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Os Marados de Gadamael
e os dias da
Batalha de Guidaje
Daniel de Matos
Unir as Pontas da Memória
(À laia de introdução)
É estranho e deveras angustiante participarmos em cerimónias fúnebres de camaradas que
morreram ao nosso lado, coladinhos ao nosso corpo, no mesmo buraco, mas há… 36 anos e meio!
Ainda por cima quando além de camaradas de armas eram já amigos do peito e quando, devido a
circunstâncias que demoram a explicar, tivemos de os enterrar algures no mato, sem a convicção
absoluta de que os depositávamos nas suas últimas moradas, tendo todas as incertezas do Mundo
quanto ao destino que poderiam levar os respectivos corpos.
O regresso e a devolução às respectivas famílias dos corpos do furriel Machado, do primeiro-
cabo Telo e do soldado Geraldes, as honrarias militares a que tiveram direito junto ao “Monumento
Nacional aos Combatentes do Ultramar”, junto ao Forte do Bom Sucesso, em Belém/Lisboa, e as
homenagens que lhes foram rendidas nos funerais efectuados nas respectivas terras natais, – em
Valpaços, no Paul do Mar/Madeira e no Vimioso – vieram reactivar memórias que repousavam no
arquivo dos tempos idos. Já antes, durante a bem organizada campanha para a exumação e
trasladação de alguns dos outros corpos sepultados em Guidaje, e quando os três pára-quedistas da
CPP 121 regressaram a Portugal e às suas famílias, algo voltou a agitar as nossas consciências e nos
fez recuar no tempo e no espaço. É que, vistas desta maneira, afinal as coisas não decorreram assim
há tanto tempo, foram ontem, estão mesmo a acontecer, agora.
Existem múltiplos relatos dos acontecimentos de Maio de 1973 em Guidaje – livros,
depoimentos diversos, testemunhos, documentos na internet, – e, no entanto, que eu conheça, em
lado nenhum figuram referências à CCaç 3518. Excepto… nas campas! E isso tem conduzido muita
gente a perguntar por que raio estaria nesses dias tanto pessoal de Os Marados de Gadamael em…
Guidaje? O que fazia, como foi lá parar? Quem foram Os Marados e, se o nome próprio refere outro
local, o que os levou a Guidaje numa altura tão crítica como a que por lá se viveu durante esse mês?
Eu próprio, em conversa (por e-mail) com um grande e velho amigo, – o coronel A. Marques
Lopes, agora na reserva, – ao informá-lo que tinha estado em Guidaje e fora “utente” do infausto
abrigo de que muitos hoje falam, mas de que (felizmente para os próprios) poucos lhe conheceram os
horrores, recebi dele a seguinte resposta: “o coronel Ayala Botto, que foi adjunto do Spínola, e foi com
ele a Guidaje em 1973, põe em dúvida que a tua companhia estivesse em Guidaje na altura do cerco.
Diz mais coisas. Ou escreve para o Blogue!!! A. Marques Lopes” (o blogue a que se refere é o
conhecidíssimo, e de grande mérito, “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que contém uma
quantidade apreciável de textos, fotografias e testemunhos, muitos dos quais de relevância e interesse
históricos).
A verdade é que estão inventariadas em inúmeros textos as unidades que participaram na
batalha de Guidaje, sendo omissas referências à nossa companhia. Bem, mas se para alguns é
duvidosa e difícil de explicar a presença d‟Os Marados de Gadamael tão em cima da fronteira norte
com o Senegal, pior se tornará se tentarem explicar como raio é que no cemitério improvisado de
Guidaje ficaram enterrados três dos mortos que ali sofremos!...
O reavivar do assunto, devido ao processo de trasladação das ossadas em 2009, e esperando
que este hiato de tempo tenha esfriado a sensibilidade dos familiares para que hoje em dia já se
possam confrontar melhor com a realidade dos acontecimentos – que, confirmou-se durante as
recentes exéquias, até então desconheciam, – leva-me a redigir estas linhas que serão um misto das
memórias desse tempo, – sempre falíveis graças à “PDI” (toda a gente de geração mais avançada
sabe o que isso é). Mas por recear as traições dessa mesma memória, houve que ligar algumas
pontas, que a misturar com o resultado a consultas diversas e com o cruzamento de informações que
por aí circulam, disponíveis na comunicação social, em livros e na web.
Porém, que fique claro que esta nem é a História d‟Os Marados, longe disso, muito menos a dos
acontecimentos de Guidaje, embora espere que possa contribuir com alguns dados para historiadores
que saibam da poda e queiram um dia pegar neste assunto. Não sendo um especialista, certamente
serei perdoado por eventuais imprecisões (espero que não as tenha em demasia). Do mesmo modo,
este texto não advém de um diário (que nunca escrevi), não visa enaltecer nem as nossas aventuras
nem as desventuras, muito menos acicatar a rivalidade imbecil entre unidades daqui e dacolá. Até
porque, – valha-nos isso! – integrámos uma companhia do exército (“tropa macaca”), que tal como
todas as outras (de todas as armas) foi composta por gente normalíssima, sem a mania das
grandezas, mas com a sorte de não contar no seu seio com gabarolices de heróis de pacotilha nem
com falsos protagonistas, em resumo, uma companhia sem “rambos” nem “schwarzeneegers” obtusos.
Com estas linhas pretendo, tão-só, escrevinhar alguns apontamentos que, na minha óptica,
respondam às dúvidas que muitos camaradas colocam amiúde sobre o que realmente se passou em
Maio de 1973 naquela região e, já agora, explicar como apareceram Os Marados de Gadamael nesta
crise…
Provavelmente não acrescentarei nada de novo ao que já é conhecido. Mas se este trabalho
contribuir para que alguns ex-combatentes nele se revejam e dele se sirvam para contar aos netos o
que nos custou aquilo tudo, terá valido a pena e dar-me-ei por satisfeito. Também nunca foi meu hábito
escrever na primeira pessoa do singular. Só que, para se contar esta história, forçosamente tem de
haver um narrador. Por isso, aqui vai…
Por onde andaram e com quem estiveram Os Marados?
“Os Marados de Gadamael” foi a divisa – não muito abonatória, é certo, – escolhida para e pelo
pessoal da Companhia de Caçadores Independente nº 3518, formada no Funchal (no Batalhão
Independente de Infantaria nº 19/BII19) durante o segundo semestre de 1971 (formalmente, am 15 de
Novembro, “destinada a combater no Ultramar nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 20º do
Decreto-Lei º 49107, de 7 de Julho de 1969”).
Como companhia “madeirense” (de onde são naturais os soldados atiradores e o capitão
miliciano Manuel Nunes de Sousa, – que as praças especialistas e os graduados vieram do
Continente), receberia o guião das mãos do presidente da Câmara Municipal de Santana, a 16 de
Novembro de 1971.
Houve também entre os “Marados” dois açorianos e dois guineenses: o furriel miliciano Nuno Álvares
Brasil Pessoa, – que faleceu depois do regresso à ilha natal de S. Jorge; vindo em rendição individual,
em 27 de Julho de 1972, o soldado atirador António Henrique Paiva Valente, de Santa Maria, então
como hoje, distinto locutor do Clube Asas do Atlântico, em Vila do Porto; o guineense, de ascendência
cabo-verdiana, Florentino José Lopes de Almeida, (para os amigos, o Fontino), furriel miliciano de
operações especiais; e ainda o soldado Malan Seidi, – veio transferido da CCaç 3.
Com destino à Guiné Portuguesa, a companhia embarcou na cidade do Funchal no dia 20 de
Dezembro desse ano, às 3 da madrugada (!), tendo chegado a Bissau no dia 24 seguinte (embora já
estivéssemos ao largo do rio Geba desde as 23 horas do dia 23, quem poderá esquecer-se de tão bela
consoada?). No mesmo paquete, – o Angra do Heroísmo, – e com igual proveniência, viajaram a CCaç
3519 (que iria parar a Barro) e a CCaç 3520 (cujo destino foi Cacine), mais o BCaç 3872, que já
embarcara em Lisboa e que viria a instalar-se em Galomaro. Pisámos terras da Guiné a partir das 15
horas.
Passámos o dia de Natal a desfazer malas e no dia 26 registou-se a cerimónia de boas-vindas,
presidida pelo comandante-chefe, – General António de Spínola, figura grada entre os soldados, ou
não fosse também ele um madeirense (filho de madeirenses, se bem que nascido em Estremoz) e,
ainda por cima, um líder – perante quem desfilámos e que em seguida nos passou revista. A 22 de
Janeiro de 1972 terminámos o IAO (Instrução e Aproveitamento Operacional) no CMI (Centro Militar de
Instrução), situado no Cumeré. No dia seguinte, a bordo de uma LDG, às 19 horas, abalámos do porto
de Bissau – ao lado do histórico cais de Pindjiguiti, – para Gadamael Porto.
Após o transbordo em Cacine para uma LDM, (aí se despedindo dos camaradas da irmã gémea
CCaç 3520 – “Estrelas do Sul”), e em duas levas de dois pelotões cada, a primeira alcançou o
pequeno desembarcadouro de Gadamael, no rio Sapo (afluente do Cacine), pelas 15 horas do dia 24
de Janeiro, onde a companhia ficou uma temporada em sobreposição com a unidade que foi render (a
CCaç 2796, que depois marcharia para Quinhamel), integrada no dispositivo de manobra do BCaç
2930, depois do BCaç 4510/72 e, depois ainda, do COP 5 (Guileje).
Juntamente com Os Marados, estiveram em Gadamael os homens do Pelotão de
Reconhecimento Fox nº 2260 “Unidos Venceremos” (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria
Alexandre Costa Gomes e pelos furriéis milicianos Manuel Vitoriano, José Soares, Joaquim Manso,
José António Barreiros e António Rio). A 28 de Abril de 1972, após cerimónia de despedida, presidida
in loco pelo governador e comandante-chefe Spínola, o pelotão marcha para Bissau, a fim de aguardar
aí transporte de regresso à metrópole.
O Pel. Rec. Fox 2260 foi substituído oito dias antes (21 de Abril) pelo Pelotão de
Reconhecimento Fox 3115/Rec.8 (comandado pelo alferes miliciano de cavalaria José Manuel da
Costa Mouzinho e pelos furriéis Sérgio Luís Moinhos da Costa, Alfredo João Matias da Silva, José de
Jesus Garcia e Fernando Manuel Ramos Custódio).
Também em Gadamael, estiveram adidos à companhia o 23º Pelotão de Artilharia, (comandado
pelo alferes miliciano de artilharia José Augusto de Oliveira Trindade e pelos furriéis milicianos
Armando Figueiredo Carvalheda, António Luís Lopes de Oliveira (este, logo substituído pelo furriel
miliciano João Manuel Duarte Costa), e ainda os Pelotões de Milícias 235 e 236. O comandante de
pelotão 235 era Mamadú Embaló e os comandantes de secção, Camisa Conté, Abdulai Baldé e
Mamadú Biai; o comandante de pelotão 236 era Jam Samba Camará e os comandantes de secção,
Satalá Colubali, Amadú Bari e Mussa Colubali. O Camisa Conté, – quanto a mim a mais bem
preparada de todas as milícias, de grande inteligência, disponibilidade constante e invulgar simpatia, –
morrerá na célebre “batalha” de Guileje, diz-se que num “acidente com arma de fogo”, (ouvimos em
Bissau alguém contar que foi a tentar desmontar uma mina AC armadilhada) a 12 de Maio de 1973.
Posteriormente, dizem-nos que na mesma tentativa pereceu também o seu camarada Satalá Colubali.
Por outro lado, o Jam Samba viria a morrer em combate, dias mais tarde, também em Guileje, a 18 de
Maio de 1973.
Nas acções de guerrilha que em Maio e Junho de 1973 viriam a culminar no abandono de Guileje e na
tentativa de cerco de Gadamael Porto, morreriam igualmente em combate os soldados milícias do
pelotão 235, Corca Djaló, Abdulai Silá e Malan Sambú e, do pelotão 236, o Braima Cassamá. Enquanto
estivemos no sul, todos eles acompanharam os pelotões da CCaç 3518 nas patrulhas e demais
operações efectuadas. Desses, recordo com maior saudade o Braima Cassamá, que foi meu aluno nas
aulas do Posto Escolar Militar nº 23 que funcionou em Gadamael. Eu e o soldado africano Ricardo Lima
da Costa e, mais tarde, com os também monitores escolares, primeiro-cabo Manuel Nuno de Sousa e o
soldado António Henrique Paiva Valente, fomos os professores diurnos de perto de quarenta crianças da
população. À noite, nas noites em que não estávamos de prevenção ou naquelas em que não teríamos
de sair para o mato na madrugada seguinte, demos aulas a uma dúzia de voluntários adultos,
praticamente todos da milícia. E como era difícil explicar matérias a quem mal entendia o português!
Isto, sem falar noutros assuntos que constavam no programa de ensino, – mas que obviamente não
respeitávamos, como o fazer os Africanos empinarem as linhas ferroviárias, (ninguém sabia sequer o
que era um comboio), ou as cordilheiras da metrópole (aquelas crianças nem um monte viram ao longo
das suas curtas vidas na Guiné)! Na prática, o que todos queriam era aprender a ler e escrever em
português (alguns já o faziam em árabe, quanto mais não fosse para lerem a “Tábua de Moisés”). O
Braima, excelente rapaz, era dos mais interessados e não me lembro que alguma vez tenha faltado a
uma aula. Em separado, devido à compreensão da língua, dei aulas aos soldados. Tínhamos mais de
trinta praças da companhia que não possuíam a 4ª classe quando foram incorporados, algumas eram
mesmo analfabetas. No final da comissão quase todas fariam o exame e seriam aprovadas (já na escola
primária de Bafatá), o que se revelou vital para os seus futuros (muitos soldados pretendiam emigrar
para a Venezuela e África do Sul mal se vissem livres da tropa) ou, quanto mais não fosse, para
poderem tirar a carta de condução.
Enquanto em Gadamael, o território operacional e os locais de minagem, patrulhamento e
montagem de emboscadas foram essencialmente os seguintes: antigas tabancas de Viana, Ganturé,
Bendugo, Gadamael Fronteira, Missirá, Madina, Bricama Nova, Bricama Velha, Tambambofa,
Jabicunda, Campreno Nalú, Campreno Beafada, Mejo, Tarcuré, Sangonhá, Caúr e Cacoca. A zona
fronteiriça com a Guiné-Conacry e a picada para Guileje (estrada que outrora ligava a Aldeia Formosa
e ao Saltinho) foram os locais com mais frequente número de operações. Todo o abastecimento por
via terrestre às unidades e população instaladas em Guileje se efectuava, durante a estação seca,
através de colunas efectuadas a partir de Gadamael Porto, sendo o nosso pessoal responsável não só
pelas viaturas que transportavam para Guileje os géneros que os batelões descarregavam em
Gadamael, mas também pela segurança de metade do percurso. Por diversas vezes, pelotões da
companhia, o pelotão Fox e os pelotões da milícia passaram temporadas em reforço das unidades
locais (como, por exemplo, da CCaç 3477, “Os Gringos de Guileje”, até Dezembro de 1972, e a CCav
8530, na parte final da nossa estada no sul).
Ao recordar aqui quem connosco palmilhou longas distâncias em patrulhamentos, montou
emboscadas e alinhou em segurança a colunas no sul da “província ultramarina”, seria injusto não
mencionar os guias (suponho que havia dois), mas muito especialmente o Queba Mané, expoente
máximo em simpatia e disponibilidade fosse para o que fosse, e de grande resistência física, pois num
africano os cabelos brancos denunciam muitas vezes a avançada idade e nunca dei por que se
sentisse fatigado. Uma ou outra vez o capitão enviou-o sozinho ao outro lado da fronteira, com a
missão de recolher informes sobre a presença, guarnição e movimentações IN. Contornava sem
dificuldade as armadilhas que eu e o Ângelo Silva tínhamos sempre montadas no caminho (algumas
dezenas em toda a zona operacional).
Outros homens importantes foram os caçadores nativos, à conta dos quais nos deliciámos
inúmeras vezes com peças de caça, especialmente os bifes de gazela de tão boa memória. Um deles
era o experiente nº 4/65, Aliú Jaló; o outro, Ussumane (Baldé?), que viria a distrair-se e a pisar uma
mina antipessoal já perto do cruzamento de Ganturé (debaixo de um velho e já meio ressequido
limoeiro bravo). Certa altura, ao cair da noite, ouvimos um rebentamento que logo identificámos como
proveniente de um desses engenhos.
Aconteceu muitas vezes sentirmos rebentamentos originados pela passagem de animais (os de maior
porte) que pisavam minas ou accionavam armadilhas e morriam. Por exemplo, uma hiena – em vão,
ainda tentámos alimentar durante uns dias, com leite em pó, um dos filhotes que sobreviveu ao
rebentamento; um leopardo, – infelizmente para o Lopes Silva, que bem tentou “baratinar” o Camisa
Conté a retirar-lhe a pele para mandar curtir e enviar à namorada, mas já tinham passado três ou quatro
dias quando lá fomos e naquele estado de decomposição o persuadido negou-se; houve pintadas
(galinhas-do-mato) que arrastaram fios-de-tropeçar, e, num belo dia, ao fundo da pista velha, um
lindíssimo e corpulento gorila sucumbiria aos ferimentos duma mina AUPS.
Na manhã seguinte, bem cedinho, a família de Ussumane (tinha várias mulheres) entrou pelo
aquartelamento dentro a reclamar que o fôssemos buscar a Ganturé, pois de certeza teria sido ele,
saído na caça, quem accionara a mina. Lá me levantei da cama, mobilizei uma secção do 2º pelotão e
fui a esfregar os olhos picada adiante, com as mulheres a algaraviar atrás de nós (infrutíferas as
tentativas para que se calassem ou nos ficassem a aguardar pelo caminho). No local não encontrei
corpo algum, só um monte cintilante de formigas negras e luzidias. Depois de as vergastarmos com
arbustos e ramos de árvore é que começou a aparecer o corpo do caçador. Tinha um pé amputado e
devia ter perdido muito sangue durante a noite. Porém, a expressão com que se finou sugeria que a
causa da morte devia ter sido a asfixia, devido aos milhões de formigas que se apoderaram do corpo
ainda vivo mas imobilizado no chão, cobrindo-o literalmente.
Há muito esperados, chegaram em três lanchas os homens da rendição, era o dia 8 de
Fevereiro do ano da graça de 1973! Os periquitos ficaram connosco durante um período de
sobreposição. Assim, fomos rendidos no subsector de Gadamael pela CCaç 4743/72, de origem
açoriana, comandada pelo capitão miliciano de infantaria, Manuel Bernardino Maia Rodrigues,
Seguimos para Bissau no dia 4 de Março, a partir das 7 horas (a bordo de uma LDG), onde
efectuámos também um período de sobreposição e rendemos a CCaç 3373. Os Marados de
Gadamael passaram a efectuar a protecção e segurança das instalações e populações da área e a
colaborar em escoltas a colunas de reabastecimento a Farim. Uma dessas colunas, envolvendo dois
pelotões nossos, “estendeu-se” a Binta e a Guidaje, aí permanecendo sitiada durante quinze dias.
É a memória testemunhal, e também opinativa, desses longos dias, que vou tentar transcrever nas
páginas seguintes. Tentarei integrá-la no contexto histórico que se vivia na Guiné no já longínquo mês
de Maio de 1973, embora a generalidade das explicações se destine, como é óbvio, sobretudo àqueles
que por lá não passaram e nunca tiveram qualquer familiaridade com a Guiné nem as causas e efeitos
da tão dura quanto injusta e desnecessária guerra que ali se travou. Algumas das unidades (ou partes
delas) com quem os dois pelotões da CCaç 3518 estiveram, ou com quem se cruzaram durante tão
malfadado período: Companhia de Caçadores 19 (africana, sediada em Guidaje, criada em Dezembro
de 1971), Companhias de Caçadores nº 3, nº 14 (também africanas), Companhia de Comandos nº 38,
Pelotão de Artilharia nº 24, Companhia de Caçadores Pára-quedistas nº 121, Destacamento de
Fuzileiros Especiais nº 4, Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 7, Destacamento de Fuzileiros
Especiais nº 1, Pelotão de Morteiros nº 4247, Batalhão de Caçadores 4512, Companhia de Cavalaria
3420, Companhia de Caçadores sediada em Cuntima, Batalhão de Comandos Africanos e Grupo
Especial do Centro de Operações Especiais do alferes Marcelino da Mata (entretanto, coronel na
reserva).
A companhia viria a ser substituída a 5 de Julho de 1973 no subsector de Brá (COMBIS) pela
CCaç 3414, tendo sido transferida para Bafatá na semana seguinte (dia 11) a fim de substituir a CCav
3463. A 13 de Julho de 1973 (dia do meu 23º aniversário em que exagerei nos festejos, estando de
sargento de dia, e em que ia sendo preso, mas isso é outra história!) a companhia assumiu a
responsabilidade do subsector de Bafatá e, cumulativamente, a função de intervenção e reserva do
BCaç 3884, tendo ainda actuado em reforço de outros sectores da Zona Leste, por períodos curtos. Os
quatro pelotões da companhia estiveram frequentemente deslocados e reforçaram temporariamente
unidades das regiões vizinhas (missões de serviço com as companhias do BCaç 3884, CCaç 3549,
BArt 6523/73, CCaç 3548, CAOP 2, etc., mantendo actividade operacional nomeadamente em locais
como Contuboel, Geba, Sonaco, Sare Banda, Xime, Xitole, Alimo, Canquelifá, Sare Bacar, Ponta
Guerra, Porto Gole, Bambadinca Tabanca, Cheque, Cantauda, Bigine/Colufe, Maum de Meta, Cheual,
Bajocunda, Sincha Bakar, Ponta Luís Dias, Enxalé…
Entre 15 e 22 de Dezembro de 1973 os quatro pelotões participaram nas grandes operações
“Dragão Feroz” e “Tudo Verde”. Na primeira, estivemos com o BArt 3873, CArt 3493 (então, em Fá
Mandinga), CCaç 12, CCaç 21 (de Bambadinca, na altura comandada pelo tenente Jamanca), 20º e
27º pelotões de artilharia (10,5 e 14) e os Gemil‟s 309 e 310; na segunda, todas com quatro grupos de
combate, participaram ao nosso lado a CArt 3494, mais uma vez as CArt 3493 e CCaç 21, bem como
o 27º pelotão de artilharia (14 mm), instalado em Ganjuará. Nestes dias de emboscadas, golpes-de-
mão e combates causaram-se baixas ao IN (um morto e vários feridos confirmados e, a julgar pelos
rastos de sangue abundantes, mais mortes não confirmadas) e capturou-se algum material (por
exemplo, uma espingarda semi-automática Simonov). Houve dois feridos graves das NT, evacuados
de helicóptero, que não pertenciam à nossa companhia. No percurso Mansambo/Jombocari/Mina,
vários soldados foram vítimas de intoxicação alimentar, e vários deles desmaiaram, devido à má
qualidade da ração de combate (nº 20) que lhes tinha sido distribuída. O principal objectivo da segunda
operação seria destruir um suposto hospital IN que, diziam as informações, estaria a funcionar em
Fiofioli (de facto, antiga base guerrilheira, ainda nos anos sessenta). Todavia, quando após várias
peripécias chegámos ao destino, nada se confirmou, nem sequer havia quaisquer vestígios IN no local.
Estas informações, geralmente não se obtinham através dos serviços especializados do exército, era a
PIDE/DGS que dizia obtê-las através de informadores próprios. A polícia política praticamente
determinava as operações que as forças armadas deveriam efectuar. À excepção do chefe Allas, – que
há quem diga ter sido tecnicamente competente nesse domínio (por se comportar mais como militar do
que como polícia), – pelo menos na região de Bafatá, enquanto lá estivemos, as informações vindas
daquelas bandas revelaram-se na esmagadora maioria das vezes uma grande treta, falsas ou ineficazes,
criadas provavelmente só para mostrar serviço. O certo é que bastava qualquer agente “botar faladura”
no comando operacional que esta, em vez de mandar confirmar as tais fontes, fazia a vontade à
corporação e lá íamos nós feitos otários à pesca de cubanos e gajos loiros no mato, à cata de “armazéns
do povo” e hospitais, como quem vai aos “gambuzinos”… Também dizem os especialistas que a polícia
política teve, durante determinados períodos, alguns informadores e agentes infiltrados nas fileiras do
PAIGC, inclusive em contacto ou com acesso aos mais altos responsáveis do partido, (e isso viria a
confirmar-se a propósito do assassinato de Amílcar Cabral, a 20 de Janeiro de 1973, em Conacry), mas
nós ficámos sempre com a ideia de que os informadores a um nível mais baixo deveriam ser muito
fraquinhos. Na Guiné, a PIDE tinha uma delegação em Bissau, sub-delegações em Bafatá, Mansoa,
Bissorã, Bula, Teixeira Pinto, Cacheu, Farim, Cuntima, Cambaju, Sare Bacar, Pirada e Nova Lamego, e
ainda postos em São Domingos, Ilha Caravela e Cacine. Os quadros nem eram muitos (entre 75 e 85 no
ano de 1973): cinco inspectores e inspector adjunto, dois subinspectores, sete chefes de brigada, dezoito
agentes de primeira classe, vinte e oito de segunda e estagiários, quatro motoristas e três guardas
prisionais. Possuía ainda meia dúzia de funcionários técnicos (rádio-montadores e rádio-telegrafistas),
outros tantos contínuos e serventes, além de quatro escriturários para as folhas de caixa e
processamento de salários, subsídios extraordinários e ajudas de custo. Depois, é claro, havia uma rede
de informadores e, para sua vergonha, os comandos militares tinham instruções rigorosas de como
proceder com eles (na Guiné, instruções dimanadas da Directiva 63/68.SECRETO.AM). Em suma,
“autóctone que se apresente para prestar informações exclusivamente à PIDE/DGS deve ser
considerado informador secreto, canalizado para o agente local ou, não existindo, deve-se providenciar o
transporte para Bissau e entregá-lo na delegação desta polícia”. É expressamente proibido fazer
interrogatórios a estes informadores! Ao arrepio dos interesses e da estratégia militar, a PIDE chegou a
ser considerada responsável por provocações sangrentas com o objectivo de criar ondas de terror e
responsabilizar o PAIGC. Em Novembro de 1965, em Farim, teria mandado lançar uma bomba para o
meio de uma festa popular, provocando a morte de uma centena de pessoas, para colocar a culpa nos
“terroristas” e revoltar os cidadãos locais. A propaganda, ou notícia de choque sobre a “explosão
terrorista”, chegou à opinião pública internacional, mormente através das páginas do New York Times…
Os serviços de “Informações e Operações de Infantaria” revelaram-se muito mais eficientes na
observação dos movimentos IN, enviando às “zonas libertadas” ou aos outros lados das fronteiras,
milícias, caçadores nativos, guias, etc., até a pretexto de irem visitar familiares e, no regresso, ficávamos
a conhecer, por exemplo, o número de efectivos, as deslocações havidas, o armamento recebido. Aliás, o
PAIGC fazia rigorosamente o mesmo, no sentido contrário.
Nos dias seguintes (23 a 31 de Dezembro de 1973) a companhia executou o plano “Bafatá
Impenetrável”, do BCaç 3884, que contou com diversas operações, e, já em 1974, na mesma zona de
acção, as operações “Garota Nua”, “Madeirense Teimoso”, “Zorro Galante”, “Indomáveis Patifes” e
“Leme Seguro” (cito apenas as operações em que participámos lado a lado com outras unidades e não
todas as que efectuámos ao longo da prolongada comissão de mais de 27 meses).
Embora terminando a comissão em Outubro de 1973, após diversas datas prováveis para o
regresso ao Funchal, (sempre com a frustração do desmentido posterior), a 15 de Fevereiro de 1974
fomos rendidos pela CArt 6252/72, recolhendo ao Cumeré para aguardar o regresso. Juntamente com
as unidades que em finais de 1971 a tinham acompanhado na viagem para a Guiné (CCaç 3519, CCaç
3520 e BCaç 3872), a CCaç 3518 embarcaria no paquete Niassa a 28 de Março, com destino à
Madeira, onde desembarcou a maior parte das praças e o capitão, tendo o pessoal do Continente
alcançado a Rocha do Conde d‟Óbidos (Lisboa) ao romper do dia 4 de Abril de 1974.
Os Dias da Batalha de Guidaje
Levar a lenha e sair queimado!
Após cerca de 13 meses claustrofóbicos em Gadamael, estar sediado em Brá (COMBIS), a
poucos quilómetros do centro de Bissau, era estar no paraíso! Mantendo a operacionalidade,
passámos a prestar serviços diversos, entre os quais, fazendo escala para a segurança ao anel de
Bissau, turnos de sentinela, por exemplo, no Quartel-General e no edifício do estúdio radiofónico do
PFA (lê-se “PêFêÀ”, Programa das Forças Armadas), no Hospital Militar de Bissau, na residência do
comandante-adjunto operacional (brigadeiro Leitão Marques), protecção às portas da rede da cidade,
missões de patrulhamento e vigilância suburbana, nomeadamente aos bairros de Bandim (e mercado),
Chão de Papel, Alto do Crim, Mindara, tabancas da Pedreira e Fábrica da Telha, do Reino e
Gambefada, zona entre as bombas da SACOR e a segunda Avenida de Cintura, estrada do Aeroporto,
Belém e estrada de Bor, Bairro da Ajuda, incluindo Madina e Missirá e, com uma periodicidade incerta,
escoltando as tais colunas para Farim. Faziam-se sempre num só dia, ida e volta.
Nesse tempo, com bom piso e unidades militares ao longo da estrada, nomeadamente em
Nhacra, Jugudul, Mansoa, Mansabá e no destacamento K3, – locais onde passa a estrada para Farim,
– o percurso não se revelava demasiado perigoso. No essencial, é a proximidade da zona sul da mata
do Oio, no enfiamento do Olossato e, cá mais para baixo, da base do Mores, que obriga a redobrado
respeitinho, pois é sítio que fez História pelas muitas emboscadas aí efectuadas pelos guerrilheiros do
PAIGC, retraçando corpos ao longo dos anos.
Ora, a 14 de Maio de 1973, o pessoal dos primeiro e segundo pelotões parte de manhãzinha
(cinco horas e trinta minutos) para mais uma rotineira coluna a Farim, levando simplesmente nos
bolsos alguns trocos para comprar cigarros e beber uns copos no local de destino. E é sabido que nem
todos terão a possibilidade de o fazer, já que a uma parte dos homens nem é permitido atravessar o rio
Cacheu, não só porque a preguiçosa, rangente e fumegante jangada é peça única e, no seu vagar,
efectua o vaivém entre margens atulhada de camionetas civis e de passageiros, mas também porque
alguém tem de ficar a montar segurança às viaturas militares que permanecem na margem sul a
aguardar a viagem de regresso.
As colunas que chegam de Bissau visam abastecer a região com os mais variados géneros.
Embora o Cacheu seja navegável até Binta, mesmo por barcos de razoável envergadura (alguns
podem mesmo atingir Farim, apesar das grandes curvas do rio e do cotovelo mais apertado, poucos
quilómetros antes da cidade), considera-se muito mais lógico e seguro o transporte por terra, e não é
por acaso que, tal como outras, aquela estrada estratégica só foi alcatroada em plenos anos da guerra,
tantas vidas e sacrifícios tendo custado aos militares que nessa fase por lá andaram. O último troço,
entre Bironque e o destacamento K3, concluiu-se em 1970/71. De facto, antes da guerra colonial ter
eclodido na Guiné, o território possuía míseros sessenta quilómetros de estradas asfaltadas (e
existiam em 1969 mais de mil quilómetros de vias rodoviárias)!
O mesmo princípio se aplica ao reduzidíssimo número de escolas: até há poucos anos, em todo o
território, apenas se podia estudar até ao 2º ano do primeiro ciclo; nos anos setenta, mais de 75% dos
professores pertencem à tropa; filhos da terra (não europeus) licenciados na metrópole, serão apenas 6
(o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral é um deles)… Ora, em escassos anos de guerra, o PAIGC já
conseguira formar em diversos países (de diferentes regimes) dezenas e dezenas de quadros
guineenses e cabo-verdianos, com licenciaturas em distintas áreas. A penúria e o subdesenvolvimento
são generalizados, o abandono por parte das autoridades é total. Pensemos em hospitais e postos de
assistência médica e sanitária? Pois um mês antes do 25 de Abril, o próprio comandante-chefe, general
Bettencourt Rodrigues, constata que dos 82 médicos existentes no território, 76 são militares e dois são
família de militares! A generalidade do que existe, e não é muito, foi construído só depois do massacre
do Pindjiguiti (greve de estivadores barbaramente reprimida pela polícia, a 3 de Agosto de 1959) e do
consequente início da “luta armada de libertação nacional” do PAIGC, mais acentuadamente em 1961 e
1963, entre a margem direita do Cacheu e a fronteira senegalesa. Aliás, e como é óbvio, por alguma
razão se desencadearia uma guerra pela independência da Guiné!...
Neste dia, portanto, as viaturas civis e também algumas GMC a pedir reforma seguem
carregadinhas de sibe – madeira para reordenamentos. Reordenamentos, são construções alinhadas
em aldeias estratégicas, que a dado momento começaram a construir-se concentrando populações
num mesmo espaço, sempre coladas aos aquartelamentos das forças armadas e cercadas por redes
duplas de arame farpado. Entre estas, montavam-se fornilhos (explosivos de segurança accionados
electricamente, – geralmente ligados a uma bateria de automóvel – e compostos por granadas de mão,
cuja fragmentação seria reforçada com materiais “fora de prazo”, tais como granadas de avião, de
artilharia e de morteiro que por qualquer razão não haviam explodido quando utilizadas e que
rebentariam “por simpatia” se conectadas a outra subtileza explosiva). Com os reordenamentos, dizem
os responsáveis, impedem-se fugas e contactos com o exterior, “protege-se” a população e faz-se dela
um escudo, pois se o IN bombardear o quartel, poderá é estar a matar os seus próprios familiares.
A construção de reordenamentos do território (aldeias estratégicas) não é de agora. Foi o general
Arnaldo Schultz (governador da Guiné antes de Spínola, tido como um duro do regime e nomeado
directamente por Salazar) que iniciou a política dos aldeamentos estratégicos, com grande propaganda,
como se isso fosse uma maravilha para as populações guineenses. Pretendia suster o avanço da
guerrilha e controlar os movimentos das populações rurais. Segundo Cabral, os reordenamentos “não
têm dado os resultados positivos esperados pelos portugueses, por serem criados sobretudo nas zonas
sujeitas à influência dos chefes tradicionais” (de súbito, forte aposta das autoridades coloniais),
“especialmente na região de savanas do centro, maioritariamente fulas”. “Mais realista que esses chefes,
o Povo foge quando pode e prefere o refúgio das agruras da guerra nos países vizinhos”. A agravante foi
o impor determinadas chefias ao povo, que não as respeitava, ou por pertencerem eventualmente a
etnias rivais, ou por estarem em desuso, ou por serem inclusivamente contra-natura. Por exemplo, a
etnia balanta (a mais numerosa, que representa 30% da população, seguida, por esta ordem, pelos
fulas, manjacos e mandingas) dispensava bem ter chefes a mandar, estava habituada desde sempre a
resolver os seus problemas e a decidir em comunidade, exercendo um tipo de democracia com que a
“civilização ocidental” tinha, e tem, muito a aprender! Além disso, a colagem dos chefes tribais
nomeados pela governação da “província” contribuiu ainda mais para aumentar a desconfiança popular.
