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CARIRI REVISTA 1CARIRI REVISTA 1

caririreViStaO Mundo para o cariri. O cariri para o Mundo

edição 03

@caririrevista

MASTIGANDO HUMANOS

daniel peixoto lança disco solo, deglutindo música eletrônica

e infl uências caririenses

ONDE ANDABÁRBARA?

na memória, na históriae nos caminhos do sertão,

os passos de bárbara de alencar desafi am o esquecimento

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A nossa terceira edição da CARIRI revista conta histó-rias de diferentes brilhos, vindos de diferentes tempos e personagens. O maravilhoso trabalho de Alemberg Quindins e de Rosiane junto com os meninos incríveis da Fundação Casa Grande, projeto social que muda destinos pelos trilhos da cultura.

Leonardo Boff e sua lúcida expressão da religio-sidade contemporânea numa conversa com Raquel Paris. Indícios de Bárbara de Alencar, cujos rastros fo-mos buscar pelo Cariri e por outras paragens, no Ceará e nos estados vizinhos, por onde andou a mulher forte que lutou e padeceu por ideais políticos no século XIX.

#caririeditorial

Gente pequena,Gente Grande,Gente brilhante...

Daniel Peixoto, na capa, conta a sua história inicia-da no Crato, em direção ao mundo. Música eletrônica ouvida em Londres que volta às origens do Cariri no úl-timo álbum. Mostramos também um panorama da edu-cação superior na região, as últimas novidades do polo calçadista e o olhar sobre o sertão da ministra Ellen Gra-ce. Muita arte com Ricardo Salmito e Rafael Limaverde. E viva a leitura, alento da inteligência e da sensibilidade!

Editora-Geral: Tuty Osório

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CARIRI REVISTA 7

por email: Caros conterrâneos da Cariri, um forte abraço e parabéns pela brilhante revista!

Ricardo Lotif

por ser apaixonado pelo Cariri estou feliz por uma revista tão bem pensada! bravo!

Marquinhos

Chegou às minhas mãos exemplar da revista Cariri cuja capa estampa espedito Seleiro. Como carirense da Cepa, nascido em milagres-Ce, residindo em Fortaleza há anos, muito me emociona e vibro com tudo de bom que divulga nossa querida região. e não foi diferente desta vez. a revista, o seu conteúdo, as matérias, a qualidade está excelente. parabéns a todos que criaram e trabalharam em tão belo exemplar!

Rudson Coelho

a revista está mais uma vez muito  bonita. Gostei mui-to de como ficou a entrevista. acho que diz coisas que não ficam claras nos artigos.  parabéns mais uma vez.

Frederico Lustosa

no FaCebooK da Cariri reViSta:  Milene Moraes, bibliotecária: “parabéns pelo belíssimo trabalho,achei muitíssimo linda!”

Verinha Torres, secretaria: “não vejo a hora de deleitar meus olhos nessas matérias! a Cariri revista será mais uma fonte bibliográfica... ansiosa!!!!! (...) É desse tipo de iniciativa que o Cariri Cearense necessita! parabéns pelo trabalho.

Sandemberg Pontes, jornalista visual:  perfeita essa fotode capa. parabéns para toda equipe :d

tweets

#caririconexão

@danfidelisDaniel Fidelis

Ganhei minha edição da @caririre-vista e já estou lendo... material de primeira.. parabéns. É realmente uma reViSta.

@a_dcarvalhoAnderson Carvalho

@caririrevista estou enviando por dm meu endereço.. obrigado... o trabalho de vcs é demais, parabéns pela iniciativa e pela revista...

@andersonweiserAnderson M. Alves

@caririrevista Ótima surpresa: rece-bi a revista #01 e já tô destrinchan-do-a. É pedir demais a número #02 também? parabéns pelo trabalho!

@pegemorais1PauloGilbertoMorais

quem não conhece ainda a@caririrevista, precisa conhecer. muito boa publicação.

@flaviacastro_Flavia Castro

@caririrevista chegou minha 2ª edição, adorei! parabÉnSà todos da equipe!Envie sua mensagem para Cariri Revista pelo e-mail: [email protected], pelo

Twitter: www.twitter.com/caririrevista ou Facebook: www.facebook.com/caririrevista

Estudante de Design

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#edição o3

MEMÓRIA

EducAçãO

18

24

pERfIl

54

CAPA DESTA EDIçÃO Daniel Peixoto FOTO: Bruno Zanardo

EXPEDIENTE

DIrETOrES Isabela BezerraRenato Fernandes

EDITOrA-GErAL Tuty Osório | [email protected]

EDIçÃO DE TEXTOS E rEDAçÃOClaudia Albuquerque

PrOjETO GráFICO E DIAGrAmAçÃO Fernando Brito rEPOrTAGEm E rEDAçÃO Raquel ParisSarah CoelhoRoger Pires

FOTOGrAFIARafael Vilarouca

rEDES SOCIAISLara Costa

DIrEçÃO DE ArTE Em PubLICIDADERubênio Lima

PubLICIDADE88 | 3085.1323 88 | [email protected]

rEDAçÃOredaçã[email protected]/caririrevistawww.facebook.com/caririrevista

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Kiko Bloc-BorisRicardo SalmitoRafael Limaverde

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cIdAdANIA

44

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pIcOTAdO

pERSONA

EcONOMIA

12 e 13

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ConVerSa

Saúde

6069

GaStronomia

CaririanaS

7073

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“Tabu” (de F. W. Murnau), um filme mudo da década de 1930, hoje tido como um clássico do expressionismo alemão, foi projetado no ano de 1951 em Juazeiro do Norte. Na plateia, um menino atendo ia às lágrimas. “Foi o primeiro filme que assisti, aos sete anos, e o único em que chorei”, relembra Sávio Leite Pereira, juiz de Direito aposentado, ex-secretário de Cultu-ra de Juazeiro e cinéfilo desde o primeiro foto-grama. Grande admirador de Stanley Kubrick (“2001 – Uma Odisseia no Espaço” é o filme preferido), Sávio cresceu assistindo as pelícu-las do Cine Eldorado e anotando impressões em cadernos, que se acumularam no tempo e no espaço. “Com oito anos já fazia meus resu-mos: o nome do filme, diretor, sinopse e nota de 0 a 5”. Os rabiscos acompanharam o juiz ci-néfilo em suas andanças por Farias Brito, Crato, Barbalha, Sobral, Caririaçu, Missão Velha, For-taleza e Juazeiro do Norte, até que se transfor-maram no livro “Volta ao Mundo dos Filmes em 50 Anos”, lançado pelas Edições Livro Técnico em 2001, com dicas preciosas, prosa elegan-te e análises breves sobre centenas de filmes. Sávio, que lamenta a “infantilização” do atual cinema americano, segue esperando pelos no-vos Bergman, Buñuel, Godart, Truffaut, Fellini, Antonioni e Chabrol, dentre outras feras euro-peias de películas eternas.

O jornal O POVO lançou em agosto um alma-naque em homenagem ao centenário de Juazei-ro do Norte. Ricamente ilustrado com fotos do precioso arquivo do banco de dados do jornal e dos fotógrafos que acompanham a história do Ceará, a publicação passeia pela saga da cidade nos seus aspectos políticos, econômicos, cultu-rais e religiosos. Uma programação visual que alude expansiva-mente às cores vivas das romarias e da Chapada do Araripe emoldura as informações diversas do almanaque. Dos números da economia à revela-ção da trajetória dos artistas que a terra produz com generosidade. Um dos destaques é a entre-vista com o escritor Gilmar de Carvalho falando do seu romance “Parabélum” (relançado em ju-nho) e de sua relação apaixonada com o Cariri.

#cariripicotado

RAFA

EL V

ILAR

OuCA

JUAZEIROEM ALMANAQUE

A LUZ DA TELA GRANDE

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ARTE REVERSAA fotógrafa Angela Moraes já está envolvida em novos projetos, mas ainda colhe os bons frutos da exposição “Arte Reversa: Para os Ro-meiros, Romaria”, que seduziu e encantou olha-res no CCBN-Cariri entre julho e agosto. Como uma grande feira mágica, ou uma procissão de cores em diferentes suportes, Angela montou barracas-estandartes em que imagens de ro-marias se projetavam, revelando um universo de formas, ícones e tons singulares. O peque-no comércio de objetos religiosos, as lonas das barracas improvisadas e as redes que acolhem a população flutuante ganharam uma repentina expressão plástica no registro fotográfico de Angela, que fundiu imagens e testou misturas cromáticas para criar a arte reversa do título. “Eu na verdade pinto com a máquina fotográ-fica. Quem sabe depois dessa exposição eu co-mece a fazer fotografia?”, brinca a juazeirense radicada em Fortaleza, que durante três anos utilizou uma antiga e analógica Kodak Pro Star 100 como instrumento de captação das imagens de romarias.

NÃO MATARÁS!Juazeiro do Norte recebeu no dia 12 de agosto o I Seminário Internacional de Direitos da Mulher sobre o enfrentamento à Violência. O Seminá-rio contou com presenças de ilustres militantes no combate à violência, como a jurista, advoga-da de intensa atuação e defensora pública Môni-ca Barroso. Alacoque Bezerra, primeira mulher senadora do Ceará, foi homenageada pelos par-ticipantes, por sua trajetória passada e presente em defesa dos direitos humanos. A ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Grace, profe-riu a palestra de encerramento, ressaltando os ensinamentos do Padre Cícero em prol da paz e destacando a imperativa necessidade de se combater a violência doméstica no Brasil.

VISÃO DE RAIO-X“Nasci em Recife e fiquei boa em Juazeiro”, co-menta Maria do Carmo Alves da Silva, com um jeito peculiar de resumir informações. Isso signi-fica que ela veio ao Ceará com a família de reti-rantes, sem conseguir andar, mas aqui “se curou” e nunca mais voltou para Pernambuco. Transfor-mou-se na Maria Raio-X, uma curandeira espiri-tual capaz de “ver” com o toque das mãos o que se passa no corpo de uma pessoa. Isso é o que garantem seus pacientes, que chegam de todas as partes do Cariri e de outros estados. Na Rua de Todos os Santos, a casinha de Maria Raio-X está sempre cheia. “Vem gente de Recife, Bra-sília. João Pessoa, Fortaleza. Já tratei de político e já consultei na casa do vigário”, garante Dona Maria do Carmo, uma figura frágil, de fala man-sa, repleta de exclamações religiosas, que hoje é mais uma figura emblemática da vasta galeria de tipos curiosos de Juazeiro do Norte.

