que haja duas zebras na mesa (uma grande e uma pequena) e uma delas beliscada por um leo. O investigador pode proceder da seguinte forma:

    Investigador: Nessa estria, o leo est beliscando uma das zebras. Pergunte ao fantoche qual delas.

    Criana: Que zebra est sendo beliscada pelo leo? Fantoche: A pequena.

    Portanto, para que a criana produza uma sentena passiva, montado um contexto em ela tem de fazer uma pergunta para o fantoche sobre a histria encenada com os brinquedos. Uma vantagem da produo eliciada, que est ausente na produo espontnea, que o investigador pode controlar o significado que ele quer que seja associado sentena alvo. O significado controlado ao se apresentar um cenrio particular, encenado com brinquedos e bonecos.

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    Outra vantagem deste mtodo que o investigador pode evocar sentenas com estruturas sintticas complexas que ocorrem muito raramente na produo espontnea das crianas, como o caso de estruturas passivas. O contexto que somente apropriado para certas estruturas complexas pode ser muito difcil de encontrar em conversas cotidianas, mas pode ser feito mais natural nesses jogos e brincadeiras, como ilustrado acima. Portanto, ao apresentar situaes que so apropriadas somente para a construo que est sendo alvo de estudo, a tcnica de produo eliciada pode ajudar a descobrir toda a extenso do conhecimento gramatical das crianas. Este mtodo tambm til porque ele pode fornecer um grande nmero de dados da estrutura sendo investigada em uma nica sesso experimental. Assim sendo, um nmero suficiente de dados pode ser coletado em uma s sesso para se chegar a uma concluso sobre a gramtica da criana em um dado estgio de seu desenvolvimento. Isso no possvel com dados de produo espontnea, j que s vezes as crianas no produzem um nmero considervel de certas estruturas em uma nica sesso de gravao. Finalmente, uma das vantagens dos dados de produo (tanto espontnea como eliciada) que eles revelam a gramtica da criana sem a necessidade de se fazer inferncias a partir de respostas sim e no, como no caso de tarefas de julgamento, que sero discutidas a seguir. Dessa forma, esses dados podem ser vistos como refletindo mais diretamente a gramtica da criana, j que muito improvvel que uma criana coloque palavras juntas de uma forma particular acidentalmente (ao passo que dizer sim ou no numa tarefa de julgamento pode ser considerado acidental). Assim sendo, quando uma construo aparece sistematicamente na fala de uma criana, podemos inferir que tal construo gerada pela gramtica da criana e no fruto do acaso.

    Tarefa de Julgamento de Valor de Verdade

    A tarefa de julgamento de valor de verdade (JVV), tal como elaborada em Crain e McKee (1985), investiga o conhecimento das crianas acerca de uma dada construo lingstica por meio de seu julgamento sobre o valor de verdade de sentenas enunciadas por um fantoche. Por exemplo, Crain e McKee queriam investigar se as crianas sabiam as restries sobre o uso de pronomes nas sentenas. Para tanto, esses autores testaram as crianas da seguinte maneira. Dois investigadores ficaram na sala com a criana, um manipulando um fantoche e o outro encenando histrias curtas para a criana e o fantoche. Ao final da histria, o fantoche dizia o que ele achava que tinha acontecido na histria e a

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    criana julgava o que o fantoche havia dito como verdadeiro ou falso. A criana era instruda a dar para o fantoche sua comida preferida (uma barra de chocolate de borracha) caso ele tivesse dito o que realmente aconteceu na histria ou a dar para ele comer algo que ele no gostava (um pedao de pneu) caso ele tivesse ficado distrado e tivesse dito algo que no aconteceu na histria. O experimento era conduzido da maneira descrita abaixo (retirado de Crain e McKee (1985) e traduzido para o PB):

    Investigador: Nessa histria, ns temos o Smurf e o Gargamel. O Gargamel diz que no vai comer um hambrguer porque ele odeia hambrguers, mas o Smurf adora hambrguer e come um enquanto est num cercadinho.

    Fantoche: Ele comeu o hambrguer quando o Smurf estava no cercadinho. Criana: Chocolate/pneu

    Para o adulto, a sentena enunciada pelo fantoche s pode significar que algum que no o Smurf comeu o hambrguer. Isto reflete uma restrio encontrada nas lnguas naturais: em algumas estruturas sintticas, o pronome no pode vir antes do elemento que lhe d referncia. Isto o que acontece na sentena acima, e Crain e McKee queriam checar se as

    crianas saberiam tal restrio. O raciocnio de Crain e McKee era o seguinte. Se as crianas sabem tal restrio, elas

    no interpretaro o pronome e o nome Smurf como sendo co-referentes na sentena acima, uma vez que isso a violaria. A nica interpretao possvel para essa sentena para o adulto tem o pronome como referindo a um outro indivduo que no Smurf. Gargamel, sendo o outro personagem da histria, o referente mais acessvel. Se o pronome se referir a Gargamel, a sentena falsa, porque, de acordo com a histria contada, Gargamel no comeu o hambrguer, apenas o Smurf comeu. Portanto, na interpretao do adulto, a sentena falsa. Se a criana disser que a sentena verdadeira, saberemos que ela atribuiu ao pronome a interpretao de Smurf, violando a restrio em questo.

    No estudo de Crain e McKee, as crianas deram o pneu para o fantoche (ou seja, corretamente rejeitaram a sentena acima) 88% das vezes. Isto indica que elas sabem da restrio. Por outro lado, na sentena abaixo, o pronome e o nome moranguinho podem ser co-referentes para o adulto, apesar de o pronome anteceder o nome. Esses casos so corretamente aceitos pelas crianas 73% das vezes:

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    Fantoche: When she was outside playing, Strawberry Shortcake ate an ice-cream cone. Quando ela estava l fora brincando, moranguinho comeu um sorvete.

    Essa sentena ilustra o fenmeno de backward anaphora, em que o pronome she est linearmente frente do nome Strawberry shortcake com o qual co-referente. Esta sentena bem formada em ingls (e sua contraparte em PB tambm), ao contrrio da primeira. As crianas mostraram que sabem a diferena entre elas, j que aceitaram esta segunda a maioria das vezes e rejeitaram a primeira a maioria das vezes.

    Uma das grandes vantagens deste tipo de mtodo que a tarefa da criana bastante simples, tendo apenas que alimentar o fantoche com o chocolate ou o pedao de pneu. Por isso, esse mtodo pode ser usado com crianas bem novas, a partir de 3 anos de idade. Alm disso, pode-se testar estruturas complexas que podem no aparecer facilmente na produo espontnea das crianas, como o caso de backward anaphora acima testada por Crain e McKee.