Esse servilismo nota-se aos mais diversos níveis. A política incrementada já por Spínola, que incide na
acção psicológica da “Guiné de Hoje, Guiné Melhor”, organizou os chamados Congressos do Povo em
que, para representar esse mesmo Povo, são convocados essencialmente esses chefes tribais, –
régulos, sipaios, etc.. Tipificando o comportamento desses dignos representantes, lembro uma cena
passada em Bafatá, num desses congressos. Usa da palavra o Al Hagi Zacarias Baú, chefe religioso
que viveu sete anos em Meca (Al Hagi, também Alaio, significa O Peregrino, e todos os fiéis que fazem a
peregrinação a Meca passam a usar essa designação colada ao nome). A dado passo, – qual Dr. Luís
Filipe Menezes a bramar contra os sulistas num congresso do PPD/PSD, – foge-lhe “a boca para a
verdade” e exclama: “a guerra só acabará quando os brancos forem para casa”! Os cerca de dois mil
delegados convidados a participar neste IV Congresso tossem, ficam estupefactos, geram burburinho. O
régulo de Ganadu (a regedoria a que Zacarias Jau pertence) exige que o homem lhe seja entregue, pois
“sabe muito bem o que lhe há-de fazer”. Passado algum tempo, já em Bissau, o régulo de Badora,
Mamadú Bonco Sanhá (condecorado com a Cruz de Guerra de 1ª classe), disse: “Nós costumamos
pescar à gamboa. Às vezes, o peixe pescado à gamboa apodrece e temos que o deitar fora. Al Hagi
Zacarias Jau é o peixe podre. É bom que nos desembaracemos dele!”
Às 6 horas, a coluna passa pelo Quartel-General, aí incorporando as viaturas que transportam o
tal material de construção civil. Em progressão lenta, a longuíssima coluna/auto pára dez minutos em
Mansoa quando são oito horas, passa por Mansabá quando faltam vinte minutos para as nove e chega
a Farim (à margem esquerda do Cacheu) às nove e meia.
Tudo decorre dentro da normalidade quando, à chegada, “por decisão superior”, os alferes Igreja
e Cruz são informados que, desta vez, também os Unimog e Berliet devem atravessar o rio, a bordo da
jangada. Regressarão a Bissau as viaturas Daimler, de cavalaria, em protecção de alguns camiões
civis, mal estes descarreguem as mercadorias. Os Marados de Gadamael recebem a notícia de que
tão depressa não voltam a Bissau e que nessa noite pernoitarão em Farim e ficarão em reforço ao
BCaç 4512/72 (“Firmes, Constantes”). Os homens são apanhados desprevenidos: não tinham levado,
sequer, as rações de combate que lhes haviam distribuído, já que esperavam voltar ao COMBIS ainda
a tempo de almoçar de faca e garfo. Mas essa dificuldade é superada quando os informam que podem
almoçar e jantar na cantina e nas messes de Farim. Quanto a despesas (bebidas, mancarra, tabaco)
podem efectuá-las por “requisição” (vales), que as contas irão parar à respectiva companhia, com
quem as acertarão mais tarde (e assim viria a suceder, dois meses depois, até ao último centavo!).
Entretanto, tomamos conhecimento de que no dia seguinte participaremos em nova coluna,
tendo por missão transportar até Guidaje parte do sibe que trouxemos de Bissau. E vamos ouvindo
extraordinários relatos da situação operacional naquelas paragens e nos últimos dias: sabemos dos
muitos mortos em ciladas recentes e das muitas horas debaixo de fogo que uma companhia teve de
aguentar no acesso à aldeia de Guidaje, já sitiada! Nestas histórias, é sabido, quem as relata em geral
nem foi participante activo e fala só do que ouviu falar, costumando cometer excessos e exagerar na
dramatização dos acontecimentos. Todavia, nos dias que correm, e nos casos em apreço, nem têm
necessidade de o fazer, tamanhos são os temores e a carnificina.
Importa aqui referir que em mais de um ano de estada em Gadamael a companhia contou com
múltiplos ataques de artilharia, sofreu 4 mortes e alguns feridos, quer devido a flagelações quer por
causa do accionamento de minas, sobretudo na picada para Guileje. Em Bissau, por múltiplas razões,
a actividade operacional passou a ser diferente, e muitos dos homens que dantes não saíam “ao mato”
passaram a alinhar por escala nos diferentes serviços e colunas. Isto para referir que entre os efectivos
que se preparam para amanhã levar a “lenha” ao destino e ter muito prováveis contactos com o IN
(asseguram-nos que uma emboscada num local chamado Cufeu será inevitável), há quem nunca
tenha, tão-pouco, feito uma patrulha ou saído da porta de armas.
Também por isso, custa a passar esta noite de insónias. Embora reforçados com alguns
fuzileiros de Ganturé, soldados africanos e um grupo de milícias – e enquadrados por um capitão do
batalhão local, que conhece a zona, – como será possível que dois pelotões possam chegar a bom
porto (Guidaje) se, à excepção da coluna de 12 de Maio, outras tropas, até especiais e muito mais bem
equipadas, não conseguiram fazê-lo?
Os Dias da Batalha
(Antecedentes à nossa chegada)
Realmente, o cenário não é dado a optimismos. Sabemos que a 8 de Maio o PAICG começou o
cerco. Logo nesse dia Guidaje esteve cinco vezes debaixo de fogo (num total de duas horas de
fogacho). Uma coluna escoltada por dois pelotões do exército (um grupo de combate da 1ª CCaç do
BCaç 4512, de Nema, e outro da CCaç 14, de Farim) e por fuzileiros da DFE-7, que também partira de
Farim, viu uma das suas Berliet accionar uma mina anticarro. Seguiu-se uma emboscada que os
encurralou e obrigou a recuar, acabando por terem de pernoitar no mato. A emboscada causou alguns
ferimentos e, pelo menos um “fuzo” que estava a socorrer um camarada, viria a perder uma perna.
Contam-nos em Farim que o PAIGC dispõe de um forte e bem treinado efectivo a muito poucos
quilómetros dali, dentro de Senegal, estimado em seis a sete centenas de guerrilheiros com grande
formação e treino militares. Conhecendo a estratégia do IN para isolar/envolver a região, o tenente-
coronel António Valadares Correia de Campos, transfere-se neste dia, conjuntamente com o comando
do COP3, de Bigene para Guidaje.
Os mesmos homens voltaram no dia seguinte (9 de Maio) a ser sobressaltados com nova
emboscada, ainda de maior envergadura! Os camaradas milicianos que em Farim me alojaram no seu
quarto (e, creio, que também aos furriéis Machado e Ângelo Silva), contaram durante a noite que o
pessoal só tinha aguentado as quatro a cinco horas que esteve debaixo de fogo por ser portador de
um abastecimento extraordinário de granadas para morteiretes. Assim, enquanto os pequenos prato-
base não se enterraram no solo e os canos dos morteiros não se derreteram nem lhes derreteram as
mãos, conseguiram aguentar-se e responder ao fogo. Entretanto, tinham sido reforçados com pessoal
a 1ª CCaç do BCaç 4512, de Binta, e mais duas esquadras do DFE-4, vindas de Ganturé. Mas todos
estes efectivos não conseguiram evitar pesadas baixas, entre as quais, quatro mortes, cujos corpos
haviam de ficar tombados no caminho, uma vintena de feridos, oito deles com gravidade, deixando
também na picada quatro viaturas destruídas e não conseguindo, mais uma vez, chegar ao destino. De
notar que, no mesmo dia e quase em simultâneo, Guidaje “lerpou” mais quatro vezes, o que demonstra
a grande concentração de guerrilheiros que o IN tem na região…
Mais três flagelações se abateram sobre o casario de Guidaje a 10 de Maio. No mesmo dia
tenta-se romper o cerco. Uma avultada força, dirigida pelo tenente-coronel António Vaz Antunes
(comandante do batalhão de Farim/4512) inicia nova operação que envolve distintas unidades: dois
grupos de combate da CCaç 14, de Farim, dois grupos de combate da 38ª de Comandos, uma secção
do pelotão de Morteiros 4247, um grupo da Companhia Africana Eventual, de Cuntima, três grupos do
BCaç 4512, sendo dois deles de Nema (1ª CCaç) e o terceiro de Jumbembém (2ª CCaç). Mas a coluna
também consente um morto (o soldado Manuel Geraldes, precisamente de Jumbembém, cujo corpo foi
dilacerado por efeito do rebentamento da mina em que caiu), e dois feridos, que seguiam atrás dele.
Logrando ultrapassar todos os impedimentos, nomeadamente as dezenas de abatises, (árvores de
grande porte serradas, os troncos tombados atravessando a picada, escassos quilómetros depois de
Binta), a coluna consegue chegar ao objectivo, atingindo Guidaje.
(Muitos anos depois, em conversa com o primeiro-cabo guineense Fati, atirador do lança-granadas
foguete Instalaza de 8,9 cm, (mais conhecido por bazuca), e que ficou ferido neste combate, tive a
oportunidade de aquilatar o volume do fogo inimigo e a incapacidade de reacção ofensiva do pessoal da
sua unidade para sair por cima neste combate).
Ao mesmo tempo, e depois do tiroteio trocado por dois pelotões da CCaç 3, que de véspera
patrulhava a região de Samoge, vindos no sentido inverso com a intenção de proteger o itinerário a
norte, um efectivo da CCaç19 saiu de Guidaje e a curta distância do mesmo local experimentou cinco
contactos com o IN, de que resultaram mais oito (cinco ? Post 5310) mortos e nove feridos para as NT.
A situação aqui não foi menos grave porque, rareando as munições para ripostar ao fogo, tiveram de
bater em retirada e deixar no mato os corpos de três mortos, não os conseguindo recuperar.
No relatório desta acção, o seu comandante descreve assim a violência do contacto de fogo: "...em
relação às NT, o IN estava de frente, dos dois lados da picada, e foi impossível fazer uma reacção
conveniente pelo fogo. A primeira sessão pelo fogo causou-nos imediatamente três mortos ( ... ) o IN
voltou à carga com maior ímpeto, mas as NT já estavam preparadas para o receber e aqui teve as
primeiras baixas. Estando um cabo gravemente ferido com um estilhaço no pescoço, o soldado auxiliar
de enfermeiro correu para junto dele a fim de o socorrer. Estando ajoelhado a seu lado foi atingido por
uma rajada que lhe provocou a morte. Começavam a escassear as munições e foi dada ordem para
fazer fogo de precisão, tanto quanto possível. Quando o fogo parou por escassos segundos um dos
furriéis tentou chegar junto dos mortos para recuperar os corpos. Quando se levantava para realizar esta
acção, pela terceira vez o IN atacou as nossas posições. Notando a impossibilidade de recuperar os
corpos dos mortos e porque a falta de munições era quase total, o comandante viu-se coagido a ordenar
a retirada... " (in sítio do BCaç 4512).
A 11 de Maio, os 2º e 4º grupos da 38ª Companhia de Comandos, que no dia 9 se tinha
deslocado de Mansoa para Farim integrando uma coluna de abastecimento, avança com a mesma
coluna e um pelotão da guarnição de Binta em direcção a Guidaje, levando na frente sapadores que
vão analisar as crateras abertas pelas minas rebentadas anteriormente e orientar a picagem a efectuar
durante o percurso. A marcha é, por isso, extremamente lenta (cada dois quilómetros demoram cerca
de uma hora a percorrer), esperando-se que as minas que vão sendo detectadas na frente da coluna
sejam feitas explodir. Deparam-se com um grupo de viaturas desventradas e há também diversos
cadáveres pelo chão, muitos já “bicados” por djugudés (abutres, também “jagudis”). Há novas abatises
espalhadas a dificultar a progressão. A CCaç 19 sai de Guidaje e vem ao encontro destes homens,
mas ao passar por uma ponte é atacada. Não tem grandes condições de reagir e pede apoio aéreo.
Passados quarenta minutos chegam dois Fiat G-91 que, no entanto, e apesar dos apelos constantes
via rádio, se recusam a abrir fogo porque as forças em presença estarão demasiado próximas.
Contam-se muitas baixas neste confronto. Também entre os comandos as coisas não correm bem: ao
ouvirem os rebentamentos e o tiroteio da emboscada os homens saltam das viaturas. Um deles, – o
primeiro-cabo Filipe, – acciona uma mina A/P e perde um pé. Mais adiante apanham do chão o
cadáver dum soldado que também caíra numa mina e ficou irreconhecível, embrulham-no num poncho
e levam-no sobre o estrado de um Unimog. No local da emboscada da CCaç 19 o cenário é dantesco,
com inúmeros cadáveres espalhados pela picada fora e nas imediações. Ao cabo de mais de 10 horas
de marcha, esgotados, atingem Guidaje já no lusco-fusco, refugiam-se nas valas, agachados, e pouco
depois o quartel é flagelado, o que aconteceu mais algumas vezes durante essa noite. Já nos
primeiros raios solares de 12 de Maio, durante uma flagelação de foguetes 122 e morteiros 82, o
soldado comando José Luís Inácio Raimundo é atingido nas valas e morre nesse instante. Finalmente,
a coluna de reabastecimento constituída pelos Destacamentos de Fuzileiros Especiais nº (1?) 3 e nº 4
e um grupo de combate da CCaç 3, de Bigene, chega a Guidaje, aonde permanecerá vários dias.
Efectivos que chegaram na coluna do dia 10, regressaram a Farim a 13? No dia 13,
comandados pelo capitão Alves Jesus, os fuzileiros do DFE-4 tentam caminhar para Farim, e daí
regressar a Ganturé. Levam consigo viaturas carregadas de populares. Morre o soldado condutor
Ludgero Rodrigues da Silva, da CCS do BCaç 4512. Sofrem uma emboscada, permanecem uma hora
debaixo de fogo e são obrigados a regressar. No sentido contrário também uma coluna de
reabastecimento tinha saído de Farim, mas não logrou avançar além do Cufeu. Passa mais uma noite
e, a 14 de Maio, um forte rebentamento atinge com um estilhaço fatal um grumete do DFE-7. Esta
manhã poisa no canto mais recuado da parada um “héli”. Transporta um caixão para levar o corpo do
infeliz fuzileiro.
Estiveram na Guiné, nos anos da guerra, vinte e seis destacamentos de fuzileiros especiais (dois dos
quais, africanos) e onze companhias de fuzileiros navais. No total, estas unidades sofreram oitenta e
seis mortos, cinquenta e cinco deles, em combate.
A alvorada seguinte, de terça-feira, começa a clarear. Em abono da verdade, neste tempo,
pouco ou nada nos importa saber em que dia da semana estamos! Para quê, se os dias correm todos
enjoativa e implacavelmente iguais?
Talvez só os domingos de futebol se safassem, caso pudéssemos ouvir os relatos que a Emissora
Oficial da Guiné transmitia em directo: “atenção amigo ouvinte, constituição da equipa do Benfica: José
Henrique; Artur, Humberto, Messias e Adolfo; Jaime Graça e Toni; e na linha avançada temos Nené,
Jordão, Eusébio e Simões”. E quando o locutor se esganiçava e gritava «golo!» as casernas também
explodiam, mas de alegria! De certa vez o escritor António Lobo Antunes (autor que começou a sua
carreira literária publicando grandes livros sobre a guerra colonial) contou mais ou menos isto: um golo
do Benfica fazia parar a guerra, interrompia os combates, pois de um lado e de outro das trincheiras, à
mesma hora, estava toda a gente a vibrar. Com efeito, muitas pessoas que admirávamos eram
oposicionistas do regime e mesmo, encapotada ou clandestinamente, simpatizantes e militantes dos
movimentos de libertação nacional. Já se falava de Hilário, um dos melhores defesas de sempre do
futebol do Sporting como provável simpatizante da FRELIMO, e, como ele, os benfiquistas Coluna, e até
de Eusébio, (figura, no entanto, cujo prestígio foi aproveitado pela propaganda do salazarismo e do
marcelismo) e havia outros, por exemplo, no atletismo do SLB, como Barceló de Carvalho (que é o
cantor angolano Bonga) velocista e recordista nacional durante vários anos, ou o também recordista
nacional e cantor angolano Rui Mingas, cujas cantigas (dois LP‟s e vários “singles” gravados desde
1969) não enganavam ninguém nem escondiam a óbvia simpatia pelo MPLA e pelas suas causas. Antes
da incorporação no serviço militar obrigatório assisti, com o meu amigo de infância Cipriano Simões, ao
lançamento de um dos seus discos, no estúdio da Rádio Renascença, em directo. Suponho que era o
“long-play” que incluía o extraordinário tema Monangamba, da autoria do poeta e intelectual António
Jacinto, um branco angolano que não regateava as origens do musseque luandense, e que por se meter
em “aventuras” apanhou muito mais do que uma dúzia de anos de Tarrafal. Nessa noite (programa
“Tempo ZIP”?) eu estava muito longe de imaginar que um par de anos mais tarde teria o privilégio de
contar com o António Jacinto como um grande amigo e cuja morte viria a deixar-me profundamente triste
e a empobrecer as literaturas de expressão portuguesa. Quanto a Mingas, é nos anos 60/70 uma
espécie de cantor oficial da Casa de Estudantes do Império, – ao Arco Cego, em Lisboa, – conhecido
“coio” de africanos do chamado reviralho, pejado de amigos dos “terroristas”, mas onde, malgrado a
contínua perseguição da PIDE, se divulgam e publicam peças literárias do melhor que existe em língua
portuguesa, sobretudo na poesia. O desporto e a cultura criam laços que unem muitos combatentes de
ambos os lados da guerra. O comandante N‟Dalu (António dos Santos França, que já como ministro e
Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas Populares de Angola vim também a conhecer
pessoalmente), estudou em Coimbra e, antes de fugir do país para ir ter formação militar, suponho que
na Argélia e mais tarde em países do leste europeu), granjeou amigos e adeptos a jogar na Académica,
onde era conhecido por “França”. Alguém pensou que viria a tornar-se um elemento determinante,
mesmo decisivo para a independência de Angola, por comandar e vencer a célebre batalha de
Kinfangondo, contra o exército zairense de Mobutu Sese Seko que acompanhava a FNLA e um batalhão
de mercenários, quarenta quilómetros a norte de Luanda, nas vésperas do 11 de Novembro de 1975?
Por estas e por outras Amílcar Cabral, que considerava ser a luta armada também um acto de cultura,
não se cansava de afirmar que a luta de libertação do povo da Guiné e Cabo Verde (e dos povos das
outras colónias) não era uma luta contra o povo português, mas contra o regime que oprimia ambos os
povos (referindo-se ao fascismo em Lisboa e ao colonialismo em África). E, também por estas e por
outras, ao vermos amigos em barricadas opostas, muitos de nós começamos em plena campanha a
meditar por que raio andaremos aqui aos tiros uns aos outros?
Os Dias de Guidaje
15 de Maio
Terça? Quarta? Digamos, tão-só, que estava a romper o dia 15. Já tínhamos mastigado um
pedaço de casqueiro besuntado com manteiga, bebido um copo de leite tornado em tons de creme
com o café-chicória do costume e perfilámo-nos junto às viaturas, aguardando as ordens do capitão,
em Farim. Os nossos dois pelotões, um grupo de combate da Companhia Africana Eventual de
Cuntima e o GEMIL (Grupo Especial de Milícias) 322, de Jumbembém, seguem motorizados até Binta,
que efectivamente não dista muito da vila. Como se circula em razoável piso, o andamento é rápido.
Apeamo-nos à chegada, metemos bala na câmara e, sob o comando do capitão Pereira da Silva, da 2ª
CCaç do BCaç 4512, de Jumbembém, começamos prudentemente a caminhada que, avisa-me um
camarada que conhece o trajecto, não será pêra doce, deveremos dar corda aos sapatos e caminhar
entre dezassete a dezoito quilómetros. Organizamos então duas filas em que os homens, mantendo
distâncias generosas dos camaradas da frente, se põem em andamento, tão devagar quanto o dita o
rigor da picagem, pois é garantida a existência de minas ao longo do percurso. Entre os talvez
quarenta metros que separam as duas filas humanas seguem as viaturas, à boleia das quais apenas
se vislumbram os condutores, rodeados de sacos de areia, para melhor protecção dos corpos e para
fazer peso e evitar que a viatura seja projectada, caso um pneu aziago accione o engenho mais
inopinado. Na frente, a rebenta-minas, uma Berliet já amachucada, leva tanto saco sobre as rodas e na
carlinga que o condutor se vê em palpos de aranha para espreitar a trajectória a seguir, parece guiar
de pé. Não leva mais viaturas no encalço, a que se segue vem lá muito para trás, a não menos de
duzentos metros.
Ouvimos, bem de longe, dois rebentamentos e depois uma série de rajadas. Parámos. Cada
pelotão leva um rádio AVP-1 e somos informados que uma força vinda de Guidaje ao fazer rebentar
minas fora emboscada logo em seguida. Soubemos mais tarde tratar-se dos fuzileiros especiais que
chegaram a Guidaje no dia 12 (DFO-3 e DFO-4) e que tentavam cruzar-se connosco e regressar a
Farim. A única coisa que conseguiram foi o revés de mais sete feridos, cinco na emboscada e dois
(graves), cada qual accionando a sua mina.
As minas são cada vez mais as armas que mais baixas provocam nesta guerra e as que maiores
temores causam dum lado e doutro das barricadas. Usadas isoladamente ou no despoletar de
emboscadas, estima-se que mais de metade das baixas das forças armadas foram ocasionadas devido
a minas e armadilhas, e isto nos três teatros de guerra. E muitas dessas minas foram detectadas em
devido tempo, poderão ter posto os nervos em franja aos sapadores e aos camaradas que, como eu,
foram “formados” em Tancos, na Escola Prática de Engenharia, mas nada mais do que isso. Só no ano
transacto (1972) o PAIGC teria à volta de quinhentas minas e armadilhas implantadas no terreno (perto
de quatrocentas antipessoal e de cem anticarro, das quais foram neutralizadas cerca de trezentas e
setenta. E nem todas as armadilhas são montadas com engenhos sofisticados: uma simples granada de
mão presa a uma estaca ou num tronco de árvore, com um fio-de-tropeçar atado à cavilha de segurança
e esticado a partir do outro lado dum trilho, pode ser armadilha eficiente e, logo, fatal!
Damos com as viaturas desventradas pelas minas e por combates recentes. Há peças
espalhadas ao longo de centenas de metros, pedaços de bancos, jantes, faróis, chaparia amarrotada
como folhas de papel. Mas nem tudo foi destroçado pelo IN. No dia 9 a força aérea avistou sobre as
viaturas abandonadas guerrilheiros a descarregar o material, e não era pouco, (recorde-se que
pertenciam a colunas de reabastecimento e em geral levavam armas e munições, em especial
Morteiros 81 e respectivas granadas). O capitão José Manuel Pinto Ferreira (hoje tenente-coronel
piloto-aviador, já reformado) recebeu instruções para bombardear as viaturas por forma a tudo destruir,
e assim fez! O bombardeamento foi tão intenso que o ferro-velho se alastrou por alguns quilómetros.
Mas veio-se a apurar que as bombas já foram algo tardias, pois muitos morteiros e munições já haviam
sido apanhados pelo PAIGC, provavelmente durante a noite.
Tentamos contornar os campos de minas, rasgando uma nova passagem, paralela à existente.
A planura e o facto da vegetação não ser muito densa facilitam o trabalho. Enquanto na frente as
milícias picam o terreno nos desvios que o capitão pretende efectuar, calhou-me ficar instalado cerca
de um quarto de hora a metro e meio de um cadáver. Com tanta mosca a levantar voo do meio das
larvas e da carne putrefacta e a cirandar sobre a minha cabeça, eu não ter vomitado os fígados já foi
acto de grande heroicidade! O estado em que se encontra não permite apurar se é branco ou preto
nem que tipo de farda será o que resta da sua. Embora eu não os veja do local onde estou, oiço dizer
que também há (ou houve) corpos de guerrilheiros abandonados por ali. O sangue seco tingiu
completamente da mesma cor o camuflado, tornando muito difícil a destrinça. Os corpos expostos ao
sol e ao calor estão já em decomposição, o cheiro e o aspecto são asquerosos…
Os sete ou oito quilómetros que se seguem demoram três horas a transpor. Depois disso, a
marcha é mais célere e, por fim, respiramos de alívio e avistamos a aldeia, um punhado de moranças,
um grosso embondeiro, palmeiras espaçadas, um pequeno grupo de soldados africanos na recepção a
dar-nos indicações, já as sabíamos mais ou menos, caminhar sempre pertinho das valas e procurar
abrigos. Aos soldados é indicada a caserna (penso que um antigo armazém) onde devem instalar-se,
podendo levantar colchões e mantas logo ali ao lado.
Para nos ter deixado chegar ao destino, o PAIGC ou nos preparava um grande castigo ou nem
teria sequer desconfiado que alguém nos tinha deitado ao caminho e só por isso corremos o percurso
de Binta à fronteira sem uma beliscadura física (mentais permaneceram umas quantas, vida fora).
A crise militar já estava de tal modo instalada que, já neste dia 15 de Maio, se efectua uma alta reunião
de comandos em Bissau para debater a situação. Spínola convocou os comandantes dos três ramos das
forças armadas, – exército, força aérea e marinha, – o comandante adjunto operacional, o chefe do
estado-maior do comandante-chefe e os chefes das repartições de operações especiais. Na reunião, o
brigadeiro Leitão Marques alerta que o PAIGC “está a preparar as necessárias condições para a
conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldade de acesso (Guidaje, Buruntuma,
Guileje, Gadamael, etc.), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e
manobra psicológica, – e isto está já ao alcance das suas possibilidades militares”.
O momento não dá para satisfazer grandes curiosidades, mas sempre percebemos que a linha
de fronteira com o Senegal fica mesmo em frente, à perpendicular dos nossos olhos. A extrema da
pista de aviação já é estrangeiro e numa boa parte do arame farpado bem poderíamos instalar a
alfândega! Sobre as árvores que avistamos a cerca de duas centenas de metros garantem-nos que há
“turras” a vigiar-nos e a atacar-nos quando querem. Certamente que já deram pela nossa chegada,
contemos então que não demorem a dar-nos as boas-vindas com o fogo de artifício de canhões sem
recuo, morteiros e foguetes (passariam, no entanto, as primeiras horas sem se confirmar o esperado
ataque).
Por toda a parte existem valas, algumas de escavação recente. Circundam todo o quartel e
ligam todos os edifícios, um por um, independentemente da dimensão. O furriel Machado, que é de
Valpaços, vem com o contacto (leia-se cunha) de um furriel também transmontano, de Vimioso, que ali
se encontra, e de um primeiro-cabo do pelotão de artilharia, para cujo abrigo nos dirigimos eu, o
próprio Machado e o Ângelo Silva. O abrigo do Obus 10,5 ao fundo, é subterrâneo e a dois passos da
fronteira. Em redor do Obus há uma circunferência desenhada por bidões atulhados de terra e bem
encostados uns aos outros. No sítio onde faltam dois bidões é a entrada, que dá directamente acesso
às valas e à portinhola do quarto (abrigo subterrâneo).
O “dono” do quarto é um furriel pertencente ao Pelotão de Artilharia nº 24, que está ausente, de
férias na metrópole. Deixara naquele buraco meia dúzia de coisas, entre as quais a cama, um baú e
um gravador de bobinas vertical Akay, (que virão a desfazer-se…) O quarto é acanhado. Da porta
descaem cinco degraus irregulares, altos e toscos, e do lado esquerdo, encostadas cada qual à sua
parede, estão duas camas, – a dele e a ocupada pelo nosso cabo artilheiro que o ficou a substituir
naquele posto. Não cabe mais nada, o “corredor” entre as camas quase nem permite que duas
pessoas se cruzem. Cá em cima, à superfície, o tecto do abrigo lembra um enorme quisto. Presumo a
existência de uma placa de cimento, que não é visível por ter em cima duas fiadas de troncos de
madeira bem unidos e cobertos de uma camada redonda de terra, como as que cobrem muitos fornos
de aldeia. Aparentemente, é o local mais seguro pois não se imagina que uma granada qualquer
consiga destruir um tecto daqueles.
16 de Maio
Para aqui estamos, os 200 que já cá “moravam” (essencialmente a companhia africana nº 19 e o
pelotão de artilharia de 10,5 mm), mais os acabados de chegar. Se o IN nos poupou às boas-vindas, o
certo é que não foi preciso esperarmos vinte e quatro horas para levarmos com a primeira chuva de
granadas. Regista-se um morto, – o soldado Martinho Cá, apontador de metralhadora da CCaç 3.
Também um dos nossos homens (CCaç 3518) é ferido ligeiramente com o ricochete de um estilhaço,
mas nada de grave.
Se no sul nos diziam que quem comandava directamente os guerrilheiros era o temível Nino
Vieira, aqui também não fazem a coisa por menos: os renhidos combates que se estão a travar em
redor de Guidaje mobilizam largas centenas de homens do PAIGC, que cada vez mais nos apertam o
cerco, comandados pelos já conhecidos (de nome, pelo menos) Francisco Mendes e Manuel dos
Santos.
Francisco Mendes (também Chico Mendes, ou Chico Té) esteve com Amílcar Cabral e outros dirigentes
históricos nos primeiros cursos de formação, em Praga (antiga Checoslováquia). Foi assassinado em 7 de
Julho de 1988, após uma independência pela qual lutou a vida inteira. Mas diz a sabedoria popular, em
crioulo, que “dinti mora ku lingu, ma i ta daju i murdil” (os dentes moram com a língua, mas às vezes
mordem-na – provérbio guineense)! Chegaria a primeiro-ministro da Guiné-Bissau. Quanto a Manuel dos
Santos (Manecas), que além de dirigir guerrilheiros é um dos comissários políticos que coordena quem
vive nas “áreas libertadas” e, nesta altura, comanda a Frente Norte, é responsável pelas operações dos
mísseis terra/ar em todo o território. Estivera na União Soviética a receber formação específica para
operar e ensinar a manejar os Strela. Será ministro da informação logo no primeiro governo da Guiné-
Bissau, após a retirada das autoridades portuguesas. Nasceu em Santo Antão, Cabo Verde, em 1943 e
será dos raros dirigentes cabo-verdianos do PAIGC que permanecem nos governos de Bissau depois do
“14 de Novembro” (golpe de estado de Nino Vieira). Logicamente que na investida contra Guidaje
estiveram envolvidos mais quadros do PAIGC, entre eles, Manuel saturnino da Costa, que chegaria a ser
secretário-geral do partido e primeiro-ministro da Guiné-Bissau independente, e alguns intermédios, como
Lúcio Soares, Joaquim Biagué e Bobo Queita.
Logo a seguir ao primeiro ataque, o furriel Bernardo Monteiro e os alferes Igreja e Cruz foram
não sei onde desencantar mais duas camas e colchões, trouxeram-nas para o abrigo e, sobrepondo-as
às existentes, montaram-nas em camarata. O quarto do furriel artilheiro ausente, onde há duas ou três
semanas só ele residia, transformou-se num dormitório apertado, onde passamos a pernoitar sete
almas. Virá também a juntar-se ao grupo o furriel Fernandes, da CCaç 19 (o tal outro transmontano
que alguém de Farim indicou ao Machado).
17 de Maio
Acordo estremunhado sob o efeito de novos ataques de artilharia, com granadas a cair bem no
interior do quartel. Os Obus 10,5 reagem prontamente sob as ordens do comandante (tenente-coronel
Correia de Campos) e fazem um longo batimento de zona, conseguindo calar os disparos inimigos. Os
canos são também apontados para o interior senegalês, dizem-me que visam certamente atingir a
base de Koumbamory. São disparados mais de 40 tiros de Obus. O nosso cabo artilheiro que coabita o
quarto subterrâneo que “ocupámos” confidenciou-me que em todo o quartel restam unicamente 39
granadas de calibre 10,5 e que as deve poupar para qualquer eventualidade futura. O certo é que nos
dias seguintes a artilharia deixará mesmo de reagir aos repetidos ataques inimigos, essa tarefa ficará a
cargo dos Morteiros 81, talvez somente para marcar presença, para demonstrar que estamos vivos!
Entretanto, está em andamento a grande operação Ametista Real. Com efeito, prepara-se uma
acção de gigantescas proporções para o envolvimento da principal base inimiga. O Objectivo é
aniquilar ou reduzir a capacidade bélica de um IN que contará com cerca de 650 efectivos
concentrados ali à volta, uma acção que ponha fim ao actual isolamento da guarnição de Guidaje, que
nos permita evacuar os feridos e tratar do reabastecimento de géneros, de medicamentos, até mesmo
de urnas!...
18 de Maio
No cerne da operação, que será comandada pelo major João de Almeida Bruno (antigo
comandante do Centro de Operações Especiais) e pelos capitães António Ramos (agrupamento
Romeu, do tenente Quiseco), Matos Gomes (agrupamento Bombox, do tenente Zacarias Saiegh) e
Raul Folques (agrupamento Centauro, do tenente Jamanca), está o Batalhão de Comandos Africanos.
A par do agrupamento Romeu desloca-se o Grupo Especial (do Centro de Operações Especiais), hábil
em demolições, comandado pelo alferes Marcelino da Mata.
O capitão António Ramos já faleceu; os capitães Raul Folques e Matos Gomes são hoje coronéis. Este
último tem sido porventura o militar mais empenhado em estudar e contar a História das guerras coloniais
(nas três frentes – Guiné, Angola e Moçambique); e também tem obra relevante publicada no domínio da
ficção/literatura de guerra, sob o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz (destaco Nó Cego, obra inspirada na
operação Nó Górdio, em Moçambique ordenada pelo general Kaúlza de Arriaga e condenada por toda a
comunidade internacional), entre os seus romances de ficção ASP – De Passo Trocado, Soldado, Os
Lobos Não Usam Coleira, este adaptado ao cinema por António Pedro de Vasconcelos com o título”Os
Imortais”, O Livro das Maravilhas e Flamingos Dourados).
Os cerca de 450 homens envolvidos na Operação Ametista Real saem este sábado de Bissau e
chegam a Ganturé, transportados a bordo de uma LDG (lancha de desembarque grande) e duas LFG
(lanchas de fiscalização grandes).