MUITOS VOOS À VISTA!A ampliação do aeroporto regional do Cariri, há tanto tempo sonhada e reivindicada, final-mente vai acontecer. Os terminas de embarque e desembarque serão reformados e o horário de funcionamento 24 horas já está em vigor. Para completar as boas notícias, além das com-panhias Gol, Avianca e Azul, que já operam na região, a Passaredo acaba de chegar com inte-ressante oferta de voos diretos.Quando as obras estiverem concluídas, o ae-roporto terá capacidade para receber 500.000 passageiros por ano. A ampliação da pista para 2.700m, possibilitando a incorporação de aero-naves do porte do Boeing 767-300, é a reivin-dicação da comunidade para a internacionaliza-ção do aeroporto e a consolidação de fluxo do turismo científico e ecológico.

RAFAEL VILAROuCA

RAFA

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a primeira imagem que vem à cabeça quando se fala em calçados do Cariri certamente são as sandálias de couro, famosas nos pés de cangaceiros e apro-

priadas pelo mestre da cultura Espedito Seleiro. Po-rém a primazia dessa imagem tradicional está sendo disputada por calçados mais modernos, em razão da produção industrial significativa que move a região.

Apenas Franca, em São Paulo, e Novo Hamburgo, no Rio Grande do Sul, ultrapassam o maior polo pro-dutor do Norte-Nordeste brasileiro formado por Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Muitos brasileiros e es-trangeiros nem sabem, mas já têm um, ou melhor, dois pezinhos no Cariri.

Destaque na produção principalmente de sandá-lias microporosas (estilo Havaianas) e injetadas de PVC (as de plástico), a região do Cariri representa o Ceará nesse ramo pelo mundo. O número de indús-trias chega a aproximadamente 250, e 80% da pro-dução é destinada aos calçados femininos, sendo o restante dividido entre o público masculino e infantil. Mas não são apenas as sandálias, tão requisitadas pela vaidade feminina, que tomam conta do mercado.

Há indústrias que produzem apenas matérias-pri-mas e exportam, contando com a facilidade e rapidez de transporte para os portos cearenses do Mucuripe e do Pecém. Além das condições favoráveis e da

tradição regional na área, subsídios e facilidades ofe-recidas pelo governo e instituições parceiras atraem investidores de outros estados e países, o que movi-menta a economia e gera empregos.

INVESTINDO NO jEITO CErTO DE FAZEr Além de atingir números excepcionais, a região inves-te na qualidade. Principal responsável pelo Ceará ser o segundo maior exportador de calçados (o Rio Grande do Sul está em primeiro e São Paulo em terceiro), o Cariri ainda importa mão-de-obra qualificada de outros estados, mas a previsão é que essas vagas sejam ocu-padas por pessoas da região.

A professora do curso de Design de Produto da uFC-Cariri, Juliana Loss, justifica que “o curso preten-de formar profissionais capacitados para suprir esta necessidade, contribuindo para que o Ceará também

#caririeconomia

Por Roger pires

nada de pedraS noS SapatoS CaririenSeSDestaque nacional na produção de calçados, a região do Cariri busca ampliar a participação no setor, qualificar a mão-de-obra e oferecer “pisantes”de qualidade ao consumidor final. Segundo maior exportador no ramo, o Ceará conta como Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha para continuar no topo desse ranking.

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POLO DECALÇADOSDO CARIRI

seja destaque em criatividade e qualidade”. Além dis-so, Juliana lembra que o calçado “está ligado direta-mente à saúde do usuário”.

Para o presidente do Sindicato de Trabalhadores de Calçados de Crato, Barbalha e Juazeiro do Norte, “é importantes sairmos dos fundos de quintais e mos-trarmos nossa cara, mas queremos crescer junto com os outros estados e países, e não ser explorados por eles”. Antônio Cledmilson pontua que o setor vem crescendo rapidamente em alguns anos e que por isso merece atenção.

NEGOCIAçÕES SuPErAm EXPECTATIVAE é na Feira de Tecnologia de Calçados do Cariri (FE-TECC) que todos os envolvidos nos negócios, além dos curiosos e adoradores de calçados, se encontram. No mercado há doze anos, a FETECC cresce a cada

• Formado na sua maioria por pequenas e médias empresas, o polo calçadista do Cariri tem cerca de 250 fábricas

• Gera 16 000 empregos formais• 80% da produção é de peças femininas e 20%

de peças masculinas e infantis.• É responsável por cerca de 50% da produção

cearense de calçados.• a produção mensal chega a alcançar 8,8 milhões

de pares• exportação para o mercosul, europa

e estados unidos• no ano passado, o laboratório do Senai*

atendeu 49 empresas e realizou mais de 500 ensaios para controle de qualidade da matéria-prima, calçados prontos e acessórios

*Serviço nacional de aprendizagem industrial do Ceará

produção mensal chega a 8,8 milhões de pares

RAFAEL VILAROuCA

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edição, e em 2011 recebeu 10 mil pessoas em três dias de evento, movimentando R$ 50 milhões em negó-cios entre produtores, investidores e consumidores.

A EBM Consultoria e Investimentos é um exemplo de como a FETECC consegue agitar a economia não só do setor de calçados. Prestando serviços para a maioria das indústrias e lojas do ramo na região, a EBM aproveita a Feira para fortalecer a atividade dos clien-tes atuais, além de negociar com os novos. “Este ano, houve um cliente em potencial que ficou interessado em instalar uma unidade fabril e uma loja no Cariri. Ele nos convidou para visitas, lá em Franca, em São Pau-lo”, revela Samara Mendonça, administradora da EBM.

Para o presidente do Sindicato das Indústrias de Calçados e Vestuários de Juazeiro do Norte e Região (Sindindústria), Antônio Barbosa Mendonça, “as expectativas foram superadas”. Segundo dados do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), as negociações ultrapassaram o previsto. “Esses resultados nos dei-xam realizados e motivados para organizar a próxima Feira!”, conclui Mendonça.

RAFAEL VILAROuCA

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Hoje, a diversidade de opções é algo corriqueiro. Sapatos, sandálias, chinelos, botas e produtos os mais modernos e ousados são facilmente encontrados nas lojas de calçados, espalhadas em grande escala nos centros comerciais. Essa abundância é contraditória à origem do calçado, que antes mesmo de ser identificado como tal era um artigo de vestimenta com a função de proteger os pés do frio e evitar ferimentos em terrenos irregulares.

Os primeiros registros do uso desses artigos de proteção datam do final do período Paleolítico, entre 12.000 a.C e 15.000 a.C. Pinturas rupestres nas regiões onde atualmente se situam a Espanha e o sul da França mostram uma espécie de bota primitiva de pele animal e outros modelos semelhantes às sandálias abertas.

No mesmo caminho da vestimenta, os artigos usados nos pés passaram a ser objetos de diferenciação social. Nobres e cidadãos de alto poder aquisitivo usavam materiais

PASSOS FIRMES NA HISTÓRIA

raros e/ou colocavam joias nos calçados para demonstrar superioridade.

Em algumas sociedades, como na Grécia antiga, os escravos do Império não podiam se calçar; e camponeses e membros de classes humildes só podiam usar tamancos. Na mesma civilização, contraditoriamente, num período distinto, o uso de calçados foi encarado como uma forma de “esconder” – os escravos é que deveriam se calçar para encobrir seus membros inferiores.

A tecnologia e a criatividade de estilistas, artesões e sapateiros fizeram o calçado se popularizar, tornando-se não apenas necessário, mas também uma peça de apelo estético que compõe o visual. As guerras e batalhas impulsionaram e incentivaram a produção em grande escala, pois vários pares foram encomendados para vestir os guerreiros e soldados. Dessa forma, a produção foi se instalando e os homens aprimorando a forma de fazer calçados.

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noS raStroS

#caririmemória

Crato, setembro de 2011

o vai-e-vem de carros impede a passagem tranquila da menina que olha assustada o trânsito entre a Igreja e a Praça da Sé, no centro do Crato. Do outro lado, o barulho

de dezenas de crianças brincando faz coro com o repi-que dos sinos, que determina o atraso da estudantada, a correr esbaforida para a primeira aula na universidade situada a poucas quadras dali. Indiferente a tudo isso, um senhor ressona sossegado em frente à casa verde que serve de sede à Secretaria da Fazenda do Esta-do do Ceará. Bem acima da vista dos passantes, uma placa repousa no cume da casa com os dizeres: “Aqui morou Bárbara de Alencar”.

A homenagem, se assim podemos chamar a placa solitária e imperceptível, é no mínimo desproporcional à grandeza de Bárbara de Alencar, primeira mulher re-publicana, primeira presa política do Brasil e destemida ativista da Revolução Pernambucana de 1817 em terras cearenses. Da casa em que ela morou quando chegou ao Crato, em 1782, após casar com José Gonçalves dos Santos, português, negociante de tecidos, nada restou. Foi demolida em 1937 para dar lugar a um pré-dio sem graça da Exatoria Estadual. A residência, uma típica edificação colonial de beira-e-bica, que estava completando 200 anos, foi a primeira edificação par-ticular do Crato a ser construída de pedra e cal, tendo vindo o mestre de obras do Recife.

No Crato, Bárbara de Alencar é nome de rua. Essa é toda a informação que Vitória Arraes, 14 anos, estudante do 8° ano, possui sobre a revolucionária matriarca. “Bárbara de Alencar? Nunca ouvi falar!”, diz a menina. Não surpreende. Ovacionada como heroína

da República, sobre Dona Bárbara muito se fala e pou-co se conhece. Seu nome por muito tempo foi alijado da história nacional e envolvido em difamações por dé-cadas. No entender do historiador e memorialista Ar-mando Lopes Rafael, tudo começou quando Bárbara foi acusada injustamente de ter sido amante do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha.

