O HOMEM ENQUADRADO: REFLEXÕES SOBRE A MASCULINIDADE NO UNDERGROUND, A PARTIR DA REVISTA CHICLETE COM BANANA
Anne Caroline da Rocha de Moraes
Universidade Federal do Paraná
Resumo. Produzida pelo cartunista Angeli em parceria com Laerte, Glauco e Toninho Mendes, a revista Chiclete com Banana é um marco no mercado editorial brasileiro no que se refere às histórias em quadrinhos para adultos. Lançada em 1985 pela Circo Editorial, ela revolucionou tanto na estética - que se aproximava do formato dos fanzines punks - como no modo de fazer humor, realocando as críticas à ditadura militar e a política institucional para um humor corrosivo, que tinha como principal foco os costumes da classe média urbana. Foi produzida na cidade de São Paulo, mas circulou por todo país, principalmente nos ambientes da cultura underground, e em seu conteúdo trouxe especialmente histórias em quadrinhos (HQ's) nas quais os cartunistas representavam seu cotidiano na capital paulista. Um ambiente de produção totalmente masculino foi percebido em toda revista através das representações nas HQ's, o que trouxe à tona o debate a respeito das relações de gênero dentro desse segmento da sociedade - que se colocava em oposição aos valores e costumes vigentes. Um dos objetivos deste trabalho é analisar, sob a luz da história cultural, quais são as possibilidades de se compreender as relações de gênero, principalmente a(s) masculinidade(s), por meio das representações nas imagens e narrativas das tiras produzidas pela revista. Deste modo, buscar compreender como se produziam e o que significavam as identidades de gênero masculinas no underground paulistano. Palavras-chave: Cultura underground; masculinidade; histórias em quadrinhos; humor paulistano. Introdução
Os estudos históricos das relações de gênero não são mais novidade há algum
tempo. E mesmo que a maioria desses estudos tenha como foco as mulheres, os
estudos sobre a constituição das masculinidades tomaram força no Brasil,
principalmente no início desse século1. Grande parte destes trabalhos, incluindo este,
tem como objetivo desnaturalizar as divisões de gênero como fixas e imutáveis,
1GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Ciênc. saúde coletiva, Rio de janeiro, 2005, vol.10, n.1, p.48.
apontando as mudanças históricas e o modo pelo qual o gênero é constantemente
produzido e reproduzido por diversos discursos.
Este artigo se trata de um primeiro esboço da pesquisa de mestrado no qual
buscarei compreender como a masculinidade pode ser pensada através dos estudos de
Histórias em Quadrinhos. Uma vez incluída no hall de fontes históricas legítimas, as
HQ’s tem demonstrado sua potencialidade em articular noções abstratas através de
signos dados e criados na interação entre artista e leitor. Como aponta Will Eisner:
O quadrinho tenta lidar com os elementos mais amplos do diálogo: a capacidade decodificadora cognitiva e perceptiva, assim como a visual. O artista para ser bem-sucedido nesse nível não verbal, deve levar em consideração a comunhão da experiência humana e fenômeno da percepção que temos dela, que parece consistir em quadrinhos e episódios2
Nesse sentido, o autor só pode ser compreensível se conseguir articular signos de
maneira inteligível, o que exige uma especial observação de sua própria sociedade e
relações sociais; principalmente nas histórias em quadrinhos undergrounds que visam
fazer uma crítica a sociedade e aproximar-se do leitor através da discussão de temas
cotidianos.
Deste modo, pretende-se articular a utilização das HQ’s como fontes históricas -
visando captar as contribuições destas para o campo historiográfico - focando nas
possibilidades diversas de se interpretar as relações de gênero de uma dada
sociedade. Para isso utilizarei uma história específica da revista Chiclete com Banana3,
buscando delinear especificamente de que modo a masculinidade é tratada ali. O texto
se organiza da seguinte forma: elucidação sobre o contexto underground de produção
da revista, as influências e características do artista que produziu a obra, para enfim,
fazer uma análise, apresentando as possíveis interpretações acerca da questão da
masculinidade nesta fonte.