A base fluvial de Ganturé, a 5 quilómetros de Bigene e na margem do Cacheu, quase não tinha
estruturas. Contou-nos um marinheiro, de rosto bem queimado pelo abrasador sol africano e que
chefiava uma esquadra, que foi o Destacamento de Fuzileiros Especiais nº 4 que recebeu a incumbência
de as (re)construir, desde o mês passado. Assim, receberam em Abril, por via fluvial, uma montanha de
bidões de combustível vazios, a que haviam que cortar as tampas e encher de terra, com o que
montaram a estrutura lateral do “quartel”, colocando por cima as chapas de zinco, como era de uso na
engenharia tradicional dos tempos de guerra. Em simultâneo, cavaram abrigos subterrâneos e as
imprescindíveis valas, não esquecendo o insubstituível bar para as horas de ócio…
Diz-se que o batalhão de comandos africanos é especializado em acções fora do território,
talhado para intervir nos países vizinhos. Daí os comandos vestirem muitas vezes fardas turras e
usarem, também com frequência, o mesmo armamento (à medida que se vão capturando as
Kalashnikov, os lança-granadas foguete RPG-2 e RPG-7, as espingardas automáticas Simonov, as
metralhadoras ligeiras Degtyarev e pesada Goryounov, utilizadas pelo PAIGC)…
As Kalashnikov usam balas de calibre idêntico (7,62 mm) às das G3 que nós utilizamos. Manejam-se,
contudo, com muito mais facilidade: desde logo, por serem mais leves (menos 225 gramas) e quinze
centímetros mais curtas; e porque os seus carregadores comportam trinta cartuchos, mais dez que os
vinte da nossa G3. Ora, salvo em situações/operações excepcionais, cada soldado das NT leva para o
mato um carregador na arma (permite-lhe dar vinte tiros) e quatro cartucheiras no cinturão (cada uma
com um carregador de vinte, o que permite dar oitenta tiros, – cem no total); enquanto que um
guerrilheiro do PAIGC, com menos peso e melhor operacionalidade, pode disparar por cento e cinquenta
vezes…
19 de Maio
De madrugada, depois de breve paragem em Bigene, de onde saíram por volta da meia-noite,
os comandos africanos alcançam os caminhos de Koumbamory e aguardam pelo ataque aéreo e em
força dos Fiat G-91, cujo bombardeamento à base, por volta das oito horas e vinte minutos, consegue
destruir paióis do PAIGC. A operação nem começa mal, pois sabe-se que a base IN se situa algures
naquela região, mas a sua o localização exacta é desconhecida. Nós, na aldeia de Guidaje, os que
conhecemos mal os azimutes do terreno, ouvimos rebentamentos sobre rebentamentos e de início
pensámos ser Bigene a “embrulhar”. A antiga sede do COP3 fica longe, a dezanove quilómetros e na
margem do Cacheu, e as bernardas que ali rebentam só se ouvem muito longinquamente desde que o
vento sopre de feição. Afinal, quem desta vez “embrulha” mesmo são as forças IN!
Tropas portuguesas a entrar em território estrangeiro não estaria muito de acordo com as normas do
Direito Internacional, nem mesmo invocando o muito controverso “direito de perseguição”. Militarmente,
se os acessos a Guidaje estavam vedados por todos os lados menos pela linha de fronteira (norte), tinha
toda a lógica esta incursão à retaguarda do IN. Dir-se-á que também o PAIGC tinha as bases do outro
lado, mas aos olhos do Mundo (entenda-se, das Nações Unidas) trata-se de um movimento de guerrilha
e não de um Estado soberano (pelo menos até 24 de Setembro de 1973, em que a proclamação de
independência em Madina do Boé viria a ser reconhecida internacionalmente, de imediato, por 86
países, não apenas os aliados mais tradicionais do PAIGC, como os países socialistas, africanos, a
China e até europeus, – casos da Suécia e da vizinha Noruega, cujo governo aprovou um subsídio
solidário à guerrilha em 27 de Março de 1973, – mas em especial os países “não alinhados”. E ter bases
em território estrangeiro, não é a mesma coisa do que desferir ataques a partir das mesmas, embora por
vezes déssemos conta disso mesmo. O isolamento de Portugal era tão grande no Mundo que os líderes
da guerrilha na Guiné, Angola e Moçambique haviam sido recebidos no Vaticano, em Junho de 1970,
pelo Papa Paulo VI, o mesmo que três anos antes viera a Fátima e se recusara a aterrar em Lisboa para
não participar em cerimónias oficiais ao lado de governantes da ditadura, preferindo aterrar em Monte
Real. Em Roma, realizava-se nesses dias (27 a 29 de Junho) a Conferência Internacional de
Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. A delegação que Paulo VI recebeu era
composta pelo angolano Agostinho Neto, o moçambicano Marcelino dos Santos e o guineense/cabo-
verdiano Amílcar Cabral. Este foi o porta-voz que, entre outras coisas, disse: “pedimos a Sua Santidade
que interceda junto do Governo de Portugal para que respeite as leis internacionais e a posição da Igreja
definida na Encíclica „Populorum Progressio‟ para que os colonialistas portugueses, que se afirmam
católicos, cessem os massacres das nossas populações, principalmente dos velhos, mulheres e
crianças”. O Papa respondeu, “estamos do lado daqueles que sofrem”, “somos pela Paz, a liberdade e a
independência de todos os povos, em especial, dos africanos”. Tudo isto à revelia da hierarquia da igreja
católica portuguesa, que muito maioritariamente (não foi só o cardeal Cerejeira, longe disso), sempre se
evidenciou servil ao poder, raras vezes se demarcou da ideologia e das atrocidades da ditadura, quer
em Portugal quer nas colónias. Talvez seja essa a principal razão porque muitos da minha geração
saíram agnósticos, – termo adocicado para não dizer ateu… E pensarmos, muitos de nós, que o
“argumento” da defesa do colonialismo é o de espalhar a fé e a “civilização cristã”!? Para o ilustrar,
recordemos um excerto de uma mensagem do Presidente da República, general Óscar Carmona, no V
Centenário do Descobrimento da Guiné: “quinhentos anos de presença nessa região representam uma
sobre-humana soma de esforços despendidos, primeiro, no reconhecimento da costa, depois na
penetração no Continente, no comércio e na evangelização; por fim, na ocupação e pacificação, abrindo
ao trânsito seguro de todos os homens os caminhos do mato e levando à população indígena as luzes
da cultura europeia e cristã” (sublinhados meus). Palavras para quê!?
Numa curta flagelação morre num abrigo subterrâneo, vítima de granada perfurante, um soldado
da CCaç 19 que ali tinha sido posto já muito desalentado, crivado com estilhaços de uma morteirada
que o atingiu dias antes, quando ia a atravessar a parada.
Passa das nove quando os comandos (o agrupamento Bombox na frente) efectuam o assalto, –
como se fosse um golpe-de-mão, – provocando o primeiro contacto com o PAIGC, logrando destruir
grande quantidade de material e provocar baixas importantes. Os combates duram a manhã inteira,
numa verdadeira batalha com explosões incessantes de granadas-de-mão, tiros e rajadas de todo o
calibre. A certa altura têm de se retirar, também em consequência da reacção do IN que, de surpresa,
investe com blindados que nem disparos de bazuca conseguem destruir. A retirada é penosa, têm de
transportar dez corpos de camaradas abatidos e progredir no terreno com mais de uma vintena de
feridos graves. Perdem três camaradas pelo caminho. No termo do dia o batalhão de comandos chega
ordenadamente a território português e recolhe-se em Guidaje, tal como estava programado.
As baixas causadas ao IN foram em número bem superior, estimando-se em 67 mortos (entre os quais
se contariam uma médica e um cirurgião cubanos e quatro mauritanos), e um incontável número de
feridos. Quanto ao material destruído: vinte e dois depósitos de material de guerra, duas metralhadoras
anti-aéreas, cinquenta mil munições de armas ligeiras, cento e doze costureirinhas (pistolas PPSH),
quinhentas e sessenta granadas-de-mão, quatrocentas minas antipessoal, trezentas espingardas
Kalashnikov, vinte e uma rampas de Foguetes 122, onze Morteiros 82 e mil e cem granadas para os
mesmos, cem Morteiros 60, cento e trinta e oito RPG-7 e quatrocentos e cinquenta RPG-2.
A base de Koumbamory ainda recentemente recebera seis dezenas de combatentes recém-
formados na Argélia e em Cuba e era confirmadamente o ponto principal de abastecimento aonde os
guerrilheiros se iam municiar. Veremos, doravante, até que ponto este rombo causado pela investida
dos comandos fará diminuir a sua importância.
O PAIGC possui outras bases de reabastecimento no país do paladino da teoria da negritude Léopold
Senghor (em parceria com o também poeta martiniquense Aimé Césaire), como a localizada em
Zinguinchor, a dez quilómetros da fronteira, mas mais para o litoral, e onde ainda se fala
fundamentalmente o crioulo “português” e são frequentes apelidos como Barbosa, Silva, Fonseca… A
cidade é a capital de Casamance, território que outrora foi pertença da Guiné Portuguesa e que se
estende até ao mar e a todo o comprido da língua da Gâmbia. Na sequência da Conferência de Berlim,
em que as potências coloniais ditaram entre si a partilha de África, – com as sangrentas consequências
que não se sabe se encontrarão solução nem ao longo do século XXI, – essa região guineense foi
trocada com a França por uma parcela do sul (zona de Cacine), a 13 de Maio de 1886. Casamance,
graças às margens do rio com o mesmo nome, produz grandes quantidades de arroz, e não só, sendo
considerada o celeiro do Senegal, zona agrícola e de potencial turístico, cujo território para norte se vai
tornando cada vez mais árido devido à progressão do deserto do Sahel. Graças à troca, a França
reconheceria a Portugal o “direito” de exercer a sua influência nos territórios do chamado Mapa Cor-de-
Rosa, (a ambição dos colonialistas portugueses de então, de unir Angola a Moçambique, de costa a
costa do continente negro; Capelo e Ivens fizeram a viagem entre Luanda e Tete cerca de dois anos
antes, mas tal sonho seria desfeito pelo Ultimato de tubarões mais poderosos: os ingleses, que com tal
mapa veriam contrariado o plano de domínio britânico “do Cabo ao Cairo”). Bastou aos dois estados
uma simples reunião a nível de embaixadores para efectuar o negócio! Falar português à volta de
Zinguinchor é um acto de resistência. Ainda hoje, à beira de trinta e sete anos sobre a proclamação da
independência da Guiné-Bissau, o povo de Casamanse (“Casa di Mansa”, em crioulo), étnica, social e
culturalmente mais próxima de guineenses do que de senegaleses, luta pela autonomia, havendo
também quem sustente a ideia da reintegração no território da Guiné-Bissau; e ainda hoje a Guiné-
Bissau e o Senegal se dirimem em fóruns e tribunais internacionais pela posse do território, se bem que
por razões bem mais interesseiras: veio a descobrir-se no respectivo solo a existência de bauxites e de
outras riquezas capazes de reduzir a pobreza e a falta de recursos de ambos os países, e até nas águas
territoriais, – que se alteraram em resultado da troca, mas cuja delimitação as antigas potências nunca
chegaram a definir com clareza, – há “garantias” da existência de reservas de petróleo. E é aí que
entram em jogo interesses como os dos franceses, que no Senegal se opõem ao direito do povo de
Casamanse à autodeterminação e à independência, mas que fazem precisamente o oposto em Angola,
através de “lobbies”, manobras e financiamentos, – atribuídos, nomeadamente, à ELF Aquitaine, – no
que concerne ao incentivo aos separatistas no enclave de Cabinda (aonde, por mera coincidência, há
petróleo a jorros)… Ora, esta “consanguinidade” entre as populações do norte da Guiné e do sul do
Senegal cimenta laços fortes e mesmo familiares entre povos de idênticas etnias, hábitos e costumes
(balantas, mancanhas, felupes (diolas), manjacos e mesmo fulas e mandingas). Nestes anos de guerra
imensos refugiados instalaram-se em Casamanse com o apoio dos residentes locais. Ao contrário, o
presidente Senghor, teme o que possa acontecer, pois falhado o projecto “Senegâmbia” (anexação da
Gâmbia pelo Senegal) quer manter o país com as fronteiras actuais. Com efeito, Casamanse nunca foi
integrada legalmente e nem desde a independência senegalesa em 1960 reconhece a soberania de
Dakar. Estamos em 1973 e neste momento vigora um acordo de coabitação por um período de 20 anos,
só que em conflito permanente. Não espanta que o PAIGC se movimente tão bem na região… Porém,
nem sempre foi assim. A linha política de Senghor simboliza uma aposta de alguma social-democracia
europeia para África (da própria “Internacional Socialista”, já que o seu modelo é único no continente,
permite eleições periódicas, embora a democracia seja limitada, pois partidos que cheirem a marxismo
são excluídos de nelas participar, como o PAI do actual presidente Abdulai Wade)! A grande questão é
que ao longo dos anos o Senegal nunca evoluiu nem resolveu melhor os problemas da fome e do
subdesenvolvimento do que qualquer outro regime em África que não estivesse em guerra interna ou
externamente. Ora, além de Zinguinhor o PAIGC tem as bases de Yeran e Kolda que, por via rodoviária,
rapidamente dão apoio às forças que no terreno fazem a vida negra a Bigene e Guidaje, pelo menos...
Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os apoios de Senghor ao PAIGC foram tímidos.
Outrora, o presidente do Senegal via com mais simpatia a chamada FLING, movimento impulsionado
por ele próprio com o beneplácito do sistema colonial português, cuja fundação visou dividir os
“independentistas”, aproveitando ter à frente um par de ambiciosos intelectuais que se manifestavam
claramente contra Amílcar Cabral. Senghor temia que um novo país liderado por Cabral se aliasse
militarmente ao de Sekou Touré (Conakry) e juntos consumassem uma ideia antiga do lado francófono,
de criar uma grande Guiné, potência regional. Mas o correr do tempo desmentiu tal propósito. Também
lhe fazia confusão a diversidade de apoios que o PAIGC tinha no Globo inteiro, da China aos países
socialistas e africanos, passando por muitas forças progressistas europeias e sul-americanas. Apesar de
tudo há muito que o PAIGC tinha sede em Dakar (Rue Félix Faure) e neste período havia adquirido
novos edifícios no centro da cidade para ampliar a sua representação. As mais recentes tentativas de
diálogo entre Senghor e Spínola, para eventualmente patrocinarem uma solução política do tipo neo-
colonial, fracassaram devido à liminar recusa de Marcelo Caetano, que preferia uma derrota militar a um
entendimento com os “terroristas”. O radicalismo do ditador contribui para que Senghor abra, noutros
moldes, as portas à actividade dos guerrilheiros no território senegalês. As pressões internacionais
(ONU, OUA, Organização dos Países Não-Alinhados, etc.), e também a clarificação das dúvidas que
Senghor tinha em relação à sua política futura quanto a uma eventual tentativa de anexação de
Casamance, ou um entendimento sobre esta matéria, o terão feito mudar de ideias. Foi elaborado um
protocolo de acordo quanto ao estacionamento e transporte de armamentos no território. No entanto, o
que está demonstrado é que houve quase sempre colaboração entre militares do Senegal e a tropa
portuguesa. Alguns exemplos: o comandante do destacamento do exército senegalês em Nianao
contribuía para a normalidade da situação militar em Pirada; o comandante de Setikénie jurava a pés
juntos que pelo seu território os guerrilheiros nunca passariam para atacar a Guiné (Cambaju); e o
comandante da CCaç 4147 (Sare Bacar) escrevia à PIDE a enaltecer o papel do agente Raul Alfredo
Silva “nas relações estabelecidas com as autoridades do Senegal” (bla bla bla).
Nesse mesmo dia os dois pelotões da CCaç 3518, mais os militares que connosco chegaram no
dia 15 (o grupo de combate da Companhia Africana Eventual de Cuntima e o Grupo Especial de
Milícias 322, de Jumbembém), organizamos uma tentativa de regresso “a casa”. Na frente, na cola dos
picadores, segue também pessoal dos DFE-3 e DFE-4. À partida, a escolha da data não poderia ser
melhor, julgamos que as forças da guerrilha estão prioritariamente envolvidas na defesa de
Koumbamory. Puro engano: arcámos com uma emboscada violentíssima ao alcançarmos a fatídica
casa amarela no Cufeu, onde diversos combates se tinham travado desde a primeira semana do mês.
O campo de minas alargou-se e diversas foram accionadas, até por membros da população que,
querendo fugir ao inferno que se vivia também na tabanca de Guidaje, se tinham agarrado às viaturas,
forçando a boleia, para irem procurar refúgio em Binta, Farim, ou o mais longe possível.
Quando a emboscada rebentou, uma “roquetada” lateral cortou ramos da árvore sob a qual me
abrigava e que me caíram nos ombros. Assustei-me, olhei para o lado de onde veio o disparo e
precipitei-me a disparar às cegas, desperdiçando mais de meio carregador de munições. Outras ogivas
de lança-granadas foguete RPG vieram da frente da coluna, gemidos sibilantes que pareciam passar à
tangente das nossas cabeças e troar pela estrada fora, não dava para ver aonde. A essas não podia
responder, sob pena de pôr em risco o físico de outros camaradas, na linha de fogo. De súbito, dou
com uma jovem mulher a saltar da MG estacionada à força trinta metros à minha frente, desatar a
correr e pisar de seguida uma mina, dando um pinote tremendo e vindo estatelar-se não muito
afastada do local onde me encontro. Ali ficou, imóvel, olhos em pânico, mas sem visíveis ferimentos
além do sangramento do pé e alguns rasgões no pano-de-saia. Já não me lembro quem foi o soldado
que com a faca de mato lhe rasgou um pedaço desse pano e lhe atou o pé a ver se o sangue
estancava, enquanto outro gritava pelo enfermeiro, que já andava a acudir noutras paragens. As balas
inimigas não param de silvar sobre nós e cada qual rastejou e abrigou-se o melhor que pôde,
buscando com a mira da G3 um alvo que mexesse no horizonte próximo, mas daquele local não havia
inimigos à vista. Um pedaço de capim que pareceu mexer-se logo foi imobilizado por uma M-62
(granada ofensiva) que um dos nossos soldados arremessou com notáveis impulso de braço e
pontaria. Mas não se confirmou que tivesse causado ferimentos a quem quer que fosse.
O sopro da mina pareceu-me de “efeito dirigido”, ou seja, amputou-lhe metade dum pé e deixou
um corte tão perfeito como se desferido por uma catana afiada (um “terçado”, na Guiné). Apesar da
minha especialidade ser “minas e armadilhas”, não pude certificar-me pessoalmente se o modelo dos
novos engenhos utilizados pelo PAIGC na região era o que se dizia: minas anti-picagem, – quer as
antipessoal quer as anticarro. Teriam uma pequena bateria, ou pilha, no interior, e a detonação era
provocada por duas folhas de estanho paralelas, uma usada como pólo positivo e outra negativo,
disfarçavam-nas com uma finíssima camada de terra por cima e a mais leve pressão da “pica”
provocaria o rebentamento imediato. À testa da coluna, um picador, curvado para a frente no
desempenho da sua tarefa, accionara instantes antes uma “coisa” idêntica e o “corte” que ficou no
corpo apresentou-se nos mesmos moldes. Só que, – isso sim, fui confirmar quando terminou a troca
de fogachal, – o suposto efeito de sopro fez-lhe desaparecer o queixo e o rosto; o que restou da
cabeça ficou espantosamente guilhotinado, na vertical. Tal como na “badjuda” nenhum outro ferimento
se via no corpo, nem uma beliscadura, já que a mina provocou um cilindro vertical de deslocação de
ar, mas não produziu estilhaços… Ainda assim, o soldado Vieira saltou para cima da MG onde sabia
estar um Morteiro M2 60 mm e caixas de granadas, acartou o que pôde para a berma da picada (regos
abertos pelos rodados das viaturas), afastou-se da ramaria das árvores e lançou uma série de
projécteis na direcção de onde lhe parecia que o ataque tinha mais força.
Quando a situação parecia mais calma, – pois já não sentíamos tiros na nossa direcção, –
através do rádio-banana que o nosso cabo das transmissões lhe cedeu, o alferes Igreja recebeu
ordens para que os dois pelotões d‟Os Marados de Gadamael mudassem de posição, formando um “L”
em relação à posição da coluna, isto para evitar tentativas de envolvimento por parte do IN. Quem
mostrou má cara por ter que se erguer e arrastar para outro lado foi o alferes Cruz. Estava branco
(provavelmente tão branco como eu estaria, mas faltou-me ali o espelho para comparar), enjoado com
o cheiro intenso dos explosivos. Tinha chegado recentemente à companhia, vindo da metrópole em
rendição do Dino Álvaro Mendes Duarte, também alferes miliciano “Marado” mas, quem sabe se em
boa ou má hora?, transferido para a companhia africana sediada em Bedanda (CCaç 6), – onde
também passou as “passas do Algarve”, o mesmo sucedendo ao furriel miliciano Manuel Fernando
Urbano Neves e, mais tarde, ao furriel Manuel Baptista Fidalgo, – pelo que, na sua condição de,
relativamente, periquito (o Cruz chegou a Os Marados a 12 de Outubro de 1972 e no início de 1973 foi
temporariamente deslocado para Bambadinca como instrutor do 1º turno de milícias), estava a “tirar os
três” no mato, e logo daquela maneira…
Na frente da coluna, o combate foi violento, o ataque frontal em linha do PAIGC causou muitos
danos logo de início, ferindo alguns camaradas. Não foi fácil ao pessoal recompor-se e reagrupar-se.
Passados vinte e tantos minutos, deixámos de ouvir o matraquear das Costureirinhas e das G3, pois
assomam-se dois Fiat que cortam o ar em voo rasante sobre as árvores, bombardeiam duas vezes, –
e de que maneira!, – a cento e cinquenta metros de nós, ou talvez um pouco mais. Depois passam
novamente em sentido contrário e o chão volta a estremecer por duas vezes, a cada embate das
“ameixas” que deviam ser das de 200 quilos! Logo a seguir, – a dois, três quilómetros? – ouvem-se
disparos secos e estranhos assobios. No céu, os mísseis Strela (Flecha, em russo) perseguem os
aviões e deixam um estreito rasto de fumo branco a marcar o itinerário. Para se defenderem, os Fiat
sobem a pique, o mais rápida e verticalmente que podem, até que os mísseis perseguidores rebentam
lá nas alturas. É certo que acima dos dez mil pés deixam de correr perigo, mas a verdade é que, a
essa altitude, também deixam de o causar ao IN, pois a tamanha distância dificilmente têm êxito a
escolher um alvo e a bombardeá-lo... Os aviões desta vez não são atingidos, mas escusado será dizer
que o nosso apoio aéreo termina neste momento. E respondendo ao ímpeto inicial da emboscada e à
tentativa de envolvimento que efectivamente se seguiu, muitos de nós ficamos sem munições de G3.
Também o pessoal das metralhadoras e de armas pesadas precisava de se reabastecer com
granadas. Embora sem se temer nova investida do IN, pelo menos de imediato (as bojardas da
aviação provocaram estragos em quem nos atacou) o pronto retorno a Guidaje foi inevitável.
Houve o registo do morto (picador) e de sete feridos, mas suponho que sem contar com os
elementos da população, principalmente a jovem guineense que perdeu o pé. Entre Os Marados de
Gadamael nenhuma baixa há a lamentar. Mas todo o pessoal envolvido na coluna, que tinha por
objectivo atingir Farim e zarpar dali para fora, mas que agora é obrigado a recuar, fica ainda mais
desmoralizado por não conseguir abandonar a tormentosa guarnição de Guidaje e por não ter
perspectivas de como e quando conseguirá romper o cerco movido pelo PAIGC. Com o apoio limitado
da aviação e com os acessos cortados, os feridos sem evacuação possível e corpos a agonizar, a
situação é já de algum desespero. Psicologicamente abatidos, com munições a escassear,
começamos a temer um ataque ao arame.
20 de Maio
As flagelações sucedem-se dia após dia e praticamente todos os edifícios já sofreram danos. O
nosso abrigo, qual cabeça de cogumelo pousada no chão, e muito poucos outros telhados são o que
resta de construções por esburacar. Sem conseguir dormir, fumo mais um Português Suave e
caminho ao longo das valas repletas de homens deitados no fundo. O dia rompe, preguiçoso. Avisto
Marcelino da Mata, palma da mão direita para cima, quatro dedos a dobrarem-se e esticarem-se com
intermitência, “toca a levantar”, assim acorda os homens que pernoitaram na mesma vala
ziguezagueante que nós, só que lá no extremo oposto.
Ele e este seu grupo já tinham estado connosco em Gadamael, (na altura, um grupo reduzido de
dezasseis ou dezoito elementos), de lá saíram para uma operação de que não tivemos informações. Só
sei que lhes abri as armadilhas à saída da pista de aviação e, mais adiante, em Viana, para poderem
passar. Seguiram acompanhados do guia Queba Mané, (que regressou sozinho quarenta minutos
depois) em direcção a Gadamael Fronteira (daí em diante era chão da Guiné-Conacry). Não os vi
carregados de mochilas e mantas, nem de bornais e rações de combate, acartavam apenas dois cantis
de água cada um e cinturões pejados de armamento. Só voltaram à base passados três dias, onde um
batelão os aguardava para os transportar, julgo que para Cacine. Era um grupo mítico de que se
contavam estórias, inclusive as mais idiotas e macabras, tais como a de coleccionarem orelhas de
inimigos abatidos ou apanhados, serem antropófagos, levarem apitos e desatarem a correr atrás do IN
disparando e apitando ao mesmo tempo, etc.. Mas estas estórias (verdadeiras ou não, tão condenáveis
como os actos, porém, que ficaram na História!) apenas se contavam para ilustrar a destreza destes
homens, alguns deles evidenciando bastante juventude ainda, durante as operações mais secretas e
bicudas para onde eram mandados.
Ouviram-se rebentamentos breves vindos de leste, alvitram-se bombas lançadas pela aviação
nos arredores de Fajonquito. Quanto a nós, a partir de hoje veremos que consequências teve a
operação levada a cabo pelos comandos africanos e a destruição da base de Koumbamory, fosse ela
total ou parcial. Será que vão reduzir-se os ataques?
Antes da investida dos comandos e do bombardeamento da força aérea, o PAIGC dispunha no local das
seguintes unidades: corpo de exército 199/B/70, com quatro bigrupos de infantaria e uma bateria de
artilharia; corpo de exército 199/C/70, com cinco bigrupos de infantaria e uma bateria de artilharia; grupo
de foguetes da frente norte, com quatro rampas; três bigrupos de infantaria, um grupo de
reconhecimento e uma bateria de artilharia do CE/A/70, deslocadas de Sare Lali (zona leste); e um
pelotão de morteiros de 120 milímetros.
O pessoal do batalhão de comandos arranca em direcção ao sul. Desloca-se a pé (em bicha de
pirilau e sem viaturas), não podendo assim transportar nem os dez mortos resultantes dos confrontos
de Koumbamory nem os vinte e dois feridos graves resultantes da operação Ametista Real. Há outros
homens que, com mazelas e ferimentos mais ligeiros não estão em condições de aguentar a marcha,
ou de a consumar com segurança e ficam também em Guidaje.
Os dez corpos, cuja identificação mencionarei mais adiante, virão mais tarde a ser aqui sepultados. Não
há notícia dos três desaparecidos em combate, cujos corpos ficaram tombados em território senegalês.
Em toda a acção, os comandos africanos dispararam 26.700 munições de G3 e 4.600 de Kalashnikov
(todas de 7,62mm), 292 granadas de lança-granadas foguete (6 e 8,9 cm), 71 granadas de RPG-2 e
RPG-7, 195 munições de morteiro e 268 granadas de mão (ofensivas e defensivas).
Num terreno descampado do lado de lá da fronteira, três crianças de varapaus controlam de
longe a numerosa manada que levam a pastar, o que há muito tempo não é habitual ver-se por ali, até
porque existem áreas com mais e melhor verdura para o efeito.
Alguém sugeriu mais tarde que o PAIGC desconfiara que o exército português havia minado aquele
corredor fronteiriço, para vedar a passagem. Dificilmente as NT conseguiriam colocar minas nesse
terreno sem despertar a atenção dos vigias, que controlariam permanentemente os nossos movimentos.
Na impossibilidade de enviar picadores para se certificar (ficariam ao alcance das nossas armas
ligeiras), as vacas a calcorrear o terreno seriam a forma de o testar. Porém, nenhum animal foi pelos
ares…
Não consigo recordar-me de quantas vezes terei ido à messe sentar-me e comer uma refeição.
Primeiro, porque as horas do tacho são trocadas constantemente e tenho pouca sorte na escolha dos
momentos de investida; segundo, porque enquanto duram alguns restos de rações de combate que o
pessoal “anfitrião” sacou do armazém, aproveito-me da sua generosidade; terceiro, porque já começo
a enjoar-me das salsichas de lata, só o cheiro me dá náuseas. Neste dia começa a faltar o pão,
parece que já estão a racionar a farinha, vem uma pequena fatia na borda do prato de cada um e é o
que há! E uma bernarda certeira no cocuruto do depósito de géneros arrasou as já de si insignificantes
esperanças de um dia nos brindarem com rancho melhorado…
Bem, mas de sentir fome lembro-me perfeitamente (ou talvez não seja fome e apenas pensar
que devo mastigar alguma coisa), e dirijo-me à messe, que desta vez está a servir refeições e cheia
que nem um ovo. Olho para o fundo e calculo que deve ser naquele balcão que nos devemos servir,
tipo self-service, do tal esparguete salsicheiro, prato do dia, não ao almoço e ao jantar, mas à hora de
abertura que parece tirada às sortes.
É sabido que os graduados não usam divisas nem galões nos ombros quando partem em
operação, em virtude da ideia de que o inimigo pretende sempre aniquilar quem comanda, em primeiro
lugar. Portanto, todos nós, quando saímos do COMBIS de manhãzinha deixámos nos cacifos essas
identificações hierárquicas. Entro na messe e oiço um berro estridente, vindo de uma das mesas.
Pelos cabelos brancos só pode ser de pessoal do quadro. Deduzo tratar-se do comandante, e é de
facto o tenente-coronel Correia de Campos que vejo apontar na minha direcção, de indicador em riste:
– “Adonde” é que você pensa que vai? Ponha-se lá fora imediatamente! Apresente-se primeiro e
peça autorização para entrar!
Por decoro, não vou agora descrever o que balbuciei na altura, enquanto rangia os dentes, nem
o que me apeteceu e estive mesmo para fazer… Recuei até à entrada da messe, ou refeitório, ou
espelunca o lá o que era aquilo. Como não trazia quico não podia fazer continência, pus-me em
sentido:
– Apresenta-se o furriel miliciano nº 197.116/71, Daniel Rosa de Matos. V. Exa, meu
comandante, dá-me licença que entre?
– Entre! – respondeu sem me olhar, a boca cheia a mastigar o esparguete.
De pronto, virei as costas e saí. Confesso que o que queria mesmo era arremessar-lhe qualquer
coisa às ventas, não sei bem o quê, o que apanhasse à mão de semear para lhe dar o troco do
enxovalho. Só não o fiz porque alguém me puxou pelo braço e me disse “tem juízo pá, caga mas é no
gajo, que é um xico de merda, e vem comer” e acabei por atacar mas foi a dose reduzida de salsicha,
apesar do fastio. Sentei-me numa mesa corrida, – não muito distante da do tenente-coronel, – onde já
estavam de prato vazio milicianos de outras unidades. O que me sussurrou os insultos ao comandante
e me arrastou para ir buscar o prato ao balcão, contou então certas histórias de atitudes que o homem
teria tomado em Pirada, – e que não têm cabimento aqui, – e garantiu-me que se não havia whisky na
messe era porque ele tinha açambarcado para o seu quarto as cerca de quarenta garrafas que há
poucos dias constavam no inventário do depósito de géneros. É claro, os outros camaradas que
estavam à mesa confirmaram tudo, puseram até os adjectivos no superlativo, mas nunca me convenci
que não fosse mais um daqueles boatos que circulam sem se saber como nasceram. Nunca estivera
cara a cara com Correia de Campos, aliás, ficara com boa impressão do homem desde que vi, ao
longe, no meio da parada e durante uma flagelação, indiferente às granadas que caiam por perto, de
pingalim (à Spínola) numa mão e de AVP-1 na outra, a dar ordens à artilharia e às armas pesadas de
como responder ao fogo. Agora, a atitude mentecapta que teve para comigo obrigou-me a mudar de
opinião. Num quartel que, sob o seu comendo, mais parecia já uma “Casa de Orates”, era assim que
queria impor “respeito”? “Autoridade”? “Disciplina”? O que pode levar um indivíduo corajoso a revelar
atitudes como estas, a coberto dos galões – de que outra coisa poderia ser?
No 25 de Abril de 1974, imagino que devido ao relacionamento que mantinha com Spínola, o tenente-
coronel apareceu em Lisboa, à porta do quartel do Carmo. Adelino Gomes (jornalista que estava a fazer
a reportagem dos acontecimentos que viria a ser gravada em vinil e em cd), pergunta-lhe como estão as
coisas e Correia de Campos retorquiu-lhe mais ou menos isto: se uma mulher grávida estiver a parir
você pergunta-lhe se está com dores? A delicadeza da resposta caracteriza a sua personalidade.
Passados estes anos, o episódio da messe pouco (me) importa, todos temos momentos de menor
inspiração. Sem lhe querer mal algum, relatar agora o que se passou é já uma vingançazinha, como que
a reivindicar para mim igual costela cabotina…
21 de Maio
Parece haver um abrandamento no ritmo dos ataques de artilharia de que somos alvos. Será
provavelmente a primeira consequência da operação dos comandos em Koumbamory, base que ainda
há poucos meses recebeu seis dezenas de combatentes recém-formados na Argélia e em Cuba e é
(era?) o principal ponto de abastecimento aonde os guerrilheiros se vão municiar. Mas já se fala em
reposição de stocks! Diz-se que têm chegado ali camiões carregados com material vindo de
Zinguinchor.
Num passado mais longínquo, Zinguinchor foi também relacionada com os colonos portugueses pelas
piores razões, ao ser palco de tráfico de escravos com a cumplicidade “tuga”. Em 1836, o decreto de 10
de Dezembro aboliu as exportações de escravos em todos os territórios portugueses, mas isso não
afectou os dois maiores traficantes dessa época: o antigo governador da Guiné e coronel de milícias,
Joaquim António de Matos, e o governador de Bissau, Caetano José Nozolini, comerciante mestiço,
cabo-verdiano, marido e sócio de Nhara Aurélia Correia. Segundo a escritora Joana Ruas, que foi
cooperante na Guiné-Bissau depois da independência e jornalista cultural do jornal Nô Pintcha (Avante,
em português), creio que ao mesmo tempo que o jornalista português Daniel Reis (de A Bola) que
também esteve no jornal, “Ziguinchor estava povoada por mestiços luso-africanos, grumetes e escravos,
o chefe da feitoria vem de uma família mestiça, os Carvalho Alvarenga, ramo donde virá Honório Pereira
Barreto, filho de um cabo-verdiano e de Rosa de Carvalho Alvarenga, a poderosa Rosa de Cacheu.