O historiador rebate as acusações citando as datas de chegada do vigário no Crato e o nascimento dos fi-lhos de Dona Bárbara. “O padre chegou ao Crato em 1800, o senador José Martiniano de Alencar, que dizem que era filho do vigário, nasceu em 1794, e o primogêni-to João Gonçalves Pereira de Alencar nasceu no sertão de Pernambuco em 1783, quando o padre morava ainda na casa de seus pais”. Apesar do que afirma o historia-dor Armando Rafael, muitos biógrafos insistem na tese de que Bárbara cometeu adultério com o padre Salda-nha, desta relação clandestina nascendo o senador José Martiniano, pai do escritor José de Alencar.

de bÁrbara

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“Harmonia nos traços, boca ampla, lábios firmes, porte alto e forte, quase masculino, braços longos, passada larga e decidida”. Assim o Almirante Rufino de Alencar, contemporâneo e parente de Bárbara, descreveu a heroína do Crato, cujos traços fisionômicos perderam-se na história, assim como os de seu filho predileto, Tristão. O único desenho que temos de Bárbara é, na verdade, um retrato presumido – nele vemos uma senhora altiva, cabelos presos em tranças que se dividem e fixam no alto da cabeça, sem enfeites e sem requintes de sinhá. Arisca, a matriarca de 1817 não se revela facilmente. As informações sobre sua vida circulam desencontradas pela Internet, páginas de bibliotecas, declarações de estudiosos, documentários, filmes e teses acadêmicas. Morta em 1832, no Piauí, numa área que faz limite com o distrito de Itaguá, em Campos Sales, Bárbara foi sepultada em terras cearenses, na Igreja de Nossa Senhora do Rosário. Historiadores e estudiosos pedem o tombamento do templo de Itaguá pelo IPHAN. A casa em que morou, no Crato, já foi demolida. No Sítio Pau Seco, hoje município de Juazeiro do Norte,

MEMÓRIA QUE PERMANECE

onde preferia ficar junto com os filhos, só existem ruínas e fantasmas. Uma pálida paisagem, bem diferente do tempo em que ela reinava ali, senhora dos campos, rebanhos e plantações, cercada pela família, os agregados, os escravos e as crianças – que a chamavam de tia Babu. Em melhor situação está o Sítio Caiçara, no lado oeste da Chapada do Araripe, em Exu (PE), onde Bárbara nasceu. A Casa Grande é a mais antiga da região e remonta à primeira metade do século XVII. No local funciona hoje um museu que tenta preservar a memória do que passou. Quem também nasceu nas possessões da Caiçara, muitos anos depois da heroína do Crato, foi Luiz Gonzaga, o rei do baião, herói de lutas diversas. Numa música em que bendiz o local, Gonzagão enumera os imortais conterrâneos:

“Quero louvarOs grandes desse lugarLuiz Pereira, Dona Bárbara de AlencarE o Barão que não sai da lembrançaQue mandou buscar na FrançaSão João e Baltazar “

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um órgão público no lugar da velha casa, que foi demolida

Mãe de heróis, heroína ela mesma. O que não faltam são títulos honoríficos a Bárbara de Alencar, incluindo o que lhe foi concedido in memoriam em maio de 2005 pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, que lhe outorgou o título de cidadã cearense. Entretanto, o resgate mais que salutar de sua vida e

Crato, maio de 1817

A rua batida de terra estava cheia naquele dia. A multi-dão se espremia para ver e ouvir o diácono, vestido de sobrepeliz, que no púlpito da Igreja da Sé declarou em alto e bom som a independência da Vila Real do Crato do resto do Brasil e do julgo português. Era José Mar-tiniano de Alencar Araripe, filho de Bárbara de Alencar, enviado pelos líderes da Revolução Pernambucana

luta, assim como dos fatos que envolvem a Revolução de 1817, tornou-se, infelizmente, um assunto restrito a grupos de professores universitários, escritores e jornalistas. Os caririenses pouco sabem da impressio-nante insurreição que se deu em sua terra.

do púlpito da iGreJa,uma reVoluÇÃo de batinaS

para armar um braço do movimento em terras cari-rienses. Assim, cinco anos antes do restante do país e 72 anos à frente do Marechal Deodoro da Fonseca, Martiniano dá o grito de Independência da República.

A Revolução Pernambucana de 1817, deflagrada em Recife foi, segundo Luís da Câmara Cascudo, “a

ROGER PIRES RAFAEL VILAROuCA

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mais linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revo-luções brasileiras”. Ele explica o motivo: “Nenhuma nos emociona tanto nem há figuras maiores em tranquila coragem, serenidade e compostura, suprema decisão de saber morrer, convencidos da missão histórica, as-sumida e desempenhada”. Feita essencialmente por padres, diáconos e seminaristas, a Revolução de 1817 se inspirou nos ideais liberais europeus e pretendia ex-pulsar os portugueses do Brasil, considerados absolu-tistas e despóticos.

Nas palavras do escritor Manuel Bonfim, “a consti-tuição ou o esboço de constituição de 17 é absoluta ga-rantia da honestidade dos seus autores: condenação da escravatura, liberdade de consciência, liberdade individual, eliminação de todo poder não oriundo da democracia. Tinham fé e, sinceros, eram tão inacessí-veis aos interesses materiais que, durante toda a sua incontestável autoridade, não tocaram os revolucioná-rios num vintém do estado, para qualquer espécie de retribuição pessoal”.

Deflagrada a revolução, a efêmera República do Crato durou oito dias, entre 03 e 11 de maio, quando então os cabeças do movimento – José Martiniano e Tristão Gonçalves de Alencar, ambos filhos de Bárba-ra – são presos. Num primeiro momento a matriarca escapa dos perseguidores, porque se refugia junto ao padre Saldanha, no sítio Pau Seco. Em “As Quatro Sergipanas”, monsenhor Fernando Montenegro assim descreve a fuga:

“D. Bárbara refugiara-se no sítio Pau Seco, de pro-priedade do seu filho João Gonçalves, e onde ficou em segurança até a madrugada do dia 12; nessa data, antes que a propriedade fosse cercada completamen-te pelos imperiais, tratou de ocultar-se no canavial; à noite, saiu do esconderijo e entrou na mata com a qual

não era familiarizada; quando deu de si, estava na parte de trás da casa de D. Matilde Teles, no sítio Miranda; outrora, tinham sido amigas, agora, a política as sepa-rara, o que não impediu que lhe fosse dada, naquele transe, cordial e fraterna acolhida”.

O sítio Miranda a que o padre se refere é hoje o Es-tádio Municipal Governador Virgílio Távora, o Estádio Mirandão, no Crato. De lá, D. Bárbara e o padre Sal-danha seguiram até a cidade de São João do Rio do Peixe, na Paraíba, onde ela finalmente é presa, levada à cadeia pública do Crato e só então enviada a Fortaleza junto com os outros acusados. Os mais de 500 quilô-metros vencidos a cavalo, sob o sol quente do verão nordestino, foram apenas o início de uma dura prova. Segundo o historiador Armando Rafael, o tratamento que os soldados do Império dispensaram a Bárbara e seus filhos durante a travessia, e depois disso, na cadeia, foi o pior possível. “Mesmo quando havia lua cheia, propositadamente paravam o transporte dos presos políticos do Crato ao anoitecer para passar de dia durante as vilas, a fim de que fossem vaiados e apalpados”.

No texto “Tristão Araripe, Alma Afoita da Revolu-ção”, o escritor Oswald Barroso descreve da seguinte forma a Fortaleza que viu chegar os 25 prisioneiros extenuados: “uma cidade de pouco mais de dois mil habitantes, com casas de um só pavimento, pois acre-ditava-se que os sobrados afundariam em seus areais soltos. Embora Silva Paulet já tivesse esboçado seu futuro traçado urbano, não possuía mais de meia dúzia de ruas, todas sem pavimento, duas praças e três igre-jas. Seus principais edifícios eram o Palácio do Gover-no, a Casa da Câmara, a Cadeia, a Casa do Mercado, a Alfândega, o Erário, o Chafariz, o Lazareto e a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção”.

No dia 22 de fevereiro deste ano a deputada Ana Arraes (PSB-PE) apresentou ao Congresso Nacional um projeto de lei que propõe a inscrição do nome de Bárbara de Alencar no “Livro dos Heróis da Pátria”. O livro é uma escultura com “páginas” feitas de metal, onde se gravam os nomes dos heróis nacionais, como Tiradentes, Santos Dumont, José Bonifácio e Zumbi dos Palmares. Também chamado de “Livro de Aço”, a obra repousa no Panteão da Pátria e da Democracia, em Brasília. O Projeto de Lei 522/2011, da autoria da deputada Ana Arraes, está aguardando o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Se for aprovado, fará com que Bárbara seja a primeira mulher inclusa num seleto grupo formado exclusivamente por homens.

PIONEIRA SEMPRE

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Não é correto afirmar que em Fortaleza Bárbara ficou presa numa cela onde mal podia ficar de pé. “Isso é completamente equivocado. Esse lugar era o paiol da pólvora do quartel e D. Bárbara nunca ficou presa ali”, ressalta Armando Rafael Entretanto, quan-do estavam recolhidos no Quartel da 1° linha – entre a cadeia do crime e a velha Fortaleza de Nossa Senho-ra da Assunção – o historiador João Nogueira conta: “Tristão, enfurecido com o tratamento que recebia na prisão, rasgou um braço e escreveu com sangue, em uma mortalha de cigarro: ´hoje, ou amanhã, na ocasião da comida, fugiremos, dê no que der´. E enviou o bi-lhete à mãe, que estava noutra cela”. D. Bárbara com medo das consequências da fuga, faz o bilhete chegar às mãos do governador, que se condói da situação e melhora o tratamento dispensado aos presos.