    Tarefa de Julgamento de Gramaticalidade

    A tarefa de julgamento de gramaticalidade (JG) tambm apresenta como grande vantagem o fato de a tarefa da criana ser bastante simples, tendo apenas que alimentar o fantoche sua comida preferida ou menos preferida, de acordo com o que ele diz. Esta metodologia tambm permite variaes no modo de ser empregada e os detalhes expostos a seguir foram baseados em Hiramatsu e Lillo-Martin (1998).

    O fantoche apresentado como algum que veio da lua (ou de algum outro lugar) e fala a lngua de l. Diz-se para a criana que ele est aprendendo a lngua da criana e por isso pode fazer alguns erros. A criana convidada a ajudar o fantoche a aprender a sua lngua. Geralmente, as crianas ficam entusiasmadas e aceitam ajudar o fantoche. Ensina-se criana ento que, se o fantoche diz algo errado, a criana deve inform-lo que ele disse algo errado, dando-lhe uma coisa ruim para comer, como um pedao de pneu. Se ele diz algo certo, a criana deve dar-lhe algo gostoso, como chocolate, como prmio. (Em uma variao desta metodologia, a criana deve dar ao fantoche uma fruta quando ele diz algo errado, para que ele fique mais inteligente).

    Antes de se testar as sentenas de interesse, a criana passa por um perodo de treinamento, em que ensinado criana a prestar ateno forma das sentenas e no em

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    seu valor de verdade (tudo o que o fantoche diz verdade, ele apenas se confunde em como diz-lo).

    A diferena entre a TJVV e a TJG que na TJG a criana julga se o que o fantoche disse gramatical ou no, ao passo que na TJVV o que a criana julga se o que o fantoche disse aconteceu ou no na histria que ela viu encenada a sua frente. Na TJG, a histria que encenada para a criana serve como contexto para o significado que se quer dar sentena que ser julgada. Um exemplo dado a seguir:

    Investigador: Nessa histria, temos um cachorro que vai brincar no mato e acaba por pegar uma pulga em seu corpo e agora ele est com coceira (mostra o cachorro se coando). Fantoche, me diga uma coisa que aconteceu nessa histria.

    Fantoche: O cachorro coou ele.

    Criana: Chocolate/ pneu.

    No exemplo acima, quer-se saber se a criana sabe a restrio sobre o uso de pronomes em portugus brasileiro. No contexto apresentado acima, em que o cachorro se coa, a sentena dita pelo fantoche est incorreta: ela poderia apenas refletir o caso em que o cachorro coa outro indivduo e no a si mesmo. Se a criana der um chocolate para o fantoche, o investigador interpretar tal resposta como significando que a criana no sabe de tal restrio do PB. Se a criana der um pneu para o fantoche, isso indicar que a criana sabe sobre tal restrio.

    Uma das desvantagens deste mtodo que, por exigir que as crianas prestem ateno forma das sentenas, ele no pode ser testado com crianas muito novas, j que elas ainda no so capazes de dizer o que certo ou errado. Portanto, apenas crianas acima de 3 anos e meio ou 4 anos podem ser testadas com segurana. Alm disso, esse mtodo necessita de um certo tempo de treinamento, j que as crianas demoram um tempo para comearem a prestar ateno na forma das sentenas, j que sua primeira tendncia em prestar ateno a seu valor de verdade.

    Outro ponto a ser considerado que algumas crianas podem perder a concentrao rapidamente, depois que algumas sentenas foram testadas e o investigador tem de estar atento para isso. Se ele perceber que a criana est cansada ou sem concentrao, ele deve interromper a sesso e inici-la de novo num outro dia. Outra desvantagem que alguns sujeitos apresentam uma tendncia a responder sim quando no sabem a resposta ou quando esto confusos, um fenmeno conhecido como yes bias. Isso pode ser evitado na

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    sesso de treinamento e deve ser checado durante as sesses atravs do uso de sentenas distratoras.

    Apesar destas desvantagens, tal mtodo tem a vantagem de que podemos testar qualquer fenmeno lingstico e checar quais estruturas so gramaticais para as crianas e

    compar-las com o que gramatical para o adulto. Da mesma maneira, podemos checar o que no gramatical para a criana e comparar com o que gramatical para o adulto, algo que no possvel com outros mtodos de investigao.

    5. Uma Teoria Inatista

    A teoria que iremos explorar a seguir vem das idias de Noam Chomsky, um professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Em um de seus primeiro livros, Aspects of the Theory of Syntax, de 1965, ele exps suas idias acerca do conhecimento lingstico inato e at hoje pesquisadores do mundo todo desenvolvem pesquisas lingsticas inspiradas nessa proposta inatista.

    A linguagem humana a que nos referiremos abaixo no um objeto concreto no mundo, mas algo que existe em nosso crebro. A tarefa do lingista descrever o que que os falantes de uma lngua sabem. Para tanto, o lingista tenta formular uma gramtica descritiva. Devemos diferenciar aqui o termo gramtica descritiva de gramtica prescritiva. A gramtica prescritiva um livro com regras de como devemos falar, como por exemplo, use prclise obrigatoriamente quando houver uma palavra negativa antes do verbo. J a gramtica descritiva (que a que nos interessa aqui) um conjunto de regras que caracterizam as sentenas da lngua que ns, como falantes, somos capazes de produzir e entender. Ou seja, a gramtica descritiva no julga o que os falantes dizem como certo ou errado: ela apenas descreve o conhecimento dos falantes.

    A ttulo de ilustrao, consideremos um exemplo desse conhecimento lingstico, retirado de Raposo (1992). Em portugus, o morfema se tem duas funes: de pronome anafrico reflexivo ou recproco (tomando sua referncia de outro nome presente na orao) e de pronome impessoal, significando algo como algum. Considere as sentenas abaixo que possuem a forma se (dados retirados de Raposo 1992: 41):

    (10) Nesta penitenciria, os presos agridem-se frequentemente. (11) Nesta penitenciria, agridem-se os presos frequentemente.

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    Em (10), o pronome se anafrico e ocupa a posio de objeto direto do verbo agredir. A sentena significa que os presos agridem uns aos outros frequentemente. J em (11), o pronome se impessoal e ocupa a posio de sujeito do verbo agredir. A sentena significa que algum agride os presos com freqncia. Se se pode significar algum, poderamos tentar atribuir este significado ao pronome em (10). Neste caso, (10) teria o seguinte significado: nesta penitenciria, os presos agridem algum frequentemente. No entanto, tal significado impossvel para a sentena (10) e qualquer falante nativo de portugus saber isso. O conhecimento que o falante de portugus tem que o se pode ter um significado impessoal somente quando este pronome est na posio de sujeito da sentena, mas no quando est na posio de objeto. Esta propriedade da gramtica interiorizada dos falantes de portugus no se desenvolve com base nos dados primrios que as crianas ouvem quando esto adquirindo a lngua. Mesmo que as crianas ouam sentenas com o pronome se impessoal, as sentenas ouvidas no vm com instrues de interpretao. Mais importante ainda ressaltar que nunca foi avisado s crianas que a interpretao impessoal no possvel para a posio de objeto. Se tal conhecimento no explicitamente dado, devemos concluir que a criana j possui esse conhecimento, que geneticamente determinado. Um outro exemplo sobre o conhecimento que a criana traz para a tarefa de aquisio de linguagem pode ser ilustrado ainda com o se. Quando temos o se anafrico, este pronome exige a presena na mesma orao de um nome do qual possa retirar seu valor referencial (o que chamamos de antecedente). Em (12) abaixo, se tem como antecedente o nome as atrizes (dados a seguir retirados de Raposo 1992: 44):

    (12) As atrizes insultaram-se.