Honório Pereira Barreto, sendo governador da Guiné de 1835 a 1839, o número de escravos libertados
nos 55 navios provenientes dali e apresados pelos cruzadores, fixou-se em cerca de 3.929”. Pois
Honório Pereira Barreto (nascido no Cacheu a 24/4/1813, morre em Bissau a 26/4/1859), é o único
negro (falso negro, por sinal) a figurar nas parangonas do sistema colonial: a sua pretensa fotografia
aparece nas notas antigas do escudo guineense, nos selos emitidos pelos CTT, e tem inclusive um
monumento majestoso, construído em sua memória. O regime aponta-o como o supremo exemplo do
“portuguesismo” que pode haver num assimilado. Acontece é que o seu lado verdadeiramente negro, –
digamos que, obscuro, – é o de, numa época em que o comércio de escravos está em extinção,
consolidar no Cacheu um lucrativo comércio esclavagista! Que credibilidade pode ter entre os
guineenses o poder exercido em Bissau ao longo do século e nos dias da guerra, cujo único monumento
a um negro é erigido em memória do tal Honório?
Outra vez do lado senegalense da fronteira, um pouco mais distante do enfiamento do abrigo do
Obus, nota-se uma invulgar movimentação de viaturas amareladas, bem ao alcance dos nossos olhos.
Sabíamos da sua circulação, protegidas por blindados, numa estrada paralela à fronteira mas a cerca
de dois quilómetros de distância. Mas assim tão perto… Pertenceriam às tropas do país vizinho ou à
guerrilha? Tamanha concentração fez crescer o nervoso miudinho e, com maior ou menor fundamento,
o receio de vir a concretizar-se o temido ataque ao arame. O nosso cabo artilheiro, pelo sim, pelo não,
apontou o Obus o mais paralelamente ao solo possível, a ponta do cano quase apoiada sobre a
circunferência de bidões, “just in case”, gastaria o resto das munições fazendo tiro directo!
Corre o informe de que no enfiamento do quartel de Nema (Farim), estaria instalada uma porção
descomunal de “turras”, provavelmente para reforçar a instalação de minas no itinerário para Guidaje.
Mais lenha para queimar a nossa débil moral…
22 de Maio
Houve uma flagelação, curta, mas suficientemente certeira: caíram nas valas granadas de
Morteiro 82, causando feridos, um deles muito grave. O pessoal já não sabe onde dormir. Faz oito dias
que chegámos. Estamos fartos de viver como toupeiras, queremos ir embora a qualquer custo. Mesmo
sendo conhecedores dos riscos que teremos de enfrentar pelo caminho. Se os comandos africanos
passaram sem levar viaturas, nós também o poderemos fazer. Antes feridos ou mortos a romper o
cerco do que enfiados nas tocas, como ratos. É dia de tentarmos uma vez mais ultrapassar os
obstáculos, prepararmo-nos para novos confrontos, vamos romper as linhas do IN e atingir Farim, em
direcção ao paraíso.
Pouco passa das sete horas e aí vamos nós, uma bicha de pirilau de cada lado das viaturas,
protegendo-as de ambos os lados da picada. Somos pouco mais ou menos os mesmos da
desafortunada coluna de dia 19, descontando as baixas sofridas desde então, que não são unicamente
os feridos, há que acrescentar o pessoal vítima de “amoques” diversos, como ataques de paludismo e
quejandos, que atiram para os bancos das viaturas de trás um bom punhado de novos inoperacionais.
Desta vez, o nosso posicionamento na coluna é mais avançado, digamos que do meio para a
frente. Nota-se uma grande concentração nos olhos e no caminhar dos homens, um cuidado
suplementar com a disciplina, a cada passo. O silêncio só não é total devido ao ralenti das Berliet da
frente (enquanto se vai fazendo a picagem as restantes viaturas ficam para trás e mantêm os motores
desligados, quando há condições de segurança aproximam-se quinhentos metros e voltam a parar). A
passarada e demais habitantes da mata também se calam à nossa passagem, ou em sinal de respeito
ou então como num filme de suspense, aguardando o desfecho.
Atingimos a bolanha seca do Cufeu, enorme, vamos ter que atravessar um grande descampado
e, do nosso lado, não se vislumbra um único refúgio em que possamos abrigar-nos, caso isto dê para
o torto. Fazemos um compasso de espera, sempre de olhos no chão que pisamos e na linha do
horizonte, e os homens da frente progridem umas dezenas de metros com todas as cautelas, como
que a apalpar o terreno. Nada acontece e são mandadas avançar as duas Berliet, que como é
costume na função de rebenta-minas, apenas levam os condutores e sacos e mais sacos de areia, no
chassis, sobre os pára-choques, em toda a parte.
Olhamos uns para os outros, parece até que sorrimos, como que a dizer “é desta!”, desta vez é
que o pessoal zarpa daqui, vamos embora! Os sorrisos duram pouco tempo: uma infinidade de
canhoadas começa a troar ao fundo da bolanha e atiramo-nos para o chão, liso, que nem bermas há
onde esconder o cabedal. Passam breves momentos e começa a cair a chuveirada de granadas de
canhão-sem-recuo e de morteiro, e mesmo os mais convictamente ateus rezam para que nenhuma
pouse nas suas imediações. A parte imensa da coluna que se estende pela bolanha está
desprotegida, em plena zona de morte. Como o ataque é desferido de longe, a única reacção ao fogo
provém dos nossos morteiros.
A situação dura minutos incontáveis, durante os quais os fuzos da frente avançam, tentam
surpreender o IN mas eles é que acabam por ser surpreendidos, deparando-se com uma linha
perpendicular pela frente, de onde despontam rajadas de metralhadoras e de onde vem a cruzar o ar
uma chusma de granadas de RPG. Parece, mais uma vez, estarmos sem saída possível. Galgar a
barricada dos guerrilheiros será autêntico suicídio, pois correr desalmadamente por uma bolanha seca
fará de nós alvos demasiado fáceis. Não temos a possibilidade de ver ninguém, reagimos por instinto,
disparando às cegas. O soldado José António da Silva Pires (Jaca) lá vai serpenteando entre balas e
rebentamentos e consegue chegar-se à frente. Tanta agilidade, carregando ao ombro um morteirete, e
não só: ele e o seu camarada Manuel de Sousa transportam algumas munições, atadas duas a duas
pelas bases, e escolhem o sítio ideal para as poderem disparar. Da orla da mata as costureirinhas
começam a matraquear na direcção de ambos o seu som característico, tal como o demonstram os
impactes das balas no capim, curto, atrás do sítio onde se encontram. Uma rajada causa-nos alguns
danos, embora na maioria dos casos não passe de arranhões ou ferimentos ligeiros, nomeadamente
no primeiro-cabo Gomes dos Santos, do COMBIS. Sem ter consigo a G3 para responder, o Jaca cola-
se o mais possível ao chão e o Manuel de Sousa rasteja e esconde-se por trás duns arbustos ralos.
Abre fogo de tal maneira que cala os disparos inimigos, levanta-se e desata a correr em perseguição,
ao mesmo tempo que vai visando o inimigo com pequenas rajadas. Por sua acção, os guerrilheiros
que desse lado nos tentam envolver desistem da ideia e batem mesmo em retirada. Já não seremos
cercados e o Jaca gasta as munições de 60 mm fazendo-as explodir logo após os limites da nossa
zona de acção, ou seja, em cheio sobre quem nos ataca, provocando o ponto final na emboscada. É
pedido apoio aéreo, mas desta vez a resposta é negativa, não sabemos se devido ao receio dos
mísseis Strela se a outras razões.
Desde Setembro de 1968 que os serviços de “Defesa do Estado” tinham sido avisados de que os
mísseis SAM-3 estariam a ser disponibilizados pelo Instituto Internacional de Moscovo para a FRELIMO,
o MPLA e o PAIGC. Só que, já neste ano de 1973, o modelo de míssil anti-aéreo que viria a derrubar os
primeiros aviões no norte da “Província”, acabaria por ser o “SA-7 Grail-Strela”, (designação russa e
também da OTAN, ou NATO, mas nunca adoptada em Portugal) operado apenas por dois homens e
facilmente transportável para qualquer ponto da guerrilha. Na realidade, o aparelho, cuja utilização já era
conhecida da guerra do Vietname, não passa de um tubo com 1,40 metros e dez centímetros de
diâmetro, pesando escassos 10 quilos (quase metade de um rádio Racal)… Tem acoplado um pequeno
sistema de disparo. É accionado por um apontador e um homem para abastecer a carga sobressalente
(municiador). E os mesmos serviços sabiam que à base IN de Kondiafara haviam chegado no ano
transacto trinta apontadores acabadinhos de formar na URSS. O “SA-7 Grail-Strela”, ou SAM-7, ou
simplesmente Strela, está equipado com uma cabeça auto-direccional, sensível aos infravermelhos,
tendo um alcance transversal de 3,7 quilómetros e, de altitude máxima, 10.000 pés (3 quilómetros,
porque acima disso, rebenta), a uma velocidade de 1,5 “Mach” (é a unidade que mede a relação entre a
velocidade do objecto e a velocidade do som). Emite um sinal acústico quando tem o alvo referenciado,
mas bloqueia se o avião voar baixinho (é ineficaz abaixo dos 150 metros). Não pode ser disparado com
o tubo a fazer um ângulo superior a sessenta graus, sob pena de os gases de escape queimarem o
apontador. Assim, disparado numa posição entre os 20 e os 60 graus, o míssil poderia perseguir um
avião “até à pista”, atraído pelas fontes de calor (os reactores, no caso dos Fiat).
A anulação da operacionalidade da Força Aérea começa precisamente nesta região, onde os
sistemas antiaéreos do IN começam a alvejar e derrubar aviões T-6, DO-27 e Fiat G-91. Também os
helicópteros estão sem voar em grande parte do território e durante tempo indeterminado.
De facto, no dia 20 de Março de 1973, os mísseis terra/ar começam a dar sinal de vida (primeiro disparo
é referenciado na fronteira norte, em Campada, S. Domingos). Mesmo que alguns tenham passado ao
lado das aeronaves, as ondas de choque provocadas assustam pilotos, e não só! De início nem se
suspeita do tipo de arma que o IN estava a utilizar. A primeira vítima ocorre a 25 Março. É abatido o
caça do tenente piloto-aviador Miguel Pessoa (Bissalanca, BA12). Voava a mil pés de altitude e o
impacte do míssil na parte traseira do Fiat fez com que este perdesse o motor e os comandos. O piloto,
que voava sobre o corredor de Guileje, consegue ejectar-se, mas devido à baixa altitude, o pára-quedas
não chega a abrir-se totalmente e ele tem a “sorte” de cair sobre árvores frondosas que lhe amparam o
corpo. Ainda assim, perde a consciência e parte uma perna (fractura do peróneo), o que o impossibilita
de caminhar em direcção a Guileje. No dia seguinte, oculto sob a copa do arvoredo, onde os pilotos que
procedem às buscas não têm a possibilidade de o ver, lança ao céu um “very-light” que é avistado pelo
tenente-coronel Brito (que irá morrer em combate três dias mais tarde). Conhecido o sítio exacto onde se
encontra, o grupo de operações especiais de Marcelino da Mata é incumbido de o procurar e resgata-o
por volta das 11 horas, levando-o até ao héli da evacuação, onde é assistido pela segunda-sargento
enfermeira pára-quedista Giselda Antunes. No céu, os aviões que estão a proteger a operação, – entre
eles, um T-6 pilotado pelo furriel Carvalho, – são também alvejados, mas esses mísseis não causam
danos. A 28 de Março, o Fiat G91-RA nº 5419, (fabricado para a NATO em meados dos anos 60, na
República Federal da Alemanha), pilotado pelo tenente-coronel aviador José Fernando de Almeida Brito
(comandava o Grupo Operacional 1201, – Base Aérea nº 12, em Bissalanca, – e tinha comemorado o
seu 40º aniversário na véspera) é abatido por um míssil e explode no ar, nas imediações de Madina do
Boé. O corpo do tenente-coronel, por muitos considerado o mais audaz e experiente piloto português da
aviação de caça, nunca será encontrado.
*
Como estava colocado em Bissau (Brá), faltando poucos meses para regressar à metrópole (esperava
fazê-lo em Outubro/Novembro, resolvera casar-me em Lisboa, o que aconteceu a 31 de Março, dia da
notícia do abate do Fiat de tenente-coronel Almeida Brito no DN. Embora desde muito novo tivesse o
hábito de ler jornais diariamente, foi para mim um dia pouco propício para ler jornais… Mas na capital toda
a gente andava alarmada com as notícias e me perguntava pelos aviões, sem que eu soubesse o que
responder. As núpcias e as férias terminaram e regressei a Bissau a 1 de Maio (o Boeing 707 da TAP saiu
da Portela perto da meia-noite e, pouco antes, tive notícia de uma explosão na Praça de Londres, creio
que no primeiro-andar do então Ministério das Corporações (atentado à ARA). Também nessa noite, a
RTP transmitia o concurso da Miss Portugal, directamente do Casino Estoril. Claro que só tinha câmaras
de filmagem no interior do casino, pois cá fora havia a pouca-vergonhice de um grupo de cidadãos
protestar contra a exploração da mulher e, contraditoriamente, contra o preço dos ingressos, exibindo
cartazes que diziam “2.000 escudos = a 4.000 pães”!
*
Porém, o dia mais dramático para a nossa aviação seria 6 de Abril. O DO-27 pilotado pelo furriel
Baltazar da Silva transporta um médico e um sargento de Bigene para Guidaje e não chega ao destino,
havendo que proceder à sua busca. Parte de Bissalanca outro DO-27, conduzido pelo furriel António
Carvalho Ferreira. Em Bigene, o comandante do batalhão local (major Mariz) embarca no avião e vai
aterrar em Guidaje. Aí juntam-se o ferido a evacuar e um enfermeiro. Com essas quatro pessoas a
bordo, a aeronave levanta voo na direcção do Senegal (a pista, como já vimos, é sobre a fronteira) e
pura e simplesmente desaparece. É mais tarde localizado no mato entre Bigene e Guidaje. Um pelotão
de pára-quedistas héli-transportado desloca-se ao local e confirma as quatro mortes, conseguindo
recuperar os corpos (haveria ainda de reaver mais duas vítimas mortais dos mísseis Strela). Entretanto,
voando na área em protecção dos pára-quedistas, é abatido por outro míssil um avião T-6, pilotado pelo
major Mantovani, que morreria em consequência da queda. Ainda a 6 de Abril, mais um DO-27, pilotado
por outro furriel aviador, também Carvalho (não sei se o meu amigo de infância José Manuel Henriques
de Campos Carvalho, que era piloto desses aviões e estava na Guiné nessa altura, encontrámo-nos um
dia em que foi a Gadamael, mas depois perdemos o contacto), acorre a um pedido de evacuação de
Guidaje e leva a bordo a sargento pára-quedista Giselda Antunes (por curiosidade, casar-se-ia com o
tenente piloto-aviador Miguel Pessoa, do Fiat abatido a 25 de Março, hoje coronel reformado,
registando-se a coincidência de constituir seguramente o único casal do mundo a ser atingido por
mísseis Strela em ocasiões e aviões diferentes)… É igualmente alvejado por outro Strela que, embora o
não tenha atingido, o danificou com a onda de choque e o obrigou a regressar à base.
*
Após o derrube das aeronaves o inspector adjunto António Luís Fragoso Allas, responsável-mor da polícia
política em Bissau e homem muito próximo do general comandante-chefe e do seu gabinete, enviou para a
Rua António Maria Cardoso (sede da PIDE, em Lisboa) uma mensagem que continha, entre outras, as
seguintes observações: “A utilização desta nova arma (mísseis terra/ar) constitui um sério agravamento da
situação, porque nos tira o domínio do espaço aéreo”. Antes, “só o apoio aéreo foi decisivo para evitar
desaires”. “Temos de encarar como possível que o PAIGC venha, em curto prazo de tempo, a aniquilar
algumas guarnições e a estabelecer novas áreas libertadas”. Allas era agente da PIDE desde 1961,
trabalhou no gabinete de Spínola e, após o 25 de Abril, viria mesmo para Lisboa, onde permaneceu
protegido pelos chamados spinolistas até ao “28 de Setembro”, nunca chegando a ser preso e fixando
residência mais tarde, como empresário, na África do Sul.
Na ausência de aviões Fiat desatou o pessoal a bombardear com morteiros, bazucadas e, os da
frente, até com dilagramas. Mas o mais que conseguimos foi provocar novo e reforçado fogachal do
PAIGC e termos de nos colar novamente ao chão para evitar a chuva de estilhaços. Se tem sido o IN a
avançar em nossa direcção, estávamos feitos: ou recuávamos ou não tínhamos qualquer hipótese de
protecção. Mas o objectivo dos guerrilheiros era, notoriamente, impedir-nos a passagem e não dizimar-
nos ou infligir-nos outro tipo de derrota. E esse objectivo eles conseguiram-no, mais uma vez,
obrigando-nos a regressar a Guidaje. Voltámos ao inferno, às valas, ao cheiro pestilento, às refeições
de “estilhaços com atacadores” (esparguete com pedacinhos de salsicha) e, com sorte, aos copinhos
de groselha. Por quanto tempo mais?
Do quartel de Binta, sensivelmente à mesma hora (sete e trinta) em que saíramos de Guidaje,
avançara também nova coluna logística, com a missão de evacuar o pessoal, sobretudo os feridos. A
CCP 121 faria protecção a oeste da estrada, cabendo a um destacamento misto de fuzileiros (42
homens dos DFE nº 1 e nº 4, comandados pelo primeiro-tenente Albano Alves de Jesus) a protecção a
leste. Os picadores seriam de um grupo de combate da CCaç 14 (guarnição de Farim), participando
também um grupo reduzido de elementos da CCaç 3. Um dos elementos, – o furriel miliciano Arnaldo
Marques Bento, – deste grupo comandado pelo alferes Gomes Rebelo, acciona uma mina antipessoal,
reforçada com outra, anticarro, e tem morte imediata. Também um picador – o soldado Lassana
Calisa, – morre alguns metros adiante e a mesma mina provoca dois feridos graves. Ainda um outro
engenho viria a ferir gravemente outro homem. Cerca do meio dia, um grupo de combate saiu de
Genicó e veio reforçar a coluna. O tenente-coronel Correia de Campos manda abortar a coluna de
reabastecimento e o pessoal regressa a Binta, onde chega apenas por volta das 18 horas.
23 de Maio
Sai de Binta em direcção a norte uma coluna/auto comandada a partir de uma DO-27 pelo major
pára-quedista José Alberto de Moura Calheiros. É protegida por uma unidade de fuzileiros especiais e
por grupos pertencentes a unidades do exército, nomeadamente da CCaç 3 e, como sempre, por uma
equipa de picadores que rasga caminho lá bem na cabeça da coluna. Ao chegar perto de Genicó liga-
se aos cerca de 90 homens da CCP 121 que, sob o comando do capitão pára-quedista Armando de
Almeida Martins, emboscada desde bem cedo, ali aguardam a sua passagem, para lhe fazer
protecção. Os pára-quedistas faziam parte de uma força de intervenção, que incluía ainda uma
companhia de comandos e uma companhia de fuzileiros, enviada para Guidaje para tentar romper o
cerco e aliviar a pressão do PAIGC sobre o quartel.
Por volta das 8,30 horas, com a ligação à vista praticamente a ser efectuada, uma mina
antipessoal é deflagrada e provoca a morte do soldado Bailó Baldé, da CCaç 3. Escassos minutos a
seguir, quando a coluna recolhe o corpo e retoma o andamento, uma viatura acciona outra mina e
causa mais uma morte imediata (soldado Fonseca Nancassa, também da CCaç3) e dois feridos com
gravidade. Uma terceira mina vem a ocasionar mais um ferido grave. Perante as adversidades da
progressão, parecendo impossível ultrapassar o enorme campo de minas e armadilhas que encontrou
em cada metro de caminho, é recebida ordem para que a coluna retroceda e regresse a Binta. Aos
pára-quedistas, no entanto, é dito que devem avançar até ao destino, em missão de patrulha
(operação Mamute Doido). Assim procedem, vindo a efectuar uma pausa para descanso, já na área do
Cufeu. Conforme estas fatídicas jornadas demonstram à saciedade, seja ao longo da bolanha seja em
torno da casa amarela que avistamos a cada passagem – ou do esqueleto que dela resta, – o Cufeu é
uma zona propícia para as emboscadas, desde logo pelo número inusitado de morros de baga-baga
atrás dos quais dezenas de corpos se podem ocultar e proteger-se das nossas balas.
Retemperadas as forças, o pessoal da companhia de caçadores pára-quedistas reinicia a
marcha e é de pronto surpreendido por constringente emboscada. Dois dos pára-quedistas que
seguem na frente (António das Neves Vitoriano e José de Jesus Lourenço, este com apenas 19 anos)
têm morte imediata; o primeiro-cabo Manuel da Silva Peixoto, apontador de HK-21, é colhido por uma
rajada e fica gravemente ferido. O fogo inimigo é muito intenso, a frente prolonga-se por algumas
centenas de metros e dura três quartos de hora praticamente consecutivos. Há quem garanta ter
avistado gente branca do outro lado.
“Os militares José Lourenço, António Vitoriano e Manuel Peixoto iam na primeira linha e foram os
primeiros a cair”, relata muitos anos mais tarde Hugo Borges, na altura da emboscada tenente,
comandante de pelotão (hoje general).
À mistura com tiros de Kalashnikov ouvem-se estrondos de canhões-sem-recuo e roquetadas
das RPG-7, que causam pelo menos mais duas baixas graves: a do soldado Palma, que se encontrava
a tentar desencravar a metralhadora MG-42 do soldado António Melo, que foi também ferido e ficou
imediatamente em coma (viria a falecer após evacuação, já na metrópole). Apesar da resistência das
NT, a ofensiva só é contida graças ao apoio aéreo que desta vez corresponde ao chamamento. Os
Fiat lançam bombas de cinquenta quilos ao longo de meia hora bem medida sobre a zona de acção IN
(cuja força é estimada em cerca de setenta guerrilheiros). Algumas viaturas saíram de Guidaje e foram
ao encontro dos pára-quedistas. Fizeram inversão de marcha para se carregarem os corpos das
vítimas e regressarem à origem. Abrindo um novo trilho, conseguem chegar à aldeia de Guidaje, não
sem que os guerrilheiros retirados do Cufeu após o bombardeamento da aviação os tenham atacado
de novo, mas de longe e sem consequências. O cabo Peixoto não resiste aos ferimentos e morre
também neste dia 23 de Maio, – imagine-se! – considerado o “Dia dos Pára-quedistas” por ser há
precisamente 17 anos (desde 1956) a data da fundação, em Tancos, da Escola de Tropas Pára-
quedistas!...
O batalhão de caçadores pára-quedistas (nº 21) teve durante as campanhas na “Guiné Portuguesa”
cinquenta e seis baixas, (três oficiais, seis sargentos e quarenta e sete praças).
*
Os corpos dos militares da CCaç 3 que protegiam a coluna inicial e que pela manhã foram vitimados
pelo rebentamento de minas (mormente os de Bailó Baldé e Fonseca Nancassa), ainda devem ter sido
transportados pelas mesmas viaturas que os camaradas pára-quedistas trouxeram para Guidaje, pois
viriam a ser ali sepultados, dias depois, conjuntamente. Se assim não fosse, teriam sido levados pelos
fuzileiros e elementos do exército que regressaram a Binta e o tratamento aos seus esquifes teria sido
diferente.
24 de Maio
A claridade solar já tinha penetrado pela porta há mais de uma hora e iluminado os degraus de
acesso à superfície. À medida que vai acordando, mas sem abandonar a sonolência, o pessoal
espreguiça-se. Alguém solta um sonoro traque. Não se ouvem réplicas nem reacções. Lá fora há quem
converse constantemente e o furriel Machado, identificando as vozes dos tagarelas, levanta-se e vai
acender um cigarro para o pé deles, encostando-se aos bidões de protecção do Obus. A noite, – já
não era sem tempo! – correu sem sobressaltos, não fomos bombardeados e conseguimos dormir
algumas horas seguidas. O furriel Silva e o alferes Igreja tinham ido à messe ver se havia farnel,
missão sem êxito, o pequeno-almoço estava atrasado, voltassem a meio da manhã. Continuávamos
sem horários certos para as refeições. A cantina dos soldados abria quando calhava e o alerta para o
tacho era dado quando alguém aparecia de marmita e colher nas mãos, a anunciar, “pessoal, hoje a
salsicha é com bianda”! E água? – perguntei. Para beber sim, bebemos um copo cada um, mas das
torneiras não pinga uma gota, – respondeu o Igreja, – as sanitas estão um nojo, nos balneários nem se
pode entrar...
O nosso cabo artilheiro vasculha dentro da mala que tem deitada debaixo da cama, saca de um
“transístor” do meio da roupa e das cartas, confirma se já está tudo acordado e põe o rádio a tocar.
Escutam-se sons de kora (espécie de harpa mandinga, mas cujo formato é mais parecido com uma
viola), depois ngumbé, ritmo nacional guineense, mas não deve ser tocado pelo grupo Cobiana Djazz,
impedido de actuar na UDIB de Bissau e cujo vocalista, – José Carlos Schwartz, o Zeca Afonso da
Guiné – estará ainda na prisão de “Djiu di Galinha” – a Ilha das Galinhas, onde se situa a espécie de
Tarrafal guineense, o Campo de Trabalho no arquipélago dos Bijagós.
Em meados de 1969 vieram transferidos do Campo de Concentração do Tarrafal (Santiago, Cabo Verde)
58 presos políticos guineenses, colocados nas catacumbas construídas na Ilha das Galinhas. O número
de detidos tem vindo a crescer nos últimos anos. Apesar de alguns terem morrido, vítimas de
espancamentos, o número de novos presos é consideravelmente superior.
Não sei que raio de língua ou dialecto fala o locutor que entre os temas musicais pronuncia uma
algaraviada de coisas esquisitas para os nossos ouvidos. O que escuto na telefonia do artilheiro virá
da Emissora Nacional ou de postos de rádio dos países mais próximos (ouvimos com maior ou menor
dificuldades emissões de onda média do Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné/Conacry, Serra Leoa)?
Quanto a música africana, as emissões nacionais transmitem sons guineenses, de preferência
instrumentais. Vocalmente, um ou outro tema do grupo Voz da Guiné. De Cabo Verde, sobretudo Bana e
Luís de Morais, e também os angolanos Duo Ouro Negro e Lili Tchiumba. A "Rádio Libertação − A Voz
do PAIGC, Força, Luz e Guia do Nosso Povo", tem os seus noticiários e passa músicas muito variadas
(cheguei a ouvir música portuguesa que é proibida em Portugal). E há o PFA, umas quantas horas por
dia, com espaços que procuram distrair a tropa, mas muito distintos entre si. Por vezes chega a ser
imbecilizante um “programa” produzido pelo “casal Primeiro Dias e Senhora Tenente”. Havia de tudo,
desde espaços de entretenimento inteligente, com o Armando Carvalheda (nosso artilheiro em
Gadamael que, felizmente para ele, viria a “mudar de ramo” e a trocar o Obus pelo microfone) – ainda
hoje um profissionalão de rádio e uma das vozes mais influentes da RDP/Antena 1, onde é o principal
divulgador da música popular portuguesa no seu “palco da rádio”, ao vivo, todas as semanas. Também
João Paulo Diniz (que regressado à metrópole passou, penso que a pedido de Otelo, que o conheceria
de Bissau, o tema “E Depois do Adeus”, primeiro sinal radiofónico antes da senha “Grândola Vila
Morena”. E outros nomes que, de tanto os ouvirmos, ficaram na nossa memória: Faride Magide, julgo
que técnico de som que terá estado anos depois em Coimbra, na RDP; e também censores políticos que
eram militares, e que faziam os cortes mais absurdos em programas enviados pelas unidades que
estavam no mato. Ainda se os cortes fossem originados pela má qualidade do som (eram gravações
geralmente efectuadas em cassettes domésticas) compreender-se-ia! Mas não, era censura política pura
e dura, às locuções e à música que se incluía nesses programas. Isso sucedeu connosco, gravámos um
belo dum programa no meu quarto em Bafatá (meu, e dos furriéis José Alberto Ferreira Durão,
mecânico-auto, e Hélder Pereira Calvão, – o nosso “ranger”, isto é, de operações especiais). Quando
ouvimos a transmissão do nosso programa “Frequência 3-5-1-8” (participaram também o furriel miliciano
de transmissões Domingos Gomes Pinto, o furriel miliciano de minas e armadilhas Ângelo Silva e o
furriel miliciano atirador António Guerreiro), no lugar do fado de Coimbra cantado por José Bernardino
apareceu uma doce canção d‟Os Beatles, o poema “O Rico e o Pobre” (altamente “subversivo”,
declamado entusiasticamente pelo homem de transmissões José Elias Gomes de Oliveira), também foi à
vida!, saiu tudo alterado, segundo apurámos, por um zeloso guardador do regime, um tal Madeira. E
pensar que à testa do PFA estava o capitão miliciano José Manuel Barroso, ligado ao Comércio do
Funchal, jornal que, apesar de dar vivas ao marxismo-leninismo-maoismo (para achincalhar a CDE em
período dito pré-eleitoral) aparecia nas bancas como sendo de oposição ao regime (o capitão Manuel de
Sousa recebia-o algumas vezes e eu permutava com ele o “meu” Notícias da Amadora, O Mundo da
Canção e, às vezes, outros recortes de notícias que os meus amigos Acácio Vicente e Fernando Simões
me mandavam)…
Embora nesta altura não se registe a presença incómoda de muitos mosquitos, nem as noites se
carreguem de frígido cacimbo, pernoitar ao relento não é pêra doce nenhuma. Todavia, o sono só nos
verga pelo cansaço. Fumar no escuro é arriscadíssimo (só com mil cuidados para evitar que o morrão
do cigarro se veja de longe) e nem uma gota de álcool temos para nos aquecer o corpo e a alma.
Resultado: tagarela-se, de preferência baixíssimo, para que ninguém nos oiça para lá do cotovelo
seguinte da vala. Uns falam do sonho de um dia chegarem à peluda, dos projectos de vida
constantemente adiados; outros de novas recebidas das suas terras (e há quanto tempo se estava
sem receber uma carta?); outros ainda contam anedotas avisando previamente os interlocutores que
devem rir-se pianinho, para não despertar atenções… Como se sabia que o nosso poiso de origem
tinha sido Gadamael, um pára-quedista quis saber se já tínhamos notícias de Guileje. Não tínhamos,
claro. Novidades só trazidas de fora! Sem se aperceber que a história ainda desmoralizaria mais
qualquer Marado, informou que quartel e aldeia de Guileje tinham sido abandonados e que toda a
gente (cerca de duzentos militares e mais de meio milhar de civis) estava agora refugiada em
Gadamael, que terá ficado a rebentar pelas costuras!
O pessoal ouve com incredulidade. Será também esta a nossa sorte? Pensando bem, e
conhecedores que somos do local, nem nos é difícil imaginar que se Guileje estivesse cercada como
nós aqui estamos, pertinho da fronteira, sem a aviação em pleno e com um único acesso ao exterior, o
abandono seria lógico e inevitável! Esta opinião é prontamente contraditada por alguém que diz que
não senhor, que com ele lá andava tudo no mato a afogar turras ao bochecho. Pois, mas isso é se
tiveres água para encher a boca! Em menos de quatro dias, esclareceu o narrador pára-quedista,
levaram com três dezenas de bombardeamentos dentro do quartel!
– Chiça, – atalhou um dos soldados madeirenses, – então parece Guidaje! E vejam lá que ainda
há pouco mais de um mês haviam feito obras e inaugurado o novo bar do sargentos, que até gira-
discos tinha, e agora ficou lá tudo?
25 de Maio
O dia decorre com a tensão do costume. Perguntamo-nos se não estaremos com fome e
concluímos que antes o aperto no estômago que o risco de ir à messe e ser surpreendido por um
balázio à ida ou à volta. Já perdemos o apetite, esquecemo-nos de comer, as horas e dias passam e
nem damos pela necessidade de comer... Quanto alguém está de maré e se deita ao caminho, ao
longo da vala que passa mais próxima do refeitório ou da messe, cravamos a esse parceiro um prato,
tigela, marmita, o que houver com comida e nos puder transportar trazer com nas mãos, à cabeça,
como puder. Cada qual passa a trazer para o abrigo o número de refeições que o vasilhame permitir e
dividimos os morfos. Sede? Também já não sentimos, que se lixe a água. Somos novos e o corpo
aguenta. Aprendemos a compartilhar, a dividir a bianda, que da última vez apareceu no lugar do
esparguete e, em vez da salsicha, os cozinheiros foram desencantar sardinha em lata.
Há quem dialogue sobre as informações prestadas pelo pára-quedista quanto à saída de
Guileje, questionando se não será também uma boa “saída” para nós, em… Guidaje. Sim, há que pôr
sobre a mesa todas as possibilidades e equacioná-las. Uma tal hipótese teria de ser bem medida,
teríamos que avaliar todas as consequências. Até se admite que uma coluna em debandada mais
facilmente sairá de Guidaje por terrenos senegaleses do que em direcção a Binta. Sem se pôr de parte
a ideia (um miliciano da CCaç 19 alvitra que nesse caso deveríamos entalar o comandante, “encostá-lo
à parede” para que também adira), vinga a opinião mais sóbria de que uma solução militar haverá de
encontrar-se para nos safarmos. Apesar do estado psicológico (moral em baixo) e dos desaires
anteriores, contando os homens que aqui estão sitiados, nenhum de nós quer acreditar que numa
operação em força não consigamos mesmo furar as barreiras do PAIGC.
A improbabilidade de se fazerem evacuações de feridos e mortos, o tempo quente e a
quantidade de corpos em decomposição (o cheiro que exala da enfermaria é horrível), leva o pessoal
da enfermaria (um primeiro-sargento e alguns auxiliares e maqueiros), que já não consegue acudir às
gangrenas, a derreter velas e a tapar os orifícios dos mortos (nariz, boca, orelhas) com velas de
estearina. Os corpos são trancados numa sala afastada da enfermaria propriamente dita, mas o cheiro
pestilento escapule-se pelas frestas da porta, pelo buraco aberto pela morteirada no canto da parede…
Sem perspectivas de tão depressa haver coluna que possibilite a saída do pessoal e sem restar um
único caixão livre nem havendo a mínima possibilidade de o construir de improviso, Correia de
Campos fala com os comandantes das unidades respectivas e é decidido enterrar os mortos mais
“antigos”, no sítio onde já repousam dois cadáveres, que é no perímetro externo das fiadas de arame
farpado, “a 25 metros da caserna do lado sul e na direcção do azimute 112”.