Em 1820, após quatro anos de encarceramento, Bárbara ganha finalmente a liberdade. Na ocasião, estava presa em Salvador. Passado o período de so-frimento e humilhação, viveria mais 12 anos. Para ela,

foi difícil suportar as mortes de dois de seus filhos, principalmente a de Tristão, em 1824. O corpo da matriarca se encontra enterrado na cidade de Cam-pos Sales, no Cariri. Em Fortaleza, uma placa marca a suposta passagem de Bárbara por um local onde ela nunca esteve aprisionada: o paiol de pólvora do quartel, no interior do que hoje é a sede da 10° Região Militar. uma lenda diz que seus gritos ainda são ouvi-dos pelas altas madrugadas:

Aqui gemeu longos dias D. Bárbara Pereira de Alencar, vítima em 1817 da tirania do Governador Sampaio.

Numa canção de 1976, o compositor Ednardo cor-robora com a lenda: “Hoje ao passar pelos lados/ Das brancas paredes, paredes do forte/ Escuto ganidos, ganidos, ganidos, ganidos/ Ganidos de morte/ Vindos daquela janela/ É Bárbara, tenho certeza/ É Bárbara, sei que é ela”.

Nascida em 1760, Bárbara de Alencar teve cinco filhos, sendo que três deles – José Martiniano (pai de José de Alencar), Carlos José dos Santos e Tristão Gonçalves Pereira de Alencar (mais tarde Araripe) – entrariam com a mãe para a história, presos todos por conspirarem em favor da República. Junto com os insurrectos, Bárbara foi condenada, teve os bens confiscados e vagou de cárcere em cárcere – Crato, Fortaleza, Recife, Salvador – sob condições extremamente precárias.

É inegável a repercussão da Revolução de 1817 em revoltas posteriores que se deram no Nordeste. E, entretanto, em nenhuma outra uma mulher se fez tão presente e foi motivo de inspiração a ponto de se tornar heroína. Na visão do crítico literário Araripe Junior, Bárbara de Alencar era uma mulher escrupulosa, de costumes rigorosamente austeros, “sanguínea e nervosa, tinha assomos irresistíveis, cogitações e deslumbramentos muito além do seu sexo e da educação sertaneja que recebera”. Outros

A CORAGEMDE SER BÁRBARA

historiadores dizem que Bárbara infundiu em seus filhos um ânimo inquebrantável, ensinando-os a não suportar ultrajes.

Entre o mito e a verdade, configura-se o contorno da matriarca sertaneja. “Do ponto de vista do imaginário social brasileiro, a figura da matriarca mostra até hoje uma enorme vitalidade. Não há nordestino que não conheça pelo menos a história de uma dessas mulheres, corrente na família ou de casos narrados por terceiros. Em certas regiões, chegam as matriarcas a fazer parte do patrimônio cultural local”, comentam Rachel de Queiroz e Heloísa Buarque de Hollanda, num texto em que analisam as façanhas das matriarcas, entre as quais se filia Bárbara.

A heroína de 1817 teria sido, nas palavras das autoras, uma dessas raras mulheres “semi-lendárias, proprietárias de terra e gado no interior do sertão, longe das pretensões fidalgas das Casas Grandes da zona açucareira”. Mulheres que “levavam uma vida rústica relativamente distante dos padrões culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral nordestino. No sertão, exerciam grande poder de liderança, tendo controle total de seus feudos regionais”.

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“heroÍna CoiSÍSSimanenhuma”

Contrariando a historiografia oficial, o pesquisador Ar-mando Rafael possui uma visão controversa sobre o envolvimento de Bárbara nos acontecimentos de 1817. Segundo ele, a participação da matriarca do Crato foi bem menor do que se divulga. O estudioso explica: “A história é sempre escrita pelo vencedor. Qual o regime vigente no Brasil? O regime republicano. A República é oriunda de um golpe militar, o primeiro de uma longa série que houve no Brasil, e como a imprensa precisa-va de um ícone, nada melhor que uma mulher corajosa, simpática, que foi a primeira presa política e que a partir daí começou a ser tratada unicamente como a heroína Bárbara de Alencar”.

Armando Rafael, que é autor da biografia “Os dois Leandros” e tem vários trabalhos sobre a história regio-nal publicados nas revistas “Itaytera” e “A Província”, cita o livro “Apontamentos para a História do Cariri’, de João Brígido, para sustentar a tese de que Bárbara não teve tamanho destaque antes da proclamação da República. “Basta ler o livro, escrito na cidade do Cra-to em 1888. Ele restringe o episódio da Revolução de 1817, aqui no Crato, ao mínimo, sequer cita Bárbara de Alencar”. O historiador situa a participação de Bárbara apenas como anfitriã de um jantar elaborado para an-gariar adesões à Revolução. “Conta-se que ela matou cinco capotes e abriu duas garrafas de vinho, das quais foi tomada apenas uma”, diz Armando Rafael.

O fato mais substancial para basear seus argumen-tos seria a falta de provas contra Bárbara e o título de heroína que lhe outorgaram. “Quando houve a contra-revolução e o juiz Joaquim Teles chegou para apurar os crimes, não encontrou nenhuma acusação sobre a participação de D. Bárbara. O titulo de heroína foi dado a ela em 1810, sete anos antes da revolução acontecer. Quem deu esse título foi o padre Arruda Câmara, um padre republicano que foi fundador da Maçonaria em Pernambuco. Ele escreve: ´D. Bárbara do Crato deve ser vista como heroína´. Isso em 1810”.

Apesar de não concordar com a fama dispensada a Barbara de Alencar, Armando faz questão de salien-tar seu caráter pioneiro. “Ela tinha qualidades? Muitas qualidades. Ela era uma pessoa decidida. Imaginar que no século XIX – uma época em que uma mulher só tinha direito a dizer três coisas: ‘cala’boca menino’, ‘xô gali-nha’ e ‘sim, senhor’ para o marido – por ela conseguir se projetar significa que não era uma mulher comum”.

Falar sobre Bárbara e de todos os eventos que sucederam no Cariri em 1817 sempre deu margem a debates e foi motivo para arroubos. Para a maioria da população cratense, Bárbara de Alencar, quando mui-to, é apenas um nome de rua. Nome que se perdeu no tempo e que nada significa. Mas para o estudante que tira fotos da casa sem graça, no local onde um dia se tramou uma revolução, Bárbara de Alencar ainda pode dar algumas lições. “Quem ia dizer que uma mulher nordestina, daquela época, seria uma revolucionária?”, pergunta-se Victor Rocha, estudante universitário. Ele mesmo resume: “Sabe o que eu acho? Eu acho que Bárbara serve de exemplo”.

A Casa Grande da Fazenda Caiçarafica a 15 km da sede do município de Exu. A via de acesso é a PE-122 (rodovia Asa Branca), sentido Exu-Bodocó. Os turistas devem entrar em contato com a Secretaria de Cultura, Turismo e Desportos (R. Cel. João Carlos, 64. Tel: 087.3879.1397), a fim de agendar a visita.

SERVIÇO

RAFAEL VILAROuCA

Armando Rafael: visão controversa

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durante toda a semana uma multidão baru-lhenta e animada de alunos com os mais diferentes sotaques invade os vários nú-cleos da universidade Regional do Cariri,

a urca, sediada nos municípios de Crato, Juazeiro do Norte e Santana do Cariri, com unidades também em Iguatu, Missão Velha e Campos Sales.

São estudantes em busca dos cursos de gradua-ção, programas especiais e pós-graduação lato sensu oferecidos pela instituição de nível superior mais anti-ga da região, que acaba de incluir em sua grade o pri-meiro doutorado interinstitucional do interior do Ceará, em Bioquímica Taxológica. O campus do Pimenta, no Crato, onde funciona a Reitoria, é o que concentra o maior número de alunos.

Na vizinha cidade de Juazeiro do Norte as institui-ções públicas e privadas oferecem, juntas, mais de 50 cursos. uma delas é a universidade Federal do Ceará-uFC, cuja trajetória regional começou, na realidade, em Barbalha, com a abertura do curso de Medicina. Em Juazeiro fica o campus com maior número de cur-sos. Essa estrutura abrigará em breve a universidade Federal da Região do Cariri (uFCA) – conforme prevê o programa de expansão das universidades federais no país, sob responsabilidade do MEC.

As demais instituições são a Faculdade Leão Sam-paio de Ciências Aplicadas, credenciada em 2001; a Faculdade Paraíso (FAP), há mais de quatro anos em funcionamento; a Faculdade de Juazeiro do Norte (FJN), que iniciou suas atividades em 2003 e a Facul-dade de Medicina de Juazeiro do Norte (FMJ), primei-ra a oferecer ensino médico privado no Ceará.

Juazeiro também possui um Campus Avançado de Difusão Tecnológica da universidade Vale do Acaraú (uVA). No Crato, a Faculdade Católica do Cariri oferece graduação em Filosofia e pós-graduação em Gestão Empresarial, Docência do Ensino Superior e Bioética.

Maior centro universitário do interior, o Cariri atrai,

Com o diploma na mÃo

ano após ano, centenas de estudantes das cidades vizinhas e dos demais estados nordestinos. Todos em busca de formação superior, horizontes de vida mais amplos e novas chances de crescimento no mercado profissional. Este cenário peculiar sugere grandes trans-formações numa terra cujas fronteiras educativas se ex-pandiram consideravelmente em apenas uma década.

“Antes, para fazer um curso superior, nós tínhamos que deixar a região. Quem não possuía tantos recursos tinha que se conformar com os poucos cursos que havia aqui. Hoje não. Eu posso fazer uma faculdade de Jornalismo, o que era impensável há dois anos, pagando só uma passagem de ônibus para Juazeiro”, comemora o estudante Márcio Oliveira, do Crato, que almeja entrar para o curso de Comunicação Social da uFC-Campus Cariri.