Chiclete com Banana
A revista Chiclete com Banana se trata de uma produção bimestral feita para
2 EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo, 1999, p. 26. 3 “Bibelô com participação especial de Mara Tara” - desenhada por Angeli. CHICLETE COM BANANA, nº5, 1986, p.35.
adultos, possuindo como temática recorrente os acontecimentos cotidianos que
ocorriam na metrópole paulista no período de redemocratização do Brasil(1985-1990).
A revista custava 9.000 cruzados em sua primeira edição, a mais cara do ramo -, era
diferente das revistas em Histórias em Quadrinhos usuais, seguia formato magazine da
revista de humor norte-americana MAD (20,5 x 27 cm), que era sua principal
concorrente. Com exceção da capa, o conteúdo da revista era impresso em papel-
jornal, tudo em preto e branco, por ser o mais barato – visto que a revista não continha
publicidade, e sobrevivia unicamente das vendas. Essa estética, sem cores e papel
barato colaborou para externar a ideia de um produto underground, próximo aos
fanzines punks. O estilo fanzineiro não se restringia à estética, pois - fazendo uma
aproximação ideológica -, não tinham como objetivo principal o lucro; antes, visavam
“chocar, irritar, levantar discussões e levar as pessoas a repensar suas opiniões"4.
Mesmo sendo um produto que buscava uma estética e uma ideologia underground, a
Chiclete com Banana teve ampla distribuição, tendo cerca de 120 mil exemplares
impressos em cada edição, que foram distribuídos por todo país.
A revista transpôs o humor político que até então era focado na política
governamental e na luta anti-ditatorial no Brasil - tendo como principal nome o
semanário O Pasquim-, para uma discussão a respeito do cotidiano e do
comportamento dos viventes da metrópole paulista. Arnaldo Angeli Junior foi o editor e
o principal quadrinista da revista Chiclete com banana, lançada pela Circo editorial -
editora criada em 1984 por Toninho Mendes. Este percebeu que havia muitos
quadrinistas com talento e que não havia um mercado disposto a receber esses artistas
- a não ser nos poucos grandes jornais, com as tiras diárias. Deste modo, ele e Angeli
4 Os movimentos undergrounds se caracterizam por transportar a “revolução” para o âmbito do indivíduo. Logo tanto o comportamento consumista como o conservadorismo sexual são colocados em questão por essa juventude. Principalmente no punk “a crítica irônica é mais voltada ao presente e ao cotidiano do que ao ‘governo’ ou ao ‘futuro da revolução’, que deixam de ser entendidos como os únicos alvos possíveis para a atuação política. Isso ocorre devido a uma representação negativa do espaço público e da política partidária, marcados como lugares de violência, despolitização e corrupção” Cf.: MORAES, Everton de Oliveira. Deslocados, desnecessários: o ódio e a ética nos fanzines punks (Curitiba, 1990-2000). Florianópolis, 2010, p.14. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
pensaram e articularam a Circo Editorial que reuniu publicações de Laerte, Glauco, Luiz
Gê, Irmãos Caruso, entre diversos outros nomes importantes para os quadrinhos
nacionais.
Quando a revista Chiclete com Banana foi lançada Angeli era um nome conhecido
da área, pois trabalhava em tiras diárias no jornal Folha de S. Paulo desde 1975 (onde
encerrou as tiras diárias, em maio de 2016); ali estrearam a maioria de seus
personagens mais conhecidos, tais como Rê Bordosa, Bob Cuspe e Meia Oito. Essa
estabilidade financeira foi o que possibilitou a Angeli trabalhar de maneira autônoma em
outros projetos, como foi a revista citada. A arte de Angeli teve influência direta tanto do
semanário brasileiro O Pasquim quanto do estadunidense Robert Crumb. Sendo Crumb
o principal quadrinista da geração underground em seu país – influenciou Angeli em
seu traço “pesado”, associado a ausência de cor e ao material barato de impressão, dá
a aparência de “poluição visual”. Esse estilo ajudava a passar a ideia de “sujeira” da
metrópole onde todos seus personagens vivem, contendo um rompimento direto com o
estilo mainstream de produção norte-americana (estilo das HQ's de heróis).