Há pára-quedistas a meter bala na câmara, dá a sensação que se preparam para sair, embora a
hora não pareça a mais propícia (se é que ainda existem horas melhores e piores para o efeito). Se
eles abalarem, nós vamos atrás, admitimos. Afinal, trata-se dos preparativos para enterrarem os seus
três camaradas (abatidos na emboscada de dia 23). São abertas covas no local onde já repousam os
soldados Manuel Geraldes (da 2ª companhia do BCaç 4512/72, que teve morte brutal, a 10 de Maio,
também dia de crise e de isolamento locais), e Becute Tungué, do 4º grupo da 3ª companhia de
comandos (ferido na operação Ametista Real).
São numerosos os pára-quedistas da CCP 121 que vão dirigir um último adeus aos camaradas
António Vitoriano, José Lourenço e Manuel Peixoto, ao lado dos quais ficará também o corpo do
soldado António Talibó Baio, da CCaç 19. O comandante comparece para dirigir as cerimónias. Atrás
dele estão outros graduados, nomeadamente o alferes Luciano Diniz, que por ser madeirense
aproveita estes dias para matar saudades da terra e sempre que pode vem tagarelar com os nossos
soldados. Os semblantes estão carregados, nem poderiam estar de outra forma. Depois das
continências e das palavras de Correia de Campos, os pára-quedistas apontam as armas ao alto e dão
três 3 tiros sincopados para o ar. São tiros da cerimónia militar, mas o IN que tem vigilantes sobre as
árvores mais próximas da fronteira e controla os nossos movimentos, pensa que o estão a atacar e
reage ao fogo, naturalmente que levando o pessoal a abrigar-se. No meio da precipitação o alferes da
companhia africana atirou-se mesmo para dentro de uma das campas. O fogacho não dura muito,
clarifica-se o equívoco e os corpos são tapados com terra. Só no fim o pessoal se retira, angustiado,
alguns temendo ver o seu futuro a passar por aquele espaço nas costas da caserna do lado sul…
Os pára-quedistas e todo o pessoal que assistiu à cerimónia fúnebre regressam aos seus lugare
e a circulação volta a ser quase nula. Está um ror de gente dentro do perímetro do quartel e quase não
se vê vivalma, tudo enfiado nos buracos. Nem os poucos que restam a morar do lado civil metem o
bedelho de fora. Nas moranças residem essencialmente as famílias de militares africanos da CCaç 19.
Em geral, são desarranchados, isto é, atravessam a passagem que divide o arame, tipo porta de
armas, e vão comer e dormir “a casa”. E habita ali também um par de djilas, comerciantes da raia
guineense que fazem o seu contrabando de produtos, fronteira cá fronteira lá, quando os dias estão
bons para o comércio, o que não acontece agora. Costumam falar francês muito bem e ser utilizados
como informadores, soa que muitos são agentes duplos que levam e trazem o que os dois lados da
contenda querem ouvir. Não faço ideia se tal se passa com os que aqui moram.
Estamos sentados nas camas (dificilmente conseguimos deitar-nos os oito ao mesmo tempo em
camas tão apertadas), uns encostados à parede, outros debruçados sobre os joelhos. Fumamos quase
todos Português Suave, sem filtro, o “barista” disse que já não há de outra marca. Mas o tabaco ainda
não faltou e, se nenhuma bernarda der cabo do stock, ainda há bastantes pacotes entre as paredes
que restam do armazém. Por isso, fuma-se. Que mais se pode fazer? A lâmpada de 25 velas que
parece querer desprender-se do casquilho do tecto alumia o abrigo que, a esta hora, parece ter
paredes de ardósia. Irradia uma luz que dança consoante o gemer do gerador. Quando a corrente
baixa quase se oculta por cima na nuvem de fumo em que estamos. De dia ainda vamos fumar lá para
fora, só que de noite poucos se arriscam a transformar-se num alvo luminoso e apetecível. Não me
lembro de quantos fumamos ao mesmo tempo nesta cova sem janelas, mas devemos ser muitos. Para
já, arrumados como podemos, estamos cá dentro eu, os alferes Igreja e Cruz, os furriéis Monteiro,
Machado, Silva e Fernandes e o nosso cabo artilheiro.
Já se dormita quando damos por novo ataque de artilharia. São mais levas de granadas, (serão
seis de cada vez?), a estoirarem bem no interior da guarnição. Dá a ideia que os tipos nem se
deslocam com o armamento, sabem que não conseguimos desalojá-los e têm os canhões, morteiros e
o carago todos os dias no mesmo sítio, prévia e certeiramente apontados a nós, é só passarem por ali
de vez em quando, meter munições e catrapumba! O alferes Diniz e soldado Talibó, ambos da CCaç
19, que estão de passagem, descem os degraus do abrigo e vêm refugiar-se ao pé de nós. Também o
furriel de operações e informações Carlos Jorge Pereira, que viera de Bigene com Correia de Campos
e tinha sido incumbido de conferir o número de munições de Obus existentes no aquartelamento, se
apressa a saltar cá para dentro. Um outro militar africano entra atrás dele, porém, escapa-me a sua
identidade. As granadas rebentam cada vez mais perto de nós. Ouço palavrões lá de fora que as mães
dos atacantes não gostariam de ouvir. Por instantes, parece que tudo se vai acalmar, mas ainda
estamos a respirar fundo e outros silvos anunciam a queda de mais bombarda.
Na sequência duma granada que estrondeou tudo em redor do abrigo, faltou-nos a luz. De
dentro do buraco não percebemos se o corte é geral ou se apenas a lâmpada do abrigo, de tão
fraquinha que se mostra, foi desta vez que se finou. Os minutos passam e a intensidade do fogo sobe
de tom. São maiores e mais assimétricos os rebentamentos. Como no último ataque houve feridos nas
valas (um projéctil cair dentro de uma vala de meio metro de largura é uma probabilidade reduzida) há
mais pessoal a rastejar por elas em direcção ao Obus e a vir abrigar-se junto de nós. Às escuras não
os identifico, mas rapidamente percebo pelas vozes que entram o cabo Telo e os soldados Ferreira e
Gonçalves, todos da minha companhia. Trazem consigo o cabo Santos, do COMBIS, que veio
connosco na operação. Alguns arranjam lugar nas camas de cima e por aí se acomodam. Outros, sem
espaço, ficam de pé na pouca área que sobeja entre os degraus e as camas. Nota-se um certo
abrandamento no fogo, mas sentimos que os rebentamentos estão muito concentrados à volta do
abrigo e cada vez parecem mais próximos.
Há opiniões, que só mais recentemente conheci, de que os postos de artilharia eram os alvos a atingir
neste ataque específico do PAIGC, que faria o tiro com observadores avançados, como numa carreira
de tiro. Essa tese é sustentada pelo capitão Salgueiro Maia no livro Capitão de Abril – Histórias da
Guerra do Ultramar e do 25 de Abril, Editorial Notícias, Novembro de 1997. pág. 64)
É aflitivo estarmos enfiados num buraco sem luz, sem nos vermos uns aos outros e sem
controlarmos o que se passa lá fora. Já nas noites anteriores havíamos admitido que um dia destes
“eles” viriam atacar-nos ao arame, com armas ligeiras e, de passagem pelo abrigo, bastava atirarem
uma granada-de-mão cá para dentro para nos limpar a todos…
Num instante, fez-se um clarão capaz de cegar qualquer um, não sei bem dizer bem o que se
passou. Quer dizer, sei, mas há um hiato de tempo em que não me lembro de nada. Uma granada
imensa perfura o tecto que tínhamos como muito seguro e provoca o caos. Confesso que não me
lembro patavina do estrondo, apenas do clarão. Passado não sei quanto tempo abro os olhos e os
meus braços tremem sem que consiga controlar os movimentos. Eu devo ter desmaiado por alguns
instantes, nem faço ideia se breves, se longos! Estou sentado ao fundo, na cama de baixo, do lado
esquerdo. Oiço gemidos vários. O Igreja grita roucamente “as minhas pernas, ai as minhas ricas
perninhas”, apercebendo-se que as tinha num crivo de estilhaços. O Cruz (ferido num pé, viu-se depois
que sem gravidade) trepa à superfície, aparentando estar coxo ao subir os degraus um por um,
parece-me que auxiliando o Monteiro, que dobra uma perna com dificuldade. Também o cabo artilheiro
sai, puxado por alguém que lhe estica os braços lá de fora. Vai muito queixoso e parece bastante
debilitado. Lá fora o Obus dá um disparo, depois outro.
Só bastante mais tarde vim a saber que o soldado Vieira, sem nunca obter formação para tal, recebeu ali
mesmo umas dicas do cabo artilheiro e, provavelmente sem a melhor das direcções, agarrou-se ao
Obus 10,5 e desatou a responder ao fogo inimigo. Foi mandado parar, para evitar o desperdício de
munições e porque, entretanto, haviam chegado maqueiros que levaram para a enfermaria os feridos
mais graves, nomeadamente o soldado Gonçalves e o furriel Fernandes, cujos ferimentos eram de tal
monta que “ninguém já dava nada por eles”…
A meu lado, o Silva desata a rezar a Avé Maria em voz alta e eu, porventura mais assustado do
que ele, dou-lhe um valente safanão e imploro-lhe: “cala-te caralho”! Nem sei mesmo (nem ele o
saberá) se o sítio das costas em que o empurrei foi o mesmo por onde um estilhaço o tinha perfurado,
mas nada de importância. Eu queria ouvir bem o que se passava em redor, sobretudo lá fora. Percebo
muito próxima uma respiração irregular, gorgolejante. Guio-me pelo ouvido e concluo que o ruído dos
borbotões tem origem no corpo do Machado, que sei estar sentado da mesma coma que eu, na outra
ponta. Apalpo-lhe o corpo e trago na mão uma substância quente e pegajosa. Foi atingido no peito e o
sangue das feridas entope-lhe a respiração. O som atrofiado apaga-se suavemente e com ele percebo
que também o Machado se apaga, atravessado na cama, encostado à parede e pernas de fora,
estendidas. Depois, bem, depois acho que me fui outra vez a baixo das canetas, já que não me lembro
de ver o Silva sair nem os outros feridos, como o alferes Luciano Diniz, também com as pernas
bastante danificadas por estilhaços. Se estivesse acordado certamente teria saído com eles; se
estivesse acordado também eles dariam por mim e não me deixariam ali “sozinho”!?
Quando recobro noto um silêncio estranho. Gritos e lamentos que ouvira antes desapareceram
em absoluto. E é esse vácuo que me desperta os sentidos, sobretudo o auditivo e o olfactivo. A
fumarada, que agora não é provocada pelos cigarros, some-se muito, muito lentamente. Percebo isso
ao ver no tecto, no lugar da desaparecida lâmpada de 25 velas, aparecer um círculo baço de céu a
querer impor-se à escuridão. É estranho que só neste momento interiorize que fomos atingidos pelo IN
(granada de Morteiro 120 mm).
Passo as mãos pela cabeça, pelo rosto, ao longo do camuflado e em todos os lugares dou por
mim encharcado. Cheiro as mãos, o odor pastoso do sangue invade-me as narinas e provoca-me um
vómito. Penso para comigo que estou ferido. Bem, nada me dói em particular. Também o desenho dos
primeiros degraus, aos pés da cama, para lá das pernas do Machado, parece furar a escuridão.
Interrogo-me sobre o que faço aqui e resolvo sair. Ergo-me, tento apoiar-me nos ferros das camas de
cima e, de cada vez que pouso as mãos sinto que o faço sobre corpos que nem consigo imaginar a
quem pertencem. Antes, nunca imaginei que pudesse haver mais vítimas mortais para além do
Machado. Tento dar um passo em frente no estreito “corredor” entre camas e piso um corpo. Alargo o
passo e tropeço nas pernas que podem ser do meu amigo ou de outro camarada qualquer. Quem
serão estes companheiros? E se algum deles ainda vive? Que maleita poderei causar-lhe, calcando-o
e passando-lhe por cima? Desespero e sento-me no mesmo sítio. É curioso que, fumador inveterado
desde muito novo, não me lembro de alguma vez não trazer lume comigo. Sempre usei isqueiro mas,
dada a dificuldade de arranjar pedras e gasolina no mato compro sempre carteiras de fósforos (de
cera, que os de madeira apagam-se mais com o vento). Logo agora, não tenho uma coisa nem outra e
não consigo iluminar a saída e zarpar daqui para fora, para o pé dos outros, onde estarão?
Guio-me mais uma vez pelo ouvido. Qualquer coisa frita baixinho a cama à minha frente.
Ajoelho-me, estico o braço e apanho o “rádio-banana” (AVP-1) utilizado pelo cabo artilheiro e que a
explosão deve ter projectado para ali. Como estava farto de ouvir o nome de código do comandante
arrisquei:
– Águia Águia, diga se me ouve, escuto!…
Aí à terceira tentativa irrompe a voz do tenente-coronel a responder. Queixo-me que estou no
abrigo do Obus, com vários mortos em redor (da existência destes, logicamente, ele já sabe), que está
escuro como breu e que preciso de ajuda para sair. Correia de Campos assegura-me que enviará
alguém ao abrigo logo que seja possível, pois a barafunda é grande na enfermaria. Aguardo
prolongadíssimos minutos e por fim oiço o milagre de duas vozes que se aproximam e passos
temerários a descer os degraus do abrigo. Um clarão de lanterna percorre rapidamente o interior:
– Ena como isto está! – exclama um dos homens. Ele vê (e eu também, pela primeira vez), as
silhuetas dos camaradas que jazem sobre as camas e no chão.
– Alumia aqui para o fundo! – peço-lhe.
– Olha pá, está aqui um gajo vivo! – exclama o soldado da lanterna.
Ilumina-me, então, a passagem. Alargo o passo para ultrapassar um corpo tombado a meus pés
e, logo depois, passar por cima das pernas esticadas do Machado. O espaço entre as camas é exíguo
(a minha memória visual aponta para os 40 centímetros) e à passagem raspo o meu ombro num braço
que pende da cama superior. O braço, que só deve estar preso ao corpo por umas farripas dum
sovaco de dólmen, cai ao chão. O som cavo que provoca só desaparecerá dos meus ouvidos no dia
em que a morte também me bata à porta.
O soldado não me deixa ver bem os terrenos que piso, talvez para não me impressionar. Os
repentes da lanterna deixam-me identificar os rostos dos meus camaradas Telo e Ferreira e do
soldado da CCaç 19 que durante o ataque se refugiou no abrigo com o alferes madeirense. Cá fora,
abatido com o que vi, sento-me no chão, no lado interior da cerca de bidões cheios de terra que
protegem o Obus. Puxo dum cigarro e peço lume ao soldado (europeu, não sei de que unidade)
enviado pelo comandante. Acendo o cigarro com o quico a fazer de abat-jour e não sei se alguma vez
na vida estive tão triste e angustiado como neste momento. Os dois soldados voltam ao interior do
abrigo e um deles sai a correr, para regressar três minutos depois com uma maca e mais um ajudante.
Algo os fez desconfiar que o corpo do africano deitado no chão ainda respira, pelo que decidem
transportá-lo para a enfermaria, quem sabe? Em vez disso, chamar um enfermeiro não seria a melhor
opção, estavam todos sem mãos a medir.
Volto a apalpar nuca, pescoço, peito, tudo o que as mãos alcançam até me certificar se não
estou realmente com ferimentos. É “apenas” o sangue dos meus camaradas que me ensopa da
cabeça aos pés e isso já é ferida bastante. Deito um derradeiro olhar para dentro do abrigo e retenho a
imagem do gravador de Akay virado do avesso, no chão. Sigo atrás da maca até à enfermaria para me
inteirar do estado dos evacuados, pois nem sabia ao certo quem sofrera o quê. A azáfama é tanta que
me barram o caminho, os enfermeiros não deixam entrar ninguém. Encontro finalmente o Ângelo Silva,
abraçamo-nos em lágrimas (confirma-me que levou apenas com um pequeno estilhaço nas costas) e
fico a saber por ele do estado dos restantes militares da companhia. O Gonçalves, que dificilmente
resistirá a tão profundos ferimentos, é um caso à parte. Dos restantes, a mais complicada é a
ocorrência do Igreja, bastante atingido mas felizmente só nas pernas e, informara o sargento
enfermeiro, dos joelhos para baixo. O Monteiro tem também um joelho bastante ferido e o Cruz um
estilhaço no pé, coisa de pouca monta, o mesmo sucedendo com o nosso cabo de artilharia. O alferes
madeirense da companhia africana (Diniz) tem nas pernas ferimentos parecidos com os do Igreja,
embora pareça que houve estilhaços que lhe atingiram os ossos. O estado do furriel Fernandes é
bastante crítico. Nada sabemos quanto ao furriel de operações e informações que entrara no abrigo,
deve-se ter safado e, se assim foi, verificamos que os nossos corpos (que não a nossas mentes) terão
sido os únicos a esquivar-se aos estilhaços…
Por heresia do destino, este é o proclamado Dia de África (também Dia da Libertação de África), por ser
a data da fundação da OUA, – Organização da Unidade Africana, fundada a 25 de Maio de 1963, – “para
o Mundo celebrar com os africanos, medindo o progresso que este continente faz na comunidade
internacional”… Penso que, pela nossa parte, estamos a pagar uma factura pesadíssima para assinalar
este 10º aniversário! Por estes dias, durante a crise de Guidaje (e ainda antes do que viria a passar-se a
sul, em Guileje), o comandante-chefe informou o titular da pasta da Defesa, – ministro Silva Cunha, –
que “nos aproximamos, cada vez mais, da contingência do colapso militar” e que, “de há uns tempos
para cá o PAIGC alcançou uma inesperada supremacia em potencial de guerra”. O homem parece que é
bruxo, digo eu, mas anos mais tarde…
26 de Maio
Se já era difícil dormirmos alguma coisa no abrigo, mais difícil foi fechar os olhos nas valas.
Passámos mais uma noite em claro, percebemos melhor as queixas dos que já habitavam no “metro”
há mais dias, não conseguimos dormitar nem um cagagésimo de tempo. Quando rompeu o sol vimos
que na palmeira pendia não só o cacho de dendém, mas um volume escuro e grosso, cheio de
abelhas a entrar e a sair. Não é nada agradável conviver com favos àquela distância. Para já, ninguém
se queixa de ter sido picado, talvez o dia se torne mais propício a uma soneca, estendidos no fundo da
vala.
No fundo? Logo eu, que ainda em Gadamael ganhei complexos de me atirar para dentro de valas,
sobretudo, à noite. Tinha acabado de sair do banho (que se tomava em balneários construídos com
bidões, já perto do rio), de chegar ao meu quarto e me enxugar, a única roupa que tinha no corpo era um
par de peúgas e nesse instante uma sentinela dispara uma rajada (teria dado por “saídas” de fogo IN e
deu assim o alarme de flagelação), e mal tive tempo de agarrar na G3 e correr naquele estado para a vala
mais próxima. Agachado, mas positivamente com o rabo de fora, passados instantes pressinto algo no pé.
Apesar do lusco-fusco, vislumbro uma senhora cobra a roçar-se nos meus tornozelos, levando-me a
esquecer os perigos das bernardas que caíam em redor e a pular para fora, naquela triste figura… Foram
os soldados que ali se encontravam que, calçados com botas de lona, a mataram e atiraram para fora da
vala. Como os rebentamentos continuaram, tornei ao interior da vala. Foi uma incursão breve, pois duas
lombrigonas, filhotes da falecida, andavam no fundo aos pinotes…
Cedo nos confirmam o que já se esperava: a morte do furriel Fernandes. Um pouco mais tarde,
sucumbe também devido aos ferimentos o soldado da CCaç 19, António Talibó Baio.
27 de Maio
Sou mandado chamar à secretaria. Sou, isto é, ninguém reclama o meu nome, querem é a
presença do “mais-velho” graduado dos pelotões da CCaç 3518. Lá fui, não por ser “mais-velho” de
nada, mas por ser o único dos seis graduados que vieram do COMBIS que ainda podia andar com
relativa ligeireza. Um alferes (não me lembro de o ter visto antes, deve ser da CCaç 19) pede-me que
mobilize quatro soldados que devem apresentar-se ali uma hora depois, para ajudarem a sulcar novas
covas, pois o comandante decidiu mandar enterrar os defuntos que restavam na enfermaria. E repete-
me as explicações que é possível dar: a situação é insustentável, não se prevêem evacuações, o
cheiro já não se aguenta… Sim, é evidente que serão também sepultados os homens da minha
companhia. E devo preparar uma secção que, tão ataviada quanto possível (os mais limpinhos e com
camuflados menos rasgados?), irá prestar as honras militares durante o funeral, porém, sem salvas de
tiros para o ar, para se evitar o charivari da cerimónia anterior com os camaradas pára-quedistas, e
também para que o IN não contabilize de ouvido o número das nossas baixas.
Dói-me participar nos enterros do Machado, do Telo e do Ferreira, particularmente nestas
condições. E não se sabe quanto tempo irá durar a débil respiração do Gonçalves. Meu caro, –
advertiu o alferes, – é o que tem de ser feito e não há que hesitar. Apesar de compreendida, às
primeiras impressões a solução não é bem aceite. Dizem-me os soldados em tom de revolta que
fazem e acontecem e que levam os corpos às costas até Bissau, e por aí fora! Deixar os corpos em
Guidaje é que está fora de causa. Mais tarde, conformam-se, alguns de lágrimas nos olhos.
À hora marcada, transportam-se os corpos para o local que, embora já conhecido por cemitério
“provisório” de Guidaje, tem um número reduzido de sepulturas. De facto, não alberga a maioria das
vítimas da batalha que travamos, nomeadamente os comandos tombados durante o assalto a
Koumbamory, enterrados algures.
Os dez voluntários de Os Marados de Gadamael a quem dei refrescamento prévio de “ordem
unida” já se encontram perfilados junto aos jazigos cavados durante a manhã, comigo à frente. Apesar
da profunda tristeza, foi caricato ter passado o resto da manhã a treinar manobras com as G3 com
estes homens, até que atinassem, e mal, com a posição de funeral-arma, difícil de efectuar devido ao
maior número de movimentos de braços que é preciso efectuar. Haviam-na treinado uma única vez, na
recruta. Quase dois anos depois e numa ocasião destas, a motivação para treinos de ordem unida
também não é muita…
Outros homens, em especial os membros da companhia, concentram-se nas imediações para
um último olhar, uma despedida dos camaradas que viram a vida ceifada pela morteirada filha da puta.
Experimentem enterrar um irmão no quintal para perceberem o que isto é! Jazem neste quintal de casa
alheia, logo adiante, os restantes corpos que já referi. Todas as campas têm espetadas em cima
cruzes de pau, e já existem outras cruzes prontas para serem espetadas na vertical sobre os novos
defuntos que, por agora, estão deitados no chão, embrulhados em panos de tenda, lençóis, penso que
também em rolos de gaze e adesivos, cada qual frente à cova que não sabemos se será a sua
derradeira morada. Chega o tenente-coronel Correia de Campos, pela posição em que me encontro, à
frente dos soldados já perfilados, percebe que serei eu a gritar as palavras de comando e faz-me sinal
com o pingalim para que inicie a cerimónia.
Grito “firme”, “sentido”, etc., até ao “funeral arma”! Faço continência ao comandante sem saber o
que procedimento deveria seguir-se (já sabia que não daríamos tiro algum em honra dos tombados). O
comandante murmurou algumas palavras de circunstância a rimar com pátria e nação, que estamos
aqui para render homenagem a estes nossos heróis, mas as condições ditam que temos de ser
breves, e manda avançar os dois africanos da CCaç 19 e os dois madeirenses da minha companhia
(tenho ideia de que um deles era o Abreu, do meu pelotão), que em silêncio, – neste caso,
verdadeiramente sepulcral, – da direita para a esquerda e um por um, começam a descer os corpos e
a cobri-los com pás de terra.
Quero lembrar-me de outras imagens desses companheiros, mas vivos, como se fosse possível
não arquivar na memória esta forma de os ver desaparecer sob as pazadas de terra. O primeiro a ser
depositado é o corpo do Fernandes. O que pensar a seu respeito, se mal o conheci? Só o convívio
recente, o rogar pragas à vida, o ter falado mais que uma vez da sua origem, da aldeia de onde é
natural, – Carção, – e por não sabermos onde fica nos explicar ser terra de almocreves e a capital
portuguesa dos marranos (judeus convertidos à força) e que conserva as tradições dos “cristão novos”,
como o pão ázimo, feito sem fermento e para ser comido durante a Páscoa judaica. Ficas aqui a dois
passos do teu quase vizinho Geraldes, de Algoso. Será que chegaram a conhecer-se?
O soldado Manuel Geraldes, – o primeiro corpo sepultado na fiada de campas onde se encontram os
três pára-quedistas, – era apreciado na freguesia de Algoso pelas qualidades pessoais, que deviam ser
muitas, tal a saudade que deixou, não apenas entre familiares, conforme ficou demonstrado tantos
tempo depois, quando o seu corpo foi exumado e trasladado até ao Vimioso. Ainda foi recordado ser um
rapaz trabalhador, por ter um gira-discos trazido de França que ajudava a animar a juventude local do
seu tempo, organizando bailaricos e puxando-a também para o futebol.
Segue-se o Telo. Até sempre, Telo! Por este andar, até breve, amigo! Também já não devemos
resistir muito, a quantas mais morteiradas vão esquivar-se os nossos corpos? Já sentimos saudades
tuas. Os teus familiares, esses, já as sentem desde que partiste de Paul do Mar, da fajã linda e
sossegada que tantas vezes enalteceste, da salina antiga onde começaste a dar os primeiros chutos
numa bola, da igreja que ajudaste a construir e onde foste sacristão. Adeus companheiro, para além
do militar exemplar que te revelaste ao longo deste tempo em que caminhámos todos juntos,
demonstraste perante nós uma atitude e uma educação invulgares. E foste o atleta que muitos de nós
também gostaríamos de ser, – tão depressa, o União da Madeira não vai arranjar um substituto à
altura para constituir o onze… Já não apanhas mais o barco até ao Funchal, capaz de regressares a
casa só quinze dias depois, passados em treinos e jogos pelos pelados da ilha. Só assim se formam
os verdadeiros atletas! Lembras-te, camarada, do belo Dia da Infantaria (14 de Agosto) em que, para
queimar o tempo e animar as hostes em Gadamael, o capitão resolveu comemorar com uma mão-
cheia de actividades desportivas e ambos fizemos parte da equipa de voleibol? Ganhámos que nem
ginjas o primeiro lugar e limpámos o prémio das duas grades de cerveja à equipa de “Os Pipas”, –
vinda expressamente de Cacine a bordo dos Sintex, – e vingámos a derrota por 2-0 no futebol… E tu,
– quem mais poderia ser? – ex-aequo com os furriéis Custódio e Almeida, ainda ficaste em primeiro no
salto em altura… Por agora, Telo, ficas aqui, em solo africano. Podem dizer cobras e lagartos de que
vieste para a Guiné fazer a guerra, mas tu há muito que combatias era pela paz no continente negro,
há muito que enviavas donativos para ajudar as crianças de África, através das missões católicas em
que militavas.
Passados dias será mandado um telegrama para a Fajã da Ovelha dirigido aos pais. Perante o
remetente, já conhecido, nenhum carteiro o quis entregar, nem ler o conteúdo pelo telefone. A irmã do
Gabriel Telo, mais nova dois anos (Gabriela) estava sozinha em casa e vieram chamá-la para ir atender
um telefonema à mercearia. Era para levantar o telegrama na Fajã, para onde não tinha meios de se
deslocar. Desconfiou que fosse algo relacionado com o irmão mais velho (eram cinco ao todo, três
rapazes e duas raparigas). Lá conseguiria uma boleia e acabou por ser um outro irmão, ainda mais
novo, quem foi buscar a notícia, que a todo o custo queriam ocultar à mãe, para adiar o desgosto. Mais
tarde veio a mala e os pertences, gerando novas angústias e a revolta por nada mais haver a fazer, que
o corpo já estava enterrado. Quem poderia imaginar que o mesmo corpo chegaria à terra 36 anos depois
e que, a pedido da família, iria restar no mesmo local onde o pai, João de Jesus Telo, fora entretanto
sepultado? “Agora ele está na sua terra!” A vida tem destas coisas. O Telo (e também um irmão mais
velho) foi jogador no União da Madeira. Nesse tempo, os clubes pagavam a outros militares para que
fossem mobilizados no lugar dos seus craques (o regime não se opunha a tais trocas, e nem protegia só
os atletas, mas as gentes endinheiradas, cujos filhos, caso enveredassem por tal “modalidade”, ou não
iam à guerra ou o faziam a cobro de especialidades não operacionais). No caso do Telo havia já um
voluntário, só que este, à última hora, terá sido também mobilizado e a troca abortou. Era um homem
bondoso. Quantos de nós, no regresso de férias da metrópole, nos lembrámos de trazer roupas “para os
pretinhos”? Ele fê-lo! O destino existe? O Telo e os outros do seu pelotão, poderia nem ter ido parar a
Guidaje. Seria o quarto pelotão a alinhar na malfadada coluna a (presumiam os soldados) Farim, mas
como o respectivo alferes (António Francisco Lopes Monteiro) passou a ser o comandante interino da
companhia devido à ausência do capitão, que estava de férias no Porto Santo, alguém entendeu ser
preferível escalar os primeiro e segundo pelotões naquele dia de Maio de 1973.
Agora, caro João, és tu a descer à cova. Já estilhaços traiçoeiros te tinham ferido na estrada de
Guileje (aquela mina maldita que ceifou a vida ao Raposeiro e que também feriu o soldado João
Manuel Oliveira, do pelotão Fox 2260, em 7 de Agosto do ano passado). Foste evacuado para Bissau,
depois para Lisboa e, tratadas as feridas, vieste cair de novo neste lamaçal. Pensar que voltaste há
pouco mais de três meses à companhia para ficares agora neste estado? Que pôrra, Ferreira, também
contigo somos levados a acreditar no destino? Já tinhas o teu quinhão, rapaz!
E tu, meu querido camarada e amigo Zé Carlos? Que grande partida te pregaram! Não lembra
ao diabo que por vires trazer madeira para reordenamentos acabarias por morrer neste inferno, tu que
te calhou em sorte teres o reordenamento como tarefa, o capitão não te mandou a Bissau para tirares
o estágio há um ano e picos? Nunca, meu amigo, nunca te vi de verdadeiro mau humor, sempre
cordial com toda a gente. Tanto que, quando azedavas, quando te fazias de zangado, ninguém te
levava a sério. Nas nossas brincadeiras de garotos, digo bem, acordarmo-nos uns aos outros
arremessando botas para cama alheia não é próprio de homens que andam na guerra, nem as camas
à espanhola nem os baldes de água nos umbrais das portas, divertimo-nos imenso com estas e muitas
outras brincadeiras de garotos. Tiveste sempre a habilidade de contabilizar mais partidas aos outros do
que encarnares o papel de vítima. Taparam-te agora o rosto, embrulhado dessa maneira. Mas estou a
imaginar por baixo da gaze o leve sorriso que sempre te vimos nos lábios, como que a dizer-me, desta
vez, apanharam-me, fui eu que caí, mas na volta já vos fodo!
Também em Sá, concelho de Valpaços, a família do José Carlos Machado amenizou a angústia e o
pesar trinta e seis anos depois. “Já o cá temos connosco”! Irmão, mãe e pai (com o qual, se bem me
lembro, por circunstâncias da vida o Machado conviveu durante pouco tempo), todos em lágrimas, como
se o Mundo estivesse parado ao longo desta eternidade, por uma incerteza, um enterro não resolvido.
Em 1973, a notícia oficial chegou a Sá igualmente através de um telefonema para o posto público: os
familiares andavam a tirar ervas de uma terra de batatas e foram obviamente apanhados de surpresa. É
que, apesar de quem tinha lá fora os filhos e os maridos andar sempre com o coração em sobressalto,
temendo o pior, restava sempre a esperança de que as desgraças que abalavam todas as localidades
do país acontecessem só aos outros…
Embora ninguém mo tenha solicitado, memorizo a ordem por que ficam em repouso para
elaborar e entregar mais tarde um croquis. O comandante do COP3 manda destroçar e abandona o
local quando o corpo do Machado desaparece sob a terra. Nada mais há a fazer e digo ao meu
pessoal que pode regressar às valas onde “residimos”. A maioria não arreda pé tão depressa e deixa-
se ficar a olhar as sepulturas, num último adeus. Dois soldados passam as armas aos parceiros do
lado, ajoelham-se, fazem o sinal da cruz e rezam. Os camaradas que fazem de coveiros alisam a terra
com as costas das pás e espetam as cruzes de pau improvisadas, que ali ao lado aguardavam o seu
destino. Interrogo-me se e quando seriam resgatados os corpos destes camaradas?
Neste dia imaginei que quando a situação operacional estivesse normalizada fosse possível levantar as campas
e transportar os féretros para Bissau e daí para os seus destinos (famílias). Mais tarde, a seguir ao 25 de Abril, pensei
que antes da retirada da Guiné-Bissau, as autoridades militares acautelariam essa questão em devido tempo. Era a
altura ideal, antes da passagem administrativa do poder para as novas autoridades. Depois ficou a incógnita, o território
passou a ser um Estado independente e a burocracia e confusão das primeiras décadas de soberania só poderiam
trazer dificuldades, tanto mais que a política externa dos governos portugueses, sobretudo nos anos 70, 80 e ainda 90,
foi sempre uma lástima no tocante a cooperação, por motivos que são basto conhecidos e que não vêm à baila nestas
páginas. Por que é que isso não foi feito (nem com estes nem com outros corpos sepultados nas antigas colónias), só
quem lá esteve nessa altura poderá eventualmente ter explicações. Curiosamente, o BCaç 4512, – uma das unidades
com mais vítimas mortais durante esta “crise” e a cuja primeira companhia pertencia o soldado Geraldes, um dos corpos
a exumar, – comandado pelo tenente-coronel de infantaria António Vaz Antunes, foi quem “comandou e coordenou a
execução do plano de retracção do dispositivo de desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, a qual foi
efectuada no subsector de Guidaje, em 21 de Agosto de 1974”. Na perspectiva de uma qualquer iniciativa, coloquei a
questão ainda nos anos oitenta durante um encontro/convívio de “Marados” em Lisboa. Há muito que tinham passado
os cinco (havia quem dissesse sete) anos, tempo mínimo técnica e legalmente (?) para se poder proceder ao
levantamento de ossadas. (Maria Lourenço, irmã do pára-quedista Lourenço da CCP 121, disse que recebeu a notícia
da morte a 28 de Maio de 1973, e que lhe disseram que nada havia a fazer quanto a funerais, pois o irmão já estava
enterrado e “só quando fizesse sete anos é que mandavam os ossos”). Por razões pessoais, eu vim a ter bom
relacionamento com dirigentes do PAIGC e admitia ser bem sucedido para obter autorização do governo de Bissau com
vista a desbloquear os procedimentos administrativos e tratar do assunto. Um dia, em Fevereiro de 1987, aproveitei
uma conversa com Vasco Cabral (por coincidência, nascido em Farim e que, escapando por um triz à morte quando do
assassinato do líder do PAIGC, viria a falecer muito recentemente, suponho que há dois anos) e pedi-lhe uma opinião
sobre o assunto. Apesar de torcer o nariz ao precedente e de considerar que “mexer nos mortos é sempre complicado”,
disse-me que nunca ninguém teria levantado essa questão, pelo menos que fosse do seu conhecimento, mas que as
autoridades não deixariam de analisar e de encontrar a melhor solução para que os corpos sepultados em Guidaje
pudessem voltar às suas famílias. Apesar do apelido e de estar na génese da criação dos movimentos de libertação
nacional das ex-colónias, Vasco não tinha qualquer parentesco com Amílcar Cabral. Ambos, conjuntamente com
Agostinho Neto e Mário de Andrade (angolanos) e Marcelino dos Santos (moçambicano), todos a viver e/ou a estudar
em Lisboa, foram os dinamizadores das actividades da Casa dos Estudantes do Império, ao Arco Cego/Lisboa,
integraram o MUD Juvenil (Movimento de Unidade Democrática, ao lado de muitos anti-fascistas portugueses), entre
outras façanhas que marcaram a nossa história política e cultural. No encontro de Marados em Lisboa, a minha
proposta foi derrotada pelo argumento do reavivar desnecessário dos choques para as famílias e, democrata que sou,
aceitei também o silêncio. A questão das famílias é argumento válido para muitas delas, mas não para a maioria, como
se tem demonstrado. As famílias dos três pára-quedistas da 121, as do Telo, do Machado e do Geraldes viram com
bom olhos as trasladações… Um funeral adiado só prolonga o sofrimento, a constrição, é um nó na garganta. O enterro,
religioso ou não, consuma a despedida, encerra o ciclo.