    Essa sentena significa que as atrizes insultaram as atrizes. No entanto, nas sentenas

    abaixo, se no pode tomar as atrizes como seu antecedente:

    (13) As amigas das atrizes insultaram-se. (14) As atrizes disseram que as amigas se tinham insultado.

    (13) significa que as amigas das atrizes insultaram as amigas das atrizes. Em (14), temos o seguinte significado: as atrizes disseram que as amigas tinham insultado as amigas.

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    Podemos nos perguntar como que as crianas iro aprender essas distines sobre os valores referenciais possveis ou impossveis para se em sentenas como as acima. Mesmo

    quando ouvem sentenas do tipo das acima, a criana no instruda pelos pais sobre o que ela pode significar e o que no pode. No entanto, se perguntarmos a qualquer falante nativo de portugus, ele ter essas intuies sobre os possveis antecedentes. Temos que concluir ento que so os princpios inatos, geneticamente determinados, que informam a criana. Outro exemplo de conhecimento que no explicitamente ensinado s crianas o fenmeno de wanna contraction em ingls. Em alguns casos, possvel contrair o verbo want e o morfema to formando wanna, como mostrado abaixo (dados de Crain e Lillo-Martin (1999)):

    (15) Who did the coach want to shoot __ ? Quem o treinador queria atirar Em quem o treinador queria atirar?

    (16) Who did the coach wanna shoot __ ? Quem o treinador queria atirar Em quem o treinador queria atirar?

    As sentenas acima tm o mesmo significado. A diferena entre elas que em (16) h a contrao entre want e to, formando wanna. Baseada nesse paradigma, a criana poderia inferir que want e to podem sempre ser contrados para formar wanna. No entanto, este no o caso, como mostrado abaixo:

    (17) Who did the coach want __ to shoot the basketball? Quem o treinador quer arremessar a bola de basquete? Quem o treinador queria que arremessasse a bola de basquete?

    (18) * Who did the coach wanna shoot the basketball?

    O asterisco em frente sentena (18) indica que tal sentena no aceita pelos falantes. Isso se deve presena de wanna. A regra permite a contrao entre want e to quando a palavra interrogativa (quem) o objeto da sentena, mas no quando a palavra interrogativa o sujeito. Em (17),

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    quem o sujeito do verbo arremessar (podemos ver isso mais claramente quando colocamos quem no lugar em que interpretado: o treinador queria que quem arremessasse a bola de basquete?). Por outro lado, em (16), onde a contrao permitida, a palavra interrogativa o objeto: o treinador queria atirar em quem?. Podemos nos perguntar se a criana sabe desta regra do ingls. Um estudo foi conduzido nos Estados Unidos, pelos pesquisadores Stephen Crain e Rozalind Thornton, em que eles entrevistaram 21 crianas, todas entre 3 e 5 anos de idade (Thornton e Crain (1994)). O experimento consistia em eliciar sentenas com want e to e verificar em quais casos as

    crianas fariam a contrao e em quais casos elas no fariam. Ou seja, era um experimento de produo eliciada. Existiam dois contextos, um em que a contrao era lcita, como em (16) e uma em que a contrao era ilcita, como em (18). Os dilogos com as crianas eram feitos com dois pesquisadores: um conversava com a criana, contando histrias e intermediando sua conversa com um ratinho fantoche, manipulado pelo segundo experimentador. O fantoche era chamado de Ratty e era muito tmido para conversar com adultos, mas gostava de conversar com crianas. Por isso, o investigador, que queria fazer perguntas a Ratty, pedia para a criana fazer as perguntas. Alm do fantoche, o pesquisador tambm usava brinquedos na frente da criana para ilustrar as histrias. Uma das conversas ilustrada a seguir:

    (19) Experimentador: Ratty looks hungry. I bet he wants to eat something. Ask Ratty what he wants.

    O Ratty parece faminto. Eu acho que ele quer comer algo. Pergunte ao Ratty o que ele quer.

    Criana: What do you want to (wanna) eat? O que voc quer comer?

    Ratty: Some cheese would be good. Queijo seria bom.

    Assim, a funo do experimentador era fornecer oportunidades para a criana produzir sentenas com want e to, para depois verificar se ela fez a contrao. No caso acima, a contrao lcita, j que a palavra interrogativa o que objeto do verbo comer. Outro tipo de conversa tentava elicitar casos em que a contrao proibida para os adultos:

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    (20) Experimentador: There are three guys in this story: Cookie Monster, a dog and this baby. One of them gets to take a walk, one gets to take a nap and one gets to eat a cookie. And the rat gets to choose who does each thing. So, one gets to take a walk, right? Ask Ratty who he wants.

    Tem trs personagens nessa histria: o monstro dos biscoitos, um cachorro e esse beb. Um deles vai passear, um vai dormir e um vai comer um biscoito. E o rato vai escolher quem faz cada coisa. Ento, um deles vai passear, certo? Pergunte ao Ratty quem que ele quer.

    Criana: Who do you want to (*wanna) take a walk? Quem voc quer que v passear?

    Ratty: I want the dog to take a walk. Eu quero que o cachorro v passear.

    Neste caso, a contrao ilcita porque a palavra interrogativa quem o sujeito do verbo (voc quer que quem v passear?). Usando esta tcnica, eles entrevistaram 21 crianas. 19 crianas produziram perguntas completas (existia a possibilidade de se perguntar somente quem voc quer?, que seria uma pergunta incompleta). No caso em que a contrao em wanna era permitida, as crianas usaram a forma contrada em 59% das respostas. J quando a contrao era proibida, somente uma criana produziu perguntas usando a forma ilcita.

    Esses resultados indicam que crianas muito novas, com menos de 5 anos de idade, j sabem as restries no uso de wanna, apesar de no terem sido explicitamente ensinadas. Dado que as crianas adquirindo ingls nunca so formalmente ensinadas essas regras (mesmo os falantes adultos no esto conscientes de que tm esse conhecimento), podemos nos perguntar como que elas sabem quando podem fazer a contrao e quando no podem.