O modo pelo qual “real” e o “ficcional” se entrelaçam na narrativa de Angeli é
peculiar visto que ele busca expressar questões do cotidiano da metrópole,
caricaturando a visão sob determinados acontecimentos e sentimentos, através de seus
personagens. Como ele mesmo afirma:
Antes de tudo eu sou um voyeur. Gosto de ficar admirando as pessoas, sacando trejeitos, linguagem. Adoro ir num bar à meia-noite e ficar até as cinco da manhã olhando. (...) Muitos personagens nasceram da observação de um grupo, de um tipo de gente, de uma espécie qualquer e aí eu trago para o papel e começo a mexer. O personagem só fica interessante quando eu misturo umas coisas minhas com aquilo.5
5 Angeli cresceu no bairro da Casa Verde em São Paulo em companhia de seu amigo Toninho Mendes. Aos treze conseguiu emprego de office-boy, e foi então que conheceu verdadeiramente sua cidade, iniciando naquele momento a observação do que seria o futuro cenário de seus mais importantes personagens. Durante um curto período, morou no Rio de Janeiro onde teve contato com a produção do semanário O Pasquim. Possuia caráter crítico em relação a sociedade conservadora e uma simpatia pelos movimentos alternativos. Cf.:SANTOS, Aline Martins dos. São Paulo e o “cenário urbano” representado através das histórias em quadrinhos presentes na revista Chiclete com Banana de Angeli. Revista Contemporânea, Salvador, ano 1, nº1, p.149.
Num contexto mais abrangente, o processo de redemocratização do país trazia
um novo momento para a mídia. Depois dos anos dos mais diversos tipos de censura,
neste ponto os quadrinistas “testavam” os limites da “Nova República”. As críticas feitas
a sociedade ou a política se deslocam de um humor carregado metafórico, e passam a
ser representados de maneira “escrachada”, com forte apelo a nudez e palavrões.
Dentro do âmbito das HQ's existe uma consolidação de um público fiel e
especializado, e este é comumente conhecido por ser majoritariamente masculino. A
Circo Editorial não é exceção, o ambiente de produção é ocupado somente por
homens, com ressalva da quadrinista Ciça que tem um livro publicado pela editora. Em
entrevista para o programa Roda Viva, Angeli pergunta para Laerte se este não se
sentiria “intimidado” por aquele ambiente possuíam “muita masculinidade”6 – visto que
atualmente Laerte se assumiu transgênero. Em resposta à Angeli, Laerte afirma que
não se sentia constrangido apesar de aquele ambiente ser “cheio de
heterossexualidade”7.
Esse ambiente, citado por Laerte, pode ser caracterizado por uma série de
contradições, visto que neste período ocorria uma mudança nas relações de gênero
ocasionada principalmente pelo movimento feminista. Os papeis tanto femininos quanto
masculinos começam a ser repensados, ao mesmo tempo em que a rigidez moral da
ditadura militar era uma sombra que seguia país durante o período da
redemocratização8. Esses embates aparecem na revista Chiclete com Banana de
maneira peculiar, visto que a composição underground possui caráter diferente das
produções da mídia de massas.
