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Concurso no pode questionar vida financeira de candidato

Salvar19 comentriosImprimirReportarPublicado porVitor Guglinski-1 dia atrs42Em tempos nos quais os concursos pblicos notoriamente vm se tornando cada vez mais objeto de aspirao de considervel parcela dos cidados brasileiros, com certa freqncia que se presencia uma infinidade de pessoas discutindo sobre a legitimidade de se eliminar candidatos em concurso pblico, em razo de os mesmos estarem inscritos em cadastros restritivos de crdito e similares.

Discutindo a questo com colegas da rea jurdica, surpreendentemente alguns me apresentaram entendimento no sentido da possibilidade de se utilizar tal critrio na fase do concurso destinada ao exame psicotcnico, onde se afere a capacidade psicolgica do candidato para o desempenho da funo e outros como critrio a ser utilizado na investigao de vida pregressa.

Decidi ento estudar o assunto, a fim de analisar as implicaes jurdicas envolvendo o tema, sendo que da pesquisa extra alguns fundamentos jurdicos, os quais permitem concluir que tal ato por parte do Poder Pblico, se praticado, se encontrar totalmente divorciado das diretrizes traadas pelo Estado Democrtico de Direito.

Recorrendo s bases constitucionais pertinentes ao tema, dispe o art.37, incisosIeII, daConstituio Federalde 1988,in verbis:

Art. 37. A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte: (Redao dada pela Emenda Constitucional n 19, de 1998)

I os cargos, empregos e funes pblicas so acessveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei; (Redao dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

II a investidura em cargo ou emprego pblico depende de aprovao prvia em concurso pblico de provas ou de provas e ttulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeaes para cargo em comisso declarado em lei de livre nomeao e exonerao; (Redao dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)

Da leitura do dispositivo e seus incisos, verifica-se que aCarta Magnaconferiu lei regular o acesso aos cargos e empregos pblicos. Coube Lei.8112/90 disciplinar oRegime Jurdico dos Servidores Publicos Civis da Unio, das autarquias e das fundaes pblicas federais, sendo que os requisitos bsicos para a investidura em cargo pblico esto dispostos no artigo5, e incisos, do diploma supra citado, o qual passo a transcrever:

Art. 5 So requisitos bsicos para investidura em cargo pblico:

I a nacionalidade brasileira;

II o gozo dos direitos polticos;

III a quitao com as obrigaes militares e eleitorais;

IV o nvel de escolaridade exigido para o exerccio do cargo;

V a idade mnima de dezoito anos;

VI aptido fsica e mental.

Analisando as exigncias legais acima, percebe-se que o legislador estabeleceu em lei critrios objetivos para o ingresso no funcionalismo pblico, inclusive em relao a outros requisitos por ventura exigidos em razo do cargo pretendido, o que ficou reservado ao disciplinado pelo 1 do aludido artigo, o qual prev que As atribuies do cargo podem justificar a exigncia de outros requisitos estabelecidos em lei.

Registre-se que um dos traos marcantes dos concursos pblicos o zelo pela igualdade entre os participantes do certame, sendo que somente a lei pode estabelecer restries de acesso a determinados cargos, e s nos casos onde determinadas caractersticas inerentes ao candidato forem incompatveis com a natureza da funo a ser desempenhada. Tal decorre do princpio da isonomia, o qual j se faz presente no artigo3,IV, daConstituio, consignando que um dos objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil a promoo do bem de todos, vedando quaisquer formas de discriminao (grifei). Nesse sentido, Celso Antnio Bandeira de Mello nos brinda com seu costumeiro brilhantismo:

Os concursos pblicos devem dispensar tratamento impessoal e igualitrio aos interessados. Sem isto ficariam fraudadas suas finalidades. Logo, so invlidas disposies capazes de desvirtuar a objetividade ou o controle destes certames. o que, injuridicamente, tem ocorrido com a introduo de exames psicotcnicos destinados a excluir liminarmente candidatos que no se enquadrem em um pretenso perfil psicolgico, decidido pelos promotores do certame como sendo o adequado para os futuros ocupantes do cargo ou emprego.

Exames psicolgicos s podem ser feitos como meros exames de sade, na qual se inclui a higidez mental dos candidatos ou, no mximo e ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos, para identificar e inabilitar pessoas cujas caractersticas psicolgicas revelem traos de personalidade incompatveis com o desempenho de determinadas funes (In Curso de Direito Administrativo, 11 ed., So Paulo: Malheiros, 1999, pgs. 194 195).

Assim sendo, encontramos um dos fundamentos jurdicos a coibir tal prtica por parte do Poder Pblico, na medida em que se perquirir a idoneidade financeira de outrem, ao argumento de que um indivduo que deve a outro no psicologicamente apto a desempenhar suas funes em cargo ou emprego pblico, extrapola a rbita do interesse pblico e foge aos critrios objetivos de avaliao do candidato.