    Esta falta de instrues sobre propriedades das lnguas naturais tem sido observada por lingistas ao longo dos anos e os pesquisadores apontam para a disparidade entre o que os falantes sabem de sua lngua e o input que eles recebem quando esto adquirindo a lngua.

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    Dada a limitao da experincia da criana, os lingistas argumentam que deve haver algum conhecimento lingstico inato para dar conta do conhecimento final da gramtica a que o adulto chega. Esse argumento chamado de argumento da pobreza de estmulo.

    Dito de outra forma, podemos nos perguntar como somos capazes de produzir e entender um nmero infinito de sentenas de nossa lngua, quando o input que recebemos na aquisio era composto por um nmero finito de sentenas. Para explicar como chegamos ao estado final, proposto que parte do conhecimento lingstico geneticamente especificado.

    O conhecimento lingstico inato com o qual as crianas nascem chamado de Dispositivo de Aquisio de Linguagem - DAL, (em ingls, Language Acquisition Device, ou LAD). O DAL inclui princpios que so comuns a todas as lnguas humanas. Tais princpios so chamados de Gramtica Universal (GU). Em outras palavras, a GU caracterizada como a soma dos princpios lingsticos geneticamente determinados, especficos espcie humana e uniformes atravs da espcie.

    Uma vez que tais princpios so inatos, eles no tm que ser aprendidos. A GU se desenvolve na criana como um rgo biolgico. Como resultado desse desenvolvimento, temos a gramtica final, que o conhecimento lingstico do adulto. Nessa viso, a aquisio de linguagem consiste em aprender aquilo que varia de uma lngua para outra, como, por exemplo, as palavras.

    5.1 A Teoria de Princpios e Parmetros

    Nesta seo, discutiremos em mais detalhes como se d o processo de aquisio de linguagem. A teoria proposta por Chomsky (Chomsky (1981), (1986); Chomsky e Lasnik (1993)), chamada de Teoria de Princpios e Parmetros (TPP), prope que existe um estado inicial, chamado de S0, que comum a todas as crianas. Este estado inicial a Gramtica Universal (GU) que constituda por dois tipos de princpios abstratos: (a) os princpios rgidos, que so invariveis e (b) os princpios abertos, chamados de parmetros. Os primeiros representam as propriedades e as operaes que esto presentes nas gramticas de todas as lnguas naturais, e os ltimos apresentam opes de escolha, cujo valor deve ser fixado para cada lngua durante o processo de aquisio a partir da lngua que serviu de input para a criana. Assim sendo, os parmetros codificam as propriedades que variam de lngua para lngua. Podemos pensar nos parmetros como interruptores que devem ser ligados ou desligados baseado na experincia da criana. As propriedades paramtricas existem em nmero finito e sua fixao deve depender apenas de dados positivos e acessveis criana.

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    Como ilustrao da noo de parmetro, consideremos o Parmetro da Posio do Ncleo. Verbos e preposies so exemplos de ncleos. Tais elementos geralmente vm acompanhados de complementos como, por exemplo, comer o bolo, com as mos. O bolo e as mos so os complementos do verbo comer e da preposio com, respectivamente. Dependendo da lngua, os ncleos podem ficar direita ou esquerda de seus complementos. Em portugus, como os exemplos acima mostram, temos os ncleos com

    os complementos sua direita. No entanto, numa lngua como o japons, os complementos esto esquerda de seu ncleo, como os exemplos abaixo ilustram:

    (21) Portugus: O Joo [comeu] [o bolo].

    ncleo complemento Ordem: ncleo - complemento

    (22) Japons: Masashi-wa [keki-wo] [tabe-ta]. Masashi-TOP bolo- ACC comer-passado

    complemento ncleo

    O Masashi comeu o bolo. Ordem: complemento - ncleo

    Tal variao encontrada nas lnguas atribuda ao parmetro da posio do ncleo:

    (23) Parmetro da posio do ncleo: A lngua tem a ordem ncleo-complemento ou complemento-ncleo? Opes: (a) ncleo-complemento

    (b) complemento-ncleo

    A criana que for exposta ao japons marcar este parmetro com a opo (b). J a criana exposta ao portugus, marcar a opo (a). Como mencionado anteriormente, as crianas quase nunca produzem erros na ordem de palavras em sua lngua; tal fato se deve parcialmente fixao deste parmetro (para a produo de uma sentena completa na ordem

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    correta, outros parmetros tambm devem ser fixados, referentes posio do sujeito antes ou depois do verbo, por exemplo).

    Portanto, na TPP, a tarefa da criana adquirindo uma lngua consiste essencialmente em: (1) aprender as formas lexicais da lngua (i.e., as palavras); e (2) atribuir o valor que os parmetros da GU possuem nessa lngua. Com isso, a aquisio da gramtica de uma lngua se torna uma tarefa simples, o que est plenamente de acordo com a facilidade e rapidez com que a criana a domina.

    Chomsky (1987) analisa a TPP do ponto de vista da aquisio da linguagem mostrando que ela pode ter um grande poder explanatrio, ou seja, poder para explicar a aquisio da linguagem. Partindo do problema da pobreza de estmulo, o autor reafirma a hiptese do inatismo, considerando que existiria algum conhecimento subjacente anterior experincia e que faria parte da herana gentica do indivduo. O grande poder explanatrio da teoria seria que fenmenos gramaticais superficialmente no relacionados na lngua que est sendo adquirida poderiam ser dependentes da fixao de apenas um parmetro.

    Resumindo, a TPP estabelece que uma boa parte do conhecimento gramatical inato e os princpios no so aprendidos, podendo, no mximo, maturar. Os parmetros tambm j esto previstos, precisando apenas ser fixados a partir da experincia da criana com os dados lingsticos primrios.

    5.2 Teorias de Aquisio: Maturacionismo versus Continuismo

    No decorrer do processo de aquisio da linguagem, temos a passagem de um estgio inicial inato E0 (GU), comum a todas as crianas, para um estgio final Ef enriquecido pelos dados ambientais. Entre E0 e Ef existem estgios intermedirios, em que as crianas progridem na sua tarefa de adquirir uma lngua. No entanto, se a aquisio de linguagem uma tarefa simples, como prope a TPP, porque ento este processo no imediato? Ou seja, se para adquirir uma lngua basta que se oua um nmero limitado de sentenas do input e ir marcando os valores dos parmetros, a pergunta que surge ento : porque esta aquisio no instantnea? Chomsky (1986), por exemplo, se manifesta a esse respeito:

    We might further suggest, as an empirical hypothesis, that order of presentation of data is irrelevant, so that learning is as if it were instantaneous. (p.52)

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    (Poderamos sugerir, como uma hiptese emprica, que a ordem de apresentao dos dados irrelevante, tal que a aprendizagem como se fosse instantnea.)