Antes de analisarmos a História em Quadrinhos precisa-se clarificar que quando
trabalhamos com categorias de gênero, como masculino e feminino, não estamos
6Angeli, Laerte e Glauco foram criadores de Los três amigos, histórias publicadas na Chiclete com Banana . Cf.: LAERTE - 20/02/2012. Entrevista com cartunista Laerte Coutinho ao programa Roda Viva. 86’12’’. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=j5hXQDThUiA>. Acesso em: junho de 2016. 7Laerte trabalhou com Angeli e Glauco em diversos projetos, inclusive na Chiclete com Banana. Na época da revista era bissexual, e em 2009 passou a se auto-ntitular como transgênero. 8Cf.: NOLASCO, Socrates Alvares. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995, p.17-18.
lidando com objetos biológicos. Esse conceito foi cunhado sob a ideia de que não existe
uma definição “natural” para o que entendemos como homem e mulher, o que ocorre é
um processo de constante construção dessa imagem generificada, que associa
determinadas características dos sujeitos a um determinado estereótipo. Por exemplo,
quando se diz homem várias associações são feitas: se define um corpo, uma
sexualidade e o desejo desse sujeito. Sendo “gêneros inteligíveis” aqueles que
articulam de maneira “coerente” o que se espera de alguém que tenha determinada
característica física (o sexo). Do homem se espera que pelo fato de ter pênis, seja
coerente ter desejo e manter relações sexuais com mulheres (heterossexualidade), e
ter “aparência” de homem - roupas específicas, vocabulário, modo de agir, etc9. A
coerência dessa relação não é algo fixo e imutável, é reordenada conforme
determinadas sociedades e momentos históricos.
Em nossa sociedade ocidental, por uma série de questões históricas ocorre uma
constante limitação do gênero em uma binaridade: o feminino e o masculino. Dentro
desse esquema, uma série de características são constantemente reafirmadas como
diretamente referentes a cada papel social, deste modo, “alguns comportamentos são
definidos pela cultura como pertencentes a um ou outro sexo, aos quais o homem e a
mulher 'devem recalcar para serem reconhecidos como homem e mulher'”10.
Masculino e feminino não existem em separado, eles são uma relação intrínseca:
do homem se espera virilidade, racionalidade, inteligência, em contraponto a mulher
deve ser passiva, submissa, delicada e emocional; modelos que vêm de um esquema
binário recorrente em nossa sociedade de divisão entre cultura/natureza,
razão/emoção, público/privado, mente/corpo, homem/mulher11.
No programa Roda Viva, enquanto Angeli fala de um comportamento “cheio de
masculinidade”, Laerte fala em “heterossexualidade”. Laerte, que atualmente é uma
9BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013 p.38. 10 TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, v.24, p.140. 11 GIFFIN, Karen. Op. cit., p.48.
mulher-trans bissexual, comenta que recalcou “seu lado homossexual” e por vezes era
homofóbico, por conta do contexto de heterossexualidade quase “compulsória” no qual
estava inserido. Esse ambiente de constante reafirmação de uma masculinidade
pautada na heterossexualidade pode ser visto na revista, mas não podemos restringi-la
a isso, como veremos na HQ's a ser analisada.
O encontro entre Bibelô e Mara Tara
Esta história foi um importante momento para a revista, pois ocorreu o encontro
entre dois personagens fixos muito apreciados pelos fãs: Bibelô e Mara Tara. Ambos
são reconhecidos por suas histórias, nas quais o tema principal são as complicadas
relações entre os gêneros.
Figura 1 "BIBELÔ E MARA TARA" Fonte: Revista Chiclete com Banana, nº5 (1986, p.35)
Mara é uma cientista que estuda o “o sexo das bactérias”, graficamente é
representada com jaleco, corpo todo coberto, óculos, e seu discurso denota uma
mulher “recatada”. Por conta de seu estudo sobre as bactérias ela é “infectada” pelo
vírus ninfu maníacus, a partir desse momento, toda vez que é submetida a situações
“sexuais” ela se transforma em Mara Tara, uma ninfomaníaca. A transformação é visível
em suas roupas e comportamento que na maioria das histórias possuem teor
sadomasoquistas; como em seus diálogos e comportamento que a denotam como uma
“viciada em sexo”. A personagem pode ser entendida como encarnação de uma
fantasia masculina, baseada no estereótipo de que a mulher deve ser “recatada”
publicamente e “tarada” no ambiente privado. Sendo lida como uma mulher-objeto do
desejo masculino, representada de maneira “hiperbólica”, ela rompe essa divisão entre
o âmbito público e privado.
