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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALICENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPSCURSO DE DIREITO

CIDADANIA POLÍTICA NO BRASIL

MARCOS ORÉLIO DE ANDRADE

Itajaí (SC), novembro de 2009.

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALICENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPSCURSO DE DIREITO

CIDADANIA POLÍTICA NO BRASIL

MARCOS ORÉLIO DE ANDRADE

Monografia submetida à Universidade doVale do Itajaí – UNIVALI, como requisitoparcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito.

Orientador: Professora Doutora Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori

[Itajaí (SC), novembro de 2009.

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AGRADECIMENTO

Agradeço a minha família por ter me oportunizado

esta conquista em minha vida.

Agradeço a todos os Professores que de alguma

forma contribuíram para a minha formação

acadêmica.

Agradeço a minha orientadora, Professora Doutora

Daniela M. L. Cademartori, por todo tempo

despendido em função deste trabalho acadêmico,

além as preciosas recomendações.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho acadêmico aos meus pais, os

quais contribuíram, sobremaneira, para minha

educação e caráter.

Dedico ainda, à minha companheira Ariane Regina

Cristofolini, pela paciência e tempo a mim dedicados

durante este período.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientadora de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

[Itajaí (SC), novembro de2009

Marcos Orélio de AndradeGraduando

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Marcos Orélio de Andrade, sob o título

Cidadania Política no Brasil, foi submetida em 19 novembro de 2009 à banca

examinadora composta pelos seguintes professores: Professora Doutora Daniela M.

L. de Cademartori e Professor Msc. José Everton da Silva, e aprovado com a nota.

[Itajaí (SC), novembro de 2009

Professora Doutora Daniela Mesquita Leutchuk deCademartori

Orientadora e Presidente da Banca

Msc. Antonio Augusto LapaCoordenação da Monografia

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SUMÁRIO

RESUMO ........................................................................................ VIII

INTRODUÇÃO ....................................................................................1

CAPÍTULO 1 .......................................................................................3

A CIDADANIA: CONCEITO E SUA CONCEPÇÃO HISTÓRICA........3

1.1 ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE A CIDADANIA...................................... 31.2 DADOS HISTÓRICOS DO PROCESSO DE CONQUISTA DA CIDADANIA.. 61.2.1 A CIDADANIA NA GRÉCIA E EM ROMA ................................................................ 61.2.2 CIDADANIA NAS IDADES MÉDIA, MODERNA E CONTEMPORÂNEA ......................... 9

CAPÍTULO 2 .....................................................................................18

A “PRÉ”- HISTÓRIA DA CIDADANIA NO BRASIL .........................18

2.1 A CIDADANIA EM UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA.................................. 182.2 A CIDADANIA POLÍTICA NO IMPÉRIO: UM ENSAIO DE PARTICIPAÇÃOPOLÍTICA............................................................................................................. 202.3 A LUTA PELA AMPLIAÇÃO DO SUFRÁGIO............................................... 232.3.1 CORONELISMO OU PREDOMÍNIO DO PODER PRIVADO ....................................... 232.3.1.1 CORONELISMO X CLIENTELISMO – MANDONISMO E PATERNALISMO .........................33

CAPÍTULO 3 .....................................................................................37

A CIDADANIA BRASILEIRA ATURAL: DA REVOLUÇÃO DE 30 ÀCONSTITUIÇÃO DE 1988 ................................................................37

3.1 DA CIDADANIA E REVOLUÇÃO DE 30 ....................................................... 363.1.1 O INÍCIO DA CIDADANIA REGULADA................................................................. 423.2 1945-1964: A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA.......................... 453.3 O REGIME MILITAR E A SUPRESSÃO DOS DIREITOS............................. 473.4 A ATUAL SITUAÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL ................................... 503.4.1 AS PRÁTICAS ELEITORAIS INTOCÁVEIS............................................................. 503.5 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A AMPLIAÇÃO DA CIDADANIA................. 533.5.1 A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS DOS CIDADÃOS ............................................ 59

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................65

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS...........................................70

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RESUMO

Tem como objetivo principal o presente trabalho acadêmico a análise da

cidadania política no Brasil, a partir do seu modelo teórico fornecido pela teoria de

Thomas Humphrey Marshall e à luz das discussões acadêmicas acerca dessa

categoria, com a finalidade de fornecer subsídios a uma compreensão, sobretudo

quanto à cidadania política no momento atual da sociedade brasileira. Para isso,

partiu-se da abordagem teórica de Marshall, quem, postulando que a cidadania é um

status concedido àqueles que são considerados membros integrais de uma

comunidade, a distinguiu em três tipos de direitos (civis, políticos e sociais).

Abandona-se o vínculo censitário que a mesma possuía na concepção liberal dos

séculos XVIII e XIX. Isso determina que hoje, a busca por uma nova conceituação

do termo se torne uma questão em aberto, típica das sociedades complexas do final

do século XX e do início do século XXI que se debatem em busca de instituições

políticas e jurídicas adequadas a realidade de um cidadão cosmopolita. O objetivo

cumprido da presente pesquisa foi então cotejar, à luz dos subsídios teóricos

referidos, tal modelo de cidadania política com a sua efetiva implementação no

Brasil, a partir de sua gênese e evolução no quadro de uma sociedade marcada pela

exclusão e negação de direitos. Em busca desse objetivo, o procedimento adotado

para a realização da investigação foi o da revisão bibliográfica.

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INTRODUÇÃO

Inicialmente, frisa-se que as categorias fundamentais para a

monografia, bem como os seus conceitos operacionais serão apresentados no

decorrer da monografia.

A presente Monografia tem como objeto analisar os

significados que tradicionalmente são atribuídos à noção de cidadania política para

cotejá-la com seu processo de implementação e desenvolvimento na sociedade

brasileira.

O seu objetivo institucional é a produção de monografia para

obtenção do grau de bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí –

UNIVALI, abordando à noção de cidadania política no Brasil.

Destarte, para a realização da pesquisa foi utilizado como

estrutura base o livro de José Murilo de Carvalho (Cidadania no Brasil) e o livro do

Victor Nunes Leal (Coronelismo, voto e enxada).

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando do conceito de

cidadania a partir do modelo teórico fornecido pela teoria de Thomas H. Marshall,

para, logo após, abordar a pré-história nas cidades Greco-romanas, identificando

suas especificidades no mundo antigo, assim como a posição da cidadania na Idade

Média e na época moderna.

No Capítulo 2, o trabalho fará menção quanto à pré-história da

cidadania no Brasil no tocante ao regime escravista na época vigente. Em seguida,

abordar-se-á em relação à Constituição do regime Monárquico (1824) e da primeira

Constituição do regime Republicano (1891), para logo em seguida tratar do

coronelismo durante a chamada República Velha (1889-1930). Importante ressaltar

que no referido capítulo, tendo em vista a existência para expressar as práticas

políticas brasileiras, a presente pesquisa discorrerá sobre os mesmos com o intuito

de buscar semelhanças e diferenças.

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No Capítulo 3, será abordada a cidadania política na revolução

de 1930 ao fim do regime militar, destacando as práticas eleitorais do regime

implantado no Governo Getúlio Vargas, bem como, logo após, no Estado Novo

(1945-1964). Também será destacado a supressão dos direitos políticos no regime

militar (1964-1985). Frisa-se igualmente que a presente pesquisa tratará das

práticas eleitorais que continuam intocáveis na história política brasileira, ou seja,

muitos dos problemas apresentados na participação da sociedade brasileira no

processo político, sobretudo do ponto de vista da manipulação e corrupção, ainda se

faz presente nos dias de hoje.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados,

seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a

cidadania política no Brasil.

Para a presente monografia foi levantada a seguinte hipótese:

a) O pressuposto de que alguns traços culturais característicos

da forma de pensar e de fazer política no país têm permanecido inalterados ou

sofreram mínimas modificações ao longo dos tempos, persistindo no comportamento

político institucional de hoje e fazendo com que boa parte da população fique

excluída de seus direitos básicos.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de

Investigação foi utilizado o Método Indutivo, na Fase de Tratamento de Dados o

Método Cartesiano, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia

é composto na base lógica Indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas

do Referente, da Categoria, do Conceito Operacional e da Pesquisa Bibliográfica.

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CAPÍTULO 1

A CIDADANIA: CONCEITO E A SUA CONCEPÇÃO HISTÓRICA

1.1 ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE A CIDADANIA

A sociedade, sempre em processo de transformação, vem

moldando, a cada dia, novos direitos, assim sendo, a cidadania assume

historicamente várias formas, em função dos diferentes contextos culturais, das

classes sociais no poder e dos meios econômicos disponíveis.

Também os direitos do homem são direitos históricos, que emergemgradualmente das lutas que o homem trava por sua própriaemancipação e das transformações das condições de vida que essaslutas produzem1.

Mas a pergunta afinal é: O que é ser cidadão? Ser cidadão

significa participar de uma sociedade onde haja o direito de se expressar, participar

e de ser compreendido, atitude capaz de construir a noção clara e precisa de que

todos os cidadãos, nacionais ou não, podem e devem ter direitos. Ademais, cidadão

é poder gozar dos direitos civis, políticos e sociais de um Estado.

Salienta-se que não basta que os requisitos para a cidadania

sejam positivados, é preciso que eles sejam também protegidos. Só assim se

poderá ter um mundo mais justo, no qual os direitos estatuídos são efetivos, isto é,

são garantidos.

Quanto ao conceito de cidadania, Jaime Pinsky2 agrega um

feixe de direitos:

Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, àigualdade perante a lei; é, em resumo, ter direitos civis. É também

1 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 1.ed., 7.reimp. Rio deJaneiro: Campus, 1992. p. 51.

2 PINSKY, Jaime. Introdução. In:_____; PINSKY, Carla Bassanezi. História da Cidadania. SãoPaulo: Contexto, 2003. p. 15.

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participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitospolíticos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democraciasem os direitos sociais, aqueles que garantem a participação doindivíduo na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, aosalário justo, á saúde, a uma velhice tranqüila. Exercer a cidadania éter direitos civis, políticos e sociais.

Então cidadania é um atributo do indivíduo que consiste em ter

direitos civis, políticos e sociais. A distinção destes três tipos de direitos deve-se aos

desenvolvimentos teóricos de Thomas Humphrey Marshall3 na década de cinqüenta

do século XX. Ele partia da idéia de que a cidadania era um status concedido

àqueles que eram considerados membros integrais de uma comunidade. Segundo o

autor,

A cidadania é um status concedido àqueles que são membrosintegrais de uma comunidade. Todos àqueles que possuem o statussão iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes aostatus. Não há nenhum princípio universal que determine o que estesdireitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais acidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagemde uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode sermedido e em relação a qual a aspiração pode ser dirigida. Ainsistência em seguir o caminho assim determinado equivale a umainsistência por uma medida efetiva de igualdade, um enriquecimentoda matéria-prima do status e um aumento no número daqueles aquem é conferido o status.

A análise marshalliana do processo de ampliação da cidadania

de forma conexa ao desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra explicita um

conceito de cidadania que supera a dimensão censitária, mas não a condição de

pertencimento nacional: em princípio ela adquire a forma de uma associação

voluntária a uma coletividade política sem condições, nem patrimoniais e nem

culturais4.

3 MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Riode Janeiro: Zahar, 1967, p. 76.4 VITALE, 2005, p. 474 apud CADEMARTORI, D.M.L.; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. VITALE, Ermanno. Ciudadanía, ¿ultimo privilegio?Traducción de Pedro Salazar In: CARBONELL, Miguel; SALAZAR, Pedro (orgs.) Garantismo:estudios en homenaje a Luigi Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005. p. 463- 480.

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Hoje, não se pode falar em cidadania sem conectá-la as

discussões travadas na seara dos direitos fundamentais5. Eles são o alicerce para a

conquista da cidadania política por parte dos indivíduos em um Estado Democrático

de Direito6. Sobre a relação entre cidadania, direitos fundamentais e democracia,

afirma Ingo Sarlet7:

[...] verifica-se que os direitos fundamentais podem ser consideradossimultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípiodemocrático da autodeterminação do povo por intermédio de cadaindivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade(perante a lei e de oportunidades), de um espaço de liberdade real,bem como por meio da outorga do direito à participação (comliberdade e igualdade), na conformação da comunidade e doprocesso político, de tal sorte que a positivação e a garantia doefetivo exercício de direitos políticos (no sentido de direitos departicipação e conformação do status político) podem serconsiderados o fundamento funcional da ordem democrática e, nestesentido parâmetro de sua legitimidade.

Assim, à analise do conceito, constata-se que é de vital

importância trabalhar a relação cidadania x pertencimento a um Estado determinado

e os critérios de aquisição e de transmissão do status de cidadão.

Por fim, se faz necessário ainda conceituar algumas

categorizações de direitos fundamentais:

1. Direitos civis: direitos instrumentais atribuídos a todas as

pessoas com capacidade de fato (poder negocial, liberdade contratual, liberdade de

5 Direitos fundamentais são àqueles “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera dodireito constitucional positivo de determinado Estado. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dosdireitos fundamentais. 4.ed. rev., atual. e amp. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 35-36).

6 “Conclui-se daí que a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica se funda numelemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis. Não tem base material quese realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso, foi a construção do Estado Social de Direito,que no entanto não foi capaz de assegurar a justiça social nem a autêntica participação democráticado povo no processo político. Aonde a concepção mais recente do Estado Democrático de Direito,como o Estado de legitimidade justa (ou Estado de justiça material), fundante de uma sociedadedemocrática, qual seja a que instaure um processo de efetiva incorporação de todo o povo nosmecanismos do controle das decisões, e de sua real participação nos rendimentos da produção.”(SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed., rev.e atual. São Paulo:Malheiros, 2003. P. 118.

7 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4.ed. rev., atual. e amp. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 70.

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empresa, direito de postular em juízo e todos os potestativos nos quais se manifesta

a autonomia privada e se funda o mercado)8;

2. Direitos políticos: direitos instrumentais reservados somente

aos cidadãos com capacidade de fato (votar e ser votado)9;

3. Direitos públicos: direitos substanciais reconhecidos

somente aos cidadãos (direito ao trabalho em certos casos, assistência em caso de

inabilitação para o trabalho)10;

4. Direitos humanos: direitos substanciais das pessoas

concernentes a todos os seres humanos (ex: vida, integridade, liberdade, direito à

saúde e educação, garantias penais e processuais)11.

1.2 DADOS HISTORICOS DO PROCESSO DE CONQUISTA DA CIDADANIA

1.2.1 A cidadania na Grécia e em Roma

Nas suas origens a cidadania tinha como pressuposto uma

vivência política ativa em comunidade. Nas cidades gregas (polis), ela se traduzia

numa forte inclusão dos cidadãos e, por outro lado, na exclusão formal dos que não

eram da cidade (escravos, estrangeiros). De acordo com Arno Dal Ri Júnior12:

8 FERRAJOLI, 2001, p. 22-23 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. FERRAJOLI, L. Los fundamentos de los derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2001.

9 FERRAJOLI, 2001, p. 22-23 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. FERRAJOLI, L. Los fundamentos de los derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2001.

10 FERRAJOLI, 2001, p. 22-23 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. FERRAJOLI, L. Los fundamentos de los derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2001.

11 FERRAJOLI, 2001, p. 22-23 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. FERRAJOLI, L. Los fundamentos de los derechosfundamentales. Madrid: Trotta, 2001.

12 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 27.

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Na evolução da sociedade grega antiga, o interesse em defender acidade-Estado transforma-se em sentimento subjetivo de bemcomum em relação à polis. Sentimento que deve claramentetranscender a todos os interesses pessoais do cidadão. Assimsendo, eram considerados cidadãos todos os homens livres quepertenciam aos grupos que contribuíam ativamente à organização dacomunidade. Além de possuidor de um vínculo de origem com oterritório da comunidade, o cidadão grego deveria ser homem, livre,de grande despojamento pessoal e de participação, em prol dosinteresses da polis. Por conseguirem identificar os própriosinteresses pessoais com o da Cidade-Estado, estes eramconsiderados homens ‘virtuosos’ e ‘sábios’.

É assim que para os gregos a plena capacidade do indivíduo

só se dava com a participação integral na vida social e política da cidade-Estado.

Ressalta-se que na Grécia ficavam excluídos do status de

cidadãos as mulheres, os escravos e os estrangeiros. Ademais, o status de cidadão

era transmitido através do critério de jus sanguinis13 e nunca pelo critério jus soli14.

Sobre o tema, assevera Arno Dal Ri Júnior15 que:

Era cidadão o indivíduo pertencente, por laços de sangue, à classedos cidadãos. Mesmo que o pai fosse considerado traidor oudesertor, a transmissão da cidadania se efetivava, com uma únicaressalva, qual seja, de que a mãe do indivíduo não fosse estrangeira.O status de cidadão era reconhecido oficialmente quando o jovemcompletava dezoito anos de idade, o qual era apresentado àAssembléia do Demo, que com base na sua ascendência,reconhecia a sua cidadania ou não.

Já em Roma o conceito de cidadania sofreu diversas

transformações, expandindo-se mais e tornando-se menos exclusivo. Nas suas

origens, a organização política romana tinha como característica a valorização da

base familiar, motivo pelo qual sempre se concederam privilégios especiais aos

membros das famílias patrícias, compostas pelos descendentes dos fundadores.

Nesta fase,

13 Direito de sangue. Princípio pelo qual só são reconhecidos como nacionais os filhos de paisnascidos no país. (Dicionário Jurídico, 2005, p. 75)

14 O direito ao solo, de solo. (Dicionário Jurídico, 2005, p. 75)

15 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 28-29.

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[...] era unicamente o fato do indivíduo pertencer ou não a umadeterminada gens romana o que possibilitava o reconhecimento dacidadania. O direito romano clássico previa: quem pertencesse a umdeterminado clã romano automaticamente teria o status de cidadão.Isto porque a gens e a família eram consideradas organismosanteriores à civitas, fundamentos da própria cidade-Estado. Opertencer a um gens também era pressuposto da liberdade,elemento essencial à concepção de cidadania utilizada pelo sistemaromano. Todo homem livre é um cidadão da cidade que o originou.Eram excluídos do direito à cidadania, e portanto não gozavam deplena capacidade jurídica, as mulheres, as crianças, os escravos, osapátridas e os estrangeiros16.