28 de Maio
A desmoralização amplia-se a ritmo galopante. Como se não bastassem as consequências
operacionais do cerco e o sentimento de incapacidade absoluta de dar a volta às coisas e furar o
bloqueio, é também a logística que começa a falhar. Os pedaços de salsicha, cada vez mais precários,
têm sido substituídos por sardinhas de conserva, que chegam ao prato em pasta. A groselha também
acabou, tudo rebenta pelas costuras! Desde o ataque de dia 25, que cortou a luz no quartel, os
geradores nunca mais tiveram um funcionamento regular (parece que não há gasóleo para os ligar) e
passámos a estar sem electricidade (nem a do céu, que a mudança de estação para a época das
chuvas faz aparecer nuvens que encobrem o luar). O que vale é que não há nada nos frigoríficos que
se estrague!
Por onde andamos, tropeçamos constantemente em destroços, granadas, invólucros de
munições, restos de latas de conserva que, os poucos que as tenham, já nem se dão ao trabalho de as
pôr no lixo, além de pedaços de tectos de zinco arrancados pelos rebentamentos, restos de móveis
inúteis, etc.. Ainda por cima, a água que desde sempre aparecia nas torneiras, talvez uma hora
(incerta) por dia, deixou praticamente de aparecer. Ou seja, se nos primeiros dias ainda conseguimos
lavar as mãos e a cara muito apressadamente, pois havia sempre outros atrás de nós à espera de
fazer o mesmo, agora já nem isso fazemos. No caso do pessoal “marado” faz já catorze dias que
temos no corpinho o mesmo camuflado, vestido vinte e quatro horas por dia, quase todos sem ter
conseguido tomar um banho. De cabelos desgrenhados e cinzentos da poeira e com barbas por fazer
da mesma cor, ainda conseguimos brincar, dizendo que se corrêssemos para um turra desta maneira,
ele morreria logo, mas era de susto! E caso aguentasse olhar para o nosso terrível aspecto, sucumbiria
à mesma, com o cheiro… Eu cá, se despir o dólmen e o poisar no chão, ele aguenta-se, de certezinha,
em pé. O suor acumulado, a volumosa pasta de sangue dos camaradas mortos e feridos que absorveu
no abrigo do Obus, confesso que algumas lágrimas em cima, mais a moinha do cacimbo, à noite, o pó
poisado durante as deslocações e emboscadas, e ainda a sujidade de terra desde que passei a dormir
no chão, tudo isto acumulado dá uma argamassa que nem colete à prova de bala. O curioso é que não
me sinto propriamente a cheirar mal, nem sinto que os meus companheiros cheirem mal. Terei perdido
o olfacto? Ou, nas nossa narinas, também o hábito faz o monge? Não faço ideia porquê, nem como,
mas de repente dei por ter ficado sem os atacadores das duas botas de lona. Das meias verdes, resta-
me uma, cujos buracos me estão a provocar bolhas. A do pé direito era um buraco só e desfez-se:
achei-a folgada demais, puxei-a e, desprovida da “sola”, saiu inteirinha do pé sem necessidade de
descalçar a bota.
29 de Maio
Pelo menos um héli-canhão e logo a seguir dois Allouette III surgem de supetão sobre as casas
e, perante o espanto geral, aterram no largo a que chamamos parada. É uma surpresa para nós,
obviamente que não para o tenente-coronel, que antes colocara de prevenção o pessoal de armas
pesadas, perspectivando-se, assim, que algo estivesse para acontecer. E aconteceu: as aeronaves
trazem a bordo o comandante-chefe, – general António de Spínola. Vêm, por certo, em voo rasante à
copa das árvores, que a baixa altitude foi o modo encontrado pela FAP para reduzir o risco de se
fragilizar perante o moderno equipamento antiaéreo da guerrilha.
O general teria vindo certificar-se das condições operacionais, do estado psicológico do pessoal
e, sobretudo, controlar a execução das directivas traçadas para outra grande operação que vise pôr
fim ao isolamento de Guidaje, que permita evacuar feridos e tratar do reabastecimento de géneros,
medicamentos, até mesmo de urnas, para o que der e vier!... E essa operação, cuja parte principal
pode iniciar-se hoje, há alguns dias que estará a ser preparada a partir de Farim/Nema e Binta, onde
uma concentração imensa das NT se iniciou no dia 26: aí estão a 38ª companhia de comandos (“Os
Leopardos”, novamente), um grupo especial de milícias, quatro grupos de combate do BCaç 4512,
uma companhia africana e mais duas companhias inteiras, uma de infantaria e outra de cavalaria (a
CCav 3420, – Os Progressistas” – comandada pelo capitão Salgueiro Maia, que foi enviada para este
tormento já depois de ter a comissão cumprida em Bula e em Mansoa e de estar a aguardar embarque
para regressar à metrópole; em vez de seguir para o Cumeré, foi para os Adidos requisitar novas
armas).
Não me recordo quanto tempo se deteve o general Spínola nesta passagem por Guidaje. Não deverá ter
sido muito, até porque a presença dos helicópteros estaria, decerto, a ser notada do lado de lá da
fronteira, as próprias condições do terreno deixavam-nos demasiado expostos no caso de o IN arriscar
qualquer investida. Isto, embora ouvíssemos o roncar constante da aviação, lá nas alturas, sobre as
nuvens, a impor o seu respeito. Mas recordo-me que todos fomos a correr sacar aerogramas à
secretaria, (conhecidos por “bate-estradas”, isentos de “porte e de sobretaxa aérea” nos termos da
Portaria 18.545, de 23 de Junho de 1961), pois estava ali uma possibilidade de enviarmos correio às
famílias, mentiras escritas à pressa, do tipo “espero que te encontres de boa saúde que eu fico… bem”,
quer-se dizer, alvoroçar pais e namoradas com desgraças para quê?!! Para muitos, eram expedidas as
primeiras cartas após várias semanas sem receber ou enviar mensagens de e para o exterior. A falta de
notícias e de comunicações foi terreno fértil para a propagação do boato. Na parte que me toca, vim a
apurar depois do regresso ao COMBIS que na própria companhia havia quem já me tivesse dado como
morto; ao invés, em Lisboa, perante o meu prolongado e inabitual silêncio, o meu pai e a minha mulher
(casara-me, nem havia dois meses) andam de repartição em repartição tentando saber se algo me terá
acontecido. Cedo desistem, mal um primeiro-sargento anafado lhes garantiu que eu não consto na
listagem mecanográfica dos óbitos, que sou obrigado pelas NEP a enviar notícias à família e que, se não
o fizer, ainda “leva mas é uma porrada”! – Quer que participe? – perguntou a criatura… à vez, esperando
pela disponibilidade da esferográfica do cabo artilheiro que foi circulando de mão em mão, lá
gatafunhámos meia dúzia de linhas com o remetente SPM 2158 (era o número do Serviço Postal Militar,
espécie de código postal da companhia)…
Os Allouette III levantam voo e levam Spínola e comitiva de volta para Bissau. Transportam
para o HMB os feridos que mais necessitam de evacuação. “Nossos”, seguem o Igreja e o Bernardo
Monteiro, cujo ferimento no joelho não é de grande gravidade, mas faz-se à boleia com um choradinho
bem urdido e consegue o lugar.
Por volta das cinco da madrugada os muitos militares concentrados em Binta tinham começado
a percorrer o itinerário para Guidaje. A progressão no terreno, como sempre é extremamente
cuidadosa e lenta. Ainda assim, às dez horas é accionada pelo soldado-condutor auto rodas António
Luís do Couto Toste Parreira (CCaç3414) uma anticarro armadilhada que o desfaz, cega um furriel e
provoca dois feridos ligeiros. O pessoal do batalhão de Farim mostra-se particularmente abatido, é
também reincidente naquele percurso, onde já muitos camaradas caíram por terra nos combates de 9
deste mês.
O estado de espírito está de tal maneira que um pelotão, que foi incumbido de transportar para
Binta (para posterior evacuação) os feridos e o morto na mina anticarro, devendo depois regressar ao
local de partida, já não está para isso e os trinta homens entram em desobediência, ficam-se por Binta
com os dois Unimog, à espera do desfecho da crise…
Quem comanda, procurando evitar novas minas, decide-se a avançar em corta-mato, rasgando
outros trilhos e outra picada, por onde o arvoredo permita a passagem das viaturas. À frente vai o
“caterpillar” D6, pronto para derrubar capinzal, árvores e o que apareça pela frente. A grande distância
umas das outras, seguem as Berliet só com os condutores a bordo, sempre protegidos por sacos de
areia.
Entretanto, a companhia de pára-quedistas que chegou no dia 23 (CCP 121) tinha partido de
Guidaje no encalço da coluna, levando consigo os comandos (chefiados pelo capitão Raul Folques,
ainda a braços com ferimentos sofridos na investida contra a base de Koumbamory, no Senegal). Para
não variar, detectam minas. No entanto, optam por não provocar o rebentamento, preferindo deixá-las
balizadas. Ouvem duas rajadas, todavia o som vem de longe e ficou-se por aí, nem se deu por que
alguém tenha ripostado. Já perto de atingirem o Cufeu, então sim, rebenta uma emboscada do lado
oposto da bolanha, contra o pessoal da coluna que progride no terreno de Binta para cima (as
companhias que atrás citei). Um grupo que foi calculado em 120 guerrilheiros desferiu de rompante um
ataque impetuoso, batendo a zona da retaguarda da coluna com Morteiros 82. Os combatentes do
PAIGC fizeram várias investidas durante mais de uma hora. Alguns homens vergados pelo cansaço,
pela insolação e pela sede, (desde madrugada que mais não ingeriram do que um cantil de água,)
desmaiaram e geraram obstáculos de novo tipo à progressão.
A longuíssima coluna cruza-se com os pára-quedistas da CCP 121 que já irão pernoitar a Farim
(e que amanhã partirão de regresso a Bissau); e encontra-se com os fuzileiros que estavam retidos há
dias e que vieram ao encontro da coluna para reforçar as hostes.
Na região de Ujeque o pessoal ainda veria rebentar outra mina debaixo dum Unimog 404. Um
soldado milícia, ao saltar para o lado, ficou sem uma perna por pisar outra mina antipessoal. Sofreram
mais um curto ataque às dezoito horas, sem consequências, chegando exaustos a Guidaje, cerca das
dezanove, quando anoitecia. A extensa coluna atingiu o objectivo mas o preço foi alto: dois mortos (o
referido condutor e o soldado atirador Domingos Martins da Silva Lopes, do BCaç 4512), e ainda vários
feridos.
Temos entretanto a notícia da morte do soldado Jorge Gonçalves, que agonizava na enfermaria
e não resistiu aos ferimentos. É o quarto morto da companhia nesta operação e a sexta vítima mortal
dos camaradas que a morteirada surpreendeu no abrigo do Obus.
Ainda o funesto abrigo do Obus, que ficou para sempre nas nossas retinas e cuja memória só
desaparecerá quando chegar a vez de nós nos apagarmos. Na sua “Crónica dos Feitos por Guidaje”
(publicada no livro “Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril – Depoimentos”
(Editorial Notícias) o capitão Salgueiro Maia referiu-se também a esse abrigo (página 71), descrevendo-o
da seguinte maneira: “Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo de artilharia, onde houvera
quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de Morteiro 82
com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com sibes; o resto do abrigo ficou
totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, de
cor castanha, com 2 mm a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era
um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha
preocupação era encontrar um colchão. Depois de dar a volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o
que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo
assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser
capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a
vala onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado, que, sem
esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde tinha vindo”. Recorde-se, a propósito dos odores, que
entre a noite da destruição do abrigo e a chegada do capitão Salgueiro Maia a Guidaje decorreram pelo
menos quatro a cinco dias, até porque não deve ter ido direito ao abrigo logo no primeiro dia… No seu
texto ou no meu relato há pequenas contradições, traições da memória que pouco interessam hoje em
dia. Contudo, referencio-as: pelo que me recordo de ouvir (todos temos uma costela de perito), e pelo
que já li algures, terá sido uma granada de Morteiro 120 a perfurar os troncos de sibe que cobriam o
tecto e a destruir o abrigo, e não de Morteiro 82; dificilmente haveria 8 colchões dentro do abrigo, pois
mal cabiam as 4 camas existentes (sobrepostas duas a duas, em camarata); o número de mortes que é
referido (4) é o dos que tiveram morte imediata (Machado, Telo, Ferreira e um soldado africano, havendo
a acrescentar o Fernandes e o Talibó Baio, que faleceriam poucas horas depois (mas já no dia 26) e o
soldado Gonçalves (a 29); nunca consegui apurar quem era nem como foi enterrado o segundo soldado
africano que se tinha refugiado no abrigo. Com efeito, na altura da exumação dos corpos, em 2009,
apareceram onze ossadas no “cemitério” cujo croquis só indicava dez, sendo que o décimo-primeiro
(identidade desconhecida), segundo os arqueólogos pertenceria a um indivíduo “africano”. Mas a
dedução de poder tratar-se do mesmo indivíduo pode ser precipitada.
Pela quantidade de homens recém-chegados, e com a “fomeca” que traziam, foi grande a
azáfama em torno do refeitório, onde não cabiam todos ao mesmo tempo, para que lhes fossem
servidas as tradicionais salsichas. Aquela grande concentração é um risco enorme, já que uma simples
granada que caia no local, pela certa causará uma mortandade! São mandados dispersar pelos quatro
cantos de Guidaje onde devem aguardar que alguém os chame. Não têm tecto onde dormir, os
edifícios estão deveras danificados ou completamente destruídos, e os camaradas “residentes”
(sitiados) já transformaram a generalidade das valas em dormitórios. Porém, aqui a solidariedade não
é palavra vã e para todos se inventará um cantinho onde repousem. Toda a gente se “encolhe” por
forma a arranjar novos espaços. Não restam colchões disponíveis para ninguém, cada qual
desenrasca-se consoante a imaginação.
Cerca das 21 horas, às cinco de cada vez, começam a cair morteiradas bem no centro do
quartel. E não parecem umas granadas quaisquer aquelas que se abatem sobre as nossas cabeças:
são de Morteiro 81, isto é, das que o IN conseguira sacar das viaturas de reabastecimento que se
imobilizaram e perderam na picada de Binta, (sacadas antes do Fiat do capitão José Manuel Pinto
Ferreira arrasar o que restava delas e da carga, no passado dia 9)…
30 de Maio
Ou vai ou racha! Se não for desta, quando será? Somos uma multidão autêntica neste quartel
sobrelotado. Fazem-se os preparos para a partida, sacode-se alguma poeira das armas, espreitam-se
os canos para ver se têm sujidade, distribuem-se bolachas e latas de sumo que devem ter sido
trazidas pelo pessoal chegado ontem, à noitinha. Caramba, com tanta gente não há motivo para
descrenças e ansiedades, vamos a eles! Apesar da partida dos “páras” rumo a Farim, entrou aqui o
equivalente a quatro companhias… Com Guidaje a abarrotar, a anarquia é total, ninguém sabe quem
manda em quê e até para fazerem as suas necessidades há homens a recorrer às proximidades da
rede de arame, ignorando quem passa e, do lado da tabanca, ainda passam mulheres e crianças que
nunca tiveram a oportunidade de fugir. Contas redondas, deverão estar no interior do aquartelamento
entre oitocentos e cinquenta e mil homens. Muitos ficarão em reforço do quartel, mas a maioria
esmagadora vai participar na operação.
Há mais de meia hora que arrancaram os homens e viaturas da frente e parece que está tudo na
mesma, centenas de outros em espera. Nós e os companheiros da tão afortunada coluna chegada no
dia 15, havemos de partir enquadrados com fuzileiros. Para mim é bom sinal, gosto de os ver na mata,
inspiram confiança e é disso que precisamos, em primeiro lugar. Sou chamado por um capitão (pela
idade e rosto carregado tem ar de ser capitão e do quadro) que me vem apontar o nosso
posicionamento na coluna e lembrar da necessidade de haver grande disciplina, manter as distâncias
e uma atenção redobrada mal saiamos a porta de armas. Diz-me também que o nosso homem das
transmissões deve ser a minha sombra, ande eu por onde andar e que não devo hesitar em informar o
comando se detectar qualquer anormalidade. Informa-me ainda que iremos utilizar o percurso que eles
rasgaram ontem à vinda, talvez o IN não tivesse tempo de miná-lo durante a noite. Certificamo-nos que
o corpo do camarada Jorge Gonçalves está sobre uma viatura, queremos levá-lo connosco para
Bissau.
Passa provavelmente outra meia hora aborrecida e lá chega a nossa vez de nos deitarmos ao
caminho. A marcha, como seria de prever, é extremamente lenta e verificam-se muitas paragens. Até
parece milagre não se ter esgotado o combustível das viaturas durante estes dias e agora, com tanto
pára/arranca, horas a fio. Embora por vezes se apeiem com mil cuidados nos sítios que vão pisar, mas
provavelmente para desentorpecer as pernas, seguem nas Berliet o alferes Cruz, o furriel Ângelo Silva,
o soldado Vieira mais os que foram feridos nas emboscadas (Abreu e Gomes dos Santos,) e ainda
duas outras praças desfeitas em suor e febre.
Há um fuzileiro que tira do bolso do dólmen uma embalagem de Coramina e, como quem oferece um
cigarro, pergunta-me se quero uma. Aceito e agradeço. Nunca percebi muito bem para o que serviam
mas sempre cravei muitas das enfermarias, gostava de ir chupando aquelas pastilhas quadradas
quando andava no mato, dizia-se que eram estimulantes… Mais do que elas, só as castanhas de cola,
que muitos soldados milícias mascavam “para dar força”, como um estupefaciente, e cujo sabor acre eu
também gostava de ruminar, aquilo partia-se, triturava-se, mas nunca chegava a desfazer-se na boca,
uma castanha dava para a viagem toda e só se cuspia no fim.
Já nem faço ideia de há quantas horas estamos no mato, felizmente que sem novidade, até que
nos deparamos outra vez com o cenário dantesco dos mortos espalhados pelo caminho, em diferentes
estados de decomposição. O mais próximo de mim já nem dita cheiro (ou terei eu perdido o olfacto?),
é só um esqueleto com cinturão, botas e uns poucos farrapos pretos que restam da farda. Por que
será que nunca foram removidos? Será por já nem se reconhecer a identidade, ou pelo grande risco
de poderem estar armadilhados?
O pessoal do BCaç 4512, levando consigo uma equipa de sapadores, acabaria por ir ao local muito mais
tarde, em Agosto de 1973, quando a zona já não oferecia os mesmos perigos. Procedeu à remoção de
três desse corpos.
Com efeito, a coluna é muito extensa, não consigo avaliar a dimensão. Prolonga-se certamente
por mais de dois quilómetros, tal é o número de tropas e as distâncias que nos separam uns dos
outros. Não é fácil avançar-se assim pelo mato fora, muito menos com celeridade. Há uma paragem
prolongada, excessivamente prolongada, que nos põe no pensamento a ideia de que uma emboscada
estará para chegar… Ou então, surgiram problemas lá na frente, encontrados pelos picadores.
Desesperamos de tanta espera, aumenta o stress. Ninguém dá explicações. Sabe-se, finalmente, que
um dos homens da cauda da coluna (presumo, sem ter a certeza, que da companhia do capitão
Salgueiro Maia) teve a infelicidade de ser atacado por um enxame de abelhas e, bastante mordido no
peito (levaria o dólmen aberto), com a avidez da fuga deixou ficar para trás a G3.
Uma solução para afugentar os insectos seria lançar granadas de fumo, mas com o peso do armamento
ninguém estava para as carregar. E mesmo que as levassem, um fumozinho que fosse deitado ali
denunciaria a nossa localização e seria a “morte do artista”!... Bem, a nossa presença no mato já o IN
conheceria há uma infinidade de tempo, mas não havia necessidade de lha indicarmos com tanta
precisão…
O comandante da coluna, ao ter conhecimento do sucedido fez enviar uma equipa lá atrás para
recuperar a arma, só que os insectos voltaram à carga e estabeleceu-se confusão e revolta, opiniões
de que mais valia perder a G3 do que sujeitar tantos homens a arcar com outra emboscada “nos
cornos”, ainda por cima na zona que nos causava uma carga psicológica acrescida devido aos
insucessos passados. O soldado da espingarda perdida ficou com um número significativo de
inchaços no corpo. Caiu na asneira de despir o dólmen e tentar afugentar ou esmagar as abelhas que
se infiltraram por dentro e foi pior a emenda que o soneto. Estas mordeduras em quantidade têm
efeitos idênticos aos das queimaduras na pele, geram a sua asfixia, pode ser fatais. Por fim,
recuperou-se a arma depois de angustiante seca, ali nas barbas do Cufeu, e lá prosseguimos
lentamente a nossa marcha. O inimigo a causar-nos baixas, desta vez, nem é o PAIGC, é a própria
natureza a molestar-nos, parece que até os insectos repudiam a nossa presença…
A bolanha e a casa amarela ficam para trás. Começamos a respirar de alívio ao avistarmos
Binta, ao entrar-nos nos ouvidos os ruídos da água do Cacheu. Há agora que esperar por viaturas
vagas que nos transportem até Farim. Chega a vez dos nossos pelotões subirem para as Berliet. Ao
vermos as casas da vila e a jangada que no dia seguinte nos poria na outra margem, rumo a Bissau,
soubemos o que é um sonho transformado em realidade. Terminara a “Operação Resgate”. Já
tínhamos desacreditado que este cenário fosse possível.
Os populares olham desconfiados para o nosso aspecto miserável, mas nesta região já não
deve ser nada a que não estejam habituados. Rumamos directamente aos balneários e sanitas,
fazemos filas para nos dessedentarmos e para um retemperador duche e, claro está, voltamos a vestir
a mesma roupa imunda, o mesmo calçado. A seguir, o pessoal vai direito ao rancho, nem que fosse
um chispe enlatado viria mesmo a calhar, nem sei como conseguimos evitar os suicídios quando,
cúmulo dos azares, servem aos soldados arroz com… salsichas (embora aqui fossem grelhadas)! Na
messe temos melhor sorte, mas não me recordo da ementa do dia. O que nos apetece mesmo é sair
do quartel e dar um giro à volta das casas civis, ver pessoas diferentes, não fardadas, desanuviar,
procurar um bar, uma tasca, mas nestas figuras e sem dinheiro para nada, não iremos longe.
Empanturramo-nos de cerveja e mancarra, tudo à conta dos vales que mais tarde aparecerão na nossa
companhia para nos serem descontados no vencimento. Se bem me lembro, o salário de um furriel
miliciano não atingia os seis contos. Em geral, e por opção, a parte maior era enviada para nossas casas
ao cuidado de familiares, em escudos portugueses, e a outra era o que recebíamos em escudos
guineenses (pesos). Julgo que, em geral, ficávamos na Guiné com cerca de dois mil pesos que,
estando-se no mato, davam para o tabaco, despesas de bar e pagar à lavadeira. Bem, em Bissau, umas
refeições fora e qualquer compra extraordinária, já justificavam o recurso aos “valores declarados” que
mandávamos vir da metrópole (envelopes azuis, com notas lá dentro, que depois cambiávamos aos que
tinham a habilidade e o “savoir-faire” para negociar com isso).
*
Nestes dezasseis ou dezassete dias em Farim e Guidaje (aqui, com o bar à míngua de produtos,
excepto cigarros), a cada um de nós (sargentos, oficiais) foi descontado em média o equivalente ao
nosso salário “guineense” de um mês, embora na secretaria tenham dividido os descontos por duas ou
três mensalidades! O que seria se comêssemos!?
31 de Maio
Poucas vezes na vida o nascer do sol nos terá sabido tão bem. Desta vez, acho que todos
conseguimos dormir profundamente umas quantas horas seguidas e todos acordámos cedo e nos
pusemos de pé num único impulso. Falo sobretudo de Os Marados de Gadamael, pois há camaradas
que terão como tarefa regressar a Guidaje e ficar mais uns tempos por estas paragens,
designadamente as companhias que chegaram anteontem e sem as quais ainda estaríamos sitiados.
A missão dos pelotões da CCaç 3518 acabou, “o sibe chegou ao seu destino”, há soldados que se
dizem prontos a festejar a próxima noite no Pilão!...
Ainda não eram oito horas e já tínhamos atravessado o rio para a margem esquerda, o motor da
jangada até parecia querer pregar-nos uma partida, mas lá se aguentou. Quando arrancamos grita-se
“está na mala”, “prego ao fundo, ó condutor”, “putas vão-se lavando que Os Marados vão a caminho” e
outros ditos próprios da época e do estado de espírito, que guerra e soldados são assim mesmo em
qualquer tempo, em qualquer lugar!
Com essa mesma alegria abrandamos a velocidade na passagem pelo destacamento K3 (antiga
tabanca de Saliquinhedim) e, recebida a ordem do comando de Farim, apagamos os sorrisos e aí
vamos em direcção ao sul, andamento moderado. Agora vamos todos motorizados e é sempre pelo
alcatrão, pelo menos não haverá minas sob os pneus (o que não significa que a estrada não possa
estar armadilhada num sítio qualquer).
Seremos, porém, os campeões do infortúnio. A pouquíssimos quilómetros do K3, de súbito,
estoira nova emboscada. As primeiras roquetadas despoletam-na e limpam as viaturas da frente: o
primeiro Unimog é destruído e o seguinte incendiado. Há um homem que acciona uma mina com o
peito. Para se abrigar das balas das Kalashnikov que entretanto começaram a cantar à nossa volta,
lança-se para trás de um “baga-baga” (rijo, à prova de bala, construído por formigas térmitas, chama-
se morro de salalé, em Angola), e os fragmentos do seu corpo são espalhados por um diâmetro
incalculável. Durante largos minutos há tiroteio de armas ligeiras na frente da coluna. Os homens das
viaturas não atingidas, entre os quais nos incluímos, saltam para as bermas e tentam também reagir
com prontidão. Seguimos sensivelmente a meio e não avistamos os atacantes, embora algumas balas
vão zunindo muito próximas. O IN retira-se e há pessoal das NT que tenta a perseguição, mas é
mandado parar. A artilharia do destacamento K3 bate a zona do lado direito da estrada durante alguns
minutos. Um Unimog passa a toda a velocidade em sentido contrário, na direcção de Farim. Leva
feridos. Um deles, sentado no banco de espaldar e amparado por dois camaradas, leva o joelho
garrotado, perdeu a perna daí para baixo.
A coluna recua até ao destacamento para se reorganizar. A zona de onde os combatentes do
PAIGC lançaram o ataque continua a ser bombardeada pela nossa artilharia. Ao longo da estrada, em
frente ao K3, esperamos pelo Allouette que vem evacuar os feridos. Depois do helicóptero carregar as
macas e levantar voo a coluna/auto põe-se de novo em andamento. Quando passamos pelas viaturas
destruídas, ainda estão a fumegar. Depois do cheiro dos ares de Bironque atingimos Mansabá e
avançamos praticamente em linha recta, direitos a Mansoa, sempre na expectativa de novos contactos
com o IN, se nada se passou no enfiamento do Mores é porque talvez nos safemos… Safámo-nos!
Com a alegria estampada nos rostos chegamos ao COMBIS, em Brá (não longe do quartel dos
comandos e a pouca distância da base aérea e aeroporto de Bissalanca), por volta às 17 horas. Aqui
sim, o nosso péssimo aspecto mete dó aos transeuntes, assusta as pessoas com quem nos cruzamos.
Olham-nos com ar espantado, como se vissem lobisomem! As próprias caras dos camaradas da nossa
companhia se dividem entre a alegria de nos ver e a perplexidade.
O pessoal marado vem ao nosso encontro, sai da caserna, da secretaria e vem-nos abraçar
efusivamente, andamos de ombro em ombro, não menos eufóricos. O furriel Quaresma – o
vagomestre a cujos manjares devíamos tamanha elegância! – fica admirado por me ver à sua frente:
– Estás vivo? – pergunta-me.
– O que te parece? Não sou nenhum fantasma!
Confessa que no jornal da caserna o meu nome integra o rol dos que tinham sucumbido, já
quase me tinham cantado a missa do sétimo dia, quem morreu afinal?, no COMBIS ninguém sabia ao
certo. Chica, como se as transmissões não funcionassem! Esclareço-o das baixas e pergunto pelo
Alexandre Castro, o nosso mangas-de-alpaca, que afinal está de férias na sua Amadora. Ainda assim,
vou direito à secretaria, ao primeiro-sargento António Fagundes Neves, para ver se tenho correio. Diz-
me “lá se safaram de mais uma” e passa-me um braçado enorme de cartas, jornais e revistas.
Antes do banho, cubro a manta da cama com a correspondência acumulada, que inclui cassetes
recebidas dos meus amigos Acácio, Cipriano e Fernando, que em Lisboa faziam o favor de me gravar
as últimas novidades, incluindo os discos que eu recebia regularmente de Londres (através da Tandy‟s
Records) e cuja audição era uma ajuda preciosa para aguentar a difícil passagem do tempo. Leio em
diagonal as cartas mais recentes e apercebo-me do que já esperava: uma grande preocupação familiar
pelo meu inabitual silêncio e pelo meu estado de saúde. À porta do quarto surge um ordenança que
me vem convocar para ir ao segundo-comandante do COMBIS (o comandante está ausente, também
de férias). Fui assim mesmo, botas sem meias nem atacadores, as pernas das calças transformadas
em badanas, totalmente descosidas da braguilha para baixo. Apresento-me no gabinete do nosso
major que me mira de alto a baixo, me pede para lhe contar o que se passou nestes dias e qual o
estado do pessoal em termos psicológicos. Faço o meu resumo, mais ou menos cronológico, digo o
que penso com algum azedume e entrego-lhe o papelucho que havia rabiscado em Farim,
supostamente o croquis dos mortos que tivemos de deixar em Guidaje. Diz-me que por agora posso ir
descansar e que no dia seguinte voltará a chamar-me para me pedir um relatório escrito e mais
detalhado (o que não virá a acontecer).
Dirijo-me ao banho. Mando as calças para o lixo. Dispo o dólmen. De tão esticado e teso, pego-
o pelo colarinho e pouso-o no chão. Fica de pé, como se o enfiasse num cabide de alfaiate! Não há a
água quente que me apetecia (como seria bom um longo banho quente, de imersão), porém, a água
que escorre do duche é tépida e nem sei quanto tempo fico a desfrutá-la. Enquanto isso, lavo o quico
com champô, até desaparecerem as principais manchas de suor e de todos os merdelins. Aproveito
para não desfazer a barba e andar assim mais um tempo (desde que começou a crescer-me que a uso
crescida, salvo agora, por impedimento do RDM).
Antes do sol se pôr, já eu, o Ângelo e o Cruz tínhamos apanhado boleia para a cidade e
estávamos frente ao forte da Amura (perto do cais de Bissau) a tirar fotografias, aguardando pelo
furriel famalicense José Lopes Silva, que ficou de se encontrar connosco na 5ª REP (esplanada do
Café Bento, conhecido pela abreviatura de “5ª Repartição”) e depois irmos à Cervejaria Solmar
petiscar uma valente mariscada! Seguiu-se um alguidar de ostras e uma travessa de camarões no
Pelicano e, devido à quantidade de líquidos ingeridos, já não me lembro o que foi o resto!
Fatal como o destino, enquanto caminhamos pelas ruas da capital encontramos sempre alguém
conhecido, ou por ter estado connosco na recruta ou na especialidade, por ser conterrâneo, etc., e
enquanto esclarecemos perguntas sobre Guidaje recebemos péssimas notícias de uma Gadamael
cercada e com inusitado número de baixas. De Guileje também se fala, mas pouco ou nada resta para
contar, salvo alguém ter garantido que o major Coutinho e Lima, ex-comandante do COP 5 e que
ordenou a retirada em tempo útil de Guileje, andaria agora em Brá a jardinar no quartel, por estar
detido preventivamente pela cegueira do governador. Outro alguém contra-diz-que-disse que o major
estaria mesmo preso por ordem de Spínola, – e não simplesmente com detenção num quartel, – e que
tal gesto provocara uma onda de indignação entre unidades do exército, em particular, as de
Gadamael, Guileje e Cacine.
1 a 12 de Junho
Para os que ficaram em Guidaje os dias não passaram a ficar fáceis. Depois da Ametista Real e
da operação que nos permitiu romper o cerco e regressar às origens, foi notório o abrandamento das
flagelações. Só que a ligação ao mundo exterior manteve-se muito arriscada. O pessoal de Binta e
Nema/Farim não teve melhor sorte, alinhando em patrulhas a colunas para cima e para baixo. A CCav
3420 permaneceu em Guidaje mais alguns dias e depois ainda ficaria em Binta até final do mês. As
operações de patrulhamento aumentaram bastante em toda a região. Binta passou mesmo a ser o
núcleo centralizador das mesmas, recebendo bastantes reforços durante o mês de Junho, sobretudo a
3ª companhia do BCaç 4514 e, já em Julho, a CCaç 4745.
Agora o IN diversifica os alvos, reforça as linhas de penetração fronteiriças de Lamel e Satitó e
flagela aquartelamentos e aldeamentos em redor, dando “água pela barba” às companhias do BCaç
4512. A tenebrosa picada de e para Binta continua problemática, contudo, já não é o que era.
Percorrer aquele caminho é navegar num mar de estilhaços, de invólucros de munições de todos os
calibres e de viaturas esventradas. E, claro está, de ossos, que em boa parte dos casos ninguém sabe
já a quem pertenciam, serão de “soldados desconhecidos” para todo o sempre. A diversidade de
percursos rasgados entre Binta e Guidaje para contornar campos de minas era tamanha, que a picada
tinha extensões que mais parecia uma auto-estrada de várias faixas, construída, apesar de tudo, com
alguma facilidade, graças à constante planície do terreno.