Já Bibelô, segundo Angeli em entrevista: “é um machão que trata as mulheres da
maneira mais porca possível [...] toda vez que eu sinto que está saindo pra fora esse
machão, lembro que é ridículo ser igual ao Bibelô”12. Deste modo, podemos entender
que o quadrinista possui uma visão crítica a respeito das relações de gênero, já
consciente de que ocorreram mudanças, ao contrário de seu personagem, que está
“atrasado” em relação ao modo de se relacionar com as mulheres. Somente pela
existência deste personagem podemos concluir que existe o questionamento a respeito
do papel do homem neste período e fica claro que há uma negativação de um
determinado “tipo” de masculinidade.
Olhando a expressão gráfica de Bibelô, podemos ver que se trata de um homem
mais velho por conta da representação das marcas deixadas pela barba, pelo uso do
bigode, do palito na boca (primeiro quadro), da camisa aberta com os pelos expostos e
o pente na mão – que em conjunto denotam um estereótipo de “tiozão” ou “homem
bruto”, homem “à moda antiga”. A história se inicia com ele chegando num bar onde
aparecem sentadas algumas mulheres de costas quando ele diz “Não se afujam
12 SANTOS, Aline Martins dos. “Udigrudi”: o undergound tupiniquim: Chiclete com Banana e o humor na redemocratização brasileira. Niterói, 2012 , p. 113. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012.
garotas!! Chegou um macho no pedaço”, denotando o desprezo de Bibelô em relação
aos outros homens presentes no bar que não seriam “machos” como ele 13.
Ouvindo o comentário Mara Tara se vira e conversa expressando o quão surpresa
está por estar na presença de um “macho no duro mesmo”; deste modo, a personagem
denota que não existiriam mais muitos “machos” de verdade. Esse diálogo inicial já
pode apontar que a masculinidade relacionada ao “homem à moda antiga” já está
ultrapassada, tanto que é difícil encontrar “homens como Bibelô”. Podemos entender
isso quando Angeli comenta que ele mesmo reprimia seu lado “Bibelô”, pois sabia o
quão ridículo era ser como ele. Segundo Nolasco, a partir da segunda metade da
década de 80 começa a entrar em pauta - quase que exclusivamente na mídia feminina
- um debate sobre um “novo homem” que questiona os papeis clássicos do masculino14.
Aqui, podemos ver que de algum modo o debate se estendia a vários âmbitos da
sociedade, inclusive no ambiente underground no qual circulava Angeli.
No terceiro quadro Mara Tara inicia com o que podemos chamar de “inversão” dos
papéis de gênero. Segundo Nolasco, a sexualidade masculina é baseada num
imaginário marcado pela “força, poder e dominação” na qual a mulher já não é “outro-
sujeito” e sim “outro-objeto”15. Neste caso, o agente dessa violência sexual dominadora
- que geralmente seria perpetuada pelos homens – tem ressonância em Mara Tara,
uma mulher. O caráter cômico está tanto relacionado a essa “inversão” de papeis,
quanto pelo fato de Angeli representar uma “vingança” feminina contra Bibelô. Se
durante as outras histórias ele assedia e deixa as mulheres constrangidas, nesta o
script se inverte, e quem termina assediado e constrangido é o próprio personagem.