No caso de Roma não se pode resumir o conceito de cidadania

a um único período histórico, eis que esta civilização passou por diversas

transformações e, por conseguinte, o conceito de cidadania também mudou.

É muito clara na exposição de Gaio que, num primeiro momento, osistema jurídico romano se utilizava prevalentemente do critério jussanguinis para a aquisição da cidadania. Era cidadão romano o filhode cidadão romano. Era a concepção de que somente os membrosdo grupo ético-cultural romano podiam aceder á cidadania romana.Neste âmbito, o jus soli vinha preterido e utilizado em pouquíssimase raras ocasiões, como critério subsidiário em relação ao jussanguinis17.

Com as conquistas romanas em expansão, o processo de

aquisição de cidadania aos poucos vai sofrendo transformações. Esta situação

ocorre, na medida em que a antiga República se transforma em Império e os

juriconsultos, gradualmente, vão concedendo o título de cidadão aos povos dos clãs

e dos territórios invadidos por Roma. Porém com as mudanças referentes às

concessões do status de cidadania, começam as resistências por parte de alguns

setores dominantes, ou seja, a história de Roma pode ser analisada pelo viés da luta

pela conquista da cidadania. Com a expansão de seu Império, Roma traz mudanças

16 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 30.

17 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 32.

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significativas no concernente à cidadania. Arno Dal Ri Júnior18, sobre esse contexto,

coloca que:

Os elementos jurídicos das concessões obtidas pelos itálicos com aguerra social foram extremamente significativos. Se contextualizaramcomo um ‘parto’, uma incrível mudança de caráter constitucional, quefez com que Roma se autosuperasse, lançando as bases para aconstrução do grande Império através da extensão da civitas,primeiro aos itálicos, após para todos os súditos. Esta coube àContitutio Antoniniana em 212. d.C., que concedeu a optimo iure atodos os cidadãos que pertencessem aos territórios invadidos porRoma.

Todavia, o Império não iria conseguir incorporar os escravos e

os ditos povos “bárbaros” ou povos de além fronteira. Estes últimos seriam um dos

elementos responsáveis pela sua fragmentação, a partir do século IV19.

1.2.2 Cidadania nas idades média, moderna e contemporânea

O sentido original do termo cidadania – vinculado à idéia de

virtude cívica – vai modificando-se, na medida em que Roma transforma-se em

Império, ocorrendo um gradual processo de sujeição do indivíduo à autoridade

soberana. Essa transformação foi possibilitada pela extensão do status a todos os

residentes nos diversos territórios do Império20.

Desta feita, com a Idade Média, a cidadania se dá numa

relação do senhor feudal com o vassalo, o que consequentemente enfraquece os

direitos já conquistados anteriormente. De acordo com Arno Dal Ri Júnior, a

vulgarização da cidadania – decorrente da universalização do instituto – ocorrida

durante o Império romano, foi determinante para desencadear o processo de

18 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 26.

19 GUARINELLO, 2003, p. 45 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-estado naAntiguidade Clássica. In: PINSKY, J. ; PINSKY, C.B. (orgs.). HISTÓRIA da cidadania. São Paulo:Contexto, 2003, p. 29- 47.

20 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 39.

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deterioração do mesmo. Com ela ocorre a transformação do cidadão em súdito, o

que se consolida com os primeiros fluxos bárbaros na península itálica21.

Todavia, é na Idade Média que surgem positivados alguns dos

direitos que até hoje se encontram em vigor, como exemplo o hábeas corpus, o

devido processo legal e a garantia da propriedade22.

A relação de vassalagem na Alta Idade Média, configurava-se

como um verdadeiro contrato bilateral entre o senhor, que promete defender e

manter, e o vassalo, que promete fidelidade e prestação de determinados serviços.

De um direito real originado pela união destes dois institutos, senhor e vassalo,

nasce o feudalismo23.

É assim que com a decadência da civilização greco-romana, o

Ocidente vivenciou durante séculos a supressão da cidadania. Um complexo de

relações hierárquicas característicos da dominação privada passa a dominar o

cenário político24.

Na época do Renascimento, período de grandes mutações,

surge uma nova interpretação para a questão da cidadania. A partir de então, a idéia

de Estado passa a ser concebida a partir da natureza do homem. Para Marco

Mondaini25,

[...] o conceito de cidadania é uma construção fundamentalmentehistórica que comporta dimensões simultaneamente sociais, políticase culturais. No Renascimento, o debate político sobre o tema da

21 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 39.

22 PINSKY, Jaime. Introdução. In:_____; PINSKY, Carla Bassanezi. História da Cidadania. SãoPaulo: Contexto, 2003. p. 66.

23 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 50.

24 DAL RI JÚNIOR, Arno. Evolução histórica e fundamentos políticos-jurídicos da cidadania. In:_____; OLIVEIRA, Odete Maria (orgs.). Cidadania e nacionalidade: efeitos e perspectivas: nacionaisregionais-globais. Ijuí: UNIJUÍ, 2002. p. 39.

25 MONDAINI, Marco. O respeito aos direitos dos indivíduos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 106- 107.

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cidadania (se assim podemos nomeá-lo, pois o termo é empregadoaqui avant la lettre), dá-se basicamente em torno da interpretação datese aristotélica da natureza constitutiva do homem. [...] Os Estadose as cidades não são invenções humanas, não são criaçõesartificiais, mas por assim dizer produtos da natureza sugeridos aoshomens para sua proteção e conservação. O poder público é eletambém, portanto, um ‘fato natural’, que se impõe absolutamente atoda a sociedade humana. O horizonte e a finalidade do pode públicoé o bem comum, isto é a res publica.

Também este período pode ser compreendido como de

transição, entre a idade medieval e a moderna. Com ele se iniciava uma nova era de

direitos.

Era o início do fim da idade medieval, um período de grandes

conflitos, cuja conseqüência é o enfraquecimento do poder político medieval em

razão das lutas advindas dos conflitos religiosos e de disputas de terras por parte

dos senhores feudais. Inicia-se o processo de formação do Estado Moderno.

Leandro Karnal26 salienta a importância do século XVII e

especificamente da Revolução Inglesa neste processo. Para este autor,

A história do desenvolvimento dos direitos do citadino, a evolução dacidadania na Europa centro-ocidental, transcorre há pelo menos trêsséculos de acirrados conflitos sociais -, relacionada à conquista detrês conteúdos de direitos, diversos entre si: os direitos civis, noséculo XVIII; os direitos políticos, no século XIX; e os direitos sociais,no século XX. Entretanto, o indiscutível ponto de partida para odesenvolvimento dos direitos de cidadania tem sua localização noséculo XVII. Foi quando um país se envolveu naquela que éconsiderada a primeira revolução burguesa da história. Falamosaqui, é claro, da Revolução Inglesa. Uma revolução que se inicia em1640 e tem sua conclusão meio século depois, em 1688, dandoorigem ao primeiro país capitalista do mundo.

Um longo período de transição é necessário para a

acumulação de capital suficiente para dar início à era do capitalismo. A geração do

trabalho terá um grande impacto sobre a estrutura social até então existente e irá

propiciar uma nova interpretação da cidadania.

Outro aspecto importante a ser considerado nesta nova

interpretação da cidadania é o surgimento da idéia de “contrato social”, ou seja, de

26 KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 116.

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que os indivíduos abrem mão de sua individualidade, deixando-a a cargo do Estado,

que passa ter a obrigação de protegê-los. Para Karnal27, o

[...] contratualismo liberal de Locke foi, sem dúvida, um dos maioresresponsáveis pela edificação dessa nova era. Com ele, rompe-secom o ‘pacto de submissão’ hobbesiano em nome de um ‘pacto deconsentimento’. No seu ‘estado de natureza’, há uma situação de‘relativa paz, concórdia e harmonia’, no qual os indivíduos dotados deracionalidade possuem um certo número de ‘direitos naturais’: vida,liberdade e bens. Todavia, essa relativa tranqüilidade não é umagarantia definitiva ante o surgimento de possíveis inconvenientescontra a ‘propriedade’ (definida por Locke exatamente como vida,liberdade e bens). Por isso, é preciso que se faça um ‘contrato social’objetivando a sua preservação legal. E, quanto a isso, Locke nãodeixa margens a dúvidas – o poder político não tem outra funçãosenão o direito de fazer leis ‘para regular e preservar a propriedade’:O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens emcomunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação dapropriedade.

Assim, através de mudanças econômicas e sócio-culturais, o

conceito de cidadania irá sofrer diversas alterações, dentre elas, destaca-se a

cidadania liberal defendida por Karnal.

O artigo 11 do Bill of Rights já falava dos jurados que tomamdecisões referentes à ‘sorte das pessoas’ como devendo ser ‘livresproprietários de terras’. O poder político dos liberais foi, pelo menosaté o final do século XIX, uma prerrogativa associada à posse debens materiais. O direito à representação política, a possibilidade defazer representar em um dos três poderes que se tornarão clássicoscom o filósofo francês Montesquieu (executivo, legislativo e judiciário)era vedada aos não-proprietários. A cidadania liberal foi, pois, umacidadania excludente, diferenciadora de ‘cidadãos passivos’,‘cidadãos com posses’ e ‘cidadãos sem posses’28.

Em síntese para Leandro Karnal29: “cada época produziu

práticas e reflexões sobre cidadania muito distintas – e cidadania, como é lógico

supor, é uma construção histórica específica da civilização ocidental”.

27 KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 130.

28 KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 131.

29 KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 131.

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Na Revolução Americana não foi diferente, com ela, aprofunda-

se a noção de liberdade do indivíduo. Foi ali que iniciou-se a formulação dos direitos

humanos estatuídos em uma Declaração. O povo, pioneiramente, fundamenta sua

aspiração à independência nos princípios da cidadania, ou seja, coloca como

finalidade primordial do Estado a preservação das liberdades dos integrantes do

povo, elevados à condição de sujeitos políticos,

[...] a cidadania e a liberdade nos EUA são inseparáveis e foramconstruídas de forma clara a partir da experiência colonial e daGuerra de Independência. O conceito limitado de 1776 foi sendoampliado, ou, melhor dizendo, seu princípio de igualdade foi seampliando de forma muito decidida ao longo do períodoindependente. Para assegurar a unidade e limitar os efeitos maisnegativos do individualismo que a própria cidadania impunha,constituíram-se sólidos pontos culturais de referência e devalorização30.

Importante ressaltar que nos EUA alguns grupos não tiveram

seus direitos reconhecidos e foram alvos de abusos e de massacres, entre os quais,

os índios e os negros.

Mas, apesar das limitações, o conceito de cidadão se ampliava,

e nos EUA a questão central era garantir a liberdade individual contra a falta de

igualdade social.

Com a Revolução Francesa dá-se o início a uma série de

novas transformações, dentre elas o processo de construção da idéia do homem

como sujeito de direitos civis. Liberdade, Igualdade e Fraternidade são as palavras

de ordem da revolução e se estabelecem através da Declaração dos Direitos do

Homem.

O século XVIII é, por diversas razões, um século diferenciado. É neleque muitos processos históricos, cujas origens remontam ao final daIdade Média e início da Idade Moderna (séculos XV e XVI), atingemsua culminância – como a Reforma e a Contra-Reforma religiosas oua destruição do Estado monarquista absoluto. Ao lado desses, outrosse originaram e, talvez, o mais importante seja o que dá início aoprocesso de construção do homem comum como sujeito de direitoscivis.

30 KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, CarlaBassanezi. História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 150.

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[...] Tanto quanto a América, a Revolução Francesa tem comoapogeu a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Oprimeiro traço que distingue a Declaração francesa da americana é ofato de a primeira pretender ser universal, isto é, uma declaração dosdireitos civis dos homens, repetimos e enfatizamos, sem qualquertipo de distinção, pertençam não importa a que país, a que povo, aque etnia. É uma declaração que pretende alcançar a humanidadecom um todo31.

Estas Declarações complementavam as Declarações oriundas

da Revolução Inglesa do século XVII, pois significaram a evolução das liberdades e

privilégios estamentais medievais e corporativos para liberdades genéricas no plano

do direito público, implicando expressiva ampliação, tanto quanto ao conteúdo das

liberdades reconhecidas, assim como no que diz respeito à extensão da sua

titularidade dos cidadãos ingleses32.

Por outro lado, a Declaração americana, bem como a francesa

tinham como característica uma profunda inspiração jusnaturalista33, reconhecendo

ao ser humano direitos naturais, inalienáveis, invioláveis e imprescritíveis, direitos de

todos os homens, e não apenas de uma casta ou estamento.

No processo de conquista dos direitos civis, políticos e sociais

a Revolução Industrial34, iniciada na Grã-Bretanha, significou uma etapa decisiva

31 ODALIA, Nilo. A Liberdade como meta coletiva. In: PINSKY, Jaime. PINSKY, Carla Bassanezi.História da Cidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 159- 164.

32 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4º.ed. rev., atual. e amp. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 50.

33 O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural",ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normasfixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior aodireito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é por isso umadoutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, aquele estabelecidopelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos. Na história dafilosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também elas com suasvariantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a deuma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa deinstinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, especifica, portanto do homem que a encontraautonomamente dentro de si. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema de normaslogicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limiteintransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dosindivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido,são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição serdesobedecidas pelos cidadãos. Disponível em<http://br.geocities.com/cienciaepolitica/artigos/jusnaturalismo.htm> Acesso em 12 de out: de 2009.34 O conceito de Revolução Industrial designa fenômeno acontecido em tempo e lugar determinados:intensas transformações técnicas produtivas, realizadas na Inglaterra e parte da Escócia no século

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para a concretização. Ela trouxe consigo grandes transformações através da

conquistas de direitos, principalmente da classe trabalhadora que os reivindicava em

número cada vez maior, o que acaba por funcionar como exemplo em outras partes

do mundo.

Estas reivindicações eram o resultado de um contexto de luta

dos trabalhadores por melhorias nas condições de trabalho que eram extremamente

penosas e insalubres. As lutas do movimento operário por direitos sociais e políticos

deram frutos e estes fortaleceram a classe trabalhadora e tornaram o Estado, em

número cada vez maior de países e finalmente no plano mundial, o responsável pelo

respeito a esses direitos35.

Neste ponto, ressalta-se lembrar os três tipos de direito que

englobam a concepção marshalliana de cidadania: civis, políticos e sociais. No caso

da história da Inglaterra, este autor percebeu que no período anterior ao século

XVIII, eles encontravam-se fundidos, já que as instituições que os engendravam

também estavam “amalgamadas”36.

No momento seguinte, inicia o processo de distanciamento dos

três elementos que compõem a cidadania.

É assim que no caso da história da Inglaterra, a cada um dos

direitos corresponde uma etapa determinada da história em que os mesmos surgem

e se consolidam. Os direitos civis são os primeiros e estendem sua consolidação até

depois do século XVIII.

XVIII. Alguns autores apontam a existência de uma segunda, terceira e até quarta RevoluçõesIndustriais, acontecidas a partir do século XIX e caracterizadas também por grandes transformaçõesna tecnologia de produção. Entretanto, o pioneirismo da Inglaterra e a força do conceito clássico derevolução Industrial são pontos pouco contestados pelos historiadores e economistas em geral. Achamada primeira Revolução industrial é definida pelos economistas como o ponto de partida para ocrescimento auto-sustentável da produção. Para o historiador Eric Hobsbawn, o termo revolução deveser aplicável ao fenômeno, pois de fato houve uma explosão na capacidade humana de produzirmercadorias e serviços por volta da década de 1780, quando, pela primeira vez na história, essacapacidade se multiplicou e de modo ilimitado. (SILVA, Kalina Vanderlei. Dicionário de conceitoshistóricos / Kalina Vanderlei da Silva, Maciel Henrique da Silva. – 2. Ed. – São Paulo: Contexto, 2006,p.370)

35 SINGER, Paul. A Cidadania para todos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. História daCidadania. São Paulo: Contexto, 2003. p. 233.36 MARSHALL, Thomas H. Cidadania, classe social e status. Tradução de Meton Porto Gadelha.Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 64.

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Essa paulatina conquista de direitos civis abriu espaço para apenetração dos chamados direitos políticos, pois esse firmar ocorreuna medida em que o sufrágio deixou o substrato puramenteeconômico para ligar-se ao substrato político: ampliou-se o direito devoto a todas as classes e às mulheres tornando-o, desta forma,universal37.

Nesse contexto, no momento anterior, o proletariado, os

escravos, os índios, as mulheres eram mantidos alheios ao Estado através das

restrições ao direito de voto: não eram cidadãos. Conforme observa Norberto

Bobbio, quando só os proprietários tinham direito ao voto, estes pediam para o

poder público apenas o exercício de uma função primária, a proteção da

propriedade, originando-se dessa situação a doutrina do Estado mínimo. E Bobbio

continua:

A partir do momento em que o voto foi estendido aos analfabetostornou-se inevitável que estes pedissem ao estado a instituição deescolas gratuitas; com isto, o estado teve que arcar com um ônusdesconhecido pelo estado das oligarquias tradicionais e da primeiraoligarquia burguesa. Quando o direito de voto foi estendido tambémaos não-proprietários, aos que nada tinham, aos que tinham comopropriedade tão-somente a força de trabalho, a conseqüência foi quese começou a exigir do estado a proteção contra o desemprego e,pouco a pouco, seguros sociais contra as doenças e a velhice,providências em favor da maternidade, casas a preços populares,etc. Assim aconteceu que o estado de serviços, o estado social, foiagrade ou não, a resposta a uma demanda vinda de baixo, a umademanda democrática no sentido pleno da palavra38.

Dentre os direitos reivindicados pelos trabalhadores estava o

direito ao trabalho, como direito fundamental que passou a fazer parte de todas as

declarações de Direitos contemporâneos. Este direito teve as mesmas boas razões

da anterior reivindicação do direito de propriedade como direito natural39.

Ademais, o mesmo autor afirma que,

37 COELHO, 1990, p. 12 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. COELHO, Lígia Martha C. da Costa. Sobre o conceito decidadania: uma crítica a Marshall, uma atitude antropofágica. Revista TB, Rio de Janeiro, 100, jan-mar 1990, p. 9-3038 BOBBIO, 1984, p. 34- 35 apud CADEMARTORI, D.M.L. ; CADEMARTORI, S.U. Mutações dacidadania: da comunidade ao estado liberal. BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia. Umadefesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.171p.39 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7° reimpressão. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio deJaneiro: Campus, 1992, p. 91.