    Poderamos esboar um esquema dessa idealizao da aquisio instantnea como a seguir (Atkinson (1992): 100):

    (24) Dados lingsticos

    primrios de L UG = princpios

    e parmetros

    no fixados

    Gramtica de L = princpios + parmetros

    fixados

    Ainda que esta "hiptese emprica" se mostre satisfatria para a teoria gramatical, dando conta da adequao explanatria, ao desprezar a dimenso temporal, a TPP deixa de responder a questes essenciais para uma teoria de aquisio relacionadas caracterizao precisa do processo de aquisio e seus eventuais estgios intermedirios. Essa questo, tambm chamada de problema do desenvolvimento (Clahsen (1992)), pode ser formulada da seguinte maneira: por que o curso do desenvolvimento lingstico toma a forma que ele realmente tem? Neste sentido, a TPP viu surgir algumas hipteses que se posicionaram diferentemente sobre essa questo, tentando explic-las.

    Trs hipteses so possveis: (a) a hiptese da aquisio instantnea, citada acima, (b) a hiptese maturacionista e (c) a hiptese continuista. Como mostrado anteriormente, a hiptese (a) no se prope a explicar os estgios intermedirios que esto sendo questionados, logo, restam (b) e (c) como possveis teorias da aquisio.

    De um lado, a hiptese maturacionista (HM) tem como idia fundamental que a GU sujeita a um processo maturacional determinado biologicamente, que faz os princpios emergirem numa ordem temporal especfica (Borer e Wexler (1987); Felix (1992)). Ou seja, no estgio inicial, a criana no tem acesso a todos os princpios da GU. Os princpios maturariam ao longo do tempo.

    Tal hiptese assume que a GU no o nico componente especfico da linguagem que controla o desenvolvimento lingstico, mas que, juntamente com a GU, existe um programa (ingl. schedule) maturacional inato que determina o que a criana far e em que perodo. Numa verso mais radical desta teoria, a HM assume que em cada estgio do desenvolvimento, a gramtica da criana ser restringida somente pelos princpios que j

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    emergiram, enquanto pode violar todos os princpios que no maturaram ainda. Assim, dentro dessa hiptese, o problema do desenvolvimento resolvido maximizando a programao gentica da criana.

    Por outro lado, a hiptese continuista (HC) (Clahsen (1992; Hyams (1986); Lopes (2000); Lust (1999); Pinker (1984); dentre outros) assume que os princpios da GU esto completamente disponveis e ativos desde o comeo do processo de aquisio e que a gramtica da criana restringida pela GU e no viola seus princpios em nenhum momento. Alm disso, a HC afirma que a GU exclusivamente responsvel por restringir os tipos de gramticas infantis intermedirias. O fato de a aquisio levar algum tempo para ser completada explicado propondo-se que o progresso no desenvolvimento essencialmente direcionado pelos dados (ingl. data-driven), ou seja, dirigido pela mudana de percepo da criana sobre a evidncia externa. Para os defensores da HC, o problema do desenvolvimento resolvido em termos da hiptese da aprendizagem lexical, isto , as mudanas que ocorrem na gramtica da criana so atribudas a aumentos no tamanho da memria e capacidades de processamento. Assim, os itens lexicais e suas propriedades (que a criana tem de aprender para uma lngua particular) induzem reestruturaes de sua gramtica. Dada essa hiptese da aprendizagem lexical, possvel que, enquanto todos os princpios da GU esto prontos para operar desde o comeo, alguns devam esperar a aquisio de certos desencadeadores lexicais antes que eles possam se tornar operativos.

    Neste texto, no defenderemos nenhuma das duas posies acima, j que aqui temos apenas o intuito de apresentar as diferentes teorias sobre o processo de aquisio da linguagem. Para discusses aprofundadas sobre este tema, referimos o leitor para as referncias supra citadas.

    Nas sees que se seguem, iremos discutir duas construes sintticas encontradas no portugus brasileiro e na lngua de sinais brasileira para ento analisarmos aspectos da aquisio dessas construes nas duas lnguas.

    6. Aquisio de Fenmenos Particulares em Portugus Brasileiro e Lngua de Sinais Brasileira

    Nesta seo, discutiremos aspectos da aquisio de dois fenmenos particulares: perguntas com elementos interrogativos (perguntas-QU) e sujeitos nulos. Atravs desta discusso, iremos reforar alguns conceitos apresentados anteriormente e analisaremos

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    criticamente a teoria de princpios e parmetros, ressaltando algumas de suas virtudes e apontando alguns de seus problemas. A seo 6.1 discute a aquisio de perguntas-QU e a seo 6.2 destinada discusso sobre sujeitos nulos.

    6.1 Perguntas-QU

    6.1.1 Portugus Brasileiro (PB)

    Como mencionado anteriormente, em PB adulto os elementos interrogativos, tambm chamados de elementos-QU, podem aparecer no incio da pergunta (25a) ou in situ (25b), ou seja, no local onde so interpretados3:

    (25) a. O que o Joo comprou __ ? b. O Joo comprou o qu?

    Quando o elemento-QU aparece no incio da sentena, dizemos que ele se moveu para aquela posio a partir da posio em que interpretado. Assim, em (25a) o que analisado como se movendo da posio aps o verbo (marcada com um trao) para o incio da sentena. J em (25b) no h movimento para o incio da sentena. Assumindo a Teoria de Princpios e Parmetros exposta anteriormente, consideremos que estas possibilidades so regidas pelo parmetro do movimento dos elementos-QU, ou parmetro do movimento-QU:

    (26) Parmetro do movimento-QU: A lngua tem movimento-QU? Opes: (a) movimento-QU obrigatrio

    (b) movimento-QU proibido (c) movimento-QU opcional

    3 Para esta exposio, no discutiremos perguntas com o elemento-QU seguido de que (com em (i)) ou

    que (ii): (i) O que que o Joo comprou? (ii) O que que o Joo comprou ? Para um estudo sobre a aquisio destas estruturas em PB, ver Grolla (2000). Tambm no sero discutidos casos de perguntas indiretas, como em (iii) abaixo: (iii) A Maria perguntou o que o Joo comprou.

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    Os dados em (25) mostram que o PB marca o valor (c) para este parmetro, j que os elementos-QU movem para o incio da sentena apenas opcionalmente. Exemplos de lnguas que marcam as opes (a) e (b) foram discutidos na seo 2, e so elas o ingls e o chins, respectivamente. Em ingls, os elementos-QU devem estar sempre posicionados no incio da sentena. Portanto, esta lngua marca o valor (a) para este parmetro. Como em chins os elementos-QU ficam in situ, esta lngua marca este parmetro no valor (b).