A aparente intenção de Angeli seria ridicularizar Bibelô, e consequentemente
homens com esse mesmo perfil. Mas ao zombar da masculinidade, Angeli acaba por
13 Mesmo que não haja nenhum outro homem nesse quadro – somente o garçom Juvenal que aparece no último-, é possível concluir que neste bar tenham várias pessoas, inclusive outros homens. A conclusão se trata do mecanismo no qual a partir de fragmentos de uma imagem, seja possível se imaginar o todo. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos: história, criação, desenho, animação, roteiro. São Paulo: M. Books, 2005, p.63 14 NOLASCO, Sócrates. Op.cit., p.172. 15 Idem, pp. 71-72.
reiterar o que seria o objeto da crítica. Para questionar o comportamento “machão” ele
coloca em questão a própria sexualidade do personagem: Bibelô não conseguiu “dar
conta” de uma mulher como Mara Tara. Ou seja, aquela “masculinidade” é uma
performance, pois quando sua virilidade é “posta a prova”, através do assédio de Mara
Tara o personagem acaba por mostrar sua verdadeira máscara, é um “marica”. Penso
em performance no sentido dado por Butler onde “em vez de pensarmos em
identificação original o gênero é visto como história pessoal/ cultural de significados
recebidos, sujeito a um conjunto de prática imitativas que constroem a ilusão de um
gênero”16. Aqui Angeli mostra que o “último dos machos” na verdade se trata de uma
“imitação” do que “deveria” ser um “macho”.
Conforme as investidas de Mara Tara vão se acirrando, podemos perceber uma
crescente ansiedade por parte do personagem, denotada pelo número crescente de
gotas de suor representadas. Também o diálogo é interessante, pois Bibelô utiliza
frases que são entendidas como “desculpas” femininas para não ceder ao assédio
masculino: “ vamos levar um papinho antes?”; “puxa... já é tarde... tenho um
compromisso...”. O papel dos gêneros sendo “invertidos” causa a ansiedade no
personagem, ele passa representar o papel feminino e percebe isso. Pensando que
existe “uma realização performativa [do gênero] em que a platéia social mundana,
incluindo os próprios atores, passam a acreditar, exercendo-o sob forma de uma
crença”17; essa crença é colocada em cheque, pois ele percebe o caráter performático
do gênero, já que na história ele é passivo e não-viril, causando constrangimento e
ansiedade no personagem que não consegue lidar com tamanha contradição interna.
O último quadro é estendido e nos dá uma visão panorâmica da cena. Bibelô
finalmente mostra sua “indignação” com um grito, expressa pela frase em negrito, que
finalmente demonstra o que ele pensa sobre Mara Tara. “Louca!Tarada!”, só vai tirar a
cueca “passando por seu cadáver!”; ou seja, sendo a sexualidade masculina
16BUTLER, op, cit., p.197. 17 Idem, p. 200.
diretamente relacionada a uma “necessidade de dominação, ascendência e controle de
um sobre o outro”18, Bibelô só consegue compreender a relação com uma mulher
enquanto é o seu desejo que tem centralidade na relação. Já a “passividade, a
quietude e a submissão são qualidade opostas àquelas pelas quais serão socializados
os meninos. Contudo essas qualidades serão desejadas nas mulheres.”19. Deste modo,
no momento em que Mara Tara recusa a passividade de seu papel feminino, ela “toma
as rédeas” da situação e “rouba” o lugar de Bibelô; não por acaso, ele passa a repeli-la.
Para se vingar de seu personagem, Angeli o coloca em uma situação de
questionamento da “masculinidade” ele a mostra como uma performance do que seria
ser “macho”, mais do que numa verdadeira e natural virilidade sexual. Visto que, pelo
fato de Mara Tara não ser uma mulher passiva, Bibelô não consegue cumprir seu papel
de “macho”.