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[...] os direitos do homem constituem uma classe variável, como ahistória destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elencodos direitos dos homens se modificou, e continua a se modificar, coma mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos edos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para arealização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. O queparece fundamental numa época histórica e numa determinadacivilização não é fundamental em outras épocas e em outrasculturas40.

Outro ponto destacado por Bobbio é de que, o problema que

temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo,

político41.

É assim, portanto, inegável que muitas conquistas foram

realizadas através dos tempos no que concerne aos direitos, porém, estes direitos

não são estáticos, ou seja, sofrerão mudanças no seu contexto e,

conseqüentemente, serão atualizados, para melhor ou pior.

40 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7° reimpressão. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio deJaneiro: Campus, 1992, p. 38.

41 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 7° reimpressão. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio deJaneiro: Campus, 1992, p. 45.

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CAPÍTULO 2

A “PRÉ”- HISTÓRIA DA CIDADANIA NO BRASIL

2.1 A CIDADANIA EM UMA SOCIEDADE ESCRAVISTA

As linhas a seguir procuram analisar a conjuntura da política no

Brasil quanto ao relacionamento do indivíduo e da sociedade com o Estado, que

poderiam ter resultado na constituição de uma autêntica esfera pública de poder,

mas que acabaram limitadas e reorientadas em função das circunstâncias,

dificultando o surgimento de uma autêntica noção de cidadania no país.

A cidadania, civil ou política, na sociedade escravista imperial

apresentou-se como uma relação dificultosa. Os escravos eram considerados como

“coisas” pelo direito escravista, portanto, estavam excluídos, por definição, da

categoria dos sujeitos individuais de direitos.

O escravo é bem uma mercadoria. Daí a inutilidade da preocupaçãodas autoridades administrativas e religiosas, que tentaram impedir aprostituição de escravas como fonte de lucros para seus senhoresmuito respeitáveis. E tão inútil foi o artigo da lei, herdado do direitoromano, que dá liberdade ao escravo obrigado à prostituição peloseu senhor, que praticamente não foi utilizado. O escravo precisariater apoios muito fortes para obter sua liberdade sob tal alegação.Ainda em 1871, um tribunal do Rio de Janeiro nega a alforria de umaescrava forçada à prostituição porque o artigo 179 da Constituição doImpério garante a propriedade em toda sua plenitude e a hipótese dodireito romano invocada não é aplicada ao caso42.

Conseqüentemente, a forma universalista e igualitária dos

direitos individuais jamais poderia se impor numa sociedade escravista. Tinham

razão os abolicionistas e os republicanos radicais, quando sustentavam que, no

Brasil imperial, não havia direitos; apenas privilégios (vale dizer, prerrogativas

42 MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil / tradução James Amado. – São Paulo :Brasiliense, 2003, p.182.

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enunciadas em termos particularistas, pois formalmente reservadas aos integrantes

da ordem dos homens livres)43.

Em pleno Império, embora houvesse voto, partidos, liberdade,Constituição e tudo mais, havia uma parte ponderável da populaçãoque não se incluía no sistema. Como se sabe, o escravo eraconsiderado instrumentum vocalis – no Brasil, quando a gente querfazer alguma coisa que não é muita certa, fala emlatim...Instrumentum vocalis, instrumento que fala. Era coisa – nãoera indivíduo, quanto mais cidadão44.

Carvalho pergunta-se se a influência da escravidão não foi

maior nos Estados Unidos que no Brasil, visto que antes da abolição no Brasil, o

número da população escrava girava em torno de 720 mil (5% da população)

enquanto nos EUA, vésperas da Guerra de Secessão (1861-1865), o número girava

em torno de 4 milhões. A resposta que o próprio autor apresenta, indica que ao

contrário dos EUA em que a escravidão se restringia ao sul, no Brasil ela se difundia

por todo o território. Os quilombolas tinham escravos. Muitos libertos tinham

escravos. Assim é que Carvalho afirma:

Na Bahia, em Minas Gerais e em outras províncias, dava-se atémesmo o fenômeno extraordinário de escravos possuírem escravos.De acordo com o depoimento de um escravo brasileiro que fugiupara os Estados Unidos, no Brasil ‘as pessoas de cor, tão logotivessem algum poder, escravizariam seus companheiros, da mesmaforma que o homem branco’. Esses dados são pertubadores.Significam que os valores da escravidão eram aceitos por quase todaa sociedade. Mesmo os escravos, embora lutassem pela próprialiberdade, embora repudiassem sua escravidão, uma vez libertosadmitiam escravizar os outros. Que os senhores achassem normalou necessária a escravidão, pode entender-se. Que libertos ofizessem, é matéria para reflexão. Tudo indica que os valores daliberdade individual, base dos direitos civis, tão caros à modernidadeeuropéia e aos fundadores da América do Norte, não tinham grandepeso no Brasil45.

No Brasil a Igreja Católica não combatia a escravidão. Fora do

terreno religioso, o máximo em argumentação contra a escravidão a que se chegou

43 SAES, Décio Azevedo Marques de. A questão da evolução da cidadania política no Brasil. EstudosAvançados. n 15 (42) 2001, p. 391. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/ea/v15n42/v15n42a21.pdf> Acesso em: 19 de set. 2009.

44 CARDOSO, Fernando Henrique. Inesperado processo de formação política. In: DAMATTA, Robertoet al. Brasileiro: cidadão? São Paulo: Cultura Editores Associados, 1992, p. 154.

45 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 49.

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foram alegações concernentes à questão nacional levantadas por abolicionistas

como José Bonifácio e Joaquim Nabuco. Carvalho considera que o argumento da

liberdade individual não tinha no Brasil a mesma força que o caracterizava na

tradição anglo-saxã.

Nela percebe-se uma tradição cultural diferente que poderiadenominar-se ibérica, alheia ao iluminismo libertário, ao acento nosdireitos naturais e a liberdade individual. Essa tradição insistia nosaspectos comunitários da vida religiosa e política, insistia também emque o todo era mais importante que as partes, na cooperação, opostaà competição e ao trabalho46.

Os aspectos positivos desta visão comunitária ficaram

desvirtuados pela influência do Estado absolutista em Portugal e da escravidão no

Brasil. Permaneceram os chamamentos, com pouca eficácia, de tratar de modo

benévolo aos escravos e aos súditos. O máximo a que se poderia chegar seria ao

paternalismo de governo e dos senhores. Tudo isso se refletiu no tratamento dos

escravos no pós-abolição. Carvalho lembra que as conseqüências da escravidão

além de afetarem os negros alcançaram também os senhores. Os senhores não

chegaram a reconhecer os direitos aos escravos, limitando-se a reconhecer-lhes

privilégios. Percebe-se ainda em nossos dias, apesar das leis, que de um lado estão

os privilégios e a arrogância de poucos, e pela outra, o desamparo de muitos47.

2.2 A CIDADANIA POLÍTICA NO IMPÉRIO: UM ENSAIO DE PARTICIPAÇÃO

POLÍTICA

Em 1824 D. Pedro I outorga a 1ª. Constituição Brasileira. Inicia-

se a partir daí, a caminhada rumo ao Estado Democrático de Direito, contudo, foi um

longo caminho, com características negativas do ponto de vista da participação da

sociedade. José Murilo de Carvalho sustenta que a Constituição de 1824 regulou os

direitos políticos, proclamando quem poderia votar e ser votado. Para ele, a

Constituição era bastante avançada para os padrões da época, estabelecendo

46 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 39.

47 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 41.

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assim, que todos os cidadãos qualificados, ou seja, aqueles que detinham certo

poder econômico eram obrigados a votar. As mulheres não votavam, e os escravos,

naturalmente, não eram considerados cidadãos48.

Mas, se por um lado a Constituição de 1824 dava condições à

boa parte da população de votar, por outro, a população votante não tinha o

discernimento necessário a tão importante participação na vida política do país,

como bem observado por José Murilo de Carvalho.

A maior parte dos cidadãos do novo país não tinha tido prática doexercício do voto durante a Colônia. Certamente, não tinha tambémnoção do que fosse um governo representativo, do que significava oato de escolher alguém como seu representante político. Apenaspequena parte da população urbana teria noção aproximada danatureza e do funcionamento das novas instituições. Até mesmo opatriotismo tinha alcance restrito. Para muitos, ele não ia além doódio ao português, não era o sentimento de pertencer a uma pátriacomum e soberana49.

José Murilo de Carvalho enfatiza em sua obra que os

brasileiros tornados cidadãos pela Constituição de 1824 eram as mesmas pessoas

que haviam vivido os três séculos de colonização, ou seja, cidadãos que na sua

grande maioria eram analfabetos (85%), portanto, incapazes de ler um jornal, um

decreto do governo, um alvará da justiça, uma postura municipal. Assim, pergunta-

se: que tipo de cidadão era esse que se apresentava para exercer seu direito

político50.

Portanto, se os direitos políticos positivados na Constituição de

1824 não eram objeto de orgulho nacional, pois na prática havia a manipulação do

voto, o que faltava era a efetividade de sua aplicação, pois na teoria eles estavam

garantidos. Em 1881 o país deu um passo para trás ao estabelecer a proibição do

voto dos analfabetos e ao tornar o voto facultativo. A época, os alfabetizados

48 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 29.

49 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 32.

50 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 32.

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representavam somente 15% a 20% da população, ou seja, de imediato,

aproximadamente 80% da população masculina estava excluída do direito de voto51.

Logo em seguida vieram as conseqüências nas eleições, ou

seja, do ponto de vista político o país regredira, pois a maioria da população não

teve o direito de participar.

Em 1872, havia mais de um milhão de votantes, correspondentes a13% da população livre. Em 1886, votaram nas eleiçõesparlamentares pouco mais de 100 mil eleitores, ou 0,8% dapopulação total. Houve um corte de quase 90% do eleitorado. Odado é chocante, sobretudo se lembrarmos que a tendência de todosos países europeus da época era na direção de ampliar os direitospolíticos. A Inglaterra, sempre olhada como exemplo pelas elitesbrasileiras, fizera reformas importantes de 1832, em 1867 e em 1884,expandindo o eleitorado de 3% para cerca de 15%. Com a Lei de1881, o Brasil caminhou para trás, perdendo a vantagem queadquirira com a Constituição de 182452.

Historicamente o Brasil sempre foi um país com eleições pouco

democráticas, o controle do estado patrimonial e o uso do poder público em prol dos

interesses privados sempre predominaram no sistema político, fazendo com que o

exercício do voto ficasse relegado. Com a Constituição de 1891 não foi diferente,

pois quase não houve mudanças, fazendo com que o retrocesso permanecesse por

um período duradouro.

A República, de acordo com seus propagandistas, sobretudo aquelesque se inspiraram nos idéias da Revolução Francesa, deveriarepresentar a instauração do governo do país pelo povo, por seuscidadãos, sem a interferência dos privilégios monárquicos. Noentanto, apesar das expectativas levantadas entre os que tinhamsido excluídos pela lei de 1881, pouca coisa mudou com o novoregime. Pelo lado legal, a Constituição republicana de 1891 eliminouapenas a exigência da renda de 200 mil-réis, que, como vimos, nãoera muito alta. A principal barreira ao voto, a exclusão dosanalfabetos, foi mantida. Continuavam também a não votar asmulheres, os mendigos, os soldados, os membros das ordensreligiosas53.

51 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 39.

52 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 39.

53 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 40.

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No Brasil Imperial o voto era aberto e não sigiloso e já havia

muitas fraudes, intimidação e violência, contudo, com a República, não seria

diferente, as eleições não foram mais livres, talvez menos ainda, controladas como

eram, em sua maior parte, pelos governos estaduais e pelos coronéis, que

representavam poderosas oligarquias proprietárias de terras, especialmente nos

estados mais atrasados do Nordeste e do Norte54.

2.3 A LUTA PELA AMPLIAÇÃO DO SUFRÁGIO

2.3.1 Coronelismo ou o predomino do poder privado

Outro fator que a pesquisa passou a analisar e que fez com

que no Brasil inexistisse uma cidadania plena e eqüitativa entre sua população

relaciona-se ao coronelismo, fenômeno social típico da República Velha,

caracterizado pelo prestígio de um chefe político, geralmente um grande proprietário

de terras (latifúndios), e pelo seu poder de mando. Ademais, o estudo do

coronelismo não envolve unicamente aspectos políticos da dominação de classes,

mas abrange inúmeras implicações ao longo do processo histórico no qual se forma

a sociedade brasileira55.

A cidadania concedida, que está na gênese da atual

concepção, está vinculada, contraditoriamente, à não-cidadania do homem livre e

pobre, o qual dependia dos favores do senhor territorial, que detinha o monopólio

privado do mando, para poder usufruir dos direitos elementares de cidadania civil. A

abolição da escravatura, que poderia ser um marco para esse rompimento, seguiu-

se o compromisso coronelista, ou, mais genericamente, os mecanismos de

patronagem e clientelismo que marcaram toda a nossa Primeira República,

54 BETHELL, Leslie. Política no Brasil: de eleições sem democracia a democracia sem cidadania. In:Leslie Bethell;. (Org.). Brasil:fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, v. p. 14.

55 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. 5º ed. – SãoPaulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 8.

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contribuindo para perpetuar as bases sociais da cidadania concedida. Essa Primeira

República ficou conhecida como a “república dos coronéis” (1889-1930)56.

Portanto, com a proclamação da República em 15 de

novembro de 1889 não houve grandes novidades e, como já ocorrera na

Independência, não haveria a participação da sociedade, de tal sorte que, apesar da

importante mudança de regime, o quadro vigente no país quase não se alteraria do

ponto de vista da participação política do povo. Salienta Maria de Lourdes M. Janotti

que as raízes do coronelismo já estavam sedimentadas no Império e, com a

República, o Coronel apenas amplia o seu papel dentro da nova estrutura política.

O exercício do mando político, desde a segunda metade do séculoXIX, pelo Coronel é necessário e fundamental para o regimerepublicano. Encontrando as áreas de influência eleitoral definidas,revitaliza-as para servir principalmente aos desígnios da burguesiaagro-exportadora das áreas cafeeiras, nova senhora do Estado. OCoronel, auto-suficiente em seu município, é atrelado a novoscompromissos, subordinando-se a uma organização partidária maiscomplexa ou, em sua ausência, a um jogo político bem maissofisticado57.

Para Faoro, o sistema político estava condenado ao insucesso,

pois da passagem do Império para a República, apenas substituiu-se a farsa

eleitoral monárquica pela farsa eleitoral republicana, com a mesma unanimidade58.

No período em tela, qual seja, a República Velha, a população

era praticamente rural, controlada e influenciada pelos grandes proprietários de

terras, que tentavam assegurar o maior número de dependentes sob sua influência

para conquistar a vitória nas eleições de suas posições, não importando a que

preço. Os direitos básicos à liberdade individual, à justiça, à propriedade, ao

trabalho; todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre que vivia

na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegavam como uma dádiva de

senhor das terras. Ademais, o domínio político por parte dos grandes proprietários

56 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 41.

57 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. 5º ed. – SãoPaulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 12.

58 FAORO, Raymundo, 1925 – 2003. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro /Raymundo Faoro. – 3° ed. Ver. – São Paulo: Globo, 2001, p. 701.

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de terras minava com o exercício do direito de votar, pois a população não agia

como parte de uma sociedade política, de um partido político, mas como dependente

de um chefe local, ao qual obedecia, com maior ou menos fidelidade. O voto era um

ato de obediência forçada ou, na melhor das hipóteses, um ato de lealdade e de

gratidão59.

O coronelismo tinha sua sustentação baseada no controle dos

pobres pelos donos de terras, suas raízes de tradição patriarcal e agropecuária do

interior, bem como a superposição do privado em detrimento do público, são

características desta época, o que faz surgir uma verdadeira rede de clientelismo.

Victor Nunes Leal60 assevera que,

[...] o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca deproveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e adecadente influência social dos chefes locais, notadamente dossenhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômenosem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base desustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveisno interior do Brasil.

A figura do coronel representava a de uma pessoa que

aglutinava várias funções sociais, exercidas, sobretudo com a forte influência que

tinha sobre seus dependentes bem como os aliados, empregados e capangas, pois

dentro desta esfera própria de influência, o coronel como que resume em sua

pessoa, sem substituí-las, importantes instituições sociais, ou seja, com poder

econômico, poder político local, poder de polícia e o poder de justiça. Neste

ambiente, prefeitos, delegados e juízes são homens da família do coronel ou seus

"protegidos". Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes,

compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos,

que os interessados respeitam. Também se enfeixam em suas mãos, com ou sem

caráter oficial, extensas funções policiais61.

59 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 35.

60 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, voto e enxada ( O Município e o regime representativo noBrasil). Prefácio de Barbosa Lima Sobrinho. 6 ed. São Paulo; Alfa-Omega, 1993, p. 20.

61 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, voto e enxada ( O Município e o regime representativo noBrasil). Prefácio de Barbosa Lima Sobrinho. 6 ed. São Paulo; Alfa-Omega, 1993, p. 23.

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Maria de Lourdes Janotti em sua obra comenta:

O coronelismo se expressa num encadeamento rígido de tráfico deinfluências. Sua prática política está muito bem estruturada numsistema eleitoral, onde é possível reconhecer todos os seus passos,localizando-os no tempo e no espaço. Forma-se uma pirâmide decompromissos recíprocos entre o eleitorado, o Coronel, o podermunicipal, o poder estadual e o poder federal62.

No meio rural o coronel encontrava o alicerce primordial para

alcançar o mais amplo domínio político, assim como a grande massa de

trabalhadores tinha na figura do coronel um homem rico e próspero, portanto,

alguém capaz de em qualquer momento poder ajudá-los, seja ela com remédios,

empréstimos em dinheiro e até mesmo com proteção contra querelas entre famílias

rivais, fomentando mais ainda o voto de cabresto63, pois, o lógico é o que

presenciamos, no plano político, ele luta com o coronel e pelo coronel64.