Questionado sobre o panorama atual, o presidente da Faculdade Leão Sampaio, Jaime Romero, vislumbra uma razão muito simples para a região ter se transfor-mado num centro aglutinador de estudantes universitá-rios: “No Brasil, pouco mais de 10% da população teve acesso ao ensino superior, então havia uma demanda reprimida. Nós sabemos que não existe desenvolvi-mento sem investimento em educação. No Cariri, há 10 anos, só tínhamos a urca, e especializada na formação de professores, não nas áreas de Negócios e Saúde”.

Se a demanda reprimida levou a uma competição pelos melhores lugares em sala de aula, a professora Faustina Loss Justo, moradora do Crato, considera que é preciso precaução contra o excesso. “A principio isso é ótimo, ter tantos cursos e faculdades no Cariri, mas é preciso cuidado com a qualidade. Não adianta ter uma demanda enorme de faculdades se não pudermos atestar seu desempenho”. Sem discordar de Faustina, Jaime Romero aposta na consolidação de um polo universitário de referência no interior do Nordeste, com as diversas Instituições se esforçando em prol da qua-lidade do ensino.

#caririeducação

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“Jamais o foco e a prioridade devem ser a comer-cialização da educação. um pensador já disse: ´edu-que as crianças e não precisará reprimir os adultos´. Pois minha citação é: semeie educação e colherá prosperidade”. Para Romero, essa máxima poderia ser equacionada em “menor desigualdade social com melhor distribuição de renda, menos recursos públicos aplicados em programas sociais assistencialistas e, em especial, população capacitada para competir em melhores condições com os grandes centros”.

No texto “Economia do Conhecimento”, o profes-sor Ladislau Dowbor (PuC-SP) defende que o repasse de conhecimento é um novo fator de produção: “uma vez produzido, o conhecimento pode ser divulgado e multiplicado com custos extremamente limitados. Contrariamente ao caso dos bens físicos, quem repas-sa o conhecimento não o perde. O direito de acesso ao conhecimento torna-se assim um eixo central da democratização econômica das nossas sociedades”.

O reitor da uFC, Jesualdo Farias, traduz o conceito na prática: “Profissionais estão sendo formados e inse-ridos no mercado, contribuindo para o desenvolvimen-to local. É visível o impacto positivo da implantação do campus da uFC sobre o desenvolvimento econômico,

Um dos fatores que ajudam a explicar a explosão de instituições de ensino superior na região é o aquecimento da economia. Segundo a Fundação Getúlio Vargas, entre 2003 e 2008, algo como 32 milhões de brasileiros ascenderam à classe média no Brasil (classes A, B e C). Já os dados do instituto Ipsos Public Affairs apontam que apenas em 2010 quase 31 milhões de brasileiros melhoraram de nível social. Desse total, cerca de 19 milhões saíram das classes D/E e engrossaram a chamada grande classe média, a classe C. Perto de 12 milhões de pessoas pularam da classe C para as classes de maior poder aquisitivo (A/B).

De cinco anos para cá, portanto, a estratificação social do Brasil abandonou o antigo formato de pirâmide – típico dos países pobres – para adotar a figura geométrica de um losango, que expressa um equilíbrio mais próximo dos países desenvolvidos. A grande mobilidade social resultante do aumento da renda gerou na população brasileira a expectativa real de uma vida melhor, algo que alguns pesquisadores e sociólogos estão chamando de brazilian way of life. E nada expressa melhor essas novas expectativas que o aquecimento da oferta de cursos universitários.

Isso dito, é bom lembrar: mesmo com as boas perspectivas, os números de hoje carregam os problemas de ontem. O Brasil traz no peito um fosso que separa grande parte de sua população da educação superior, e o Ceará ocupa um lugar nada honroso neste ranking acadêmico. A disparidade entre as vagas das universidades e o número de habitantes é imensa: 5,7 vagas para cada grupo de 10 mil pessoas. A meta é chegar pelo menos a 10 vagas para 10 mil habitantes.

notadamente nos setores imobiliário e de serviços, gerando emprego e renda para população. É possível contabilizar ganhos sociais a partir dos trabalhos de extensão e das atividades artísticas e culturais desen-volvidas pela comunidade”, pontua.

A INSTITuIçÃO PIONEIrAE umA NOVA uNIVErSIDADE Dentre as universidades da região, a urca é a pioneira. Foi criada em 1986 e instalada no ano seguinte. Man-tém em Santana do Cariri o Museu de Paleontologia, e sua estrutura organizativa está ligado ao Geopark Arari-pe. A universidade pública oferece diversos programas e cursos, além de um doutorado em Bioquímica Taxo-lógica e um mestrado em Bioprospecção Molecular, que pretende formar professores e pesquisadores de altíssimo nível, atuantes nas áreas de Bioquímica,

BRAZILIAN WAY OF LIFERA

FAEL

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A urca é a mais antiga da região

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Biologia Celular e Molecular, Farmacologia, Botânica Aplicada e outros. Trata-se de um dos únicos cursos de pós-graduação stricto sensu no interior do Nordeste.

Já o campus da universidade Federal do Ceará ini-ciou suas atividades no Cariri com o curso de Medicina em Barbalha, há 10 anos, e conta hoje com 11 cursos de graduação, um curso de mestrado em Desenvolvimen-to Regional Sustentável e outro, em Agronomia, apro-vado para começar no início de 2012. Vários projetos de pesquisa e de extensão envolvem as temáticas do cotidiano da região, que agora se prepara para mais um salto. “Durante estes 10 anos, criaram-se as condições necessárias para se pensar em um projeto maior, o de transformação do campus em uma nova universida-de”, informa o reitor Jesualdo Farias.

Já anunciada oficialmente pela presidente Dil-ma Rousseff e pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, a universidade Federal da Região do Cariri (uFRC) aproveitará a atual estrutura da uFC, que se divide entre as cidades de Juazeiro, Crato e Barbalha. Afora as unidades do Crajubar, a nova instituição terá campi em Icó e Brejo Santo, além de instalações em Crateús e Russas. “Este tem sido um grande anseio da comunidade caririense, agora contabilizado como uma conquista. Já estamos trabalhando no processo de criação da universidade, que será realizado com a par-ticipação da comunidade universitária da uFC no Cariri e de representantes dos diversos setores. Descortina-se um futuro brilhante, de uma universidade que nas-ce com a marca de uma das melhores instituições de ensino superior do país”, comemora Jesualdo Farias.

A expectativa é que a universidade Federal do Ca-riri seja inaugurada até 2014. Alunos e professores já se mobilizam em torno da estruturação desta que será a terceira universidade federal do Ceará. “A princípio questionamos a notícia, por ter sido dada sem grandes

discussões de base, embora já houvesse um debate interno. Mas é uma notícia boa. Ter uma instituição des-sas no Cariri sempre foi um projeto de muitos. Ganha-mos uma universidade, e imediatamente, dois campi, em Icó e Brejo Santo, além de mais 12 cursos. Então é uma grande vitória, porque as pessoas da região terão acesso ao ensino superior gratuito sem se deslocarem para longe”, afirma Fanka Santos, professora do curso de Biblioteconomia da uFC.

CIÊNCIA mÉDICA E uNIVErSOSPArTICuLArES O Cariri é o primeiro centro credenciado no interior do Norte e Nordeste a realizar transplantes de rins. É tam-bém uma das regiões brasileiras que mais fez trans-plantes nos últimos anos. Em abril a região ganhou um avançado Hospital Regional, que fica em Juazeiro do Norte, estrategicamente localizado entre os mu-nicípios de Barbalha e Crato, para facilitar o acesso à população dos 41 municípios da macrorregião do Cariri e das microrregiões de Iguatu e Tauá.

Grande parte da mão-de-obra necessária ao fun-cionamento do polo de saúde caririense é formada na própria região. Em Barbalha, o curso de Medicina da uFC conta hoje com 240 alunos e 74 professores, sendo 25 efetivos. Antes disso, a região já contava com uma instituição particular na área, a Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte (FMJ). Implantada

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fanka: experimentações no laboratório de Afetos

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em 1998, a FMJ recebeu sua primeira turma em 2000. Hoje, já é responsável pela formação de mais de duas centenas de médicos.

Tuiane Alves, estudante do 2° semestre, é uma dessas futuras profissionais de saúde: “Sou do Iguatu e estou adorando morar no Cariri. Eu faço parte da pri-meira turma que teve acesso à Faculdade pelo FIES”, diz ela, acrescentando com entusiasmo que “está sen-do uma experiência maravilhosa estudar em um lugar em que eu tenho tudo à disposição. Acho que ao abrir as portas para o aluno que não poderia pagar, a Facul-dade permite o encontro de mundos diferentes”.

Esses mundos diferentes foram vivenciados, em parte, pelo estudante Pedro Paulo Nunes, ex-aluno de História na urca, que hoje cursa o 1° semestre de Fisiote-rapia na Faculdade Leão Sampaio, entidade privada de ensino superior: “Eu sempre gostei da área de Saúde. Como não havia antes esses cursos aqui, fiz História, gostei da urca e fui ficando. Mas com a chegada dos novos cursos, aproveitei para fazer o que sempre quis”.

Pedro põe na balança o que aprendeu nessa tra-vessia. “Tenho conhecimento tanto da faculdade pri-vada quanto da pública. Na pública a gente tem uma experiência formidável com coisas antes impensáveis, como política partidária e estudantil, participação em congressos e discussão de temas que serão bandeira de luta dos estudantes em todo país. Já no ensino par-ticular, a boa estrutura oferecida é indiscutível”.

uma dessas instituições privadas, a Faculdade de Ciências Aplicadas Leão Sampaio oferece treze cursos de graduação, dentre os quais Administração, Fisiote-rapia, Gestão Comercial, Serviço Social e Odontologia. “A faculdade está hoje no seleto grupo das melhores instituições do país, segundo dados do MEC/INEP. Isso se deve principalmente ao sucesso que os egres-sos têm tido no mercado de trabalho, concursos e processos seletivos para mestrado e doutorado, entre outros”, afiança o presidente Jaime Romero.