    6.1.2 Lngua de Sinais Brasileira (LSB)

    Na LSB adulta, os elementos-QU podem aparecer em diversas posies: no incio da pergunta (27a), in situ (27b), no final da sentena (27c) ou duplicado, ou seja, tanto no incio como no final da sentena (27d) (dados retirados de Lillo-Martin e Quadros (2006)) :

    (27) a. O QUE JOO COMPRAR O que o Joo comprou?

    b. JOO VER QUEM ONTEM O Joo viu quem ontem?

    c. JOO VER ONTEM QUEM Quem o Joo viu ontem?

    d. QUEM JOO VER QUEM QUEM o Joo viu?

    Considerando o parmetro do movimento-QU exposto anteriormente, podemos dizer que a LSB fixa o valor (c), j que o movimento-QU apenas opcionalmente realizado. Para explicar as opes em (27a) e (27c), podemos considerar que o movimento do elemento-QU pode ser para o incio ou final da pergunta. No entraremos na questo se essa opo codificada pela fixao de um outro parmetro4 ou se conseqncia de outras caractersticas

    4 Por exemplo, poderamos propor um parmetro da direcionalidade do movimento, em que as opes seriam:

    (a) elemento-QU se move sempre para o incio da sentena; (b) elemento-QU se move sempre para o final da sentena; (c) elemento-QU se move para o incio ou final da sentena.

    No discutiremos este aspecto no texto.

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    da lngua. A possibilidade de duplicao do elemento-QU tambm seria regulada por outros mecanismos que no o parmetro do movimento-QU. Deixaremos esta questo em aberto na discusso a seguir. Para discusses a esse respeito, ver Lillo-Martin e Quadros (2006). Resumindo, tanto o PB como a LSB marcam o valor (c) para o parmetro do movimento-QU. Portanto, para chegar gramtica do adulto, a criana exposta a essas lnguas dever marcar este valor do parmetro. Nas prximas sees, apresentaremos os dados de aquisio de crianas adquirindo essas duas lnguas e analisaremos como se d esta aquisio.

    6.1.3 A Aquisio de Perguntas-QU em PB

    Os dados discutidos abaixo sobre a aquisio de perguntas-QU em PB foram retirados de Grolla (2000). Eles so provenientes do Projeto sobre Aquisio de Linguagem do Departamento de Lingstica, IEL, UNICAMP. Eles totalizam 53 sesses de gravao, com 45 minutos cada, em udio-tape de N., que foi gravada em sua casa, em mdia uma vez por semana, entre os 2;0 e os 4;0 de idade, por pesquisadores da UNICAMP. Na maioria das sesses, a me estava presente, interagindo informalmente com a criana. Trata-se, portanto, de um estudo de natureza longitudinal, observacional, em que no se procurou dirigir o comportamento lingstico da criana para temas ou assuntos especficos. H uma grande produo de perguntas-QU em todo o corpus. Foram coletadas as sentenas que possuam um elemento-QU no incio da pergunta ou in situ, totalizando 229 perguntas. Os elementos QU encontrados foram: cad, que, por que, o que, quem, onde, como, que N (como em que roupa) e qual. A aquisio desses elementos interrogativos ocorreu gradualmente. Ao longo de quase um ano, a criana foi apresentando novos elementos QU em sua fala: aos 2;1 h a primeira ocorrncia e aos 2;11 ocorre o ltimo elemento QU novo nos dados. Desde as primeiras sesses, a criana produz perguntas-QU com o elemento-QU no incio da sentena. No entanto, a aquisio de perguntas QU s fica completa quando a criana produz perguntas com QU in situ. Essa aquisio extremamente tardia. A primeira ocorrncia de pergunta com QU in situ surge nos dados aos 3 trs anos e 9 meses de idade. Apresentamos abaixo alguns exemplos de produes da criana e um quadro contendo os nmeros sobre as produes de perguntas QU (quadro retirado de Grolla (2000:83)) (as idades em que as perguntas foram produzidas so fornecidas em parnteses, aps cada pergunta):

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    (28) QU no incio da pergunta: a. Cad abeya? (2;1) b. Que isso? (2;2) c. Por que voc vai durmi aqui? (2;6) d. Aonde a titia comprou? (2;6)

    (29) QU in situ: a. Criana: Que hora que ? Adulto: 14 minutos para as 17 horas. Criana: P aonde? (3;9)

    b. Eu quero brincar com qu? (3;11) c. Parece quem da novela? (3;11) d. Eu t brincando sabe com quem? (3;11)

    Tabela 1: Aquisio de perguntas QU em PB Tipo de pergunta Ocorrncias Porcentagem

    QU incio da sentena 221 96% QU in situ 08 4% Total 229 100%

    O baixssimo nmero de QU in situ nos dados de N. no algo peculiar a esta criana. Sikansi (1999) estuda a aquisio de perguntas por trs crianas adquirindo o PB como lngua materna. Nos enunciados dessas trs crianas, de um total de 209 perguntas produzidas, houve apenas duas manifestaes de QU in situ. Portanto, podemos dizer que as crianas adquirindo o PB usam muito marginalmente esta construo. Grolla (2000) compara as freqncias no tipo de construo utilizada pela criana e pelo adulto, usando os nmeros apresentados em Lopes-Rossi (1996) para os dados do adulto. Em dados coletados de produes na TV, o adulto usa em torno de 30% de perguntas com QU in situ e 30% de QU no incio da sentena, nmeros bem acima dos 4% encontrados para N. Esses nmeros indicam que a aquisio de perguntas QU em PB lenta e difere quantitativamente do que encontrado na gramtica de sua lngua alvo.

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    6.1.4 A Aquisio de Perguntas-QU em LSB

    Os dados sobre a aquisio de LSB foram retirados de Lillo-Martin e Quadros (2006). So dados de duas crianas surdas, ANA e LEO, que foram expostas LSB pelos seus pais, tambm surdos e usurios da LSB. As crianas foram observadas em sesses de gravao em vdeo, em que elas interagiam com os pais ou um pesquisador conhecido da criana, que era fluente em LSB. As sesses duravam entre 30 e 60 minutos e ocorriam semanalmente, quinzenalmente ou mensalmente. As crianas brincavam com brinquedos e livros enquanto eram gravadas. Tais dados so, portanto, dados de produo espontnea. ANA foi gravada entre 1;1 (um ano e um ms) e 3 anos de idade. LEO foi gravado entre 1;9 e 2;4 de idade. Lillo-Martin e Quadros observam que, desde as primeiras sesses de gravao, vrias produes de perguntas com QU in situ foram encontradas. Alguns exemplos so fornecidos abaixo:

    (30) a. FOGO ONDE (LEO; 1;9) b. IX O QUE (ANA; 1;10)

    As autoras tambm encontraram perguntas com os elementos QU em posio inicial desde as primeiras sesses:

    (31) a. ONDE FOGO (LEO; 1;9) b. ONDE CHAVE (LEO; 1;10) c. ONDE MEU AMIGO (LEO; 1;10) d. ONDE GARRAFA (ANA; 1;8) e. O QUE IX (ANA; 1;10)