Colocando a história dentro de seu contexto de produção, podemos pensar que
a principal ideia de Angeli, nessa história, seria zombar de homens que são “machões”
como Bibelô, mas ao fazer essa crítica ele reitera parte da própria masculinidade que
estava sendo questionada: a recusa de Bibelô a se relacionar com Mara Tara pode dar
a entender que “machões” como Bibelô causam o riso porque não conseguem levar a
cabo sexualmente o que proporiam em suas atitudes; ou seja, Bibelô é humilhado
porque não é “macho” o suficiente para aceitar as investidas de Mara Tara. Deste
modo, se a masculinidade do personagem pode ser entendida como uma performance
que fora desmascarada, existe implicitamente a crença que há uma verdadeira
masculinidade que não é apenas “fingimento”. Esse “verdadeiro macho” (talvez
encarnado no leitor ou no próprio Angeli) não precisaria ser “grosso” ou “rude” como
Bibelô, ao contrário, não precisa de uma atuação externa, poderia provar sua
masculinidade simplesmente reafirmando sua virilidade possuindo (mulheres como)
Mara Tara.
18NOLASCO, Sócrates, op.cit,. p.67 19 Idem p.68.
Considerações finais
Em nenhum momento Bibelô é questionado sobre seu corpo masculino, sobre o
desejo ou sexualidade heterossexual, nem em seu gênero (“mostrado” no seu modo de
se comportar). Sua masculinidade é balançada pelo fato de a mulher não ter papel
passivo nessa história.
Ao mesmo tempo em que Angeli expressa, talvez sem intenção, um caráter
performático da masculinidade de Bibelô ele mostra desconforto causado por esse novo
papel feminino, ativo. Mesmo tendo consciência do “novo homem” que tem sido
gestado em contraponto àquela “velha masculinidade”, ele denota que existe um medo
implícito em se relacionar com mulheres “ativas”. Mara Tara, de algum modo representa
uma mulher que recusa (mesmo que inconscientemente, já que só é ninfomaníaca
porque foi “infectada” por um vírus) ter o papel que lhe foi dado socialmente; não só
respondendo Bibelô, mas assumindo a atitude dele, ela faz uma espécie de vingança,
colocando o homem numa situação de constrangimento - que geralmente as mulheres
são colocadas.
Neste caso masculino e feminino são colocados em relação direta, desnudando a
artificialidade de ambos; não existindo uma ‘natureza’ definida pelos ‘sexos’ - o homem
não é naturalmente viril, e a mulher não é naturalmente passiva. Bibelô é questionado
em sua performance do masculino; ao mesmo tempo o medo de uma mulher ativa é
denotado; e por fim, o leitor pode rir pois pensa que Bibelô é um “marica”, e um
“homem de verdade” ficaria feliz com o fato de ter sido assediado por Mara Tara.
Assim, podemos concluir que no ambiente em que a revista foi produzida existia
um entendimento e até um questionamento a respeito das relações de gênero. A
masculinidade retratada no personagem é alvo de crítica, o que denota uma
preocupação em tentar desconstruir essa “imagem” de homem “grosso” e “rústico” que
trata as mulheres, segundo Angeli, de maneira “porca”. Mas percebemos que se trata
de um cenário permeado de contradições internas, onde a própria crítica carrega algo
de conservador; mesmo o underground ainda conserva algo das ideias machistas que à
priori estavam sendo contestadas.
Referências
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. São Paulo, 1999 GIFFIN, Karen. A inserção dos homens nos estudos de gênero: contribuições de um sujeito histórico. Ciênc. saúde coletiva, Rio de janeiro, 2005, vol.10, n.1. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos: história, criação, desenho, animação, roteiro. São Paulo: M. Books, 2005, MORAES, Everton de Oliveira. Deslocados, desnecessários: o ódio e a ética nos fanzines punks (Curitiba, 1990-2000). Florianópolis, 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010. NOLASCO, Socrates Alvares. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. SANTOS, Aline Martins dos. São Paulo e o “cenário urbano” representado através das histórias em quadrinhos presentes na revista Chiclete com Banana de Angeli. Revista Contemporânea, Salvador, ano 1, nº1. SANTOS, Aline Martins dos. “Udigrudi”: o underground tupiniquim: Chiclete com Banana e o humor na redemocratização brasileira. Niterói, 2012. Dissertação (Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012. TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, v.24.