A população desta época sobrevivia nas terras dos fazendeiros

em total estado de dependência, pobreza e ignorância, tornando muito fácil a sua

manipulação política por parte dos coronéis que, desta maneira, perpetuavam seus

poderes. Eram eles os representantes da oligarquia agrícola-mercantil que

controlavam o poder público e orientavam suas decisões no sentido de afastar as

demais classes do poder e de manter seus privilégios. Com razão dizia um jornalista

da época em 1915 que todos sabiam que “o exercício da soberania popular é uma

fantasia e ninguém a toma a sério” 65.

Uma vez no poder os fazendeiros iriam manter os aspectos de

dominação, se alimentando do poder público para sobreviver, conservando as

62 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. 5º ed. – SãoPaulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 11.

63 O voto de cabresto é um sistema tradicional de controle de poder político através do abuso deautoridade, compra de votos ou utilização da máquina pública. É um mecanismo muito recorrente nosrincões mais pobres do Brasil como característica do coronelismo. Disponível em<http://dicionario.babylon.com/voto%20de%20cabresto> Acesso em: 11 de out. de 2009.

64 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, voto e enxada ( O Município e o regime representativo noBrasil). Prefácio de Barbosa Lima Sobrinho. 6 ed. São Paulo; Alfa-Omega, 1993, p. 25.

65 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 42.

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práticas do sistema político vigente e negando direitos. Como bem coloca José

Murilo de Carvalho,

[...] o coronelismo não era apenas um obstáculo ao livre exercíciodos direitos políticos, ou melhor, ele impedia a participação políticaporque antes negava os direitos civis. Nas fazendas, imperava a leido coronel, criada por ele, executada por ele. Seus trabalhadores edependentes não eram cidadãos do Estado brasileiro, eram súditosdele66.

José Murilo de Carvalho ainda sustenta discorrendo sobre as

conseqüências do coronelismo sobre os direitos civis.

A justiça privada ou controlada por agentes privados é a negação dajustiça. O direito a transladar-se de um lugar para outro, o direito depropriedade, a inviolabilidade de domicílio, a proteção da honra e daintegridade física, o direito a expressar-se dependiam do poder docoronel. [...] Pão para meus amigos, pau para meus inimigos67.

Desta feita, pode-se perceber que o coronelismo era a própria

negação dos direitos civis, pois o domínio dos coronéis afirmava a sua

impossibilidade.

O direito de ir e vir, o direito de propriedade, a inviolabilidade do lar, aproteção da honra e da integridade física, o direito de manifestação,ficavam todos dependentes do poder do coronel. Seus amigos ealiados eram protegidos, seus inimigos eram perseguidos ou ficavamsimplesmente sujeitos aos rigores da lei. Os dependentes doscoronéis não tinham outra alternativa senão colocar-se sob suaproteção68.

O sistema político representativo era uma ficção, pois

imperavam as manipulações, fraudes e violências eleitorais. Sobre a formação

desse fenômeno político, Victor Nunes Leal sustenta que é conseqüência da

valorização do voto dos trabalhadores rurais durante a República. Com ela,

aumentou a influência política dos donos de terras, motivada pela dependência

direta da parcela do eleitorado em função da estrutura agrária brasileira que

66 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.56.

67 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 43.

68 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.57.

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mantinha os trabalhadores da roça em lamentável situação de incultura e

abandono69.

Somos, em particular, legítimos herdeiros do sistema colonial dagrande exploração agrícola, cultivada pelo braço escravo e produtorade matérias-primas e gêneros alimentícios, destinados à exportação.A libertação jurídica do trabalho não chegou a modificarprofundamente nesse arcabouço, dominado, ainda hoje, grossomodo, pela grande propriedade e caracterizado, quanto àcomposição de classe, pela sujeição de uma gigantesca massa deassalariados, parceiros, posseiros e ínfimos proprietários à pequenaminoria de fazendeiros, poderosa em relação aos seusdependentes70.

A proclamação da República, a qual descentralizou e facilitou a

formação de sólidas oligarquias estaduais, apoiadas em partidos únicos, também

estaduais, foi essencial para que este sistema político perdurasse. Nos casos de

maior êxito, essas oligarquias conseguiram envolver todos os “mandões” locais,

bloqueando qualquer tentativa de oposição política. A aliança dessas oligarquias dos

grandes centros, sobretudo São Paulo e Minas Gerais, permitiu que eles

mantivessem o controle da política nacional até 1930, ou seja, o coronelismo, como

sistema político, atingiu a perfeição e contribuiu para o domínio que os dois estados

exerceram sobre a federação71.

Assim, pode-se perceber o coronelismo como limitador da

cidadania, pois o poder de mando do “coronel”72 influenciava as eleições, fazendo

surgir o voto de cabresto e o curral eleitoral73, expressões que refletem a postura

69 LEAL, Victor Nunes Leal.Coronelismo, voto e enxada (O Município e o regime representativo noBrasil), 1993, p. 253.

70 LEAL, Victor Nunes Leal.Coronelismo, voto e enxada (O Município e o regime representativo noBrasil), 1993, p. 253.

71 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.41.

72 José Murilo de Carvalho refere-se ao coronel como “o posto mais alto da hierarquia da GuardaNacional. O coronel da Guarda era sempre a pessoa mais poderosa do município. Já no Império eleexercia grande influência política. Quando a Guarda perdeu sua natureza militar, restou-lhe o poderpolítico de seus chefes. Coronel passou, então, a indicar simplesmente o chefe de polícia local. Ocoronelismo era a aliança desses chefes com os presidentes dos estados e desses com o presidenteda República. Nesse paraíso das oligarquias, as práticas eleitorais fraudulentas não podiamdesaparecer. Elas foram aperfeiçoadas. Nenhum coronel aceitava perder as eleições. Os eleitorescontinuaram a ser coagidos, comprados, enganados, ou simplesmente excluídos”. (CARVALHO, JoséMurilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.41).

73 Recinto destinado, nas cidades, a hospedar, alimentar e recrear o eleitorado do campo, trazido porfacções políticas. Nesses alojamentos, os eleitores são mantidos incomunicáveis, até a hora da

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dócil dos comandados, que votam nos candidatos indicados pelo coronel em troca

de favores ou simplesmente por imposição, uma vez que este é quem controla,

direta ou indiretamente, a vida das pessoas em sua propriedade ou na região.

Nenhum coronel aceitava perder as eleições. Os eleitores eram coagidos,

comprados, enganados, ou simplesmente excluídos. Os historiadores do período

concordam em afirmar que não havia eleição limpa. O voto podia ser fraudado na

hora de ser lançado na urna, na hora de ser apurado, ou na hora do reconhecimento

do eleito74.

Esse sistema político, gerado por uma cadeia de relações pode

ser resumido da seguinte forma:

Os governadores garantiriam a eleição para o Congresso Nacionalde representantes dóceis ao Presidente da República. Por sua vez, aPresidência não interferiria nas eleições estaduais. Os governadoresescolheriam candidatos de sua confiança para comporem asAssembléias estaduais, garantindo a maioria absoluta. Para arealização desses acordos, o município sufragaria nas urnas oscandidatos escolhidos pela oligarquia. Por esta razão, tornou-se ele,necessariamente, o centro das maiores manipulações do sistema.Como o poder municipal era fraquíssimo e quase nada poderiaoferecer ou pesar nesta barganha, os coronéis revestiam-se daautoridade municipal. Eles comandavam o “eleitorado de cabresto” e,portanto, eram os lídimos integrantes do pacto. Conseguiriam osvotos e, em troca, reconheciam-lhes a autoridade política75.

Outra característica marcante do fenômeno coronelístico tem

como base o patrocínio do grande chefe local de todos os custos eleitorais,

inclusive, o transporte da grande massa da população ao local de votação, portanto,

quanto maior as posses do coronel maior chance ele terá no pleito. Desta feita, em

troca de pequenos favores, como a simples “doação” de um par de sapatos ou de

promessa de certa quantia em dinheiro, o povo era obrigado a votar em seu senhor

votação quando saia levando a cédula que colocaria no envelope recebido na mesa eleitoral.Disponívelem<http://www.politicavoz.com.br/corrupcaoepolitica/dicionario/verbete.asp?Verb=Curral%20Eleitoral> Acesso em: 10 de out. de 2009.

74 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.42.

75 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. 5º ed. – SãoPaulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 7-8.

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sob pena de duras represálias, até porque, sem dinheiro e sem interesse direto, a

população agrícola daquela época não faria o menor sacrifício em votar76.

Raymundo Faoro também destaca em sua obra a questão do

coronel custear as eleições.

As despesas eleitorais cabem, em regra, ao coronel, por conta deseu patrimônio. Em troca, os empregos públicos, sejam osmunicipais ou os estaduais sediados na comuna, obedecem às suasindicações. Certas funções públicas, não institucionalizadas, estãoenfeixadas em suas mãos77.

A distribuição de roupas novas, sapatos e outros bens

essenciais era comum durante a campanha, todavia, existiam problemas bem mais

sérios, como exemplo, o voto de eleitores que não existiam. Essa prática eleitoral

fraudulenta era conhecida como “bico de pena”. Nomes de pessoas falecidas

vinham de túmulos do interior; eleitores fantasmas ou fósforo78, como eram

chamados na gíria eleitoral da época, todos eram registrados pelo coronel

dominante. Chegava-se ao absurdo de se constatar que, eleitores analfabetos

jogavam na urna seus cupons de almoço, em vez da cédula que lhes era fornecida

juntamente com o cupom de refeição pelo chefe político79.

Fica claro, portanto que no período da República Velha o bojo

das eleições era um produto da relação entre os poderes locais, representados pelo

coronel, e pelo poder federal, os governadores e presidentes. Era essa a espinha

dorsal do sistema, ao qual o coronel se integrava80.

76 LEAL, Victor Nunes Leal.Coronelismo, voto e enxada (O Município e o regime representativo noBrasil), 1993, p. 35.

77 FAORO, Raymundo, 1925 – 2003. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro /Raymundo Faoro. – 3° ed. Ver. – São Paulo: Globo, 2001, p. 711.78 Indivíduo que praticava fraude eleitoral no Brasil do Império e da República Velha. Commecanismos de fiscalização e identificação dos eleitores ainda precários, era comum um únicoindivíduo votar várias vezes, utilizando-se de documentos falsos. Eram assim chamados pelaoposição aos governadores, os eleitores que, tal como fósforos, “riscavam” em qualquer urna.Disponível em < http://www.politicaparapoliticos.com.br/glossario.php?id_glossario=662> Acesso em:11 de out. de 2009.

79 PANG, Eul-Soo. Coronelismo e oligarquias, 1989-1934. A Bahia na primeira república brasileira.Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1979, p. 36.

80 FAORO, Raymundo, 1925 – 2003. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro /Raymundo Faoro. – 3° ed. Ver. – São Paulo: Globo, 2001, p.710.

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Portanto, o que se verifica neste contexto é o sistema de

reciprocidade entre o coronel e o chefe do poder estadual, o governador. José Victor

Nunes Leal tece comentários sobre esta prática.

[...] de um lado, os chefes municipais e os coronéis, que conduzemmagotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado,a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dosempregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, ocofre das graças e o poder da desgraça81.

Assim, para Leal o coronelismo tinha fôlego no largo eleitorado

que basicamente dependia das terras dos coronéis, com pouca ou nenhuma

instrução política. A grande influência do coronel na massa de votantes rurais

fomentava a institucionalização da “política dos governadores” que tinha como base

o domínio dos governadores sobre o voto82.

Outrossim, o controle dos governadores sobre as urnas era de

certa forma possibilitado pelo apoio advindo dos lideres locais – os coronéis,

detentores de um fortíssimo produto de troca, o voto. O governo estadual

necessitava, para manutenção desta política que o coronel além de ter influência

dentro do seu “curral eleitoral”, ou seja, a influência direta, ele possuísse também

uma ampla influência indireta, que Maria Isaura de Queiroz define como sendo uma

ampla rede de parentela, mas não a parentela de cunho antropológico, que vai além

dos laços familiares, como ela afirma:

O grupo familiar ultrapassa a família nuclear, pois reúne numa redede reciprocidade, de deveres e de direitos tios, sobrinhos, primos,além de avós e netos, estendendo-se, portanto não só o montantequanta à jusante da grande corrente das gerações, e espraiando-setambém horizontalmente para as duas margens de modo indistinto83.

Ao final, questiona-se: onde estava o erro no processo político?

Desde o seu incremento até o coronelismo, o sistema era decadente, o povo até

tinha o direito de votar, mas esse direito na prática não passava de manipulação ou

81 LEAL, Victor Nunes Leal.Coronelismo, voto e enxada (O Município e o regime representativo noBrasil), 1993, p. 25-26.

82 LEAL, Victor Nunes Leal.Coronelismo, voto e enxada (O Município e o regime representativo noBrasil), 1993, p. 247.

83 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O mandonismo na vida política brasileira. São Paulo: Alfa –Omega, 1976, p. 165.

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mera negociação. Do exposto, de quem era a culpa? Do povo ou dos poderosos da

época? José Murilo de Carvalho comenta que:

Os críticos da participação popular cometeram vários equívocos. Oprimeiro era achar que a população saída da dominação colonialportuguesa pudesse, de uma hora para outra, comportar-se comocidadãos atenienses, ou como cidadãos das pequenas comunidadesnorte-americanas. O Brasil não passara por nenhuma revolução,como a Inglaterra, os Estados Unidos, a França. O processo deaprendizado democrático tinha que ser, por força, lento e gradual. Osegundo equívoco já fora apontado por alguns opositores da reformada eleição direta, como Joaquim Nabuco e Saldanha Marinho. Quemera menos preparado para a democracia, o povo ou o governo e aselites? Quem forçava os eleitores, quem comprava os votos, quemfazia atas falsas, que não admitia derrota nas urnas? Eram osgrandes proprietários, os oficiais da Guarda Nacional, os chefes depolícia e seus delegados, os juízes, os presidentes das províncias ouestados, os chefes dos partidos nacionais ou estaduais. Até mesmoos membros mais esclarecidos da elite política nacional, bonsconhecedores das teorias do governo representativo, quando setratava de fazer política recorriam aos métodos fraudulentos, ou eramconiventes com os que os praticavam84.

Portanto, neste período, ou seja, na Primeira República,

conhecida como a “república dos coronéis”, não houve, praticamente, o exercício da

soberania popular, assim como não houve movimentos populares exigindo maior

participação eleitoral. A única exceção que se deu no período foi o movimento pelo

voto feminino, o qual somente após a revolução de 1930 foi introduzido85.

Então era desta forma que se fazia política na República Velha,

com a presença do líder político local, na figura do coronel, que lançava mão em

qualquer artifício para permanecer no poder, juntamente com o apoio advindo do

governo federal, bem como dos governadores, estes últimos os principais líderes

oligárquicos que viam no coronel um elo fortíssimo para domínio das urnas e a

manutenção dos grandes potentados no poder.

Nesse sentido, a cultura política da dádiva sobreviveu ao

domínio privado das fazendas e engenhos coloniais, sobreviveu à abolição da

escravatura, expressou-se de uma forma peculiar no compromisso coronelista e

chegou até nossos dias.

84 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p.43-44.

85 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho, 2005, p. 42.

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2.3.1.1 Coronelismo x cliente lismo – mandonismo e paternalismo

Nesse ponto da narrativa do processo histórico de ampliação

da cidadania no Brasil, faz-se necessária uma digressão conceitual.

Tendo em vista a existência para expressar as práticas

políticas brasileiras, a presente pesquisa passará a discorrer sobre os mesmos com

o intuito de buscar semelhanças e diferenças. José Murilo de Carvalho em um artigo

publicado em 1997 tece comentários sobre o fato:

Parece-me que este é um desses momentos nos estudos de poderlocal e suas relações com o Estado nacional no Brasil. Há imprecisãoe inconsistência no uso de conceitos básicos como mandonismo,coronelismo, clientelismo, patrimonialismo, feudalismo. A dificuldadenão é certamente privilégio brasileiro, uma vez que tais conceitos sãoreconhecidamente complexos. Basta, como exemplo, mencionar aimensa literatura produzida em torno do fenômeno do clientelismo, asdiscussões sobre o conteúdo deste conceito e as dificuldades emempregá-los de maneira proveitosa. No caso brasileiro, não sóconceitos mais universais, como clientelismo e patrimonialismo, mastambém noções específicas, como coronelismo e mandonismo, estãoa pedir uma tentativa de revisão como auxílio para o avanço dapesquisa empírica, por mais árida e inglória que seja a tarefa86.

O sistema do clientelismo de forma sucinta pode ser definido

como sendo a troca de benefícios públicos por votos. José Murilo de Carvalho

assevera que não há dúvidas de que o coronelismo envolve relações de troca de

natureza clientelística, porém ele não pode ser identificado ao clientelismo, que é um

fenômeno muito mais amplo. Clientelismo assemelha-se, na amplitude de seu uso,

ao conceito de mandonismo. Outrossim, o conceito de clientelismo varia no tempo,

de acordo com os recursos controlados pelos atores políticos, em nosso caso pelos

mandões e pelo governo87.

Exemplo claro dessa situação é da cidade que na década de 60 eradominada por duas famílias, cujo poder se baseava simplesmente nacapacidade de barganhar empregos e benefícios públicos em troca

86 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma DiscussãoConceitual. Dados [online]. 1997, vol.40, n.2 ISSN 0011-5258. doi: 10.1590/S0011-52581997000200003. < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...> Acesso em: 27 de jul. de 2009.

87 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma DiscussãoConceitual. Dados [online]. 1997, vol.40, n.2 ISSN 0011-5258. doi: 10.1590/S0011-52581997000200003. < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...> Acesso em: 27 de jul. de 2009.

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de votos. As famílias não tinham recursos próprios, como oscoronéis, e o fenômeno não era sistêmico, embora houvessevínculos estaduais e federais. Por vários anos as duas famíliasmantiveram o controle político da cidade, alternando-se no poder. Osresultados eleitorais eram previstos de antemão com precisãomatemática. Os votos tinham dono, eram de uma ou de outra família.Tratava-se de um caso exacerbado de clientelismo político num meiopredominantemente urbano. Não se tratava de coronelismo88.

Assim, para José Murilo de Carvalho, quando os autores que

vêem o coronelismo no meio urbano em fases recentes da história do país estão

falando simplesmente de clientelismo. Ademais, sustenta o mesmo autor que, o

coronelismo teria sucumbido quando se deu a prisão dos grandes coronéis baianos,

em 1930, e que teria definitivamente desaparecido em 193789.