Para ele, os profissionais formados estão criando uma nova ordem regional, envolvendo as indústrias, o comércio, o 3º setor e os serviços de saúde. “São mu-danças significativas, com a adoção de novas tecnolo-gias e novos conceitos de gestão. A faculdade foi uma das maiores geradoras de empregos em funções de alto valor agregado. São mestres e doutores, médicos, dentistas, administradores, consultores financeiros... Os salários são gastos aqui. Considerando que 60% dos alunos vêm de fora do eixo Crajubar, há uma gran-de atração de investimentos e aportes financeiros nos diversos setores: imobiliário, restaurantes, comércio...”

Já a Faculdade Paraíso (FAP), também funcionan-do em Juazeiro, possui cursos de Direito, Administra-ção e Informática. um dos destaques é o Núcleo de Prática Jurídica – NPJ, muito utilizado por estudantes como Stefani Dantas, aluna do 10° semestre de Direi-to. “Eu sou de Mauriti e vim ao Cariri para estudar por motivos óbvios. Aqui é onde estão as melhores facul-dades e as maiores oportunidades de emprego. Os professores não faltam, a biblioteca é ótima, com um acervo diversificado, e a dedicação dos funcionários é evidente. O preço das mensalidades, porém, ainda é uma barreira para muita gente que não pode pagar”.

Ainda que não seja acessível a todos, o ensino su-perior vem abrindo novos horizontes numa terra que já se acostumou a ser pioneira em muitas frentes. Que o diga Leda Pinheiro, professora do curso de Psicologia da Leão Sampaio: “É formidável ver o quanto o Cariri se expande em educação. Quando eu tive que fazer meu curso universitário, não tinha escapatória, tinha que sair daqui para estudar, e isso é muito dispendioso. Hoje não. O aluno que quiser ficar no Cariri sabe que terá cursos variados e de qualidade, inclusive com a oportunidade de desenvolver pesquisa e extensão nas universidades privadas”.

Jaime Romero: é possível investir em qualidade

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Os alunos estão em círculo. Alguns estendidos no chão, outros sentados em cadeiras, muitos apoiados na parede. No meio da sala de aula, frutas que eles mesmos trouxeram para compartilhar com o convidado da semana, que pode ser um músico, um poeta, uma prostituta, um artesão, uma celebridade ou um ilustre desconhecido. Quinta-feira é dia de LATA, o Laboratório de Troca de Afetos criado pela professora Fanka Santos, da UFC-Campus Cariri.

O LATA é uma experiência instigante que funciona como parte da disciplina de Cultura e Mídia, nos cursos de Biblioteconomia e de Música da UFC. Começou em 2006, como projeto de extensão, sob o impulso de proporcionar aos alunos uma profunda troca de experiências com habitantes de diferentes universos.

“Cada pessoa, com a sua trajetória, vem como testemunha da cultura para nos afetar. O ´afetamento´ aí tem dois sentidos: o da criação de laços de afeto e o de impacto na vida dos outros: afetar para que eu possa modificar a minha

UM LABORATÓRIODE AFETOS

visão de mundo”, teoriza Fanka, professora, pesquisadora, mestra, doutora e membro da Sociedade dos Cordelistas Mauditos. Nascida em Juazeiro do Norte, são dela os livros “Água da Mesma Onda: a Peleja Poética Epistolar Entre a Poetiza Bastinha e o Poeta Patativa do Assaré”, recém lançado, e “Romaria de Versos: Mulheres Autoras Cearenses”, premiado pelo Edital das Artes da Secult, além de muitos títulos de cordel.

Na prática, o laboratório de experiências humanas funciona assim: os convidados, ou testemunhas da cultura, são introduzidos em sala de aula, tomam café com os alunos, desfiam suas vidas, mapeiam trajetórias, despertam reflexões, saciam curiosidades. Trocam afetos. Alguns tocam, dançam, recitam. Tudo fotografado e filmado, na intenção de que os momentos vividos, as “poéticas da pessoa”, gerem pequenos documentários. O rico acervo de imagens está prestes a ser editado graças a um convênio com o Sesc.

Nesses muitos anos de LATA, a lista de convidados é extensa. Houve troca de afetos com a escritora Ana Miranda, o poeta Chacal, o gaitista e bluseiro Jefferson Gonçalves, a historiadora Lia Calabre (da Fundação Casa de

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Rui Barbosa), a arqueóloga Conceição Lopes (da Universidade de Coimbra), o pesquisador Daniel Walker, o arquivista Renato Casemiro, o xilógrafo José Lourenço e muitos outros.

“Atores, atrizes, bailarinos – todo mundo nos interessa, Quando a convidada foi Silvana, cafetina e dona de bordel, os outros cursos quase esvaziaram, porque os alunos vieram vê-la. Cada convidado tem a sua potência, e essa potência é um arquivo de afetos. São pessoas interessantes que sempre deixam alguma coisa para nós”, avalia Fanka, explicando que quando um escritor é chamado, os alunos são incentivados a ler sua obra. “O LATA mexe com a experiência da subjetividade, de descobrir coisas, é algo valoroso”.

Formada em Letras pela Urca, Francisca Pereira dos Santos, a Fanka, fez mestrado em Sociologia (UFC) e doutorado em Literatura e Cultura (UFPB). Apesar dos títulos, nunca esteve em conformidade com as regras. “Eu fui uma aluna inquieta e me tornei uma professora não-convencional. O ensino brasileiro é totalmente descontextualizado da realidade. Acho que é preciso implodir todo o sistema escolar. Não dá pra fazer reforma, tem que criar um novo”, sentencia ela, que este ano vai pela quarto vez

à França, para visitar a Universidade de Poitiers, onde funciona o maior centro de cordel da Europa. “Eu pesquisei literatura de cordel e fiz minha bolsa-sanduíche lá”, explica a professora, que também é cordelista e acaba de lançar um livro sobre a correspondência entre Patativa do Assaré e a poeta Sebastiana Gomes de Almeida Job, a Bastinha, um dos maiores nomes da área.

Sempre apaixonada, Fanka explica: “Um dos discursos da historiografia é que mulher não faz cordel, não faz poesia. Sempre fez! Mas como estava num espaço privado, os versos ficaram na gaveta. Se você pega mulheres como Salete Maria da Silva, Bastinha e Josenir, você pira! São dez mil vezes melhores do que todos os grandes homens do cordel. A melhor produção de cordel, para mim, é de autoria feminina, com exceção de Patativa”.

Para a criadora do LATA, o grande desafio dos professores é fazer os alunos olharem para a sua cultura e o seu papel no mundo. “A universidade antes era um local de reflexão. Hoje não é mais. Apenas forma pessoas para o mercado. É preciso transformar a universidade num território de prazer, de trocas, de afetamentos, considerando as experiências e trajetórias de cada um”, finaliza.

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DANIELpeiXoto

Por Kiko Bloc-Boris

tem Fome de ViVer!

Desbravador de fronteiras em direções e sentidos amplificados, Daniel Peixoto se define um artista livre. “Fazer música eletrônica de boa qualidade, mixada a ritmos e elementos tropicais, me dá uma visibilidade

diferenciada. Essa é a ideia!”, situa o jovem músico cearense, que nunca negou as raízes caririenses nem temeu alastrar-se em variadas mixagens pelas esferas globais do universo pop. Em carreira solo, o popstar

nacional desde a banda electropunk Montage – formada por ele em 2005 e com a qual rodou meio mundo até meados de 2009 – se desligou do duo para conectar-se melhor consigo, temperou as células criativas com condimentos nacionais e lançou o primeiro

disco solo, “Mastigando Humanos”, em abril deste ano. Pouco depois zarpoupara a Europa, dilatando horizontes.

#cariripersona

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de Amsterdã, na Holanda, onde gira em temporada, ele emplaca êxitos pelo Velho Continente. O álbum de estréia virou dois discos em difusão por um selo francês. Sem

desplugar das redes sociais, abocanha com gula novas composições mundo afora. É de lá, e pela Internet – o meio democrático em que se divulga e disponibiliza os sons e imagens que lhe erigiram a fama –, que o moço de 20 e alguns anos alardeia um sonoro tropicalismo bem casado à música eletrônica, e lembra das vivências e ini-ciações nas artes pelas terras do Sul do Ceará.

Filho da cratense Valéria Peixoto com o carioca de ascendência alemã Oswaldo Moellmann Cordeiro de Farias, Daniel Peixoto nasceu em Fortaleza. Ainda no colo foi para o Rio de Janeiro e aos três anos chegou ao Crato, onde permaneceu por uma década. Estudou nos colégios Diocesano, Pequeno Príncipe e Nosso Mun-do, habilitando-se no canto, dança, teatro e coral pela Sociedade de Cultura Artística do Crato. Com 11 anos já viajava como ator de teatro. Para Daniel, “o Cariri repre-senta um caldeirão cultural de etnias. De lá retirei toda a vontade de ser artista e as primeiras referências, em todos os sentidos, música, artes plásticas, cênicas...”.

Em casa, na escola, nas ruas caririenses, DP de-glutiu influências, assimilou manifestações e alicerçou

o futuro nos ambientes artísticos. Os amigos da mãe “eram na maioria atores, bailarinos, poetas, cantores. Estar no meio deles me deu uma bagagem de estímu-los. Cresci vendo Abdoral e Pachele Jamacaru can-tarem, Elina Sousa dançar, João do Crato em perfor-mances absurdas com aquele visual único”, remonta. Na trajetória pessoal, não se censura de expressar o que pode unir pela música. Ecoa com escrachos, ar-remates visuais e esculachos, as transgressões sem agressões que lhe propagaram como um cantor per-formático, andrógino, que se maquia, usa vestidos. O que prega é diversão, diversidade, verdade e coragem.