A partir de Janeiro de 1974, após longo trabalho de desminagem, pessoal diverso de engenharia e o
BCaç 4512, com um reforço do BCaç 4516, iniciariam a abertura da estrada (verdadeira) Binta/Guidaje,
quase em linha recta. No 25 de Abril de 1974 a obra estava no Cufeu, ao lado da bolanha de más
memórias...
Só a 12 de Junho a operação de rompimento ao cerco de Guidaje é dada por concluída. O
tenente-coronel Correia de Campos, comandante do COP3, participa numa coluna e vem com a sua
comitiva para Binta, onde durante este mês se concentram as atenções. Calcula-se que o IN, depois
de obrigar ao deslocamento de tantos efectivos das NT para proteger Guidaje, e após ter forçado ao
abandono de Guileje, concentra agora o seu potencial atacante à volta de Gadamael, tendo por
objectivo tomar a aldeia.
Para nós, em Brá, seguem-se dias tranquilos. Quem mandava quis-nos dar “descanso”, –
merecidíssimo, digo eu, embora igual merecimento devesse ser extensivo aos camaradas das outras
unidades (sei bem que isso é impossível)! Brinda-nos com um punhado de semanas sem escala para
fazer colunas, disso beneficiam também os dois pelotões da companhia que não “alinharam” em
Guidaje. Pessoalmente, creio que só voltei a Farim no início de Julho, antes da companhia abalar para
Bafatá. E recordo-me que pouco antes de alcançar o destacamento K3 ainda jaziam à beira da
estrada, no local da emboscada de 31 de Maio, os Unimog completamente queimados. Foi nesses
dias que aproveitei para conhecer Bissau mais em pormenor, visitando bairros a pé, o mercado de
Bandim, etc..
Os “três G” e o desfecho das três frentes de guerra em África
Continuam a curiosidade e a estupefacção gerais sobre o andamento da guerra no mato, mais
acentuadamente nas zonas fronteiriças. Bissau é uma cidade vestida de “piolhos verdes”, ainda que
muitos deles trajando à civil. A capital do Vietname não será diferente, com movimento idêntico e
constante de viaturas militares atafulhando o trânsito e de tropas invadindo comércio, bares,
restaurantes e zonas de putedo. Para além dos inúmeros quartéis que a circundam, a cidade é um
autêntico depósito de adidos, por onde passam os que vêm ao hospital tratar-se disto e daquilo, os que
vêm para cá de férias ou estão em trânsito de e para as mesmas, os que são mandados para estagiar
numa treta qualquer, – todos os pretextos são bons para quem está no interior dar uma fugidinha,
desenfiar-se para Bissau por uma temporada, para respirar fundo. Juntam-se a estes os muitos
quadros militares dos gabinetes, os tais que fazem a guerra no ar condicionado basofiando, pois em
geral não são parcos a disparar em todas as direcções, quando abrem a boca…
“G” de Guileje, “G” de Gadamael…
Se encontramos alguém conhecido e nos pergunta por onde temos andado e dizemos Guidaje,
só falta benzerem-se, ficarem atónitos e quererem logo saber tudo tim-por-tim-tim. Tal batalha, no
entanto, já está a perder a actualidade. Em todas as esplanadas não se fala de outra coisa: a nossa
conhecida Gadamael está mesmo em grande risco, vivem-se por lá dias horríveis. Lembro-me que,
caso estivesse sob um ataque continuado de artilharia como aquele que sofremos no norte, as suas
fragilidades seriam idênticas ou maiores que as de Guidaje. Ali não há refúgios subterrâneos nem
tectos reforçados com grossas placas de cimento a que possamos chamar abrigo. Bem, é certo que
em Guileje existiam e o resultado foi o que se viu… Há outras semelhanças entre Guidaje e Guileje:
ficam ambas junto às fronteiras (do Senegal e da Guiné Conacry), estavam as duas dependentes do
abastecimento aéreo, eram ligadas ao exterior por um único acesso (a primeira, a Bigene e Binta, e a
segunda, a Gadamael), sendo fáceis de isolar se estes caminhos fossem (como foram) cortados.
Todavia, tinham uma diferença de vulto, que se revelou definitiva quanto à capacidade de resistência:
Guidaje possuía água própria (não sei se estou a divagar, mas lembro-me de ouvir falar da existência
dum furo de extracção dentro do quartel); Guileje não tinha água! Aqui, o pessoal ia buscá-la a quatro
quilómetros de distância, na direcção do Mejo e por caminhos propícios às emboscadas… Quanto a
Gadamael, a situação é intermédia, isto é, a água potável não está dentro do quartel, mas o local de
abastecimento é muito próximo e essa dificuldade só existirá caso se verifique um cerco muitíssimo
próximo do arame (o que sempre me pareceu improvável de acontecer, até pelas características do
terreno circundante, mas estamos sempre a aprender)…
Um soldado nosso recebera um aerograma dum amigo, membro do Pelotão de Reconhecimento
Fox nº 2260 – ou seja, de camaradas que ficaram em Gadamael após a nossa rendição, – e o cenário
descrito era dantesco e com tendência a agravar-se. O número de mortos e feridos começa a
equivaler-se ao de Guidaje, também estão a construir um cemitério local e o cerco está consumado.
Além dos contingentes locais próprios agora está ali o pessoal que chegou de Guileje (o mesmo se
dirá em relação aos civis) e o único contacto possível de toda esta gente com o exterior é o braço do
rio Sapo (afluente do Cacine). Por outras vias vamos sabendo que já tudo começa a escassear e, à
medida que os dias passam, o fogo é cada vez mais violento e amplia-se de dia para dia a destruição
dos edifícios (que virá a ser total). Vendo-se incapacitados de se oporem aos intensos
bombardeamentos e de darem a volta aos acontecimentos, há militares (a esmagadora maioria) que
resolvem abandonar o aquartelamento pela mata do lado do Cantanhez, contornando o tarrafe e a
costa de mangal e fugindo em direcção às margens mais palmilháveis do rio Cacine, em busca de
refúgio. De notar que, de quase três companhias só cerca de trinta homens permaneceriam no quartel
defendendo a posição com morteiros 81. Quer o 15º pelotão de artilharia quer o grupo de artilharia de
campanha nº 10 (Obus 11,4) tinham ficado inoperacionais após um ataque IN de morteiros 120, que
destruiu material importante e lhes provocou três mortos (primeiro-cabo David Sousa Cunha, soldado
Bassiro Demba e soldado Domena Indi) e ainda onze feridos.
No dia 1 de Junho, começou de manhãzinha o mais crítico de todos os dias da batalha de Gadamael.
Houve períodos em que a chuva de granadas de morteiros 120 (às 18 de cada vez) caía de três em três
minutos. Logo pelas dez horas ficou inoperacional e praticamente destruído o pelotão de artilharia, que
sofreu três mortos e onze feridos. Gadamael ficou reduzida ao morteiro 81 que tinha alcance insuficiente
para dar resposta aos bombardeamentos do IN. Conta-se que momentos antes tinha aterrado na pista
do quartel um helicóptero que transportava o general Spínola, mas que este teve de ser empurrado para
dentro do aparelho a fim de levantar voo de imediato. O silvo das granadas a sair foi ouvido no quartel e
os rebentamentos ocorreriam no ponto de aterragem do helicóptero, a cinquenta metros do edifício da
secretaria, das messes e das transmissões. Num quartel sem abrigos e com um elevado número de
militares concentrados lá dentro, as baixas foram aumentando sem surpresa. Na contabilidade feita ao
final do dia eram registados 8 mortos e 27 feridos. Aos poucos, foram tentando fazer evacuações de
feridos por barco mas o fogo intenso de cada vez que se dirigiam ao cais dificultava muito a acção. Ao
princípio da tarde uma granada destruiu o posto de rádio e feriu os dois comandantes de companhia.
"Após a evacuação dos capitães fiquei sem elementos de ligação pois não conhecia ninguém em virtude
de ter chegado na véspera", afirma Ferreira da Silva, o oficial enviado em substituição o major Coutinho
e Lima. Num cenário de desespero e os soldados começaram a andar junto às valas a circular apenas
dentro da aldeia civil (colada ao quartel, mas poupada ao fogo inimigo). O capitão Ferreira da Silva,
atarefado com as evacuações, só quando o furriel Carvalho (do morteiro 81) lhe foi dizer que já não tinha
granadas e que só se encontravam três ou quatro militares na zona crítica é que se apercebeu que a
defesa do quartel estava reduzida a um grupo diminuto de homens. Cerca de 80 % das nossas tropas
decidiu abandonar o aquartelamento pelos seus próprios pés, independentemente do apoio de duas
companhias de pára-quedistas que se deslocaram para a região a aí ficariam estacionadas.
Os pára-quedistas da CCP121, que tinham estado connosco em Guidaje, não tiveram a mesma
sorte que nós quanto a dias de descanso: no dia 12 saíram de Bissalanca em direcção a sul, tendo
Gadamael como destino. Não foram os únicos, já havia pessoal das CCP122 e 123 na missão de
“salvamento”, pois uma retirada idêntica à de Guileje estava “em cima da mesa”. A nossa “irmã gémea”
CCaç 3520 de Cacine, que já tivera efectivos deslocados em Guileje, esteve igualmente mobilizada
para apoiar a defesa do nosso antigo quartel e, com ela, o DFE-21 transportado em zebros.
O “general do monóculo”, que entretanto se tinha deslocado a Cacine, deixou ordens para que
ninguém socorresse os fugitivos, que considerava “cobardes”. Só que no navio Orion, cujo
comandante é Pedro Lauret e que na véspera tinha levado uma companhia de páras até Cacine,
impera o bom-senso. A tripulação revolta-se e, como se impõe, marimba-se na opinião de Spínola e
recupera entre 300 a 400 “cobardes” que se encontram espalhados pelas margens, em estado
verdadeiramente lastimoso, desesperado. Entre eles, há um sem número de feridos a quem o
enfermeiro Abrantes (auxiliado pelo grumete Ulisses Faria Pereira) presta os primeiros socorros e/ou
orienta uma série de ajudantes voluntários a fazê-lo. O então comandante do Orion refere que “à noite,
a coberta das praças estava completamente repleta de feridos”, não restando espaço para que
ninguém pudesse deitar-se. Mas alguns necessitam de evacuação aérea.
“G” de Guidaje
Só em Maio de 1973, o PAIGC contabilizou duzentas e vinte acções militares no território. Em
Guidaje, desde o dia 8, sofremos um total de 43 ataques, com artilharia pesada, morteiros e foguetões,
e mais uma vintena delas na vizinha Bigene. Causaram 7 mortes, 30 feridos militares e 15 civis, a
somar às baixas sofridas nas colunas (mortos 22, feridos 70) e na operação Ametista Real (10 mortos,
22 feridos e 3 desaparecidos). Em números oficiais, registou-se um total de 39 mortos militares, 122
feridos e 3 desaparecidos.
Quem sou eu para ousar pôr estes números em causa? Entendo, porém, que quem lá esteve fica com a
sensação de que poderão não corresponder inteiramente à realidade, que haverá falhas por insuficiência
de registos ou quaisquer outras razões. Nos relatos, surgem frequentes contradições em relação aos
número de soldados mortos e desaparecidos (por exemplo, na picada Binta/Guidaje, em relação aos
corpos que lá ficaram sem sepultura). As coisas baterão certas no tocante aos militares de origem
europeia (continente e ilhas adjacentes), só que o mesmo se afigura com menos rigor quanto a soldados
(e milícias) de naturalidade africana. Lembro-me de ter notícia (e de, nalguns casos, presenciar) da
existência de civis que foram feridos e/ou morreram nas flagelações, emboscadas e minas, e que não
terão sido contabilizados. Houve muitos feridos ligeiros que receberam tratamentos diversos sem se
deslocarem às enfermarias. Em artigos e entrevistas publicados muito mais tarde sobre esta matéria (e
onde, entre outros testemunhos chega a participar, por exemplo, o tenente-coronel Coreia de Campos),
é referido que no mês de Maio se contaram 167 bombardeamentos a Guidaje (mais 50 em Abril), e
houve a lamentar 100 mortos… É também mencionado que durante o mesmo mês terão participado de
alguma forma na batalha de Guidaje cerca de mil e trezentos militares portugueses, a maior
concentração alguma vez efectuada nos teatros da guerra colonial em todo o continente africano.
(Em jeito de conclusão)
Tombaram em Guidaje quatro Marados de Gadamael (três ficaram lá sepultados) e outros
deixaram sangue e muitos suores frios a ensopar aquela terra. Doravante, pelo menos aqueles que
lerem estas linhas já nos podem incluir nos registos, foi assim que lá fomos parar… Provavelmente
nenhuma outra companhia do exército/infantaria teve o infortúnio de correr os três destinos mais
fatídicos deste penúltimo ano da guerra. Dizem os entendidos que o PAIGC quis capturar Guidaje,
Guileje e Gadamael, promovendo uma operação “em pinça”, ou “tenaz”, para certificar o seu poderio
além-fronteiras. Dirigentes da guerrilha sempre desmentiram que a ocupação de Guidaje estivesse nos
seus planos, o que tem lógica, pois era uma aldeia sem qualquer interesse estratégico, valeria mais
como posto fronteiriço que, existindo ou não, teria um valor relativo. (A Guiné tem 750 quilómetros de
fronteiras com os países vizinhos. Para que vale ter quartéis na raia, – sobretudo em localidades
praticamente desabitadas, – sempre sujeitos a ser atacados, a partir, ou com o apoio de bases
estrangeiras, sem poder ripostar ou perseguir o IN, para não violar as normas internacionais? O
número de pessoas que atravessam a fronteira, em ambos os sentidos, não o justifica, e os acessos
poderão ser sempre controlados de outra maneira.) O mesmo não se dirá dos aquartelamentos a sul,
onde ainda existe uma população numerosa, se bem que concentrada devido aos reordenamentos.
Com Guileje ocupada, se o mesmo acontecesse a Gadamael, equivaleria a uma vasta área de
território em que Portugal deixaria de ter qualquer posto avançado, até à Ilha do Melo só restaria
Cacine, sem quaisquer outras povoações em redor. Apesar da resistência portuguesa em Gadamael,
(o ataque final só foi sustido depois da nossa aviação ter bombardeado a base de Kandiafara, para lá
da fronteira com a Guiné-Conakry), o PAIGC demonstrou em Setembro de 1973 quem controlava
efectivamente a Guiné, quando no dia 24 proclamou unilateralmente a independência em Madina do
Boé e viu rapidamente reconhecido na arena internacional o novo Estado da Guiné-Bissau.
Passei o 24 de Setembro de serviço, a montar segurança numa das entradas de Bafatá, mais
concretamente num posto que existia sobre a nova ponte do Geba, que era suspensa e uma espécie de
miniatura da ponte sobre o Tejo (havia carteiras de fósforos com a sua fotografia e, se bem me lembro,
também se chamava Salazar). Tínhamos aí uma pequena telefonia, através da qual ouvi a cerimónia da
independência transmitida em directo pela Rádio Libertação. Medindo bem, se algum acesso estivesse a
funcionar, a distância em linha recta entre Bafatá a Madina do Boé seria coisa pouca, pelo que a
situação provocou-me um sentimento, no mínimo, estranho. Na manhã seguinte, quando a minha equipa
foi rendida (o serviço era de 24 horas) e me dirigi à messe para tomar o pequeno-almoço, perguntei aos
presentes se mais alguém tinha escutado o mesmo que eu e a resposta foi negativa. Narrei o que se
passara, com a convicção absoluta de estarmos numa data que ficaria na História e, meio a brincar meio
a sério, acrescentei que já me sentia um “estrangeiro” a pisar o chão da Guiné, provocando um sorriso
generalizado, porém, amarelo.
Ao cerco, o PAIGC chamou Operação Amílcar Cabral (recorde-se que o dirigente histórico da
guerrilha havia sido assassinado a 20 de Janeiro de 1973). E houve também a Operação Nô Pintcha.
Os êxitos alcançados fizeram propalar a derrota militar do colonialismo português na Guiné, dando
razão aos que defendiam que só uma solução política, – e, logo, negociada, – poderia resolver o
conflito. Na arena internacional, os acontecimentos nos chamados “três G” abriram portas à
inevitabilidade da independência e ao alastramento da mesma resolução às restantes colónias
africanas, fosse, por tabela, em Cabo Verde, fosse em Angola e Moçambique (cada uma com as suas
especificidades quando ao estado das respectivas guerrilhas, mas com o denominador comum de
terem a razão política do seu lado), ou fosse ainda em S. Tomé e Príncipe. Dir-se-á que a motivação
das forças armadas portuguesas era cada vez menos elevada. Realmente, o contacto com as
injustiças sociais e descriminações de todo o tipo em nome de valores cada vez mais desacreditados
fez abrir os olhos a muitos de nós. Havia neste tempo pouco mais de cem companhias em exercício na
Guiné e só onze delas eram comandadas por capitães do quadro permanente na frente de combate.
Todos os outros eram milicianos, quer dizer, pessoal muito menos vocacionado para alimentar uma
guerra injusta, que em geral já tinha lido o que era proibido ler-se na Academia Militar, que já
participara (ou, no mínimo, assistira) a lutas estudantis que punham em causa o regime e reconheciam
os direitos dos povos das colónias à independência…
A verdade é que o PAIGC, com a evidência dos estragos causados às nossas forças armadas a
norte e sul, e da proclamação da independência efectuada bem dentro do território (com a presença
testemunhal de delegações estrangeiras e de jornalistas internacionais) alterou aos olhos do mundo a
situação, quer política quer militar da Guiné: em vez de ser uma colónia com territórios libertados pela
guerrilha, passou a ser um Estado com territórios ocupados por estrangeiros (nós)! E isso passou a
fazer TODA a diferença…
Baixas da CCaç 3518, em Guidaje
Mortos no abrigo do Obus:
José Carlos Moreira Machado, furriel miliciano, natural de Sá, Ervões, Valpaços.
Gabriel Ferreira Telo, primeiro-cabo atirador, natural do Paul do Mar, Calheta, Madeira.
João Nunes Ferreira, soldado atirador, natural de Câmara de Lobos, Madeira.
Jorge de Andrade Gonçalves, soldado atirador, natural de Pedra da Nossa Senhora, Campanário, Ribeira
Brava, Madeira. Era casado.
Feridos no abrigo do Obus:
Quirino do Sameiro Correia Igreja, alferes miliciano, de Vila Verde, (viria a ser evacuado para a metrópole).
Vitorino Ferreira da Cruz, alferes miliciano de Lordelo, Paredes
Bernardo Gomes Monteiro, furriel miliciano de armas pesadas, de Cascais, (esteve evacuado no HMP, para
onde foi a 3 de Novembro de 1973).
Ângelo César Carneiro da Silva, furriel miliciano de minas e armadilhas, da Trofa.
José Cipriano Ferreira, soldado atirador, da Madeira.
José Virgílio Vieira, soldado atirador, da Madeira, que chegou mais tarde à companhia em “completamento”, a
6 de Março de 1972 (esteve evacuado no HMP).
Feridos nas emboscadas do percurso Guidaje/Binta:
José Manuel de Abreu, soldado atirador, do Funchal.
Fernando Gomes dos Santos primeiro-cabo atirador, (do COMBIS, mas que acompanhou a operação
integrado na companhia).
Seria lógico e justo referir aqui a identidade dos feridos das outras unidades ao longo destes
dias. Os números ditos oficiais referem um total de 122, cuja identificação individual será muito difícil,
senão impossível, de elencar.
Resumo de outras baixas da CCaç 3158 durante a comissão de serviço:
Outro sangue derramado em terras da Guiné ao longo da comissão.
Falecidos em Gadamael:
Alfredo Rodrigues França, (6 de Março de 1972), soldado atirador, Paul do Mar, Calheta, Madeira. Ferido em
combate, sepultura em Paul do Mar.
António Alberto Gonçalves, (15 de Abril de 1972) soldado atirador (era casado) Câmara de Lobos, Madeira,
morto devido a acidente, – afogamento na margem do rio Sapo (afluente do Cacine), – em Gadamael. Sepultura no
Cemitério Municipal de Câmara de Lobos.
João Heliodoro Gomes da Silva, (27 de Junho de 1972), primeiro-cabo atirador, Sítio do Calhau, São Roque,
Funchal, Madeira, ferido “por acidente com arma de fogo”, “tiro inopinado” na caserna, em Gadamael. Sepultura no
Cemitério das Angústias, São Martinho, talhão de militares falecidos no Ultramar.
Na verdade, o tiro inopinado foi disparado à queima-roupa por um membro da companhia, durante um
desaguisado. O causador do “acidente com arma de fogo”, vulgo, assassinato, foi preso de imediato
(preventivamente, por autorização da Chefia do Serviço de Justiça). Em 14 de Junho de 1973, “por
despacho de 10 de Abril de 1973, Sua Exa o Director do Serviço de Pessoal determinou que o soldado
atirador Carlos Nóbrega de Freitas tivesse baixa do serviço por incapacidade física, por haver sido
julgado incapaz do mesmo pela Junta Hospitalar de Inspecção, reunida no HMP, em sessão de 30 de
Março de 1973, podendo angariar subsistência”. Ao saber-se disto, a revolta não podia ser maior no seio
da companhia: “uns a alinhar e um tipo destes a ficar livre, parece que foi premiado”! Tinha sido preso
formalmente em 1/7/72. Os camaradas mais próximos do João Heliodoro, choravam de raiva e, a
quente, juravam que no regresso à Madeira matariam o Freitas, antigo coveiro de profissão. O certo é
que ele morreu anos mais tarde, após uma cena de pancadaria na Madeira, não se sabe com quem, ao
cair de uma ravina, disse-me um dia o capitão, em sua casa. Depois do gesto irreflectido, foi difícil
arrancar-lhe a arma das mãos. O capitão perdeu a cabeça e espancou-o, esmurrando e pontapeando à
toa o corpo já tombado no chão. Só parou de o fazer quando o consegui dominar, filando-lhe os braços
por trás e imobilizando-o como num abraço, “não se desgrace também, meu capitão”, que a coisa estava
feia. Foi metido no abrigo que serviu de prisão algumas vezes em Gadamael (o ex-soldado guineense
Inácio Soares da Gama que o diga!) e, dias mais tarde, seguiu com escolta sob prisão, já não me
recordo se para a sede do batalhão ou se para Bissau.
Ângelo Manuel dos Santos Raposeiro, (7 de Agosto de 1972) soldado atirador, Lisboa freguesia de Benfica,
(era casado e tinha vindo transferido da CCav 3462 – BCav 3874) ferido em combate em Gadamael (accionou mina
antipessoal), depois de evacuado faleceu no Hospital Militar de Bissau. Sepultura no cemitério de Benfica.
Malan Mané, (13 de Novembro de 1972), soldado milícia do Pelotão de Milícias 236 (adido à companhia),
ferido em acidente com arma de fogo, na sequência do rebentamento de uma mina antipessoal, sepultado em
Gadamael.
Outros, nem sempre identificados:
Ussumane (Baldé?), caçador, saiu à caça levando a sua velha Mauser, e accionou inadvertidamente uma mina
antipessoal (montada pelo furriel Ângelo Silva, ou por mim, já não me recordo) no cruzamento de Ganturé.
“Informador” (presumível). Desconheço se é um morto que contabilizemos como nosso (quase que
garantidamente, não, de todo!), se como do IN ou se de coisa nenhuma. Caiu também numa das nossas
minas ao fundo da pista velha. As feridas no pé impediram-no de fugir dali. O capitão mandou-me ver o
que tinha feito rebentar a mina e quando cheguei, lá estava o homem sentado no chão, encostado a um
coqueiro, olhos recriminatórios, indescritíveis, inesquecíveis… Trouxemo-lo para o quartel mas a
evacuação aérea só foi possível no dia seguinte. Soube de sevícias inqualificáveis que alguém lhe fez
para o obrigar a confessar ser “turra”. Depois, morreu. Pelos muitos cabelos e bigode brancos via-se ter
uma idade avançada. Enterrei-o na pista antiga, na margem do rio, por ordem do capitão Manuel de
Sousa. Só eu e os quatro ou cinco homens que foram comigo sabemos (sabíamos) onde ficou. No caso
dele, nenhuma família o reclamará nunca, não saberá sequer como nem quando se finou…
Feridos em combate:
(não inclui os feridos, – e foram alguns – cujas chagas foram adquiridas por acidentes vários, por exemplo,
devido a falsos alarmes, quando procuravam refugiar-se de ataques não consumados). Cito, apenas os de maior
gravidade:
João Nunes Ferreira, soldado, 7 de Agosto de 1972 (morreria a 25 de Maio de 1973, em Guidaje).
João Manuel Duarte Oliveira, soldado (pelotão de reconhecimento Fox 2260, adido à companhia) 7 de Agosto
de 1972.
Louvados na “operação Guidaje”
Independentemente do desempenho notável e do grande espírito de sacrifício e de
solidariedade para com os camaradas (e de todas as unidades envolvidas) que estiveram em Guidaje,
na breve “história da companhia”, (escrita e composta na secretaria pelo primeiro-cabo escriturário
Alexandre Vasco de Castro, em “stencil”, com máquina de escrever, “cera” e estilete), ficaram louvados
pelo seu comportamento e pela “invulgar capacidade de prontidão de reacção e sangue frio debaixo de
fogo” ao longo desta Operação, tendo demonstrado “raras qualidades militares, espírito de sacrifício e
alto nível de camaradagem e compreensão, sempre prontos para tudo”, os seguintes militares:
Soldado José Virgílio Vieira:
“durante toda a operação demonstrou possuir raras qualidades de militar destemido. Debaixo de
fogo IN, depois do rebentamento de uma granada dentro de um abrigo, em Guidaje, indiferente ao
perigo, só tinha em mente ajudar os feridos, seus camaradas e superiores, e transportá-los para a
enfermaria. Ainda debaixo de fogo IN, enfrentando o perigo, dirigiu-se a um Obus e, com as fracas
noções que lhe deram, consegue fazer fogo com o mesmo, respondendo, assim, de um modo rápido,
ao fogo IN. Na emboscada IN reagiu corajosamente, incentivando os seus camaradas a seguirem-lhe
o exemplo. Numa das emboscadas, ainda indiferente ao fogo IN, dirigiu-se a uma das viaturas onde se
encontrava um Morteiro 60 com bastantes granadas e trouxe tudo para a berma da estrada. Uma vez
aí fez fogo com o mesmo.”
Soldado Manuel de Sousa:
“é digno de nota pela sua prontidão de reacção e sangue frio. Um dos elementos IN que nos
tentavam envolver, na emboscada da zona do Cufeu, foi imediatamente alvejado por este soldado, ao
mesmo tempo que chamou a atenção aos seus camaradas da existência de mais elementos IN. A sua
rápida reacção encorajou de tal modo os seus camaradas que os elementos IN imediatamente tiveram
que retirar, dado o potencial do fogo das Nossas Forças”.
Soldado José António da Silva Pires (também conhecido por “Jaca”)
“indiferente ao fogo IN, reagiu corajosamente fazendo fogo com o Morteiro 60. De salientar
ainda que, na retirada dos elementos IN, este soldado progrediu no terreno fazendo fogo onde as
árvores o permitiam. A sua atitude teve o mérito de encorajar os seus camaradas a colaborarem com
redobrado esforço”.
Após o regresso a Portugal (à metrópole e à região insular, – os últimos a chegar a Lisboa, no
Niassa, aportaram a 3 de Abril de 1974), perdeu-se o contacto com muitos soldados madeirenses, em
virtude de uma parte significativa ter emigrado, especialmente para a Venezuela e para a África do Sul.
Destes três, desconheço o destino que terão levado o José Virgílio Vieira e o Manuel de Sousa,
presumindo que terão deixado de viver naquela Região Autónoma. Quanto ao Jaca (José António da
Silva Pires), soube que infelizmente terá falecido há meia dúzia de anos atrás. Era um homem de
grandes rebeldias mas que se sabia fiável e amigo do seu amigo, e cujo feitio tanto lhe originava
repreensões e “porradas” sérias, como louvores idênticos a estes, umas e outros, em geral, merecidos.
O capitão, bem como os agravamentos que se seguiam, aplicaram-lhe vários dias de detenção, prisão
disciplinar, etc., (curiosamente aconteceu o mesmo com o soldado José Virgílio Vieira, cuja acção em
combate também é agora enaltecida, e tinha sucedido com o soldado Raposeiro, morto em Gadamael
ao accionar uma mina). Creio que por volta de 1990, ao encontrar-me no Funchal com o comandante
de companhia (ex-capitão miliciano Manuel Nunes de Sousa), ele me contou que o Jaca
experimentaria bastantes dificuldades, por não (querer) arranjar emprego e passar horas na
mendicidade, a ver se alguma coisa caía, à volta do Mercado dos Lavradores. Noutras deslocações
que efectuei ao Funchal procurei-o por várias vezes, no intuito de o abraçar e, porventura, o poder
ajudar nalguma coisa. Foi o José Maria Fernandes, – antigo companheirão que com o mesmo sorriso
de sempre nos aturava os copos e o resto, na messe de Gadamael, – que me informou do que teria
acontecido ao Jaca. Para além das vicissitudes e das partidas que a vida nos prega, custa muito,
revolta-nos ver como um ex-combatente que em certas ocasiões foi justamente considerado um herói,
tenha vivido com stress os últimos anos da sua vida, na condição de mendigo e sem qualquer apoio
social do mesmo Estado que serviu o melhor que pôde e soube!
Nos anos das três frentes de guerra (Guiné, Angola, Moçambique), o regime escondia os mortos
para não desmoralizar nem os activos que andavam a combater nem a população. A famigerada
Comissão de Censura cortava as notícias dos jornais, rádios e televisão que falassem de baixas entre
nós. Apenas no 10 de Junho se dava conta de alguns, se homenageados postumamente. Havia,
obviamente, quem na imprensa procurasse resistir. Aproveitando essa coragem, enviei de Bissau uma
notícia com comentários pessoais para o semanário Notícias da Amadora, dirigido pelo jornalista e
escritor Orlando Gonçalves (também já falecido) e de que era assinante. Os comentários ficaram na
gaveta mas os nomes dos camaradas tombados, respectivos pais e esposas saíram, transcrevendo
uma nota dos Serviços de Informação Pública das Forças Armadas (além dos quatro Marados de
Gadamael e do furriel Fernandes, foi publicada a identidade de mais três praças falecidos também na
Guiné). O jornal viveu dias difíceis particularmente nesse ano (estavam marcadas para Outubro as
“eleições” para a Assembleia Nacional) e as suas instalações foram ocupadas pela PIDE/DGS, que
apreendeu tudo o que havia lá dentro.
O(s) cemitério(s) de Guidaje
Mortos na região de Guidaje, de 9 de Maio a 9 de Junho de 1973*
António Júlio Carvalho Redondo, (9 de Maio) soldado atirador, BCaç 4512/72, corpo não
recuperado.
Arnaldo Marques Bento, (9 de Maio) furriel miliciano, CCaç 14,
Bernardo Moreira Castro Neves, (9 de Maio) primeiro-cabo, BCaç 4512/72,
Lassana Calisa, (9 de Maio) soldado atirador, CCaç 14.
Manuel Maria Rodrigues Geraldes, (10 de Maio), soldado atirador 2ª Companhia/BCaç
4512/72, sepultado em Guidaje. Corpo exumado e trasladado para Bissau em 21 de Março de 2009, e
trasladado para Portugal (cerimónias com honras militares em Belém, junto ao Forte do Bom Sucesso,
Lisboa, junto ao Monumento Nacional aos Combatentes no Ultramar e no Vimioso). Repousa no
cemitério de Vale do Algoso.
Abdulai Mané, (10 de Maio) primeiro-cabo atirador, CCaç 19, sepultado em Guidaje.
Jancon Turé, (10 de Maio) soldado atirador, CCaç 19, sepultado em Guidaje.
Mamadú Lamine Sanhá, (10 de Maio) soldado auxiliar de enfermagem, CCaç 19, sepultado em
Guidaje.
Sadjó Sadjó, (10 de Maio) soldado atirador, CCaç 19, sepultado em Guidaje.
Suleimane Dabó, (10 de Maio) soldado atirador, CCaç 19, sepultado em Guidaje.
David Ferreira Viegas, (12 de Maio) soldado condutor, natural de Olhão, Com. Agrupam.
Operacional nº1.
José Luís Inácio Raimundo, (12 de Maio) soldado comando, 38ª Companhia de Comandos.
Ludgero Rodrigues da Silva, (13 de Maio) soldado condutor, CCS/BCaç 4512/72.
Martinho Cá, (16 de Maio) soldado apontador de metralhadora, CCaç 3, sepultado em Guidaje.
Anso Baldé, (19 de Maio) soldado comando, 1ª Companhia de Comandos Africana, Operação
Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Armando Beta Santa, (19 de Maio) soldado comando, 3ª Companhia de Comandos Africana,
Operação Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Becute Tungué (também Bacote Tanga), (19 de Maio) soldado comando, 3ª Companhia de
Comandos Africana, Operação Ametista Real, sepultado em Guidaje. Corpo exumado em 21 de Março
de 2009 e trasladado para o Cemitério Municipal de Bissau (talhões da Liga Portuguesa de
Combatentes), onde se encontra em repouso.
Carlos Intchama, (19 de Maio) soldado comando, 3ª Companhia de Comandos Africana,
Operação Ametista Real, sepultado em Guidaje.
José Vieira, (19 de Maio) soldado comando, 1ª Companhia de Comandos Africana, Operação
Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Mama Samba Baldé, (19 de Maio) alferes graduado, 3ª Companhia de Comandos Africana,
Operação Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Mama Samba Embaló, (19 de Maio) soldado comando, 3ª Companhia de Comandos Africana,
Operação Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Abdulai Baldé, (19 de Maio) soldado milícia, pelotão de Milícias 326, sepultado em Guidaje.
Mamadú Alfa Baldé, (19 de Maio) soldado dos serviços de administração militar, Batalhão de
Intendência, sepultado em Guidaje.
Saliú Sané, (19 de Maio) soldado comando, 3ª Companhia de Comandos Africana, Operação
Ametista Real, sepultado em Guidaje.
Pedro Melna, (19 de Maio), alferes graduado, 3ª Companhia de Comandos Africana, Operação
Ametista Real, sepultado em Guidaje.
António das Neves Vitoriano, (23 de Maio de 1973), soldado pára-quedista, CCP 121,
sepultado em Guidaje. Corpo exumado em 21 de Março de 2009. Trasladado inicialmente para Bissau
e, em 25 de Julho de 2009, para a Escola de Tropas Pára-quedistas de Tancos onde recebeu honras
militares junto ao Monumento Aos Mortos em Combate, tal como em Lisboa (Igreja da Força Aérea) e
no dia seguinte em Castro Verde, em cujo Cemitério se encontra a repousar.