Além de José Murilo de Carvalho, Edson Nunes também

identifica este tipo de fenômeno político como uma estrutura que atravessa a história

brasileira.

O clientelismo é um sistema de controle do fluxo de recursosmateriais e de intermediações de interesses, no qual não há númerofixo ou organizado de unidades constitutivas. As unidadesconstitutivas do clientelismo são agrupamentos, pirâmides ou redesbaseados em relações pessoais que repousam em trocageneralizada. As unidades clientelistas disputam freqüentemente ocontrole do fluxo de recursos dentro de um determinado território. Aparticipação em redes clientelistas não está codificada em nenhumtipo de regulamento formal; os arranjos hierárquicos no interior dasredes estão baseados em consentimento individual e não gozam derespaldo jurídico. Ao contrário do corporativismo, que é baseado emcódigos formais legalizados e semiuniversais, o clientelismo sebaseia numa gramática de relações entre indivíduos, que é informal,não legalmente compulsória e não-legalizada90.

88 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma DiscussãoConceitual. Dados [online]. 1997, vol.40, n.2 ISSN 0011-5258. doi: 10.1590/S0011-52581997000200003. < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...> Acesso em: 27 de jul. de 2009.

89 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma DiscussãoConceitual. Dados [online]. 1997, vol.40, n.2 ISSN 0011-5258. doi: 10.1590/S0011-52581997000200003. < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...>Acesso em: 27 de jul. de 2009.

90 NUNES, Edson. A Gramática Política do Brasil. Clientelismo e Insulamento Burocrático 2. ed.Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro. 1999, p. 40-41.

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A definição acima remete a um sistema de controle assimétrico,

com redes clientelistas informais, sem regulamento, em que a amizade, as relações

pessoais, o “jeitinho” são elementos importantes que a compõe.

O mandonismo refere-se, segundo José Murilo de Carvalho, à

existência local de estruturas oligárquicas e personalizadas de poder, que em função

do controle de algum recurso estratégico, em geral a posse da terra, exerce sobre a

população um domínio pessoal e arbitrário que a impede de ter livre acesso ao

mercado e à sociedade política. Não obstante, o autor continua dizendo que:

Este talvez seja o conceito que mais se aproxime do de caciquismona literatura hispano-americana. Refere-se à existência local deestruturas oligárquicas e personalizadas de poder. O mandão, opotentado, o chefe, ou mesmo o coronel como indivíduo, é aqueleque, em função do controle de algum recurso estratégico, em geral aposse da terra, exerce sobre a população um domínio pessoal earbitrário que a impede de ter livre acesso ao mercado e à sociedadepolítica. O mandonismo não é um sistema, é uma característica dapolítica tradicional. Existe desde o início da colonização e sobreviveainda hoje em regiões isoladas. A tendência é que desapareçacompletamente à medida que os direitos civis e políticos alcancemtodos os cidadãos. A história do mandonismo confunde-se com ahistória da formação da cidadania91.

Quanto ao paternalismo, Simon Schwartzman sustenta que

[...] esse padrão de política, fundado basicamente na conquista deposições políticas e administrativas como patrimônio, tem muito a vercom o processo de relativa decadência econômica que se dá noBrasil em grandes períodos e faz com que a atividade políticaenquanto tal e um pouco parasitária, seja mais rentável do que asatividades de exploração econômica, que fica mais restrita a grupospequenos. [...] Daí resultar no que Victor Nunes Leal desenvolvedepois, como o fenômeno do coronelismo, que é a intermediaçãoentre os benefícios do poder central e a fraqueza do poder local92.

Portanto, em que pese haver vários conceitos interligados no

contexto histórico do Brasil, gerando algumas confusões por parte de alguns

autores, José Murilo de Carvalho conclui afirmando que o importante em todo o

91 CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma DiscussãoConceitual. Dados [online]. 1997. vol.40, n.2 ISSN 0011-5258. doi: 10.1590/S0011-52581997000200003. < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...>Acesso em: 27 de jul. de 2009.

92 SCHWARTZMAN, Simon. Painel: A Revolução de 30 e o problema regional. Anais do Simpósiosobre a Revolução de 30. Porto Alegre, outubro de 1980. Porto Alegre: ERUS, 1983, p. 372-373.

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debate não é discutir se existiu ou se existe dominação, pois isso, ninguém nega,

contudo, o problema é detectar a natureza da dominação. É esta diferença que faz

com que o Brasil e a América latina não sejam os Estados unidos ou a Europa93.

93 CARVALHO, José Murilo de: Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma discussão conceitual.Disponível em < HTTP://www.scielo.br/scielo.php?script=sci arttex&pid=S0011 –52581997000200003&Ing...>Acesso em: 27 de jul. de 2009.

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CAPÍTULO 3

A CIDADANIA BRASILEIRA ATUAL: DA REVOLUÇÃO DE 30 ÁCONSTITUIÇÃO DE 1988

3.1 DA CIDADANIA E REVOLUÇÃO DE 30

O título acima sugere, de um lado, que o período em questão

apresentou uma certa unidade política, e, de outro, que dentro desse período, a

cidadania política passou por diferentes estágios.

O ano de 1930 foi um divisor de águas na história do país. A partirdesta data, houve aceleração das mudanças sociais e políticas, ahistória começou a andar mais rápido. No campo que aqui nosinteressa, a mudança mais espetacular verificou-se no avanço dosdireitos sociais. Uma das primeiras medidas do governorevolucionário foi criar um Ministério do Trabalho, Indústria eComércio. A seguir, veio a legislação trabalhista e previdenciária,complementada em 1943 com a Consolidação das Leis do Trabalho.A partir desse forte impulso, a legislação especial não parou deampliar seu alcance, apesar dos grandes problemas financeiros egerenciais que até hoje afligem sua inplementação94.

Apesar dos avanços de alguns direitos, para José Murilo de

Carvalho até 1930, inexistia no Brasil um povo organizado politicamente em torno de

um sentimento de identidade nacional consolidado. Apenas pequenos grupos

participavam nos grandes acontecimentos da política nacional.

Quando o povo atuava politicamente de modo geral o fazia comoreação contra o que considerava arbitrariedade das autoridades. Porassim dizê-lo era uma cidadania negativa. Para ele não havia lugarno sistema político, nem no Império, nem na República. Para o povo,o Brasil seguia sendo uma realidade um tanto abstrata. Assistia aosgrandes acontecimentos políticos nacionais, se não entontecido, e

94 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 87.

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sim como simples curioso, desconfiado e talvez até divertido peloespetáculo95.

Se a primeira República caracterizou-se pelo governo das

oligarquias regionais (principalmente São Paulo e Minas Gerais), a partir de 1920

acontecimentos externos e internos passaram a influir no status das oligarquias.

Dentre eles a Primeira Guerra Mundial, a Revolução soviética e a crise financeira de

Wall Street. O período presidencial de 1922 – 1926 transcorreu em um ambiente de

estado de sítio devido à luta tenentista. Os reformistas concordavam na censura ao

federalismo oligárquico. Para Alberto Torres, pensador político do período, a

sociedade brasileira estava desarticulada e carecia de um centro de referência e um

propósito comum. Caberia ao Estado articular esta finalidade e subministrar um fim

comum96.

Nas eleições de 1929/1930 houve fraude eleitoral – como de

costume – e o governo declarou-se triunfador. Um assassinato (João Pessoa)

mudou o ambiente político. Os elementos mais radicais da Aliança liberal uniram-se

aos tenentes que participaram das revoltas de 1922 e 1924.

[...] porque sua experiência militar e sua influência nos quartéis eramde grande valor na nova fase da luta. Consumou-se a aliança, destavez já não muito liberal, entre as dissidências oligárquicas e adissidência militar97.

A eleição que precedeu a 1930, apesar das fraudes, fez com

que interviesse grande parte da população. Tanto em 1930 como em 1889 foi

necessária a presença militar. Isto pode ser visto negativamente, visto que as forças

civis que se opunham a oligarquia não conseguiam ainda prescindir do apoio militar,

mas pode ser visto positivamente também, visto que o Exército não estava aliado às

oligarquias. O período entre 1930 e 1937 foi de grande agitação política.

O movimento que pôs fim era heterogêneo do ponto de vista social eideológico. [...] Os dois blocos principais [...] estavam constituídos por

95 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 93

96 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 70.

97 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 71.

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dissidências oligárquicas e os jovens militares. As primeiras, emúltima instância desejavam alguns ajustes na situação anterior; osmilitares, aliados a revolucionários civis, buscavam reformas maisprofundas que afetassem os interesses das oligarquias. A principaldelas era a reforma agrária98.

Em São Paulo, embora parte da elite tenha apoiado a

revolução, a indignação geral ocorre quando são nomeados interventores militares.

A Revolução Constitucionalista (1932), a causa era aparentemente inatacável,

embora a inspiração fosse conservadora – demonstração de entusiasmo cívico –

patriotismo paulista e não brasileiro. Os paulistas embora tenham perdido a guerra

ganharam no campo das políticas. O governo concordou em convocar eleições para

a assembléia constituinte.

As eleições se deram em 1933, sob novas regras eleitorais que

representavam já grande progresso em relação à Primeira República. Para reduzir

as fraudes, foi introduzido o voto secreto e criada a justiça eleitoral. O voto secreto

protegia o eleitor das pressões dos caciques políticos; a justiça eleitoral colocava

nas mãos de juízes profissionais a fiscalização do alistamento, da votação, da

apuração dos votos e o reconhecimento dos eleitores. O voto secreto e a justiça

eleitoral foram conquistas democráticas99.

Apoiado no industrialismo, nacionalismo e no assistencialismo

às leis trabalhistas (populismo), o Presidente Getúlio Vargas (1883-1954), com seus

poderes quase ilimitados, tinha como objetivo atender os interesses das novas elites

urbanas, preservar certos privilégios dos latifundiários e garantir o apoio da classe

operária. A industrialização, junto com a urbanização, reservou à classe operária um

importante papel dentro do projeto nacionalista e levou o Estado a desenvolver uma

política de manipulação. Sobre o tema José Murilo de Carvalho afirma que:

Se o avanço dos direitos políticos após o movimento de 1930 foilimitado e sujeito a sérios recuos, o mesmo não se deu com osdireitos sociais. Desde o primeiro momento, a liderança que chegouao poder em 1930 dedicou grande atenção ao problema trabalhista e

98 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 73.

99 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 101.

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social. Vasta legislação foi promulgada, culminando na Consolidaçãodas Leis de Trabalho (CLT), de 1943. A CLT, introduzida em plenoEstado Novo, teve longa duração: resistiu à democratização de 1945e ainda permanece até hoje em vigor com poucas modificações defundo. O período de 1930 a 1945 foi o grande momento da legislaçãosocial. Mas foi uma legislação introduzida em ambiente de baixa ounula participação política e de precária vigência dos direitos civis.Este pecado de origem e a maneira como foram distribuídos osbeneficiários sociais tornaram duvidosa sua definição comoconquista democrática e comprometeram em parte sua contribuiçãopara o desenvolvimento de uma cidadania ativa100.

Thomas Humphrey Marshall, sobre a conquista dos direitos na

Inglaterra, mostra que os ingleses introduziram primeiramente os direitos civis, no

século XVIII, os direitos políticos no século seguinte e os direitos sociais no século

XIX, ou seja, cem anos depois. Um dos fatores mais relevantes e que compõe a

diferença entre a nossa cidadania e a dos ingleses está no fato de que o tripé que

compõe a cidadania, direitos políticos, civis e sociais foi por aquele povo

conquistado e a nós ele foi doado, segundo os interesses particulares dos

governantes. Na Inglaterra, a introdução de um direito parecia estar entrelaçada ao

exercício pleno de outro, ou seja, foi exatamente o exercício dos direitos civis que

fez com os ingleses reivindicassem direitos políticos e, daí, sociais; mas nem por

isso seguindo uma mera lógica cronológica. José Murilo de Carvalho argumenta que

a lógica da seqüência descrita por Marshall foi invertida no Brasil. Aqui, primeiro

vieram os direitos sociais, nos anos 30, implantados em período de supressão dos

direitos políticos e de redução dos direitos civis por Getúlio Vargas, um ditador que

se tornou popular – o que explicaria, em parte, a origem do Estado clientelista no

país101.

Os avanços trabalhistas, longe de serem conquistados, foram

doados por um governo cooptador – e mais tarde, ditatorial –, cujos líderes

pertenciam às elites tradicionais, sem vinculação autentica com causas populares.

Assim, se por um lado a expansão dos direitos trabalhistas – sociais – significou

efetivamente um avanço da cidadania na medida em que trazia as massas para a

política, em contrapartida, criava uma massa de reféns da União e de seus

100 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 110.

101 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 10-11.

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tentáculos regionais. A “doação dos direitos sociais”, ao invés da conquista dos

mesmos, fazia os direitos serem percebidos pela população como um favor,

colocando os cidadãos em posição de dependência perante os líderes102.

Assim, pode-se concluir que, na era Vargas, embora se possa

reconhecer, parcialmente, de certa cidadania no tocante aos direitos sociais,

contudo, fez-se à custa da cidadania política, minando os espaços de liberdade por

onde os trabalhadores pudessem ser senhores de sua própria voz. Com o suicídio

de Vargas, costumeiramente, passou-se a representá-lo como sendo o pai dos

trabalhadores, porém ao se analisar a história política, infere-se que, houve avanço

sim, mas com alto custo à sociedade, pois por trás de seu assistencialismo aos

trabalhadores, estavam escondidos os interesses dominantes que não atendiam aos

anseios da população excluída.

Mesmo uma análise superficial da conjuntura política desta

época nos permite concluir que a configuração assumida pela cidadania política

nessa fase era instável, e tendia a ser de curta duração.

[...] porque sua experiência militar e sua influência nos quartéis eramde grande valor na nova fase da luta. Consumou-se a aliança, destavez já não muito liberal, entre as dissidências oligárquicas e adissidência militar103.

No âmbito de um estudo sobre a evolução da cidadania no

Brasil, a abordagem dessa fase oferece especial interesse, visto que dentro desse

sistema de representação política, houve alguns avanços na dimensão da cidadania

102 José Murilo de Carvalho afirma que: “Apesar de tudo, porém, não se pode negar que o período de1930 a 1945 foi a era dos direitos sociais. Nele foi implantado o grosso da legislação trabalhista eprevidenciária. O que veio depois foi aperfeiçoamento, racionalização e extensão da legislação anúmero maior de trabalhadores. Foi também a era da organização sindical, só modificada em parteapós a segunda democratização, de 1985. Para os beneficiados e para o avanço da cidadania, o quesignificou toda essa legislação? O significado foi ambíguo. O governo invertera a ordem dosurgimento dos direitos descrita por Marshall, introduzira o direito social antes da expansão dosdireitos políticos. Os trabalhadores foram incorporados à sociedade por virtude das leis sociais e nãode sua ação sindical e política independente. Não por acaso, a leis de 1939 e 1943 proibiam asregras”. (CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 123).

103 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 71.

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política, graças à instauração da Justiça eleitoral, do voto secreto e da cabine

indevassável, bem como por obra da introdução do voto feminino.

No campo político o governo aproveitou a revolta, usando-a

como pretexto para expulsar o Exército os elementos mais radicais, exagerando o

perigo de um levante comunista. O governo também aproveitou para por um fim na

curta experiência constitucional iniciada em 1934. Os novos generais, Monteiro e

Dutra, destinavam ao Exército um novo papel – um projeto de modernização

conservadora.

A democracia termina em 1937 com o estabelecimento do

Estado Novo. Segundo Carvalho, a aceitação do golpe indica que os avanços da

democracia no pós-1930 seguiam sendo frágeis104.

3.1.1 O início da cidadania regulada

No período de 1930-1964, considerando-se as condições

históricas gerais em que transcorreu “a marcha” – seja para frente, seja para trás –

dos direitos políticos, a rigor, a cidadania política passou por três estágios: o da

crise, o da destruição e o da restauração da cidadania política. O primeiro estágio –

que correspondeu a uma fase política específica do período de “crise de hegemonia”

– começou com a Revolução de 1930 e se encerrou com a instauração do Estado

Novo (1937).

Os direitos políticos tiveram evolução mais complexa. O país

entrou em fase de instabilidade, alternando-se ditaduras e regimes democráticos. A

fase propriamente revolucionária durou até 1934, quando a assembléia constituinte

votou nova Constituição e elegeu Vargas presidente. Em 1937, o golpe de Vargas,

apoiado pelos militares, inaugurou um período ditatorial que durou até 1945. Nesse

ano, nova intervenção militar derrubou Vargas e deu início à primeira experiência

104 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 81.

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que se poderia chamar com alguma propriedade de democrática em toda a história

do país105.

Sob o Estado Novo (1937-1945), a burocracia estatal

aproveitou eficazmente a cisão política no seio da classe média urbana para suprimir

a cidadania política.

De 1937 a 1945 o país viveu sob um regime ditatorial civil, garantidopelas forças armadas, em que as manifestações políticas eramproibidas, o governo legislava por decreto, a censura controlava aimprensa, os cárceres se enchiam de inimigos do regime106.

Quanto à natureza do regime do Estado Novo, Carvalho afirma

que diferentemente do fascismo e do nazismo, mais próximo ao salazarismo, uma

das características era: esforço por organizar aos patrões e aos trabalhadores

através de uma versão local do corporativismo.

A política ficava eliminada; tudo se decidia como se se tratasse

de assuntos meramente técnicos sobre os quais decidiam os especialistas107.

A burocracia estatal também prosseguiu, durante o Estado

Novo, na sua política de criação ou consolidação de direitos sociais para os

trabalhadores urbanos: codificação das leis trabalhistas e sociais na CLT

(consolidação das leis do trabalho), criação efetiva do salário mínimo etc. Ela pôs

em prática, portanto, uma política compensatória, consistente em revogar direitos

políticos, substituindo-os por direitos sociais. Tal política, a que se agregaram os

efeitos do controle estatal dos sindicatos, contribuiu para levar as classes

trabalhadoras urbanas a prestar um apoio difuso ao governo.