Da mesma forma no cabvel a utilizao de informaes ligadas vida financeira do indivduo na investigao de sua vida pregressa, uma vez que o que interessa ao Poder Pblico so as quitaes do indivduo perante o Estado, ou seja, sua vida pblica. Tanto verdade que da leitura dos editais possvel perceber, nesse particular, que as exigncias neles insculpidas visam colher informaes relativas ao comportamento do candidato perante a sociedade, isto , investigar se aquele se conduz consoante o mnimo tico exigido pelo Direito, necessrio ao convvio social sadio, valendo lembrar que um dos princpios reitores do concurso pblico o da vinculao ao edital.

Mesmo que o instrumento convocatrio estabelea tal critrio, certamente poder ser impugnado, eis que estar eivado de inconstitucionalidade. E mais: a autoridade responsvel pelo certame indubitavelmente poder ser paciente em mandado de segurana, na medida em que, preenchidos os requisitos legais para a investidura em cargo ou emprego pblico, em caso de se iniciar as nomeaes, nasce o direito lquido e certo do candidato a ser nomeado, uma vez que estamos diante de ato vinculado da administrao.

Diante de tais consideraes, passemos agora a analisar a natureza jurdica dos interesses envolvidos no presente debate.

No que diz respeito aos cadastros restritivos de crdito, imperioso registrar que estes so destinados a regular o fornecimento de crdito ao consumidor no mercado de consumo. Foi o meio encontrado pelos fornecedores de se protegerem dos consumidores inadimplentes, a fim de evitarem possveis prejuzos sua atividade empresarial. As relaes de consumo, consoante disposies doCdigo de Proteo e Defesa do Consumidor, so aquelas travadas entre consumidor e fornecedor, sendo de suma importncia frisar, para fins de inteleco do proposto neste texto, que so relaes estabelecidas entre particulares. Portanto, relaes de direito privado, onde a interveno estatal somente admitida naqueles casos excepcionais onde a vulnerabilidade do consumidor perante o fornecedor que age abusivamente reclama a tutela do Estado.

Posto isto, conclui-se ento que as informaes contidas nos cadastros de proteo ao crdito servem apenas como meio de consulta por parte das empresas associadas, objetivando unicamente resguardar seus interesses empresariais. Inexiste interesse pblico a ser tutelado com a criao daqueles cadastros, sob pena de invaso da vida privada do indivduo. A esse respeito, Jos Afonso da Silva discorre sobre a vida privada como sendo integrante da esfera ntima da pessoa, seu modo de ser e viver, partindo da constatao de que a vida das pessoas compreende dois aspectos: um voltado para o exterior e outro para o interior, sendo que,

a vida exterior, que envolve a pessoa nas relaes sociais e nas atividades pblicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgaes de terceiros, porque pblica. A vida interior, que se debrua sobre a mesma pessoa, sobre os membros de sua famlia, sobre seus amigos, a que integra o conceito de vida privada, inviolvel nos termos da Constituio (In Curso de Direito Constitucional Positivo, 14 ed., So Paulo: Malheiros, pg. 204).

Outro aspecto importante sobre o qual se deve ponderar diz respeito abusividade dispensada na utilizao dos cadastros de proteo ao crdito. O cotidiano forense permite vislumbrar diria e freqentemente demandas consumeristas onde em muitos casos o consumidor se encontra negativado indevidamente. Portanto, nem sempre as informaes constantes dos bancos de dados dessa natureza so confiveis, o que pode levar o Poder Pblico a cometer uma injustia sem tamanho ao eliminar dos concursos pblicos candidatos cujos nomes constam daqueles.

Por fim, diante dos fundamentos alinhados, conclui-se que a investigao da vida financeira dos candidatos a cargos e empregos pblicos irrelevante e ilegtima por parte do Poder Pblico, porquanto as respectivas informaes dizem respeito vida privada do indivduo, afigurando-se, portanto, critrio subjetivo de avaliao, enquanto a ordem pblica reclama um comportamento objetivo por parte de cada membro da sociedade, isto , sua conduta conforme as exigncias inerentes coletividade.

Ningum pior que outrem por estar em dbito junto a particulares, ressaltando, ainda, que grande parcela da nossa populao enfrenta dificuldades financeiras, at mesmo em razo do abuso do poder econmico das grandes corporaes, sendo fato notrio que o prprio Estado assegura proteo quelas, em detrimento dos direitos e garantias individuais elencados naConstituio Federal.

Perquirir acerca da vida privada quando somente admissvel a verificao da vida pblica nada menos do que garantir a desigualdade perante a lei.

Fonte:Consultor Jurdico

Vitor GuglinskiAdvogado. Colaborador do site JusBrasil/Atualidades do Direito.

Advogado. Ps-graduado com especializao em Direito do Consumidor. Membro correspondente do Instituto Brasileiro de Poltica e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurdico da 2 Vara Cvel de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais peridicos jurdicos especializados do pas.

Fonte: http://vitorgug.jusbrasil.com.br/noticias/161698758/concurso-nao-pode-questionar-vida-financeira-de-candidato?utm_campaign=newsletter-daily_20150122_633&utm_medium=email&utm_source=newsletterData: 22/01/2015


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