José de Jesus Lourenço, (23 de Maio de 1973), soldado pára-quedista, CCP 121, sepultado
em Guidaje. Corpo exumado em 21 de Março de 2009. Trasladado inicialmente para Bissau e, em 25
de Julho de 2009, para a Escola de Tropas Pára-quedistas de Tancos onde recebeu honras militares
junto ao Monumento Aos Mortos em Combate, tal como em Lisboa (Igreja da Força Aérea) e no dia
seguinte em Cadima (onde nasceu). Repousa no cemitério de Fornos, Cantanhede.
Manuel da Silva Peixoto, (23 de Maio de 1973), soldado pára-quedista, CCP 121, sepultado
em Guidaje. Corpo exumado em 21 de Março de 2009. Trasladado inicialmente para Bissau e, em 25
de Julho de 2009, para a Escola de Tropas Pára-quedistas de Tancos onde recebeu honras militares
junto ao Monumento Aos Mortos em Combate, tal como em Lisboa (Igreja da Força Aérea) e no dia
seguinte em Vila do Conde. Repousa no Cemitério de Caxinas/Gião, Vila do Conde.
Bailó Baldé, (23 de Maio) soldado atirador, CCaç 3, sepultado em Guidaje.
Fonseca Nancassá, (23 de Maio) soldado atirador, CCaç 3, sepultado em Guidaje.
José Carlos Moreira Machado, furriel miliciano nº 028937/71, CCaç 3518, sepultado em
Guidaje. Corpo exumado em 21 de Março de 2009. Trasladado inicialmente para Bissau e, em
Novembro de 2009, para Valpaços, tendo tido cerimónias com honras militares em Belém, junto ao
Forte do Bom Sucesso, Lisboa, junto ao Monumento Nacional aos Combatentes no Ultramar e em
Valpaços). Repousa no Cemitério de Sá/Ervões.
Gabriel Ferreira Telo, (25 de Maio de 1973), primeiro-cabo atirador nº 031178/71, CCaç 3518,
sepultado em Guidaje. Corpo exumado e trasladado para Bissau em 21 de Março de 2009; trasladado
para Portugal em Novembro de 2009, com cerimónias e honras militares em Belém, junto ao Forte do
Bom Sucesso, Lisboa, junto ao Monumento Nacional aos Combatentes no Ultramar, e na Madeira,
primeiro junto ao Monumento ao Combatente Madeirense, na Mata da Nazaré, e depois no Paul do
Mar, concelho da Calheta. Sepultado no cemitério de Paul do Mar/Madeira a 22 de Novembro de 2009.
*em Belém/Lisboa: Ministro da Defesa/Santos Silva, Presidente da Liga Portuguesa de
Combatentes/Chito Rodrigues; no Funchal e Paul do Mar: representante da República/Monteiro Diniz,
representante do Governo Regional/Brazão de Castro), Presidente da Câmara Municipal da
Calheta/Manuel Baeta), o Presidente da União Portuguesa de Pára-Quedistas/Avelar de Sousa e o
coronel Ramiro Morna Nascimento, – madeirense e amigo da família que em 1973 foi segundo-
comandante em Farim, impulsionador da Homenagem e da edificação do Monumento ao Combatente
Madeirense, erguido com donativos populares e inaugurado na Mata da Nazaré, Funchal, em 2003.
João Nunes Ferreira, (25 de Maio de 1973), soldado atirador nº 094773/71, natural de Câmara
de Lobos, CCaç 3518. sepultado em Guidaje. Corpo exumado e trasladado em 21 de Março de 2009
para o Cemitério de Bissau (talhões da Liga Portuguesa de Combatentes) onde está em repouso.
António Santos Jerónimo Fernandes, (26 de Maio), furriel miliciano nº 094862/71, CCaç 19,
sepultado em Guidaje. Natural de Garção, Vimioso, o corpo foi exumado e trasladado para o Cemitério
Municipal de Bissau (talhões da Liga Portuguesa de Combatentes), onde se encontra em repouso.
António Talibó Baio, (26 de Maio), soldado atirador, CCaç 19, sepultado em Guidaje. Corpo
exumado e trasladado a 21 de Março de 2009 para o Cemitério Municipal de Bissau (talhões da Liga
Portuguesa de Combatentes), onde se encontra em repouso.
Jorge de Andrade Gonçalves, (29 de Maio), soldado atirador nº 048491/71, natural do
Campanário, Ribeira Brava, Madeira, CCaç 3518,
António Luís do Couto Toste Parreira, (29 de Maio) soldado condutor, CCaç 3414,
Domingos Martins da Silva Lopes, (29 de Maio) soldado atirador, BCaç 4512/72,
Luís José Abrunhosa Gonçalves, (4 de Junho) soldado atirador, 1ª Companhia/BCaç
4512/72,
Carlos Manuel Galvão Fernandes, (9 de Junho) primeiro-cabo atirador, Pelotão Caçadores
Nativos nº 67.
* O número de sepultados não coincide com várias das múltiplas descrições existentes. Há vítimas destes
combates que seriam enterradas em Farim e noutros locais próximos. Estão listados os mortos do exército e dos
pára-quedistas, não estando referenciadas vítimas dos fuzileiros. Também sobre os mortos da milícia e entre a
população civil há muitas imprecisões e dúvidas quanto ao seu número e quanto ao local onde repousam.
O general Lopes Camilo, vice-presidente da Liga dos Combatentes que teve a gentileza de me
receber no início de 2009 para me informar dos esforços que então estavam em marcha para a
exumação dos corpos, disse à imprensa que haveria a estimativa de 31 corpos enterrados em Guidaje.
Porém, o mapa/croquis elaborado pelo pessoal da CCaç 19 só referia dez (quando da exumação
descobriram-se 11). Houve algures à volta do quartel de Guidaje outro(s) cemitério(s), supõe-se que
constituído(s) exclusivamente pelos restos mortais de pessoal africano.
Madeirenses mobilizados para o Ultramar
Estima-se que durante a guerra tenham falecido nas três colónias portuguesas duzentos e
quarenta madeirenses (ou membros de unidades constituídas na Madeira, cujos graduados e
especialistas eram geralmente oriundos de outras partes do país).
Das unidades constituídas na Madeira, registaram-se 125 mortos em Angola, 46 em
Moçambique e 69 na Guiné.
O Comando Militar da Madeira (BII19) mobilizou para a Guiné as seguintes subunidades
(companhias de caçadores independentes):
CCaç 1439
CCaç 2246
CCaç 2529
CCaç 2571
CCaç 2679
CCaç 2680
CCaç 2681
CCaç 3325
CCaç 3518
CCaç 3519
CCaç 3520
CCaç 4942
CCaç 4944
CCaç 4945
CCaç 4946
Também no Funchal, no antigo quartel da Bateria de Artilharia de Guarnição nº 2 (GAG-2),
situado em S. Martinho, foi mobilizada para a Guiné, onde esteve entre Abril de 1970 e Março de 1972,
a seguinte unidade:
CCart 2732
Hino de Os Marados de Gadamael
Escuta, Irmão
Nós somos Os Marados de Gadamael
Vivemos dias maus, Irmão
Dias amargos como fel
P´ra ti cantamos, nosso Irmão
Para o povo todo da Terra
Viver em Gadamael
É o máximo da guerra!
(refrão)
Mas chegará o dia, Irmão
De partirmos da Guiné
Com fé e confiança, Irmão
O que é preciso é estar de pé!
A comer “bianda” com chouriço
Isto é só emagrecer
Queremos ir p‟rà nossa terra
Onde podemos comer
(repete refrão)
Mas chegará o dia, Irmão
De partirmos da Guiné
Com fé e confiança, Irmão
O que é preciso é estar de pé!
Dedicatória
Dedico estas páginas à memória dos camaradas que morreram na Guiné, mas igualmente aos
Marados de Gadamael que já nos deixaram após o regresso (que eu tenha conhecimento, o
Quaresma, o Pessoa, o Jaca e, mais recentemente, o Moutinho (o “Emerson Fitipaldi” das Berliet),
grande entusiasta dos nossos convívios anuais no Continente. Por vezes, há outras notícias que nos
chegam, mas como não estão confirmadas, não há que especular... Mas temos de nos ir habituando à
ideia deste número ir crescendo paulatinamente, pois hoje estamos todos na casa dos 60 anos e a lei
da vida é irreversível.
Não sei se para aqueles que de alguma forma participaram na guerra será positivo ou negativo
este reacendimento das memórias. Voluntária ou involuntariamente, todos acabamos por dar connosco
a reviver excertos do passado (não apenas deste passado, também da infância e de outros períodos
da nossa vida). Reagir às recordações da guerra é sempre diferente. Podemos sempre voltar à
vivência dos anos em que começámos a crescer e compreender as diferenças, mas é impossível de
reconstituir dois a três anos no mato, o sofrimento e os bons momentos de lazer e diversão que
também retivemos para todo o sempre. No quotidiano das nossas vidas deparamo-nos com imensos
camaradas que ainda hoje é como se nunca tivessem saído da Guiné (de Angola, de Moçambique) e
na maior parte dos casos não passaram o que nós tivemos a infelicidade de passar. Então, porquê
reavivar esses tempos? Ajuda a espantar fantasmas? Não creio que existam, mas acredito que sejam
(perdoem-me o lugar-comum) como as bruxas: “que las hay, las hay”!...
Um dia a SIC patrocinou o regresso de um ex-combatente à localidade onde havia estado
durante a guerra (Moçambique). Em contacto com autóctones do seu tempo (já com muitos filhos à
mistura) e com ex-combatentes do “outro lado” (FRELIMO), conviveu sem problemas, reviveu
momentos, contou e ouviu histórias dos tempos idos. De repente, fez-se silêncio e, como quem não
tem mais nada para dizer, pediu humildemente desculpa a todos os presentes. Desculpa de quê? De
uma coisa de que não foi o principal culpado: ter lá estado, naquele tempo… E eu, nesse instante,
desatei a chorar convulsivamente, de tal modo que não conseguia dominar-me, sendo essa a única
manifestação espontânea, que me lembre, que tive relacionada com a minha primeira presença em
África, de G3 numa mão e de cavilhas de segurança, mais cordão-de-tropeçar para as armadilhas, na
outra. Que complexo guardei em mim durante tantos anos, até ver essa reportagem? Depois do
regresso, por razões da minha vida pessoal, tive contactos com inúmeros ex-guerrilheiros e mesmo
com dirigentes do PAIGC, MPLA, FRELIMO, MLSTP e FRETILIN, ao mais altos níveis, tornei-me
amigo de vários e nunca senti que tivesse que apresentar desculpas pessoais a ninguém, por nada
deste mundo, nem eles admitiriam que o fizesse; tal como a mim, enquanto cidadão português,
nenhum combatente pela liberdade tem motivos para me pedir desculpa. Mas voltar aos locais onde
estivemos, encarar de frente os olhos tristes ou indiferentes das pessoas… De todos os programas
televisivos, reportagens, foi o mais difícil para mim… Porquê tamanho complexo de culpa?
Quando pus pela primeira vez os pés em África, eu já tinha alguma consciência política, embora
não muita informação: lembro-me de gravar um texto que me forneceram no momento, no Funchal
(num programa da Estação Rádio da Madeira), em que Amílcar Cabral era tratado como um
assassino… O texto era tão mau que o li aos bochechos, gravando-o de primeira, sem o perceber.
Quando ouvi o resultado final já não pude evitar que fosse para o ar e, mesmo sem grandes
argumentos para o contestar, recriminei-me por não ter recusado liminarmente a leitura.
Lembrar tudo isto, agora? É patético, mas até quando escrevo este texto tenho momentos de
emoção e a reacção primeira é a da escrita compulsiva, é a de contar as histórias rapidamente, antes
que se esgote o tempo e temendo que já ninguém se interesse por as ouvir (ler). O que de início se
pretendia ser um texto sobre os dias de Guidaje já leva a dimensão de um pequeno livro, escrito nos
tempos livres de não mais que quatro semanas e sem o intuito de grandes revisões nem cuidados
literários: chegado ao fim, amigos, foi contar que foi assim e pronto…
Nesta dedicatória, não resisto a transcrever na página seguinte um poema de Mário Dionísio
(16/07/1916 – 17/11/1993, ex-professor da Faculdade de Letras, poeta, conferencista e tradutor, que
colaborou na Seara Nova, Vértice e Diário de Lisboa; prefaciou autores como Manuel da Fonseca, Carlos
de Oliveira, José Cardoso Pires e Alves Redol). Embora publicados em 1945, estes versos adaptam-se na
perfeição ao estado de espírito com que recordamos todos estes camaradas.
Balada dos Amigos Separados
Onde estais vós Alberto Henrique
João Maria Pedro Ana?
Por onde anda agora a vossa voz?
Que ruas escutam vossos passos?
Ao norte? Ao sul? Aonde? Aonde?
José António Branca Rui
E tu Joana de olhos claros
E tu Francisco e tu Carlota
E tu Joaquim?
Que estradas colhem vosso olhar?
Onde agora a vossa vida repartida?
A oeste? A leste? Aonde? Aonde?
Olho prà frente, prà cidade
e pràs outras cidades por trás dela
onde se agitam outras gentes
que nunca ouviram vosso nome
e vejo em tudo a vossa cara
e ouço em tudo o som amigo
a voz de um a voz de outro
e aquele fio de sol que se agitava
sempre sempre
em todos nós
Dançam as casas nesta noite
ébrias de sombra nesta noite
que se prolonga em plena angústia
aos solavancos do destino
e não consegue estrangular-nos
Sigo e pergunto ao vento à rua
e a esta ânsia inviolável
que embebe o ar de calafrios
Onde estais vós? Onde estais vós?
E por detrás de cada esquina
e por detrás de cada vulto
o vento traz-me a vossa voz
a rua traz-me a vossa voz
a voz de um a voz de outro
toada amiga que me banha
tão confiante tão serena
Aqui aqui em toda a parte
Aqui aqui e tu aonde?
Mário Dionísio
in As Solicitações e Emboscadas
Vértice nº 58, Janeiro de 1994
Composição da CCaç 3518
Manuel Nunes de Sousa, capitão miliciano, comandante de
companhia
António Francisco Lopes Monteiro, alferes miliciano de
operações especiais
José Eduardo Freitas da Silva Cavaco, alferes miliciano atirador
Dino Álvaro Mendes Duarte, alferes miliciano atirador,
“colocado” na CCaç 6, em Bedanda a 5 de Novembro de 1972
Quirino do Sameiro Correia Igreja, alferes miliciano
Vitorino Ferreira da Cruz, alferes miliciano atirador, chegou à
companhia a 12 de Outubro de 1972, (para substituir o alferes
Dino Duarte). A 27 de Julho de 1973 seria transferido para o
BEng 447.
Manuel Fagundes Neves, primeiro-sargento atirador
José Alberto Ferreira Durão, furriel miliciano mecânico auto
Domingos Gomes Gonçalves Pinto, furriel miliciano de
transmissões
José Carlos Moreira Machado, furriel miliciano atirador
Hélder Esteves Novíssimo, furriel miliciano atirador
Nuno Álvares Brasil Pessoa, furriel miliciano atirador, transferido
para a 1ª companhia do BCaç 4610, em 27 de Outubro de
1973
António Francisco Revez Guerreiro, furriel miliciano atirador
Manuel Fernando Urbano Neves, furriel miliciano atirador,
também “colocado” na CCaç 6, em Bedanda, em Novembro de
1972
Avelino J. A. Gomes, furriel miliciano atirador
José Lopes Silva, furriel miliciano atirador
Daniel Rosa de Matos, furriel miliciano de minas e armadilhas,
professor escolar no PEM 23
Ângelo César Carneiro da Silva, furriel miliciano de minas e
armadilhas
Bernardo Gomes Monteiro, furriel miliciano de armas pesadas
Hélder Pereira Calvão, furriel miliciano de operações especiais,
apresentou-se a 6 de Março de 1972
António Francisco Quaresma, furriel miliciano de alimentação
(vagomestre), apresentou-se a 6 de Março de 1972, esteve
também na CCaç 3520, de Cacine
Augusto Acácio de Morais, furriel miliciano enfermeiro,
apresentou-se a 6 de Março de 1972
Florentino José Lopes de Almeida, furriel miliciano de
operações especiais, guineense, apresentou-se a 6 de
Março de 1972, vindo da CCaç 17 em substituição do
segundo-sargento Luís Lavado, que não embarcou
com companhia para a Guiné. Passou à
disponibilidade em 1 de Dezembro de 1972.
Adriano Augusto da Silva, furriel miliciano atirador,
substitui José Carlos Machado em 13 de Agosto de
1973
Manuel Baptista Fidalgo, furriel miliciano atirador, da,
esteve em diligência na companhia; foi para a CCaç 6
(Bedanda) a 7 de Janeiro de 1973
Alexandre Vasco de Castro, 1º cabo escriturário, esteve
no DA/CTIG em serviço da companhia
José Rafael Henriques Quintas, 1º cabo operador cripto
Jaime de Neiva Pereira dos. Santos, 1º cabo operador
cripto
Fernando Cardoso Simões, 1º cabo auxiliar de
enfermeiro, esteve no DA/CTIG em serviço da
companhia
José Amândio G. Cunha, 1º cabo auxiliar de enfermeiro
Emídio dos Santos Júnior, 1º cabo auxiliar de
enfermeiro
Mário da Cruz Oliveira, 1º cabo auxiliar de enfermeiro
Gabriel Gomes Machado, 1º cabo mecânico de armas
ligeiras
Luciano Fernandes Rebolo, 1º cabo apontador de armas
ligeiras, esteve no DA/CTIG em serviço da companhia
João Luís de Gouveia, 1º cabo apontador de armas
ligeiras
Carlos Manuel Nunes Curto, 1º cabo corneteiro
Luís Barros de Macedo, 1º cabo cozinheiro
José Manuel S. Garcês, 1º cabo C. A. R., sintex
Carlos Alberto Esteves Ferreira, 1º cabo C. A. R.
Manuel da Conceição Fino, 1º cabo mecânico A. R.
Manuel Coelho Rodrigues, 1º cabo padeiro
Manuel de Sousa Nogueira, 1º cabo apontador M. M., esteve em
diligência em Cufar, na CCaç 4740
António de Oliveira Simões, 1º cabo apontador M. M.
Rafael de Freitas Pereira, 1º cabo atirador
João Manuel Pinto Rodrigues, 1º cabo atirador
Gabriel Ferreira Telo, 1º cabo atirador
Américo Z. G. Paulo, 1º cabo atirador
João Heliodoro Gomes da Silva, 1º cabo atirador
Humberto A. Camacho Gomes Pereira, 1º cabo atirador
Agostinho Gomes Serrão, 1º cabo atirador
Manuel Nuno de Sousa, 1º cabo atirador, monitor escolar
Manuel G. G. Quintal, 1º cabo atirador
José Agostinho de Freitas, 1º cabo atirador
Manuel de Freitas, 1º cabo atirador
José Manuel Mendonça de Viveiros, 1º cabo atirador, esteve no DA/CTIG em serviço da companhia
José Maria Fernandes, 1º cabo atirador
Manuel de Câmara Lambaz, 1º cabo atirador
José Rodrigues Fernandes, 1º cabo atirador
José Teixeira Cardoso, 1º cabo atirador, esteve em diligência no Pelundo
José de Sousa Costa, 1º cabo atirador
João Manuel Mendonça N. Jarimba, 1º cabo atirador
Mário Luís Martins, 1º cabo rádio-telegrafista, apresentou-se a 6 de Março de 1972
Armindo Gonçalves Barbosa, soldado corneteiro, esteve em diligência em Catió, na CCart 6251
Joaquim da Cunha Ramos, soldado corneteiro
José Maria dos Santos Lopes, soldado corneteiro
Francisco Estrela Gonçalves, soldado corneteiro
António Alfredo Cruz, soldado cozinheiro
José Manuel Gomes Aguiar, soldado auxiliar de cozinheiro
Serafim Ferreira Reis, soldado condutor A. R.
António Adílio Moreira Carneiro, sold. condutor A. R.
Albino Jorge C. Caldas, soldado condutor A. R.
Francisco Rocha Moutinho da Costa, soldado condutor A. R.
José Américo Araújo, soldado condutor A. R.
Francisco M. P. da Silva, soldado condutor A. R.
Fernando F. de Oliveira, soldado condutor A. R.
Artur Cunha da Fonseca, soldado condutor A. R.
Francisco Baiona Calado, soldado condutor A. R.
José da Costa Novais, soldado condutor A. R.
Fernando Fajardo, soldado condutor A. R.
Rogério Manuel Cesário Aguiar, soldado condutor A. R., sintex, esteve como delegado da companhia na 4ª REP/QG/CTIG
Fernando Manuel F. Ruivo, soldado transmissões
José Eduardo Marques Diogo, soldado de transmissões, esteve em diligência em Catió, na CCart 6251
José Elias Gomes de Oliveira, soldado de transmissões
Artur Fernandes Moita, soldado de transmissões
Francisco António Riço Louro, soldado mecânico A. R.
Manuel Rodrigues Gonçalves, soldado mecânico A. R.
Emílio de Carvalho Passos, soldado apontador M. M.
Aureliano Martins de Sousa, soldado apontador M. M.
José Manuel de Abreu, soldado apontador armas ligeiras
Francisco Bernardo Freitas Dornelas, soldado atirador
Avelino T. F. Henriques, soldado atirador
José Gabriel Freitas Pestana, soldado atirador
Manuel Januário de Abreu, soldado atirador
Manuel Pereira, soldado atirador
Manuel A. Silva, soldado atirador
Jorge de Andrade Gonçalves, soldado atirador
António de Leça Abreu, soldado atirador
Raul Gaspar Rodrigues, soldado atirador
Jordão Egídio dos Santos, soldado atirador
Juvenal Frutuoso Fernandes Dantas, soldado atirador
José Luís Figueira da Silva, soldado atirador
Manuel de Freitas Moniz, soldado atirador
João Gouveia de Olim, soldado atirador
Mário de Nóbrega Neto, soldado atirador, esteve também na CCaç 3548
José António dos Santos, soldado atirador
João Gonçalves de Jesus, soldado atirador
José Manuel da Silva, soldado atirador
José António da Silva Pires, soldado atirador
Manuel Agostinho T. Silva, soldado atirador
Manuel A. A. Catanho, soldado atirador
Alexandre António Pestana, soldado atirador
Luciano Aleixo Gomes, soldado atirador
Francisco Correia Fernandes, soldado atirador
Joaquim Faria de Abreu, soldado atirador
António de Andrade Pereira, soldado atirador
Adelino Gomes, soldado atirador
José Manuel F. Gouveia, soldado atirador
António Amaro de Oliveira, soldado atirador
Ambrósio F. Rodrigues, soldado atirador
Agostinho Teixeira de Ornelas Flor, soldado atirador, esteve em diligência em Catió, na CCart 6251
Moisés Ferreira Ganança, soldado atirador
Domingos Gonçalves, soldado atirador
José Boaventura de Castro Gouveia, soldado atirador
Agostinho Ferreira Perestrelo, soldado atirador
Arnaldo Martins, soldado atirador
José Pita de Andrade, soldado atirador
Manuel N. V. Cardoso, soldado atirador
Carlos Teixeira de Freitas, soldado atirador, esteve evacuado no HMB e no HMP
Manuel Delgado de Sousa, soldado atirador
Jesuíno Meneses dos Reis, soldado atirador
Manuel Câmara Costa, soldado atirador, esteve em diligência em Cufar, na CCaç 4740; e esteve evacuado no HMP
Vicente de Sousa, soldado atirador
José Marques da Silva, soldado atirador
Pio Marinho dos Santos, soldado atirador, esteve em diligência no BCart 6252
João de Freitas Bettencourt, soldado atirador
António de Sousa, soldado atirador
Sidónio G. Nóbrega, soldado atirador
Adelino Pereira Jardim, soldado atirador
António Rodrigues de Freitas, soldado atirador
Manuel Avelino M. de Olim, soldado atirador
José Urbano Gomes Camacho, soldado atirador
Manuel de Sousa, soldado atirador
José Manuel da Silva, soldado atirador
António do Rosário de Freitas, soldado atirador, esteve no DA/CTIG em serviço da companhia
Carlos Nóbrega de Freitas, soldado atirador
Manuel Baptista Teixeira, soldado atirador
António Alberto Gonçalves, soldado atirador
Heliodoro de Freitas Rodrigues, soldado atirador
José Manuel Barros Soares, soldado atirador
Tolentino Oliveira dos Santos, soldado atirador
Manuel Pestana, soldado atirador
João de Sousa Pinto, soldado atirador
Eleutério Teodósio S. Spínola, soldado atirador
Joaquim Marques de Mendonça, soldado atirador
João Nunes Ferreira, soldado atirador, ferido numa mina a 7 de Agosto de 1972, esteve evacuado no HMP; a 6 de Fevereiro de 1973 vem do DAG e regressa à companhia, indo depois morrer a Guidaje
José Alexandre Rodrigues, soldado atirador
Manuel Germano F. Rodrigues, soldado atirador, sintex
Daniel Martins Alves, soldado atirador
Alfredo Rodrigues França, soldado atirador
José Cipriano Ferreira, soldado atirador
José Nunes Araújo, soldado atirador
José Manuel F. Rodrigues, soldado atirador
Humberto Amaro Francisco, soldado atirador
José Virgílio Vieira, soldado atirador, apresentou-se a 6 de Março de 1972, esteve evacuado no HMB e no HMP
Emanuel Gonçalves, soldado cozinheiro, apresentou-se a 6 de Março de 1972
José de Jesus Rodrigues Carreira, soldado rádio-telegrafista, apresentou-se a 6 de Março de 1972
João Luís Gouveia Rodrigues, soldado rádio-telegrafista, apresentou-se a 9 de Abril de 1972
Ricardo Lima da Costa, soldado monitor escolar no PEM 23, guineense, (temporariamente)
Inácio Soares da Gama, soldado básico vindo do GA7, apresentou-se a 22 de Abril de 1972 e foi transferido para a CCaç 4147, em 24 de Novembro de 1973
Ângelo Manuel dos Santos Raposeiro, soldado atirador, apresentou-se em Maio de 1972, transferido do BCaç 3864
Malan Seidi, soldado atirador, apresentou-se em Maio de 1972, transferido da CCaç 3 , esteve deslocado na CCaç 3548, passou à disponibilidade em 1 de Dezembro de 1973
Joaquim Pereira Campos Simões, soldado atirador, apresentou-se em 15 de Junho de 1972, vindo do Comando de Defesa de Bissau e transferido da CCart 2762
António Henrique Paiva Valente, soldado atirador, monitor escolar, apresentou-se a 27 de Julho de 1972
José Avelino Pestana, soldado atirador, apresentou-se na companhia a 19 de Dezembro de 1972
Orlindo E. Vicente, soldado atirador, apresentou-se na companhia em Fevereiro de 1973
José N. S, Pereira, soldado atirador, apresentou-se na companhia em 26 de Novembro de 1973
Fernando J. F. Fleming de Oliveira, alferes miliciano da 2ª companhia do Depósito de Adidos da Guiné, a frequentar estágio para comandante de companhia
Alfredo Joaquim Ribeiro dos Santos Lima, furriel miliciano sapador do BEng 447, para onde regressou em Maio de 1972
Mário Alves Rolo, furriel miliciano de acção psicológica, da CCS/QG; a 15 de Junho de 1972 regressou à CCS para passar à disponibilidade.
Florémio Fernandes Romão, soldado atirador da CCS/BCaç 2930
Fernando da Silva Lopes, soldado atirador da CCaç 3325
Manuel da Costa e Silva, soldado Pont. A. Fix, do BEng 447, para onde regressou em Maio de 1972
Álvaro José da Silva Albuquerque, soldado atirador da CCaç 3477
José de Brito Simões Gomes, 1º cabo da CCav 8350, esteve em diligência na companhia depois de 2 de Dezembro de 1972
Devolver os corpos às famílias
Agradecimentos
A exumação dos restos mortais dos dez (depois, onze) militares que se
encontravam no cemitério de Guidaje foi efectuada no âmbito de uma operação que
envolveu a Liga dos Combatentes, o Ministério da Defesa, a Universidade de Coimbra e o
Instituto de Medicina Legal. Uma equipa liderada por Eugénia Cunha, antropóloga forense
da Universidade de Coimbra, procedeu ao levantamento e identificação das ossadas entre
7 e 21 de Março de 2009 e posteriormente, após as análises genéticas, trasladadas para o
Cemitério Municipal de Bissau (talhões da Liga dos Combatentes).
Os restos mortais de alguns desses camaradas, (os que viriam a ser reclamados
pelas famílias, nomeadamente o Machado e o Telo, d‟Os Marados, o Geraldes e os três
pára-quedistas já referidos anteriormente) foram trasladados para os cemitérios das
respectivas terras de origem.
As trasladações ficaram a dever-se ao trabalho empenhado de diversas pessoas e
entidades, a quem se deve um agradecimento mais do que justo.
É o caso da União Portuguesa de Pára-quedistas (UPP, dirigida pelo major-general
pára-quedista Avelar de Sousa, na reserva) que desde o início assumiu a responsabilidade
das despesas para transladar os corpos dos três pára-quedistas e dos militares do exército
reclamados pelas respectivas famílias. A par da Liga dos Combatentes, foram mobilizados
apoios diversos que se revelariam decisivos para as trasladações sem envolver
financeiramente as famílias, mormente junto de uma empresa funerária e da TAP Portugal.
No que diz especificamente respeito a José Lourenço, de Fornos, Cadima, foi
efectuada uma campanha de recolha de fundos pela Associação de Veteranos de Guerra
da Região Centro (sede em Cantanhede).
Manuel Godinho Rebocho, ex-sargento pára-quedista que foi operacional na Guiné,
(Maio de 1972/Julho de 1974), hoje sargento-mor pára-quedista na reserva, entretanto
doutorado pela Universidade de Évora em Sociologia da Paz e dos Conflitos (tese de
doutoramento: "A formação das elites militares portuguesas entre 1900 e 1975"), ao
aproveitar inteligentemente o lema dos páras “ninguém fica para trás”, empenhou-se neste
objectivo e incentivou a campanha pró-trasladação. De facto, se existem 4.000 sepultados
em cerca de 400 lugares nas ex-colónias, das quais, 1.250 nascidos nas actuais fronteiras
de Portugal, o mediatismo da Batalha de Guidaje e a campanha que a partir de
determinada altura foi feita no mesmo sentido, terão contribuído para que fossem estes, e
não outros, os primeiros corpos a serem oficialmente exumados e trasladados para
Portugal.
Também as Câmaras Municipais de Cantanhede, Castro Verde, Vila do Conde,
Vimioso, Calheta e Valpaços manifestaram (e concretizaram) apoios para o sucesso da
operação.
A missão da Liga dos Combatentes é levantar os corpos que se encontram dispersos por
esses matos fora e colocá-los em cemitérios que tenham dignidade, zelando pela
manutenção dos mesmos. É uma tarefa tão nobre quanto morosa, difícil e dispendiosa. E
igualmente insuficiente, pois aquilo que o Estado Português deve fazer é providenciar (e
custear por inteiro) a devolução desse corpos às famílias, excepto se estas decidirem em
contrário! Urge criar-se um movimento de ex-combatentes, e não só, que arrume a
questão de vez, quanto aos mortos que jazem além-fronteiras, especialmente em solo
africano. Sendo verdade que existem centenas de casos desde a 1ª Grande Guerra
(Bélgica, etc.) a que a Liga quer deitar mãos, o facto é que quase ninguém se lembrará
hoje em dia de reivindicar esses corpos para fazer funerais aos tetravós. Mas aqueles,
cujos pais (irmãos, filhos, outros familiares e amigos) ainda estão vivos, têm de merecer
um outro tratamento. Os que caíam na guerra até 1968 não vinham, ficavam em
cemitérios militares, salvo se as famílias cobrissem as despesas (mais uma vez a
protecção aos mais poderosos, aos de maior poder económico). Porém, os cemitérios, ou
talhões militares, normalmente nas capitais de distrito ou de província, eram minimamente
decentes e cuidados, não o lamaçal do mato. Depois de 1969, creio que após a morte de
Salazar, o Estado passou a custear o regresso dos mortos salvo, quando por razões
operacionais, foi de todo impossível fazê-lo, como em Guidaje. Mas, por exemplo, com
que coerência pode o Estado negar os encargos da trasladação do Telo e do Machado, se
providenciou em devido tempo a entrega à família do corpo do soldado Jorge Gonçalves,
que morreu em consequência da mesma granada e no mesmo abrigo? (A diferença foi
que o Gonçalves sucumbiu aos ferimentos mais algumas horas e ainda conseguimos
transportar o seu cadáver para Bissau, enquanto que Telo e Machado tiveram o destino
que é conhecido).
Bibliografia
A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961/74), Dalila Cabrita Mateus, 2004, Terramar.
Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974), 8º Volume – Mortos em
Campanha, Tomo II Guiné – Livro 2, Estado-maior do Exército, 2001, Comissão para o Estudo
das Campanhas de África.
História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, PAIGC – 1974, Afrontamento
Crónica da Libertação, Luís Cabral, Edições O Jornal/1984
Textos Políticos de Amílcar Cabral Cadernos Maria da Fonte
Guinée “Portuguaise”, Le Pouvoir des Armes, Amílcar cabral, Cahiers Libres, 1970
Comemorações Centenárias da Guiné – Discursos e Alocuções, Engº Ruy de Sá Carneiro
(Subsecretário de Estado das Colónias), Agência Geral das Colónias, 1947
A Libertação da Guiné, Basil Davidson, Penguin Books, 1969 e Sá da Costa, 1975
Os Congressos do Povo da Guiné, Manuel Belchior, Arcádia, Agosto de 1973
Quem Mandou Matar Amílcar Cabral? José Pedro Castanheira, Relógio d’Água, 1995
Três Tiros da PIDE, Oleg Ignatiev, Prelo
Amílcar Cabral, Oleg Ignatiev, Edições Progresso (Moscovo)
Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné – blogueforanadaevaotres.blogspot.com
vários testemunhos e depoimentos, entre os quais:
ex-primeiro-cabo XXXPechorro, XXXXX
ex-furriel miliciano José Afonso, da CCav3420
ex-primeiro-cabo pára-quedista Victor Tavares, da CCP 121
ex-1º cabo comando da 38ª CCmds (Os Leopardos) Amílcar Mendes (Brá, 1972/74)
ex-primeiro-cabo Manuel Marinho, da 1ª companhia do BCaç 4512 (Nema)
ex-coronel Pilav Miguel Pessoa (reformado)
ex-comandante do navio Orion, Pedro Lauret
Guerra Colonial/Associação 25 de Abril
www.balagan.org.uk/war/portuguese-colonial-war/cazadores4512.htm (sítio do BCaç 4512)
www.guerracolonial.org
http://ultramar.terraweb.biz
http://guerracolonial.home.sapo.pt
http://ci.uc.pt//cd25a/wikka.php?wikka=guerracolonial
www.rtp.pt/guerracolonial
www.ensp.unl.pt/lgraca/guine_guerracolonial_historia.html