Um dos aspectos do autoritarismo estado-novista revelou-se noesforço local do corporativismo. Empregados e patrões eramobrigados a filiar-se a sindicatos colocados sob o controle dogoverno. Tudo se passava dentro de uma visão que rejeitava oconflito social e insistia na cooperação entre trabalhadores e patrões,

105 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 87.

106 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.109.

107 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 81.

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supervisionada pelo estado. Complementado este arranjo, o governocriou órgãos técnicos para substituir o Congresso108.

O período de 1930 a 1945, portanto, foi caracterizado por

práticas que limitaram o exercício da cidadania, principalmente porque a política

adotada por Vargas foi marcada pela conciliação com a maior parte dos coronéis.

Com a Constituição de 1946, houve alguns avanços, o que já havia ocorrido no

“governo constitucional” (1934-1937), todavia, eles não seriam suficientes, pois

deixava excluídos algumas camadas da sociedade. José Murilo de Carvalho

sustenta que:

Após 1945, o ambiente internacional era novamente favorável àdemocracia representativa, e isto se refletiu na Constituição de 1946,que, nesse ponto, expandiu a de 1934. O voto foi estendido a todosos cidadãos, homens e mulheres, com mais de 18 anos de idade.Era obrigatório, secreto e direto. Permanecia, no entanto, a proibiçãodo voto do analfabeto. A limitação era importante porque, em 1950,57% da população ainda era analfabeta. Como o analfabeto seconcentrava na zona rural, os principais prejudicados eram ostrabalhadores rurais. Outra limitação atingia os soldados das forçasarmadas, também excluídos do direito do voto109.

A política compensatória da burocracia estado-novista, implicou

a antecipação dos direitos sociais com relação aos direitos políticos. Essa suposta

antecipação não era a expressão de uma falha cultural ou civilizacional, pois ela

resultava, muito concretamente, do aumento da força política da burocracia estatal e

do correlato enfraquecimento político da classe média urbana. Nas palavras de José

Murilo de Carvalho a interferência estatal era uma ”faca de dois gumes”.

Se protegia com a legislação trabalhista, constrangia com alegislação sindical. Ao proteger, interferia na liberdade dasorganizações operárias, colocava-as na dependência do Ministériodo Trabalho. Se os operários eram fracos para se defender dospatrões, eles também o eram para se defender do Estado110.

108 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.109.

109 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 145.

110 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.118.

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O autor afirma que neste período houve a inversão dos direitos

descritos por Marshall, sendo que no Brasil os direitos sociais são concedidos

primeiro pelo governo antes da expansão dos direitos políticos. Ademais, salienta

que os trabalhadores foram incorporados à sociedade por virtude das leis sociais e

não de sua ação sindical e política independente, portanto, não por acaso, a leis de

1939 a 1943 proibiam as greves111.

Então verifica-se que, embora os direitos estivessem previstos

pelo corpo de leis, só se efetivariam em razão da generosidade das autoridades.

Para Wanderley Guilherme dos Santos112,

o conceito chave de cidadania que permite entender a políticaeconômico-social pós- 30, assim como fazer a passagem da esferada acumulação para a esfera da equidade, é o conceito de cidadania,implícito na prática política do governo revolucionário, e que talconceito poderia ser descrito como o de cidadania regulada. Porcidadania regulada entendo o conceito de cidadania cujas raízesencontram-se não em um código de valores políticos, mas em umsistema de estratificação ocupacional, e que, ademais, tal sistema deestratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outraspalavras são cidadãos todos aqueles membros da comunidade quese encontram localizados, em qualquer uma das ocupaçõesreconhecidas e definidas em lei.

A cidadania nesse período era limitada por fatores políticos e

estava atrelada a uma associação entre cidadania e ocupação, pois somente a

pequena parcela de trabalhadores, com atividades regulamentada, é que tinham

acesso aos direitos sociais.

3.2 1945-1964: A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA

Com a queda do Estado Novo, ao final de 1945, restaurou-se o

regime democrático, com a promulgação da nova constituição.

A constituição de 1946 manteve as conquistas sociais do períodoanterior e garantiu os tradicionais direitos civis e políticos. Até 1964,houve liberdade de imprensa e de organização política. Apesar das

111 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.124.

112 SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira. Riode Janeiro: Campus, 1979, p. 74.

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tentativas de golpes militares, houve eleições regulares parapresidente da República, senadores, deputados federais,governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores. Váriospartidos políticos nacionais foram organizados e funcionaramlivremente dentro e fora do Congresso, á exceção do PartidoComunista, que teve seu registro cassado em 1947. Uma das poucasrestrições sérias ao exercício da liberdade referia-se ao direito degreve113.

Em fins da década de 1950 estava praticamente integralizada a

transição para o capitalismo no Brasil, significando concretamente que a importância

econômica do setor capitalista (a indústria) ultrapassava a de um setor ainda

basicamente pré-capitalista (a agricultura).

Apesar da oposição civil e de revoltas militares, a habilidade do novopresidente permitiu-lhe dirigir o governo mais dinâmico e democráticoda história republicana. Sem recorrer a medidas de exceção, àcensura da imprensa, a qualquer meio legal ou ilegal de restrição daparticipação, Kubitschek desenvolveu vasto programa deindustrialização, além de planejar e executar a transferência dacapital do Rio de Janeiro para Brasília, a milhares de quilômetros dedistância. Foi a época áurea do desenvolvimento, que não excluía acooperação do capital estrangeiro. O Estado investiu pesadamenteem obras de infra-estrutura, sobretudo estradas e energia elétrica114.

Avaliando-se historicamente os dois ciclos de cidadania política

(o de 1889- 1930 e o de 1930-1964), deve-se concluir que, de um período a outro,

houve uma evolução, dentro dos limites impostos à participação política pelo modelo

capitalista de sociedade. Na passagem da submissão às práticas coronelísticas ao

enquadramento em práticas clientelísticas, a consciência popular realizou um salto

qualitativo, que traduziu o deslocamento de um universo ideológico feudal para um

universo ideológico burguês. Ou, noutras palavras, passou-se, aí, de um

comportamento político constrangido e cerceado pelo dever de lealdade pessoal a

um comportamento político livre, que traduzia a visão do voto como mercadoria, a

ser utilizado em função das vantagens pessoais proporcionadas pela escolha. O

avanço do clientelismo indicou de resto, indiretamente, que no segundo período em

questão a transição para o capitalismo estava chegando a seu termo.

113 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.127.

114 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.132.

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3.3 O REGIME MILITAR E A SUPRESSÃO DOS DIREITOS

O período militar (1964-1985) foi marcado pela supressão das

liberdades, a ditadura foi determinante no desencadeamento de revoltas, censuras,

exílios políticos, torturas e muitas mortes, que até hoje não foram devidamente

esclarecidas. Neste ambiente, os direitos civis e políticos seriam duramente

sufocados pela repressão. Como era a maior mobilização das forças golpistas em

1964 e como estavam mais desenvolvidos os meios de controle, a repressão política

dos governos militares foi também mais extensa e mais violenta do que a do Estado

Novo. Embora presente em todo período, ela se concentrou em dois momentos:

entre 1964 e 1965, e entre 1968 e 1974115.

Os governos militares repetiram a tática do Estado Novo, à

exemplo do que ocorrera em 1945 na ditadura Vargas. Em 1964 os militares

cercearam os direitos políticos e civis e investiram na expansão dos direitos sociais.

Sobre o tema, José Murilo de Carvalho atenta que,

Como em 1937, o rápido aumento da participação política levou em1964 a uma reação defensiva e à imposição de mais um regimeditatorial em que os direitos civis e políticos foram restringidos pelaviolência. Os dois períodos se assemelham ainda pela ênfase dadaaos direitos sociais, agora estendidos aos trabalhadores rurais, epela forte atuação do Estado na promoção do desenvolvimentoeconômico116.

Destarte, os militares apostaram não apenas na repressão,

mas também em um processo de alienação social, que se deu por meio da

propaganda direta, caracterizada pelo ufanismo nacionalista, do sucateamento da

educação, da qual foi tirada a possibilidade de formação consciente e crítica, e pelo

controle dos meios de comunicação de massa, em especial a televisão117.

115 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.160.

116 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.157.

117 José Murilo de Carvalho, considera que o regime militar teve várias conseqüências:”A censura àimprensa eliminou a liberdade de opinião; não havia liberdade de reunião, os partidos eram reguladose controlados pelo governo; os sindicatos estavam sob constate ameaça de intervenção; era proibidofazer greves; o direito de defesa era cerceado pelas prisões arbitrarias; a justiça militar julgava crimescivis; a inviolabilidade do lar e da correspondência não existia; a integridade física era violada pelatortura dos cárceres do governo; o próprio direito à vida era desrespeitado. As famílias de muitas das

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Os Atos Institucionais foram os mais duros golpes contra a

população, dentre eles, o mais importante para a repressão foi o Ato Institucional

N°5 (AI-5)118, que foi o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu os direitos

políticos e civis, ademais, todos os atos decorrentes do AI-5 foram colocados fora da

apreciação judicial119.

Doravante, neste período, a população do campo cansada de

sua situação de dependência em relação aos grandes proprietários de terras, que os

mantinham em total estado ignorância e pobreza, buscou nas cidades a esperança

de uma vida melhor, entretanto, suas esperanças seriam vãs. Na época, a

urbanização significava para muita gente um progresso, na medida em que as

condições de vida nas cidades permitiam maior acesso aos confortos da tecnologia,

sobretudo à televisão e outros eletrodomésticos120.

Há que se ressaltar também que, neste período, em que se

deu um forte crescimento econômico do país de um lado, por outro, a população

mais carente não foi beneficiada, muito pelo contrário, como destaca José Murilo de

Carvalho.

O sentido do “milagre” econômico foi posteriormente desmistificadopor análises de especialistas que mostraram seus pontos negativos.Houve, sem dúvida, um crescimento rápido, mas ele beneficiou demaneira muito desigual os vários setores da população. Aconseqüência foi que, ao final, as desigualdades tinham, crescido aoinvés de diminuir. Alguns poucos dados demonstraram esse pontocom clareza. Em 1960, os 20% mais pobres da populaçãoeconomicamente ativa ganhavam 3,9% da renda nacional. Em

vitimas até hoje não tiveram esclarecidas as circunstancias das mortes e os locais de sepultamento.Foram anos de sobressalto e medo, em que os órgãos de informação e segurança agiam semnenhum controle.” (CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / JoséMurilo de Carvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 164).

118 O Ato Institucional nº5 (AI-5) foi o mais radical de todos, o que mais fundo atingiu direitos políticose civis. O Congresso foi fechado, passando o presidente, general Costa e Silva, a governarditatorialmente. Foi suspenso o habeas corpus para crimes contra a segurança nacional, e todos osatos decorrentes do AI-5 foram colocados fora da apreciação judicial (CARVALHO, José Murilo de,1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo de Carvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 2005. p.161-162).

119 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.161.

120 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.169.

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1980, sua participação caída para 2,8%. Em contraste, em 1960 os10% mais ricos ganhavam 39,6% da renda, ao passo que em 1980sua participação subira para 50,9%. Se subirmos na escala derenda, cresce a desigualdade. O 1% mais rico ganhava 11,9% darenda total em 1960; em 1980 sua participação era de 16,9%. Se ospobres não ficaram muito mais pobres, os ricos ficaram muito maisricos121.

O regime militar foi um grande paradoxo na história do Brasil,

pois ocorreu grande crescimento econômico e ampliação dos direitos sociais de um

lado, o que por si só, aquietava a grande massa que vivia na euforia de dias

melhores, no entanto, a realidade era bem diferente do êxtase vivido pela

população, porque do outro lado havia uma grande manipulação com fortíssima

supressão de direitos, deste modo, logo o povo teria consciência de que, mais uma

vez, tudo não passara de um sonho. José Murilo de Carvalho comenta sobre o

assunto dizendo que:

Entende-se, assim, mais facilmente, por que o apoio aos governosmilitares foi passageiro. O ‘milagre’ econômico deixava a classemédia satisfeita, disposta a fechar os olhos à perda dos direitospolíticos. Os trabalhadores rurais sentiam-se pela primeira vez objetoda atenção do governo. Os operários urbanos, os mais sacrificados,pelo menos não perderam seus direitos sociais e ganharam algunsnovos. Enquanto durou o alto crescimento, eles tinham empregos,embora menores salários. Mas, uma vez desaparecido o ‘milagre’,quando a taxa de crescimento começou a decrescer, por volta de1975, o crédito do regime esgotou-se rapidamente. A classe médiainquietou-se e começou a engrossar os votos da oposição. Osoperários urbanos retomaram sua luta por salários e maiorautonomia. Os trabalhadores rurais foram os únicos a permanecergovernistas. As zonas rurais foram o ultimo bastão eleitoral doregime. Mas, como seu peso era declinante, não foi capaz decompensar a grande força oposicionista das cidades122.

Com a grande pressão de vários setores da sociedade, o

regime começa a declinar, dando sinais de abertura política, mas por outro lado o

regime havia deixado seus traços negativos, de forma a acentuar a cidadania

negativa que já existia no país.

121 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.168-169.

122 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.191.

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Assim, chega-se ao final de um dos piores capítulos da história

brasileira. O regime militar deixou experiências que devem ser lembradas e

enfatizadas, de forma a não serem repetidas pelas gerações futuras, ademais,

servem para compreender alguns fatores negativos que ainda persistem na

sociedade atual no tocante à cidadania.

Com a queda do regime militar em 1985, ou seja, depois de 21

anos é eleito o primeiro presidente civil, e os direitos civis estabelecidos antes do

regime militar, tais como a liberdade de expressão, de imprensa e de organização,

foram recuperados. No entanto, muitos direitos civis, a base da seqüência de

Marshall, continuam inacessíveis aos excluídos deste país.

3.4 A ATUAL SITUAÇÃO DA CIDADANIA NO BRASIL

3.4.1 As práticas eleitorais intocáveis

Partiu-se do pressuposto de que alguns traços culturais

característicos da forma de pensar e de fazer política no país têm permanecido

inalterados ou sofreram mínimas modificações ao longo dos tempos, persistindo no

comportamento político institucional de hoje e fazendo com que boa parte da

população fique excluída de seus direitos básicos.

Durante a história brasileira moderna, cada mudança de regimepolítico – da criação de um Império independente no início da décadade 1820, ao estabelecimento da moderna democracia representativano final da de 1980 – demonstrou a capacidade extraordinária daselites brasileiras de defender o status quo e seus próprios interessespor meio do controle, da cooptação e, caso necessário, da repressãodas forças favoráveis à mudança social radical ou, caso se prefira, daextraordinária capacidade do povo brasileiro de tolerar a pobreza, aexclusão, a desigualdade e a injustiça e assim colaborar com suaprópria subordinação. Não só houve na história brasileira revoluçãocomparável, por exemplo, à do México, da Rússia ou da China comotem sido pouquíssima a mobilização popular de qualquer tipo em prolda mudança política e social123.

123 BETHELL, Leslie. Política no Brasil: de eleições sem democracia a democracia sem cidadania. In:Leslie Bethell;. (Org.). Brasil:fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, v. p. 29.

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Também, percebe-se que na política atual as barganhas

eleitorais são das mais diversas, e o valor do voto tomou outros ares. Nota-se que

atualmente ele é trocado por consultas médicas, óculos, remédios e, sobretudo por

promessas de empregos e não longe disto a conquista da casa própria. Esta última

que concede ao líder político a formação do novo curral eleitoral, pois o eleitor

advindo basicamente do interior do país, onde de certa forma trabalhava nas terras

de um grande proprietário, é atraído para os centros urbanos com esperança de

garantir um futuro melhor, como foi o caso da construção de Brasília: “Goianos,

mineiros, paulistas, gaúchos e, sobretudo nordestinos foram atraídos pelo trabalho e

o desejo de fazer fortuna ou, simplesmente pela possibilidade de vida melhor” 124.

O contexto político atual está recheado de denúncias que

remetem as práticas já bem caracterizadas, no que se refere à República velha.

Existem denúncias de compra de voto, transporte clandestino de eleitores no

momento do voto. Tais práticas nos remetem aos velhos coronéis que utilizava o

poder, e ainda o compadrio para tentar vencer as eleições.

Um exemplo do parágrafo citado acima foi no Estado de Santa

Catarina, onde o juiz Jeferson Isidoro Mafra, da 14ª Zona Eleitoral (Ibirama), cassou

os diplomas do prefeito reeleito na cidade de José Boiteux, José Luiz Lopes (PSDB),

e do vice-prefeito eleito, Adair Antônio Stollmeier (PP), deixando-os também

inelegíveis por três anos e aplicando-lhes multa individual no valor de R$ 10.000,00,

devido à compra de votos e prática de abuso do poder econômico na campanha

eleitoral de 2008. O magistrado decretou, ainda, a nulidade dos 1.837 votos

(correspondente a 54,14% do total de válidos) recebidos pela chapa, com a

consequente realização de nova eleição em José Boiteux125.

A captação ilícita de sufrágio – nos termos do artigo 41-A da

Lei 9.504/97 – ocorreu por meio da esposa do prefeito, que primeiramente teria

entregue um aparelho televisor a Izimar Ndilli, e depois teria ofertado vale-

124 OLIVEIRA, Marcio de Brasília: O mito na trajetória de Nação. Brasília-DF: Paralelo 15, 2005, p.243.

125Santa Catarina. Tribunal Regional Eleitoral. Assessoria de Imprensa do TRE-SC.Disponívelem<http://www.tresc.gov.br/site/principal/news/noticiaprincipal/arquivo/2009/setembro/artigos/juiz-de-ibirama-cassa-prefeito-de-jose-boiteux-por-compra-devotos/index.html.> Acesso em: 18 deset. de 2009.

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combustível de R$ 100,00 a Heleno dos Santos. Segundo a sentença, a compra de

votos e o abuso de poder econômico ficaram ainda mais caracterizados com a

compra de 400 cestas básicas – no valor de R$ 15.500,00 – pagos a Dieter Nitscher,

que também foi incumbido de entregar os "sacolões" aos eleitores com expresso

pedido de votos para Lopes e Stollmeier. Os R$ 15.500,00 foram pagos com

cheques do próprio candidato José Luiz Lopes – sendo dois de R$ 5 mil e um de R$

5.500,00. A testemunha Izimar Ndilli , além do aparelho televisor, relatou também

"o recebimento do sacolão para votar no 45".