“Madonna e Bowie serão sempre fontes inesgotá-veis de inspiração”, identifica Peixoto, para se alongar em extensões atentas. “Estou muitíssimo influenciado por nomes novos, como IAMX, Placebo e Ladytron, mas adoro os sons brasileiros da Gaby Amarantos e essa ga-lera do ‘guetho paraense’... Sou uma mistura, graças a Deus!”. A variedade já rendia ao obstinado adolescente, que em 1999 veio morar na capital. Em Fortaleza mo-delou a persona de facetas nonsense-sexy-bagaceira, com ar romantic-freak-clubber-outsider. Na paixão pela música, especialmente a eletrônica, desdobrou ligas, armou-se com o Montage, emigrou em 2005 para São Paulo, fez rádio, atuou como DJ e, sem raias pré-estabe-lecidas, fez-se celebridade na TV e na Web.

Carismático, DP transmuta-se nos cortes e colori-dos dos cabelos, roupas e adereços. Ama a expressão corporal, que evidencia nas tatuagens e no desnuda-mento em cena. “Hoje o personagem sou eu exagera-do. É o Dani x 4 para o palco e vídeos”. Mas reconhece: “Se a música não for boa, sólida, não há roupa, foto ou desempenho que sustentem um trabalho. Moda e hype passam, músicas boas ficam”. Resume então: “Minha voz está melhor, a performance tem amadurecido. Con-tinuo apostando na atenção da audiência, só que aliado a uma musicalidade mais sólida e com mais identidade pessoal”. No comando da trilha, o sertanejo cosmopoli-ta brada que “tudo fica mais lindo misturado”.

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NOVAS mONTAGENSNo Montage, Daniel conheceu bem as facetas afáveis e contrastantes do sucesso. Ele e o parceiro Leco Jucá pousaram em todos os estados do Brasil, fizeram sho-ws, se exibiram em festivais dentro e fora do país. Elei-tos pela Folha de SP o melhor show do Brasil, em 2005 e 2006, também venceram por júri popular os prêmios London Burning de Melhor Artista em 2007 e o HellCity de Melhor Show em 2008. Tocaram ao lado de bandas e músicos do naipe do Justice, Digitalism, The Killers, Artick Monkeys, Hot Chip, Supergrass, Stereo Total, Neon Judgement e Gang of Four. Peixoto tem “mui-tíssimo orgulho de ter dividido palco com artistas que me influenciaram bastante, como Björk, Prodigy e The Cardigans, parece surreal na minha cabeça até hoje”.

O fim amigável da banda em 2009 não esmae-ceu excitações passadas. Daniel, que já se destaca-va como “maravilhoso”, “o novo David Bowie” para o jornalista inglês Peter Culshaw do The Guardian, também era apontado no site pessoal do astro Justin Timberlake como “um encontro entre Shine Toy Guns, Prodigy e a paixão tipicamente brasileira”. Ao trilhar no-vas e independentes veredas, lembra que no Montage seu forte era a performance ao vivo. “Ficava meio com vergonha de interferir nas ideias do meu parceiro Leco Jucá, um músico profissional e excelente produtor”, confessa, recordando que musicalmente era “quase regra o grupo não soar brasileiro, não ter referências locais”. Para o trabalho solo decidiu adubar faixas com sonoridades brazucas e regravou “Raio de Fogo” e “I Trut My Dealer”, que já rolavam nas apresentações e gravações do duo. “Agora sim, estão exatamente como gostaria que fossem”.

SOLOS PArA rENOVAçÕES!A independência e energia de Daniel Peixoto multi-plicaram-se na busca da identidade artística própria. Apresentações com seu nome à frente, incursões como DJ e hostess de festas, aparições na TV e edi-torias de moda, tudo fluiu no sedimentar da fase solo. A empatia persuasiva e o dom de aglutinar repercutiam em parcerias com novos e tarimbados DJs, produtores de música eletrônica, diretores, fotógrafos e um arse-nal de profissionais. A latinidade vibrava nos embalos do músico-cantor, que arquitetou interseções vocais em português, inglês e nos dialetos dos badalos no-tívagos, amalgamando percussões e brasilidades com batidões eletrônicos. Toda a arregimentação convergiu na diversidade de estilos musicais e na comunhão de participações do álbum solo. Mas incursões anteriores já vinham com tais contornos.

Em outubro de 2009, o happening melodioso de Daniel com guitarradas paraenses, lundus tecnobre-gas e outras cadências ecoavam em apelo irrecusável a convocar fãs, amigos fashionistas e ferventes festei-ros em Belém para a filmagem do clipe de “Come to Me”. Exibido em abril de 2010, inicialmente com exclu-sividade pela MTV Brasil (onde DP é um queridíssimo colaborador desde que surgiu no mapa pop nacional), marcaria a temporada independente, deflagrada com o lançamento do primeiro single, que imprimiu e moti-vou outras tantas promoções à nova fase.

O álbum com 16 versões diferentes de “Come to Me” traz cada faixa trabalhada por uma nata de aliados, entre eles Luca Lauri, Leco Jucá, DJ Chernobyl, Killers on the Dance Floor, Database e Camilo Rocha, a partir da base lírica entoada a cappella por Daniel, que flama a uma memorável intimidade. Ainda em junho de 2010, ele confirmou o poder conclamatório ao cantar ao vivo para uma multidão de 3,5 milhões de pessoas na maior parada gay do mundo em SP, para a qual compôs “Sin-ta o Amor em Mim” e juntou no trio elétrico ostentado com seu nome uma considerável trupe de artistas.

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O cariri presente no novo disco, “Mastigando Humanos”

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“mASTIGANDO HumANOS” =“SHINE” + “DON’T GIVE uP”Embriões concebidos, Daniel estava preparado para solar, bem acompanhado. Em abril, o álbum “Mas-tigando Humanos”, com 12 músicas inéditas, duas novas versões de hits e um encarte recheado de refe-rências ao Cariri, saía nacionalmente pela Fora do Eixo Discos em parceria com o site Toque no Brasil, que se ateve ao preceito de DP e torna públicas as músicas para download, vídeos, fotos e biografia pelo link www.danipeixoto.tnb.art.br.

O título do CD até sugere leituras antropofágicas. Todavia vem mesmo do romance psicodélico de Santia-go Nazarian, escritor amigo, que também assina a letra da canção homônima. A deglutição voraz à qual Daniel se refere tem mais a ver com as próprias sendas exis-tenciais. Desde que saiu do Crato para tentar a vida e atentar às artes, diz que não fez muito além de absorver, degustar e digerir provas humanas, alheias e pessoais.

Na mescla de programações eletrônicas com per-cussões e incidências regionalistas, Peixoto compôs um saladão rítmico que chama “electro-brega-industrial-pop-punk-tropical”. Liga trip hop, menções às sonorida-des 90’s e vertentes do rock com sotaques nacionais no estrondo de pandeiros, atabaques, “um tamborzão mais frenético”, elementos de samba, macumba, ca-rimbó, tecnobrega e forró para refrescar o fundamento eletrônico. O ecletismo na pluralidade do trabalho e “a participação de muita gente bacana” não abreviam a capitania de Dani em “Mastigando Humanos”.

Sempre confessional, DP é um catalisador do que vive, um amplificador do que o cerca. Abre o disco na delicadeza embalada de “Olhos Castanhos”, romantiza com a viajante “A Fish Alone” e começa a acelerar na inequívoca brasilidade melodiosa, sexual e bem humo-rada de “Flei”. A canção-título do disco evidencia as

farragens mandatórias, que não abrandam em “Shine”, quando se une ao luzente vocal de Nayra Costa para chamar às pistas. E a levada caliente ecoa no acelera-do hit “Come to Me”.

Dani amaina na declarativa “My Love Has Green Lips” e mareja pop nas ondulações híbridas de “Praia do Futuro”, que também sapecam em “Raio de Fogo”, com participação de Thalma de Freitas (vocalista da Orquestra Imperial). Na entusiástica “Don’t Give up”, divide créditos com o rapper Xis e Clowie de Wolf. A diversão bomba na descarada “Eu só Paro se Cair”, e “I Trust My Dealer” volta com novos arranjos e efeitos, antes do agitado remixe de Discokillah para “Come to Me” ganhar os apaziguamentos de despedida da acalentadora “Desacelerando”, com backing vocal da também cearense Laya Lopes.

EurO DISCO“Mastigando Humanos” mal começava a ser devora-do no Brasil, elogiado pelas revistas Rolling Stones e MixMag, abalizado por sites como MadDecente do Dj Diplo de NY, e Daniel já seguia em excursão por Paris e Berlim. Tendo garantido o lançamento digital do traba-lho pelo selo francês Abtjour Records, com distribuição pela inglesa Pias Records (a mesma de artistas como Adele, Radiohead e Massive Attack), ele explica que “o label francês decidiu dividir o disco em dois por acre-ditar que 14 faixas seria muito para um lançamento na Europa, já que a maioria lança EPs”.

Batizada “Shine”, nome fácil, curto e com o apelo pop que a canção confere, no dia 18 de julho saía na Europa a primeira versão compactada do CD, que traz a faixa homônima, além de “Flei”, “Eu só Paro se Cair”, “Come to Me” (Discokillah remix) e “I Trust my Dealer”. DP, que grava clipe de “Shine” com uma equipe “mui-to competente na Holanda”, adianta que “em alguns

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meses lanço o segundo disco, ‘Don’t Give up’, com as faixas que ficaram de fora do primeiro e umas inéditas que já produzo”.

A gingada no exterior era prevista pelo artista. “Cer-teza, meu disco foi feito pensado bastante no mercado gringo”. Os preparativos para apresentar algo que soas-se diferente e se encaixasse comercialmente valeram. O selo europeu fez parceria com a Microsoft e o MSN, disponibilizando gratuitamente a faixa de “Shine” para baixar na página de abertura dos sites ligados às empre-sas em cinco países europeus, “o que aqueceu as ven-das do álbum e divulgou o meu trabalho”, saúda Peixoto.

Daniel renova visto pelo Brasil e vem a Fortaleza no dia 08 de outubro lançar “Mastigando Humanos”. Mas vale ficar atento à onipresença de DP pela Web, onde posta novidades, roteiros, vídeos, fotos e as próximas cenas, como no perfil artístico do Facebook (http://www.facebook.com/danielpeixotobr), no twitter @DaniPeixoto e em outras instâncias do seu mundão interligado: http://www.danipeixoto.tnb.art.br; http://danielpeixoto.tumblr.com/; http://www.myspace.com/danipeixoto; http://www.soundcloud.com/danipeixoto.