    No entanto, as autoras no encontraram casos de QU duplicado ou QU em posio final nos dados de LEO e ANA. Os resultados da pesquisa das autoras esto resumidos na tabela abaixo, que indica a idade em que a primeira ocorrncia das respectivas construes foi registrada (dados da tabela 2 de Lillo-Martin e Quadros (2006)):

    Tabela 2: Aquisio de perguntasQU em LSB

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    QU-in situ QU inicial QU duplicado QU final ANA 1;10 1;8 Nenhum Nenhum

    LEO 1;9 1;10 Nenhum Nenhum

    6.1.5 Discusso

    A exposio acima mostra que a aquisio de perguntas-QU toma cursos diferentes nas duas lnguas estudadas. Em LSB, as crianas produzem perguntas com QU in situ e QU no incio da sentena desde as primeiras sesses de gravao, o que sugere que elas marcam corretamente o valor (c) do parmetro do movimento-QU desde cedo. Por outro lado, a aquisio de QU duplicado e QU final em LSB mais tardia. Como mencionamos anteriormente, a construo QU duplicado envolve outras propriedades da lngua que no discutiremos neste texto. A sua aquisio mais tardia pode estar relacionada a essas propriedades. Para uma anlise a este respeito, referimos o leitor a Lillo-Martin e Quadros (2006). O mesmo deve ser dito para o caso das perguntas com QU final que parece exigir que a criana marque, no s o valor do parmetro do movimento-QU, como tambm um segundo parmetro relacionado direo que tal movimento pode ter. Em PB, a criana parece marcar inicialmente o valor (a) do parmetro do movimento-QU, uma vez que, desde suas primeiras produes at os 3 anos e 9 meses de idade, todas as perguntas produzidas por ela possuem o elemento QU no incio da sentena. De alguma forma, nesta idade a criana muda sua percepo sobre o input e percebe que perguntas com QU in situ so possveis em sua lngua. Nesse momento, a criana efetua uma remarcao do parmetro do movimento QU para o valor de fato encontrado em sua lngua, o valor (c). A partir de ento, ela comea a produzir perguntas com o elemento QU in situ, juntamente com as perguntas que ela j produzia, com o elemento QU no incio da sentena. Esta anlise levanta duas questes:

    (i) se a remarcao de parmetros permitida, como prevenimos as crianas de entrarem num crculo vicioso infinito, marcando e remarcando parmetros sem nunca chegar ao estgio final? (ver Dresher (1999)).

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    (ii) porque a criana adquirindo PB no marca, desde o incio do processo de aquisio, o valor correto para este parmetro? Ou, dito de outra forma, porque a criana marca inicialmente o valor (a) e no o valor (c)?

    O problema levantado em (i) no ocorreria porque a remarcao sugerida acima obedece ao Princpio do Subconjunto, como proposto em Berwick (1985), OGrady (1997) e Wexler e Manzini (1987). Tal princpio apresentado abaixo:

    (33) Princpio do Subconjunto (OGrady 1997: 283): O dispositivo de aquisio seleciona o valor paramtrico mais restrito consistente com a experincia.

    Isto quer dizer que, o dispositivo de aquisio de linguagem (DAL), quando diante de dados ambguos (que podem servir para a marcao de mais de um valor de um parmetro), ir marcar aquele que gerar um menor nmero de sentenas. Os valores sugeridos acima para o parmetro do movimento QU considerados pela criana adquirindo o PB esto numa relao de subconjunto. Isto , o conjunto de sentenas gramaticais gerado com a marcao do valor (a) um subconjunto do conjunto de sentenas gramaticais gerado com o valor (c). Com o valor (a), apenas perguntas com QU no incio da sentena so permitidas. Com o valor (c), tanto perguntas com o QU no incio como perguntas com o QU in situ so gramaticais, como ilustrado abaixo:

    O princpio acima diz que o dispositivo de aquisio deve escolher o valor mais restrito do parmetro e isto o que a criana adquirindo o PB faz. No entanto, para uma criana adquirindo uma lngua que tenha o valor menos restrito, essencial que a remarcao

    (c) Perguntas com QU no incio + perguntas com QU in situ

    (a) Perguntas com QU no incio

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    de parmetros seja possvel. Caso contrrio, a criana nunca adquiriria completamente a sua lngua. Isto exatamente o que observamos na aquisio de perguntas QU em PB. Aps a marcao inicial do valor mais restrito, a criana muda sua percepo acerca do input e reanalisa esta marcao inicial, remarcando o valor do parmetro para o valor menos restrito. Isto responde pergunta em (ii). Deste modo, o princpio do subconjunto exige a remarcao de parmetros quando a lngua que a criana est adquirindo corresponder a um valor menos restrito do parmetro. Isto no permitir o crculo vicioso imaginado por Dresher, uma vez que apenas valores gerando gramticas menos restritivas podem ser remarcados, o que no permitir outras remarcaes no caso analisado de perguntas QU. Concluindo, a aquisio de perguntas-QU em PB e na LSB percorrem caminhos distintos: enquanto na LSB a criana rapidamente fixa o parmetro do movimento-QU no valor correspondente ao de sua lngua-alvo, em PB a criana leva um tempo maior para fixar o valor corretamente. O aparato terico fornecido pela teoria de princpios e parmetros nos d condies de explicar o comportamento da criana adquirindo PB: diante de dados ambguos (que podem servir para fixao de mais de um valor do parmetro), a criana marca inicialmente o valor mais restrito (princpio do subconjunto). Somente depois de um tempo maior de exposio a dados que indiquem que a marcao menos restrita a correta, a criana remarca o parmetro.

    6.2 Sujeitos Nulos

    6.2.1 O Parmetro do Sujeito Nulo

    Como exposto anteriormente, os parmetros especificam as propriedades que variam de uma lngua para outra, como a posio dos elementos-QU numa pergunta. Um outro exemplo de propriedade que varia nas lnguas naturais a possibilidade de sujeitos nulos. Em algumas lnguas, como o italiano, o sujeito de uma sentena no precisa estar abertamente expresso. J em outras lnguas, como o ingls, toda sentena deve ter um sujeito expresso abertamente. Dito de outra forma, em italiano, o sujeito de uma sentena no precisa ser realizado foneticamente; em ingls, o sujeito deve ser realizado foneticamente5:

    5 Nos exemplos fornecidos a seguir, um trao __ indica a posio do sujeito quando este no realizado

    foneticamente.

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    (34) Italiano (dados de Guasti (2002): 153): a. __ Vedo un aereo.

    vejo um avio (Eu) vejo um avio.

    b. Chi __ hai visto? quem tem visto

    Quem (voc) viu? c. Io ho visto un aereo, lei una nave.

    eu tenho visto um avio, ela um navio

    Eu vi um avio, ela, um navio.