A sentença também registrou que "não obstante o fato de os

requeridos não terem, diretamente, praticado os atos irregulares, no caso, o

fornecimento aos eleitores de sacolões para fins eleitorais, é inegável que tal

conduta ocorreu por iniciativa dos mesmos, sendo eles os seus únicos

beneficiários". O juiz da 14ª Zona Eleitoral enfatizou ainda que "os pagamentos dos

sacolões ocorreram com cheques do requerido José Luiz Lopes, evidenciando a

efetiva participação na conduta em exame".

O PMDB (Partido do Movimento democrático Brasileiro) de JoséBoiteux, ao propor a Ação de Investigação Judicial Eleitoral contraLopes e Stollmeier, imputava-lhes ainda outras práticas com abusode poder político e econômico em virtude da realização da Festa daMelhor Idade, 1ª Festa do Marreco Recheado e de desfile de carrosoficiais na Festa do Colono – mas tais atos, mediante as provasproduzidas, não foram considerados abusivos. O PMDB alegavatambém a existência de outras compras de votos em face da entregade latas de tinta e óculos de grau a eleitor – condutas que não foramprovadas no curso da investigação, consoante a sentença126.

Outro exemplo ocorrido foi no pedido de cassação de Joaquim

Domingos Roriz às eleições do Distrito Federal em 2002. A coligação de oposição

relata várias condutas que caracterizam tentativa de compra de voto. Uma delas, a

distribuição, no dia 25 de outubro, do cartão de desconto da rede Brasilcard para

todos os servidores da administração direta do Governo do Distrito Federal. Os

cartões eram acompanhados de uma carta em que Roriz assumia 15 compromissos

relacionados a reajustes salariais. Segundo os advogados, foram distribuídas ainda

126Santa Catarina. Tribunal Regional Eleitoral. Assessoria de Imprensa do TER-SC.Disponívelem<http://www.tresc.gov.br/site/principal/news/noticiaprincipal/arquivo/2009/setembro/artigos/juiz-de-ibirama-cassa-prefeito-de-jose-boiteux-por-compra-devotos/index.html.> Acesso em: 18 deset. de 2009.

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notas de R$ 50,00 dentro de camisetas com o nome de Roriz, pedindo voto para o

governador. Também teriam sido distribuídos vale-transportes e cupons de

abastecimento, acompanhados de material de propaganda eleitoral, além de

promessas de emprego e lote127.

3.5 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A AMPLIAÇÃO DA CIDADANIA

A cada nova Constituição decretada, percebe-se a evolução

dos Direitos Políticos em relação ao número de pessoas abarcadas pela amplitude

destes. À medida em que se ampliam as condições de interferência do cidadão no

poder do Estado, está se alargando o gozo da democracia. Percebemos que as

aspirações e conquistas do seio da sociedade, vão, paulatinamente, materializando-

se nas Cartas Políticas, desde o Império até nossa Constituição Vigente de 1988.

E é a partir desta data, ou seja, em 1988, que se opera no

Brasil uma verdadeira revolução institucional. Alguns temas-chave, entre inúmeros

outros, a sintetizam: descentralização (sobretudo das políticas públicas), implicando

um novo pacto federativo, donde se destacam os municípios como entes

federativos; participação popular (canalizada pelos conselhos gestores e também

por mecanismos de participação direta); e ascensão da cidadania em perspectiva

universal (direitos coletivos, legitimação para punir crimes inafiançáveis contra

grupos sociais específicos, códigos para segmentos vulneráveis da sociedade

brasileira, e de direitos do consumidor). José Murilo de Carvalho faz alusão ao novo

período, assim como aos direitos políticos após redemocratização.

Apesar da tragédia da morte de Tancredo Neves, a retomada dasupremacia civil em 1985 se fez de maneira razoavelmente ordenadae, até agora, sem retrocessos. A constituinte de 1988 redigiu eaprovou a constituição mais liberal e democrática que o país já teve,merecendo por isso o nome de Constituição Cidadã. Em 1989, houvea primeira eleição direta para presidente da República depois de

127 Correio Braziliense, 03 de novembro de 2002, p.08. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2009/10/03/politica,i=146017/ENFRAQUECIDOS+NAS+ANTIGAS+LEGENDAS+POLITICOS+MUDAM+DE+PARTIDO+EM+BUSCA+DA+REELEICAO.shtml.

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1960. Duas outras eleições presidenciais se seguiram em clima denormalidade, precedidas de um inédito processo de impedimento doprimeiro brasileiro eleito. Os direitos políticos adquiriram umaamplitude nunca antes atingida128.

Esse contexto histórico da redemocratização brasileira –

iniciada em 1985, com a chamada 'Nova República', tendo culminado com a

elaboração da Constituição em 1988 e com o retorno das eleições presidenciais

diretas, em 1989 –, representou enorme ampliação de direitos, de tal sorte que,

através da Constituição de 1988 foi restabelecido o Estado Democrático de Direito e

um feixe de direitos foi guindado para o texto constitucional. Foi, em 1989, a primeira

eleição presidencial em trinta anos da história da República baseada no sufrágio

universal, realizada, simbolicamente, no centenário da república (15 de novembro de

1989). O eleitorado era de 82 milhões de votantes129.

Malgrado isso, o desafio que se apresenta agora é a quebra da

cultura arraigada pelo largo período de tradição de práticas autoritárias, cultivadas

ao longo da história brasileira. Muitos dos problemas de outrora continuam sem

soluções.

A democracia política não resolveu os problemas econômicos maissérios, como a desigualdade e o desemprego. Continuam osproblemas da área social, sobretudo na educação, nos serviços desaúde e saneamento, e houve agravamento da situação dos direitoscivis no que se refere à segurança individual. Finalmente, as rápidastransformações da economia internacional contribuíram para pôr emxeque a própria noção tradicional de direitos que nos guiou desde aindependência. Os cidadãos brasileiros chegam ao final do milênio,500 anos após a conquista dessas terras pelos portugueses e 178anos após a fundação do país, envoltos num misto de esperança eincerteza130.

Outro desafio que se apresenta atualmente, assim como antes,

é sintonia material da forma com a realidade. Estamos em fase de transição,

aprendizado, mas sob os resquícios do autoritarismo que perdurou anos e deixou

128 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 199.

129 BETHELL, Leslie. Política no Brasil: de eleições sem democracia a democracia sem cidadania. In:Leslie Bethell;. (Org.). Brasil:fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, v. p. 21.

130 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.199-200.

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seqüelas. São visíveis as marcas da cultura política do pretérito, malgrado a

democracia restaurada. Há, dessarte, de certa forma, ritmo novo, cadenciado, em

contraste com práticas incompatíveis com o novo tempo. Para José Murilo de

Carvalho essas dificuldades de sanar os problemas talvez sejam frutos da inversão

dos direitos, ou seja, o Brasil não seguiu a ordem dos direitos descritos por Marshall.

Uma das razões para nossas dificuldades pode ter a ver com anatureza do percurso que descrevemos. A cronologia e a lógica daseqüência descrita por Marshall foram invertidas no Brasil. Aqui,primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período desupressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis porum ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos,de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do povodeu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos derepresentação política foram transformadas em peça decorativa doregime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base daseqüência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria dapopulação. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça parabaixo131.

Assim, se de um lado houve a consagração de direitos nunca

dantes visto, como exemplo, no campo dos direitos civis a inovação do direito do

habeas data132, que persiste no direito de qualquer pessoa exigir do governo o

acesso às informações, inclusive de caráter confidencial, assim como o mandado de

injunção133 (capacidade requisitória), contudo, é preciso se perquirir sobre a real

participação popular no país134.

131 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.219-220.

132 A garantia constitucional do habeas data, regulamentada pela Lei n. 9.507, de 12.11.1997,destina-se a disciplinar o direito de acesso a informações, constantes dos registros ou bancos dedados de entidades governamentais ou de caráter público, para o conhecimento ou retificação (tantoinformações erradas como imprecisas, ou, apesar de corretas e verdadeiras, desatualizadas), todasreferentes a dados pessoais, concernentes à pessoa do impetrante. (LENZA, Pedro. DireitoConstitucional esquematizado / Pedro Lenza – 12. Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008,p. 651).

133 O mandado de injunção surge para “curar” uma “doença” denominada síndrome de inefetividadedas normas constitucionais, vale dizer, normas constitucionais que, de imediato, no momento em quea Constituição é promulgada, não têm o condão de produzir todos os seus efeitos, precisando de umalei integrativa infraconstitucional. (LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado / Pedro Lenza– 12. Ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 651).

134 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.147.

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A interferência da sociedade ainda está aquém no que tange

às discussões e aos debates sobre as condições político-sociais. O povo ainda está

aprendendo a exercer seus direitos políticos, devido ao longo período de exclusão, e

está internalizando a necessidade de reivindicações de suas aspirações. É a

democracia participativa e a organização da sociedade civil que passam a exigir dos

órgãos estatais processos de mudança social, política e econômica, dentro dos

princípios dos direitos humanos, universalmente aceitos.

Nós incorporamos de alguma maneira a idéia de cidadania numasituação social que era bastante adversa a que a cidadania segeneralizasse. E quando enfrentamos, depois da República, algumaextensão do direito de voto, ela foi muito limitada. Até 1930 não maisque 3 por cento da população teve acesso a voto – 3 por cento!Evidentemente, a idéia de cidadania era apenas um ideal - naprática, distanciada das condições de existência da populaçãobrasileira. E muitos autores, analistas, críticos, chamam a atençãopara o fato de que, sendo assim, sempre tivemos uma espécie dedeformação da cidadania135.

A citação acima de Fernando Henrique Cardoso solidifica a

idéia de que no Brasil a cultura política é uma espécie de cimento das relações de

mando e subserviência, que em última análise se relaciona às próprias raízes da

desigualdade social brasileira. Está no simples conteúdo desses dois verbos,

mandar ou pedir, o significado mais profundo da nossa cultura política. Só nos

últimos dez anos o Brasil vem se tornando, pela primeira vez em sua história, um

Estado independente, com eleições competitivas, livres e regulares136.

Contudo e como já explicitado, só a positivação de direitos na

Constituição brasileira não ensejou, por si só, eficácia material. Está em aberto o

desafio de retirá-los do campo formal e consagrá-los inteiramente, no cotidiano, pois

o que se nota ainda é, por um lado a apatia da sociedade pela política brasileira e,

pelo outro, aqueles que mantêm práticas pouco democráticas de se fazer política

para continuar no poder.

135 CARDOSO, Fernando Henrique. Inesperado processo de formação política. In: DAMATTA,Roberto et al. Brasileiro: cidadão? São Paulo: Cultura Editores Associados, 1992, p. 155.

136 BETHELL, Leslie. Política no Brasil: de eleições sem democracia a democracia sem cidadania. In:Leslie Bethell;. (Org.). Brasil:fardo do passado, promessa do futuro. Rio de Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2002, v. p. 12.

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A denominada ‘Nova República’, iniciada a partir de 1985, mantinhaintocadas as inúmeras tradições políticas e sociais brasileiras. Entreelas, Faoro dava prevalência à exclusão política. Os procedimentosdos dirigentes eternizavam o fato de o povo não participar dasmudanças. Este último somente padecia os efeitos das inovaçõeseconômicas e políticas que iam sendo postas em prática. Umexemplo desse processo de padecimento dos efeitos da mudançapela população pode ser encontrado em seu debate sobre ainstalação da Constituinte dentro da Nova República. O poderExecutivo transformou um poder constituído (o Congresso eleito em1986) em poder constituinte sem qualquer discussão com asociedade civil sobre as conseqüências desse ato137.

Percebemos que a positivação dos direitos na Constituição

Federal significou um avanço notável, porém, as violações destes direitos, ainda é

uma prática habitual. Não há sintonia entre a constituição formal e material. Os

problemas de desrespeito aos direitos transcendem fronteiras, demonstrando uma

necessidade permanente de luta para que eles possam ser guindados da “folha de

papel” e incorporados ao cotidiano. Para Maria Victoria de Mesquita Benevides a

democratização

em nosso país depende, nesse sentido, das possibilidades demudança nos costumes – e nas ‘mentalidades’ – em uma sociedadetão marcada pela experiência do mando e do favor, da exclusão e doprivilégio. A expectativa de mudança existe e se manifesta naexigência de direitos e de cidadania ativa; o que se traduz, também,em exigências por maior participação política – na qual se inclui ainstitucionalização dos mecanismos de democracia semidireta138.

Vê-se, portanto, que a superação da cidadania regulada — em

outras palavras, a instauração da cidadania "plena" — é, acima de tudo, um

processo histórico de conquista, no qual importa especial atenção às maneiras como

a sociedade se organiza, se mobiliza e representa a noção de cidadania. As

evidências empíricas obtidas em uma sociedade como a brasileira contemporânea

demonstram que existem desarticulações e contradições não resolvidas a respeito

das formas como são direcionadas as demandas sociais, a oferta de políticas e

137 REZENDE, Maria José de. As reflexões de Raymundo Faoro sobre a transição política brasileiranos anos 1989 e 1990.Política & Sociedade, América do Sul, 5 1 08 2008. Disponível em<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/1836/1598> Acesso em: 04 de out. de2009.

138 BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa: referendo, plebiscito e iniciativapopular. 3. ed. São Paulo, Editora Ática, 1998, p. 194.

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serviços pelo Estado e a percepção dos usuários quanto a estas políticas e serviços.

Maria José de Andrade sintetiza estes fatos nas palavras de Raymundo Faoro.

Enfim, o elemento mais destacado por Raymundo Faoro, no final dadécada de 1980, é que a República brasileira não se havia, apóscem anos, constituído de fato. As eleições presidenciais de 1989eram o principal indicador de que a República continuavaseguidamente em apuros. A exclusão social e a exclusão políticaeram a principal fonte das impossibilidades republicanas. A defesada ordem e dos privilégios apontava o quão distante estaria o Paísde um projeto, de fato, nacional e republicano. Naquele momento, eledetectava que os caminhos para a ação das forças sociaisprogressistas se encontravam ainda bloqueados. Alçava-se aopoder, através de eleições diretas após anos de ditadura militar, umgoverno consistentemente conservador, nos mesmos moldes de seuantecessor139.

Denota-se que a ausência de resultados substantivos e,

principalmente a reversão de expectativas, podem se constituir em fatores altamente

nocivos à credibilidade das instituições democráticas. Assim sendo, as fontes entre

as expectativas geradas, mas não satisfeitas pelas instituições formais da

democracia junto ao eleitorado, faz com que a sociedade fique frustrada em relação

a uma real efetivação dos direitos.

Houve frustração com os governantes posteriores à democratização.A partir do terceiro ano de governo Sarney, o desencanto começou acrescer, pois ficara claro que a democratização não resolveriaautomaticamente os problemas do dia-a-dia que mais afligiam ogrosso da população. As velhas práticas políticas, incluindo acorrupção, estavam todas de volta. Os políticos, os partidos, oLegislativo voltaram a transmitir a imagem de incapazes, quando nãode corruptos e voltados unicamente para seus próprios interesses140.

Embora prevaleça a perspectiva de se pensar a Reforma

Política como processo, espaço e oportunidade de ampliação e aprofundamento da

democracia, persistem concepções formalistas que buscam limitar e controlar as

expressões da cidadania e da participação política. Por outro lado, a sociedade

ainda é apática às práticas pouco democráticas de se fazer política no Brasil,

esperando que a realidade mude de forma instantânea.

139 REZENDE, Maria José de. As reflexões de Raymundo Faoro sobre a transição políticabrasileiranosde1989e1990.Disponívelem<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/view/1836/1598> Acesso em: 04 de out. de 2009.

140 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.203.

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Seguindo velha tradição nacional de esperar que a solução dosproblemas venha de figuras messiânicas, as expectativas popularesse dirigiram para um dos candidatos à eleição presidencial de 1989que exibia essa característica. Fernando Collor, embora vinculado àselites políticas mais tradicionais do país, apresentou-se como ummessias salvador desvinculado dos vícios dos velhos políticos. [...]Mas logo se fizeram sentir as dificuldades decorrentes. [...]Descobriu-se então, que fora montado pelo tesoureiro da campanhapresidencial, amigo íntimo do presidente, o esquema mais ambiciosode corrupção jamais visto nos altos escalões do governo. Por meiode chantagens, da venda de favores governamentais, de barganhaspolíticas, milhões de dólares foram extorquidos de empresários parafinanciar campanhas, sustentar a família do presidente e enriquecero pequeno grupo de seus amigos141.

Dessa forma, apesar do longo caminho que o país precisa

atravessar para superar as suas dificuldades concernentes à cidadania política, é

inegável que muitos avanços foram conquistados, sobretudo após a Constituição de

1988.

3.5.1 A concretização dos d ireitos dos cidadãos

A Constituição brasileira de 1988 possui uma estrutura que

guarnece os direitos fundamentais, reconhecendo-os, largamente. Entre as

conquistas asseguradas especificamente no âmbito da participação política,

destacam-se: o voto para as pessoas analfabetas; o voto opcional para jovens na

faixa de 16 a 18 anos incompletos; a autonomia dos partidos políticos para definirem

sua estrutura, organização e funcionamento, inclusive sobre normas de fidelidade e

disciplina partidárias; e a criação de instrumentos de democracia direta – plebiscito,

referendo e iniciativa popular de lei. Os direitos sociais também foram ampliados de

forma significativa na Constituição de 1988.

A Constituição de 1988 ampliou também, mais do que qualquer desuas antecedentes, os direitos sociais. Fixou em um salário mínimo olimite inferior para aposentadorias e pensões e ordenou o pagamentode pensão de um salário mínimo a todos os deficientes físicos e atodos os maiores de 65 anos, independentemente de teremcontribuído para a previdência. Introduziu ainda a licença-

141 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.204.

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paternidade, que dá aos pais cinco dias de licença do trabalho porocasião do nascimento dos filhos142.

Houve também no Brasil o eixo da democracia eleitoral, com a

expansão do universo político, a regularidade e crescente centralidade das eleições,

de campanhas que mobilizam vastos segmentos da população, além, de um sistema

informatizado e bastante eficiente de registro e apuração dos votos, o qual, parece

ter-se estabilizado, com possíveis impactos no que diz respeito à dimensão

comportamental e da cultura política no longo prazo. Ademais, no campo dos

direitos políticos denota-se uma maior participação do eleitorado.

Na eleição presidencial de 1989, votaram 72,2 milhões de eleitores;na de 1994, 77,9 milhões; na última eleição, em 1998, 83,4 milhões,correspondentes a 51% da população, porcentagem jamaisalcançada antes e comparável, até com vantagem, à de qualquerpaís democrático moderno. Em 1998, o eleitorado inscrito era de 106milhões, ou seja, 66% da população143.

Ainda no campo dos direitos políticos, no rumo da ampliação

da democracia, a legislação eleitoral brasileira incorporou importante dispositivo

visando promover a participação política das mulheres e a redistribuição das

oportunidades de acesso aos espaços de representação política. A legislação de

cotas para mulheres foi adotada em 1995, sendo aperfeiçoada em 1997, ao adquirir

um texto universal, qual seja: reserva de no mínimo 30 e no máximo 70% das vagas

de candidaturas para cada sexo, nas eleições proporcionais. O sistema de cotas,

embora insuficiente para mudar a feição masculina do cenário político brasileiro,

trouxe uma excelente contribuição, ao promover o amplo debate sobre a sub-

representação política das mulheres e abrir espaços, efetivamente, para a

participação feminina. Todavia, outros temas permanecem na pauta da reforma

política.

Tramitam no Congresso projetos para alterar o sistema eleitoral,reduzir o número de partidos e reforçar a fidelidade partidária. Oprojeto mais importante é o que impõe a introdução de um sistemaeleitoral que combine o critério proporcional em vigor com o

142 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.206.

143 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.201.

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majoritário, segundo o modelo alemão. A idéia é aproximar mais osrepresentantes de seus eleitores e reforçar a disciplina partidária144.

Em todo este processo, constata-se que a Reforma Política

tem sido tratada por políticos, no âmbito do Congresso Nacional, e por cientistas, no

âmbito da Academia. Até o momento, a discussão não se expandiu de forma

significativa para cidadãos e cidadãs e para as organizações da sociedade civil,

sendo urgente a realização de debates sobre o tema. Embora prevaleça a

perspectiva de se pensar a Reforma Política como processo, espaço e oportunidade

de ampliação e aprofundamento da democracia, persistem concepções formalistas,

que buscam limitar e controlar as expressões de cidadania e de participação política.

Na visão de José Murilo de Carvalho a

Ausência de ampla organização autônoma da sociedade faz com queos interesses corporativos consigam prevalecer. A representaçãopolítica não funciona para resolver os grandes problemas da maiorparte da população. O papel dos legisladores reduz-se, para amaioria dos votantes, ao de intermediários de favores pessoaisperante o Executivo. O eleitor vota no deputado em troca depromessas de favores pessoais; o deputado apóia o governo emtroca de cargos e verbas para distribuir entre seus eleitores. Cria-seuma esquizofrenia política: os eleitores desprezam os políticos, mascontinuam votando neles na esperança de benefícios pessoais. Paramuitos, o remédio estaria nas reformas políticas145.

É importante ressaltar que, do ponto de vista socioeconômico,

a Constituição inovou ao inscrever direitos normalmente não claramente observáveis

em textos constitucionais – motivo, aliás, de grande controvérsia até os dias de hoje

–, tais como os relacionados à ampliação dos direitos vinculados ao trabalho:

O aspecto [...] [em que] aparece com maior nitidez a 'rejeição dopassado' é no desejo dos legisladores de abolir desigualdadeseconômicas e sociais através da lei. A nova Constituição abrigaextenso rol de novos direitos destinados a aumentar o quinhãoeconômico dos trabalhadores, sejam eles rurais e urbanos. Entreeles está a semana de 44 horas de trabalho em lugar da de 48;rigorosas penalidades por demissão sem motivo justo; licença-maternidade de 4 meses, sem prejuízo de vencimentos; aumento daretribuição salarial para horas-extras e férias; provisão de crechesdiurnas e escolas maternais para filhos de trabalhadores; licença-

144 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.202.

145 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.223-224.

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paternidade de 5 dias, sem prejuízo de vencimentos; e seguro-desemprego e aviso prévio proporcional ao tempo de serviço146.

Como se observa, o avanço da democracia deu-se em várias

frentes, num movimento que procurou suplantar o passado escravista, elitista e

autoritário da formação social brasileira. Novos direitos civis, políticos e sociais foram

então incorporados à Constituição, contudo é preciso lembrar que o Brasil ainda não

atingiu seus objetivos, ou seja, de igualar os direitos aqui conquistados com os dos

países considerados desenvolvidos.

Diante dessas mudanças, países como o Brasil se vêem frente auma ironia. Tendo corrido atrás de uma noção e uma prática decidadania geradas no Ocidente, e tendo conseguido alguns êxitos emsua busca, vêem-se diante de um cenário internacional que desafiaessa noção e essa prática. Gera-se um sentimento de perplexidade efrustração. A pergunta a se fazer, então, é como enfrentar o novodesafio147.

Essas passagens sintetizam a nova fase democrática que teve

na Constituição de 1988 simultaneamente um ponto de culminância (em relação às

lutas democráticas havidas na ditadura) e uma alavanca para a democratização

futura da sociedade brasileira. Deve-se ressaltar, contudo, que, embora a carta

constitucional seja um marco na vida de um país, não se pode adotar uma visão

formalista, isto é, crer que o que está expresso nela seja vigente no mundo real.

Dessa forma, êxitos e fracassos foram colhidos ao longo desse período, mas o fato

marcante para a reflexão é a grande inovação havida, com conclusões distintas

tanto ao nível empírico como conceitual.

Os progressos feitos são inegáveis mas foram lentos e nãoescondem o longo caminho que ainda falta percorrer. O triunfalismoexibido nas celebrações oficiais dos 500 anos da conquista da terrapelos portugueses não consegue ocultar o drama dos milhões depobres, de desempregados, de analfabetos e semi-analfabetos, devítimas da violência particular e oficial. Não há indícios desaudosismo em relação à ditadura militar, mas perdeu-se a crença

146 LAMOUNIER, Bolivar. (Org.). De Geisel a Collor: o balanço da transição. São Paulo: Sumaré,1990, p. 88-89.147 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.226.

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de que a democracia política resolveria com rapidez os problemas dapobreza e da desigualdade148.

Afinal, a nova Constituição antes serviu à legitimação da

vontade das elites e à preservação do “status quo” ou poderá significar um

instrumento de efetiva modernização da sociedade? A assinalar-se inicialmente que

o trabalho constituinte não se encerra propriamente com a promulgação da

Constituição. A regulamentação do novo texto constitucional, assim como a

adaptação da legislação ordinária, representam um prolongamento inevitável e

necessário do processo constituinte. A maior ou menor amplitude dos direitos

constitucionalmente previstos depende consideravelmente da atividade legislativa

pós-constituinte. Além disso, a efetividade destes direitos depende igualmente da

atuação dos partidos políticos e das entidades e associações da sociedade civil,

bem como da consciência e da participação populares. Como vemos, a resposta

àquela questão fica em grande parte em aberto. Independentemente das limitações

apresentadas pela nova Constituição, cabe explorar ao máximo suas virtualidades

no sentido da modernização da sociedade.

Muitos direitos civis, a base da seqüência de Marshall,

continuam inacessíveis à maioria da população. A forma esdrúxula como os direitos

– que dão sustentação à idéia de cidadania – têm sido introduzidos ou suprimidos no

Brasil é que faz a diferença. E muito embora os direitos políticos tenham adquirido

amplitude nunca antes atingida, a partir de 1988, a democracia política não resolveu

os problemas mais urgentes, como a desigualdade e o desemprego. Permanecem

os problemas da área social e houve agravamento da situação dos direitos civis no

que se refere à segurança individual. A conclusão a é de que o direito a esse ou

àquele direito – suponha-se, à liberdade de pensamento e ao voto – não é garantia

de direito a outros direitos – suponha-se, segurança e emprego –, o que tem gerado

historicamente, no caso do Brasil, uma cidadania inconclusa. A garantia de direitos

civis ou políticos no Brasil longe estiveram, e estão, de representar uma resolução

148 CARVALHO, José Murilo de, 1939. Cidadania no Brasil: o longo caminho / José Murilo deCarvalho. – 7° ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p.219.

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dos muitos problemas sociais aqui presentes – e a recíproca é verdadeira –; eles

marcham, segundo José Murilo de Carvalho, em velocidades díspares.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em específico esta pesquisa sobre a temática da cidadania

política no Brasil precisou enfrentar o fato dela ser pouco explorada, dada a

importância ímpar para a compreensão da atual realidade da cidadania nacional, e

aponta para o desdobramento da temática da cidadania em seus aspectos civis,

políticos e sociais. No caso brasileiro, verificou-se a necessidade de cada aspecto

seja considerado a partir de conceitos e das contribuições de estudiosos do porte de

José Murilo de Carvalho, Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, etc.

Partindo da seguinte hipótese de que o pressuposto de alguns

traços culturais característicos da forma de pensar e de fazer política no país têm

permanecido inalterados ou sofreram mínimas modificações ao longo dos tempos,

persistindo no comportamento político institucional de hoje e fazendo com que boa

parte da população fique excluída de seus direitos básicos, conclui-se no sentido da

afirmação do problema.

A análise das condições históricos-políticos nas quais se dá a

consciência social entre nós mostrou-se, portanto, não só importante como

necessária para que se compreenda com mais propriedade o contexto institucional

da atual sociedade brasileira, esclarecendo seu pano de fundo e seus

desdobramentos específicos.

Ademais, buscou-se no presente trabalho apresentar as

transformações ocorridas no conceito de cidadania, desde sua concepção em

Roma, Grécia, assim como nas Idades antiga, média e contemporânea até os dias

atuais, sobretudo do ponto de vista da participação política da sociedade brasileira.

A escravidão, que para José Murilo de Carvalho foi o aspecto

mais negativo no tocante a cidadania brasileira, ainda hoje, percebe-se os seus

reflexos negativos na sociedade.

Atualmente os anseios desse povo estão aquém do mínimo

exigido de direitos para um país considerado democrático e que tem positivado em

sua atual constituição vários artigos que tutelam direitos básicos dos cidadãos. Essa

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população que desde a sua chegada ao Brasil foi excluída, continua a ter os piores

índices de indicação social. À época da escravidão eram considerados como coisas,

destituídos de qualquer direito, e ainda hoje falta muito para se poder considerá-los

cidadãos plenos.

Quanto ao sistema político no período da escravidão já havia

manipulação, fraude e corrupção. Assim, conclui-se que dados os problemas do

sistema vigente, a culpa era do governo e das elites que sobrepujavam os direitos

básicos dos escravos. José Murilo de Carvalho afirma que os juízes, oficiais da

Guarda Nacional, chefes de polícia e seus delegados, presidentes de províncias ou

estados, chefes de partidos políticos, ou seja, todos eram coniventes com o sistema

e se aproveitavam disso.

Outro aspecto negativo para a consolidação da cidadania

política no país foi o coronelismo. Este sistema, marcado pelo domínio dos grandes

proprietários de terras, dominaram o cenário político nos municípios brasileiros,

sobretudo norte e nordeste do Brasil entre 1889 e 1930.

Victor Nunes Leal em sua obra, “Coronelismo, voto e enxada”,

assevera que o sistema era marcado pelo domínio privado sobre o público. Os

senhores impunham aos empregados das fazendas a sua vontade, prática esta que

fazia com que se mantivessem no poder, administrando o município como se dono

fosse, indicando nomes para todos os cargos da cúpula da administração, conforme

a sua vontade política.

Destarte, o coronelismo tinha sua sustentação numa rede de

relações que ultrapassava os limites do próprio município. Este sistema era

garantido de cima para baixo, ou seja, os governadores dos Estados garantiam as

eleições para o Congresso Nacional de representantes que não se opunham ao

Presidente. Por sua vez, a Presidência não interferiria nas eleições estaduais. Os

governadores escolhiam os representantes para as Assembléias Legislativas. Desta

forma, o coronel no município assegurava o controle dos eleitores, de forma a fazer

com que a população sob seu domínio votasse nos candidatos indicados por eles,

isso porque, era tudo que o coronel poderia oferecer em troca de seu domínio no

município.

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Aqui se faz necessário frisar ainda que, tendo em vista a

existência para expressar as práticas políticas brasileiras, a pesquisa discorreu

sobre os mesmos com o intuito de buscar semelhanças e diferenças.

Mas, se desde os primórdios da história política do Brasil até os

dias atuais ainda temos um sistema falho, recheado de práticas pouco democráticas,

há também algumas conquistas durante esse percurso, em que pese na maioria das

vezes elas serem objetos de doação dos governantes, o que efetivamente não

contribui para que a sociedade solidifique seus direitos.

Como exemplo do acima explicitado, foi o Governo de Getúlio

Vargas, o qual concedeu aos trabalhadores a CLT (Consolidação das Leis do

Trabalho), direitos que até hoje preservam o trabalhador contra abusos cometidos

pelo empregador. Contudo, não há como esquecer que essas conquistas tiveram um

preço. Com seus poderes quase ilimitados, Getúlio Vargas tinha como objetivo

atender os interesses das novas elites urbanas, preservar certos privilégios dos

latifundiários e garantir o apoio da classe operária. A industrialização, junto com a

urbanização, reservou à classe operária um importante papel dentro do projeto

nacionalista e levou o Estado a desenvolver uma política de manipulação.

Portanto, o país da década de 30 a 1964 pôs em prática uma

política compensatória, consistente em revogar direitos políticos substituindo-os por

direitos sociais. Ressalta-se ainda que boa parte do período (1930- 1945) foi

caracterizado por práticas que limitaram o exercício da cidadania, pois o regime foi

ditatorial.

Para José Murilo de Carvalho, o Brasil neste período inverteu a

ordem dos direitos descritos por Marshall. Os direitos sociais no Brasil foram

concedidos primeiro pelo governo antes da expansão dos direitos políticos.

Ademais, salienta que os trabalhadores foram incorporados à sociedade por virtude

das leis sociais e não de sua ação sindical e política independente.

No período de 1945 a 1964, quando da promulgação da

Constituição de 1946 houve avanços, sobretudo mantendo os direitos já existentes

do período anterior. Houve eleições regulares e vários partidos políticos foram

organizados. Em fins da década de 1950 estava praticamente integralizada a

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transição para o capitalismo no Brasil, significando concretamente que a importância

econômica do setor capitalista (a indústria) ultrapassava a de um setor ainda

basicamente pré-capitalista (a agricultura).

Nesse período de transição do rural para o urbano, apesar da

oposição civil e de revoltas militares, a habilidade do novo presidente, Juscelino

Kubitschek, dirigiu o governo mais dinâmico e democrático da história republicana.

Sem recorrer a medidas de exceção, à censura da imprensa, a qualquer meio legal

ou ilegal de restrição da participação, desenvolveu vasto programa de

industrialização.

Com o golpe de 1964, colocando os militares no comando do

país houve a supressão das liberdades. A ditadura foi determinante no

desencadeamento de revoltas, censuras, exílios políticos, torturas e muitas mortes.

Neste ambiente, os direitos civis e políticos seriam duramente sufocados pela

repressão. Nesse regime foi instituído os Atos Institucionais, os quais solapavam

direitos e garantias já conquistados. Dentre eles, o mais notório e repressor foi o de

nº5 (AI –5).

Ainda neste período, na contramão do chamado milagre

econômico, faz-se necessário indicar que houve um paradoxo entre a expansão da

economia e os direitos sociais com a supressão de direitos, sobretudo dos direitos

políticos e da liberdade de expressão. O regime teve seu fim em 1985 com a

campanha das diretas já.

Mas apesar do fim do regime ditatorial, o regime republicano

ainda estava muito aquém do ideal, ou seja, substancialmente o regime havia

mudado, mas não os políticos e as suas práticas, pois ainda subsistia um governo

conservador nos mesmos moldes dos antecessores. Para Raymundo Faoro, a

exclusão social e a exclusão política minava com a pretensão do regime

republicano.

Não obstante esses fatos, após a promulgação da Constituição

de 1988 em que se positivou inúmeros artigos que tutelam garantias fundamentais

do indivíduo, além de outros avanços importantíssimos para a consolidação da

cidadania, o que se nota, no entanto, é que só a positivação dos direitos na

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Constituição cidadã, como ficou conhecida, por si só, não garante a efetividade dos

direitos, ou seja, existe um longo caminho entre a garantia formal da material a ser

superados.

Passados mais de 20 anos do fim regime militar, a população

já se deu conta de que as mesmas práticas políticas, incluindo a corrupção, estão de

volta. Os partidos com seu políticos deixam à imagem de que são incapazes,

corruptos e voltados unicamente para seus interesses pessoais.

O Judiciário com sua máquina pesada, lenta, onerosa e muitas

vezes ineficiente também não contribui para a garantia dos direitos tutelados,

deixando na população uma imagem de que funciona única e exclusivamente para

defender os interesse da sociedade mais abastada.

Do exposto, chega-se à conclusão de que só a capacidade

ativa e passiva do indivíduo na sociedade não é suficiente para garantir-lhe os

direitos básicos de um cidadão pleno. As práticas eleitorais de compra de votos, de

manipulação dos eleitores é notório em épocas de eleições. Inúmeros processos são

julgados pelo judiciário eleitoral referentes a essas condutas.

A população sem acesso a educação e a informação fica a

mercê desse círculo vicioso e também contribui para que o sistema funcione em

benefício daqueles que se utilizam de tal conduta. Isso porque, é comum,

principalmente em municípios menores haver a troca de votos por mercadorias ou

de outro benefício qualquer. O voto é bem um objeto de troca. A população

conhecedora desse fato, inadvertidamente, vê ali uma forma de barganhar algum

benefício, pois supostamente tem no político uma figura de que tudo promete mas

nada cumpre. Portanto, é na campanha o momento ideal para se conseguir alguma

coisa.

Assim, conclui-se que houve inúmeros avanços de tutela de

garantias dos cidadãos, sobretudo no campo formal, mas que os vícios de outrora

permanecem inalterados. Mudam-se alguns conceitos, mas não as suas práticas de

manipulação, corrupção, uso do poder público em benefício próprio, mantendo uma

realidade nua e obscura para aqueles que foram e ainda são excluídos da

sociedade.

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