    (35) Ingls a. He thinks that he is smart.

    ele acha que ele inteligente

    Ele acha que inteligente.

    b. What have you seen? o que tem voc visto

    O que voc viu? c. It is raining.

    ele est chovendo Est chovendo.

    Apesar de o sujeito no estar expresso abertamente, nas sentenas em italiano ele est implcito. A concordncia de nmero e pessoa presente no verbo indica o sujeito. Notemos ainda que sujeitos pronominais expressos abertamente no so proibidos em italiano. Como o exemplo (34c) mostra, eles so permitidos. No entanto, tais sujeitos, quando usados, expressam contraste. De modo geral, pronomes abertos envolvem algum tipo de nfase. Por outro lado, em ingls, sujeitos nulos no so possveis. Mesmo em casos como (35c), a sentena deve possuir um sujeito realizado, chamado de sujeito expletivo. Para dar conta desta variao lingstica, foi proposto o parmetro do sujeito nulo:

    (36) Parmetro do sujeito nulo: Os sujeitos podem ser nulos foneticamente? Opes: (a) Sim (b) No

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    Notemos que os valores acima esto numa relao de subconjunto, j que o conjunto de sentenas gramaticais gerado com a marcao do valor (b) um subconjunto do conjunto de sentenas gramaticais gerado com o valor (a). Com o valor (b), apenas sentenas com sujeitos abertos so permitidas. Com o valor (a), tanto sentenas com sujeito aberto como sentenas com o sujeito nulo so gramaticais. Isto ilustrado na figura abaixo:

    De acordo com o princpio do subconjunto exposto na seo anterior, podemos fazer previses sobre a aquisio de sujeitos nulos nas lnguas. Inicialmente, as crianas devem marcar o parmetro no valor mais restrito, ou seja, no valor (b). Assim sendo, as produes iniciais das crianas devem sempre ter sujeitos realizados foneticamente, no importando qual lngua est sendo adquirida. As crianas adquirindo lnguas em que esta j a marcao do adulto no teriam que fazer nada mais. Por exemplo, crianas adquirindo o ingls no teriam que mudar esta marcao. J as crianas adquirindo lnguas como o italiano teriam que mudar esta marcao inicial a partir de sua experincia. Ou seja, quando ouvissem sentenas com o sujeito nulo em seu input, elas perceberiam que a marcao inicial est incorreta e mudariam ento para o valor (a). A partir da, elas comeariam a produzir sentenas com sujeitos nulos. Estas previses, no entanto, no so confirmadas por dados de aquisio coletados para vrias lnguas. Crianas adquirindo lnguas de sujeito nulo, como italiano e portugus europeu, produzem sujeitos nulos desde cedo (ver, dentre outros, Faria (1993); Guasti (1996, 2000); Rizzi (1994)). Faria (1993), por exemplo, reporta que a omisso de sujeitos em portugus europeu infantil de 80%. Isto por si s no seria problemtico, j que poderamos supor que o estgio com a marcao inicial (em que somente sujeitos abertos so permitidos) rapidamente superado e que a criana remarca o parmetro muito cedo.

    (a) sujeitos abertos + sujeitos nulos

    (b) sujeitos abertos

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    No entanto, um outro problema para esta hiptese que crianas adquirindo lnguas em que sujeitos nulos no so permitidos (como ingls, dinamarqus, francs, holands e alemo) opcionalmente omitem sujeitos desde muito cedo. Num estudo de Hyams e Wexler (1993), a taxa de omisso do sujeito no ingls infantil de cerca de 50%. Exemplos de sentenas infantis deste estgio (que no so gramaticais para o adulto) so fornecidos abaixo:

    (37) a. Se, blomster __ har. (Dinamarqus Jens, 2;2) olha flores tem/tenho Olha, (eu/voc/ela/ns) tem/temos flores. b. __ tickles me. (Ingls Adam, 3;6) belisca me (Ele) me belisca. c. __ mange du pain. (Francs Grgoire, 2;1) come-3sg do po (Ele) come um pouco de po.

    O princpio do subconjunto no prev que crianas adquirindo lnguas com a marcao mais restrita produzam sentenas com sujeitos nulos, j que isto exigiria a marcao menos restrita do parmetro. Como podemos explicar este fato? Uma sugesto foi apresentada em Hyams (1986). Esta autora prope que os parmetros na Gramtica Universal (GU) j vm com um valor marcado inicialmente (um valor default) e que a criana remarca ou no este parmetro baseada em sua experincia lingstica. Para o parmetro do sujeito nulo, o valor marcado inicialmente o positivo (a). Para as crianas adquirindo lnguas como o italiano, nada teria que ser feito j que a marcao inicial corresponde marcao na lngua adulta. Mas as crianas adquirindo ingls, aps um perodo com esta marcao, perceberiam a discrepncia, e mudariam para o valor negativo (b). As sentenas com sujeitos nulos produzidas por estas crianas corresponderiam ao estgio com a marcao inicial, disponibilizada pela GU. Ou seja, a proposta de Hyams prev que o sujeito nulo do ingls infantil tem as mesmas propriedades do sujeito nulo do italiano adulto e infantil, j que todos eles so fruto da mesma marcao positiva do parmetro.

    Esta proposta foi extremamente bem recebida quando surgiu, pois ela trazia a aquisio de linguagem para o domnio da teoria de princpios e parmetros e possibilitava a

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    formulao de previses precisas sobre as propriedades dos sujeitos nulos. No entanto, durante a dcada de 90, vrios estudos questionaram a adequao desta proposta baseados em novas descobertas sobre o sujeito nulo infantil (ver Valian (1990)). Um primeiro problema para Hyams que o sujeito nulo encontrado na fala de crianas adquirindo o ingls tem propriedades distintas dos sujeitos nulos encontrados em lnguas adultas como o italiano. Foi descoberto que sujeitos nulos infantis so impossveis ou muito infreqentes nos seguintes contextos:

    (38) a. Perguntas com um elemento QU no incio da sentena; b. Oraes subordinadas; c. Oraes matrizes com um elemento, que no o sujeito, no incio da sentena

    (como, por exemplo, tpicos: o Joo, eu vi ele ontem).

    No entanto, sujeitos nulos em lnguas como o italiano adulto so possveis nestes contextos (exemplos retirados de Guasti (2002): 159):

    (39) Pergunta QU: Cosa __ hai detto? O que tem dito O que (voc) disse?

    (40) Orao subordinada: Gianni ha detto che __ verr. Joo tem dito que vir O Joo disse que (ele) vir.

    (41) Matriz com um elemento topicalizado: Ieri ho parlato a Carlo. Ontem __ tenho falado com Carlo Ontem, (eu) falei com o Carlo.

    Alm disso, as crianas adquirindo italiano produzem sujeitos nulos nos contextos acima.


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