ÚLTImAS PELO CArIrIO regresso ao que realmente importa a Daniel incluiu revisitas às fontes, alusões e ilações ao seu Cariri. “Minha última passagem pelo Crato foi em outubro de 2010, quando votei pra presidente e aproveitei para fotografar o encarte de ‘Mastigando Humanos’ e gra-var um videoclipe inédito”. O clipe, recém-lançado, é o da canção “Olhos Castanhos”, em que Daniel entoa com legitimidade pessoal, sob batidas compassadas, tocantes confissões, invocando um penitente que se flagela para se regenerar, reconstruir, sobreviver.

No filme, o brincante popstar cearense se reconec-ta com as riquezas e ambiguidades de manifestações religiosas e culturais caririenses, numa espécie de pre-ce pelos cenários de onde artisticamente emergiu. Em

meio às simbólicas imagens do artesanato de Mestre Noza, num santuário caseiro, aos pés da estátua do Padre Cícero e em dançantes conjunções com folgan-ças locais, o moderno retirante nordestino despe-se, literalmente e em orações. Vestido em trajes folclóricos e na t-shirt estampada com “Juazeiro do Norte”, evoca uma ode à estranha São Paulo, outro palco familiar de tantas cheganças.

EurOPEANS NIGHTLIFES E CONTATOS EXTrATErrENOSEle canta e avisa em português mesmo: “Eu só paro se cair”. E se cair vai até o chão, levanta, dá a volta por cima, por baixo, mas parar não pára não. Tudo rola su-per bem no solo europeu. O primeiro disco emplacou, logo renderá repercussões no lançamento sequencial da segunda parte do trabalho. Neste ínterim, Dani mantém o single de “Eu só Paro se Cair” nas paradas. Na Alemanha o hit lidera acessos e downloads em si-tes como o www.oljo.de, que sublinha o artista como “Mr. Gaga”, em alusiva referência à diva do momento.

“A ideia agora é fazer mais shows, circular o nome para o ano que vem entrar no circuito de festivais”, tenciona ele, que voltou a ser atração em clubes e ba-res “como quando comecei meu trabalho musical no Brasil”. Ao invés de cinco músicos, na Europa trabalha com um DJ executando o live p.a., o que possibilita tocar e mostrar seus vídeos “em qualquer buraco”. Em viagens com rumos certeiros já fez Holanda, França, Suíça, Bélgica, Alemanha, Espanha e Itália. “Estou adorando formar novo público e apresentar meu show a brasileiros que vivem nesses locais, que conheciam meu trabalho, mas nunca me viram em ação ao vivo”.

Atualmente Daniel toca com a cearense Priscilla Dieb e Anderson Villa Nova, dois DJs brasileiros que vivem em Amsterdã. Desde agosto, trabalha com uma empresária suíça e um assessor de imprensa alemão. “No começo corri atrás de tudo sozinho, o que causava

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deficiência em algum ponto, já que minha prioridade é o criativo e a execução ao vivo. Delegando funções, me concentro”. Coisas bacanas já acontecem. “Meu clipe nas MTV de vários países e meu single ‘Eu Só Paro se Cair’ há semanas nos chartes da Alemanha, enquanto os remixes começam a rolar. Vou lançando aos poucos para não dividir informações e desviar a atenção do público. Tenho sido paciente e organizado, um passo a cada vez”, pondera animado.

Em meados de julho, Daniel ganhou loas em outra dimensão hemisférica ao ser eleito com 65,73% dos votos o Artista da Semana no site da MTV Iggy de NY. Chamadas o apresentaram com honrosos codnomes, remissivos aos gêneros musicais em que se inclui, como “o Hedwig português” e “o rapaz Lovefoxxx” (em alusão à bandleader do grupo brasileiro CSS, fenô-meno electropop lá fora). Nas distinções às ousadias

de traje e comportamento, a vitória massiva coroou a “encantadora nova revelação” com frisos no site e bateu papo desnudante com o proclamado “Príncipe Brasileiro do Electro”.

®EVOLuçÕESHá dois anos e alguns meses, no dia 30 de janeiro de 2009, tudo na vida de Daniel mudou com a vinda de Daniel Peixoto Teixeira Cordeiro de Farias. “Meu filho tem o mesmo nome que o meu, incluindo o Teixeira da mãe. Com ele as responsabilidades cresceram e eu passei a ver o futuro com outros olhos. Antes vivia so-mente o presente”. Apesar de passarem o máximo de tempo juntos, o Daniel filho mora com a mãe em For-taleza, enquanto o pai percorre o mundo. Até um breve retorno ao Brasil, Daniel não se desliga do filho. “Todo dia a mãe dele me manda fotos e vídeos para que à

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“MASTIGANDO HUMANOS”NO FAIXA A FAIXAPOR DANIEL PEIXOTOEspecialmente para a Cariri, o artista ruminaas 14 fatias de seu álbum solo:

1. Olhos Castanhos => “Foi a primeira faixa feita, quando percebi que o lance ‘raiz’ teria força, misturado ao meu pop. Fala sobre o fim do Montage, recomeçar, assumir perdas e andar pra frente...”.

2. A Fish Alone => “Uma música que me emociona todas as vezes que canto ao vivo. Quem nunca chorou por amor?”.

3. Flei => “A parte mais escrachada e divertida do álbum, mistura electro e brega, e a letra é uma piada gostosa sobre pudor!”.

4. Mastigando Humanos => “Minha ode a São Paulo, por ter sido tão bem aceito numa terra dificílima de se viver!”.

5. Shine => “Fala sobre a vida louca noturna de São Paulo, mas sob a ótica de pessoas que amam estar juntas! Fala sobre amizade!”.

6. Come to Me => “Por mais que pareça algo sobre relacionamento, fiz isso para amigos queridos!”.

7. My love has green lips => “Amo o Leonilson (artista plástico cearense). Foi uma apropriação de uma letra pintada em uma de suas telas. Tenho muita admiração pelo trabalho dele e fiz exclusivamente para divulgar ao meu público esse conterrâneo, que não é tão conhecido hoje. Vai virar single e já tenho clipe gravado”.

8. Praia do Futuro => “É a minha praia do coração em Fortaleza, onde vivi muitas histórias e loucuras!”.

9. Raio de Fogo => “Queria que essa música voltasse ao meu repertório com a roupagem que merecia, transformei o electro punk do Montage numa macumba electro ‘bemmm made import’!”.

10. Don’t Give Up => “É a faixa que meus fãs mais amam, um pedido de atenção anti mentira. Perdi um amor por conta de mentiras e invejas alheias, daí fiz a música para expor isso. As pessoas se identificam porque é feita para a pista, mas com letra doce e muito emotiva!”.

11. Eu Só Paro se Cair => “A piada-mor do disco, liberdade poética sobre o uso do álcool. Quem nunca bebeu até cair, que atire a primeira pedra!”.

12. I Trust my Dealer => “Refiz a música porque acredito muito no potencial internacional da faixa. A piada é compreendida em todos os locais por onde passo! No segundo minuto, mesmo quem não conhece, já canta...”.

13. Come to Me (Discokillah RMX) => remixe da faixa 06.

14. Desacelerando => “Fala sobre o tempo, quanto temos que esperar por nossos desejos. Sou muito paciente, espero o tempo preciso para realizar meus sonhos!”.

distância eu possa acompanhar o seu crescimento. Quando conseguimos conciliar o fuso horário fazemos sessões ao vivo na webcam”.

Enérgico e vibrante, Daniel Peixoto contabiliza mu-tações em evolução. “Avalio que sou um cara de muita sorte e atrevido. Sonho alto demais. Quero ser uma pessoa e um artista melhor. Essa evolução é notória aos que acompanham meu trabalho e vida pessoal. Cresci muito com as experiências e principalmente correndo os riscos que corri e corro! Não sou medroso, isso me dá substância para crescer”. Ímpeto realmente não falta a DP. Sobre o prazo de validade da recente onda sonora mais regionalista, ele avisa que “não de-fino meu trabalho por épocas ou modas. Adoro ser mutante e deixo meu feeling me levar”. Na batalha, os remixes são armas certeiras. “Por exemplo, agora na Europa o pau que rola é o dubstep. Não tenho nada disso no meu CD, mas providenciei remixes para me inserir nisso. Assim funciona!”, evolui.

Surpreender é com Dani, que desfecha uma reve-lação final. “Estou super satisfeito com minha sonori-dade, mas penso no futuro fazer algo mais brasileiro ainda... usar o repertório de artistas que amo, como Cartola, Alceu Valença, Cazuza, Luiz Gonzaga, Fagner. Parece estranho vindo de mim, mas vai acontecer cer-tamente!”, promete.

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crianças recebem os visitantes na fundação casa Grande

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#cariricidadania

Misto de centro cultural, escola de comunicação e laboratório de convivência social, a Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, sediada em Nova Olinda, alçou vôo como um núcleo criativo de trajetória singular. Criada em 1992, a Casa Grande é uma organização não-governamental que trata de educação, cultura e aspirações em quatro programas principais. A experiência bem sucedida é hoje referência nacional na formação de pequenos cidadãos.

Por Raquel paris

entre, a CaSaÉ Sua!

RAFAEL VILAROuCA

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Com exceção de uma ou duas mães no refei-tório da Casa, não há adultos na Fundação Casa Grande. Os meninos, como são cha-mados os jovens e crianças que vivenciam

experiências no espaço, dividem-se em funções varia-díssimas. São recepcionistas do Memorial Homem Ka-riri; locutores e sonoplastas da rádio comunitária 104.9 Casa Grande FM; quadrinistas e editores gráficos da Casa Grande Editora; iluminadores e diretores de arte no Teatro Violeta Arraes ou mesmo cameraman, pro-dutores e editores de imagem dos inúmeros documen-tários e curtas produzidos no estúdio de vídeo.

Podemos entrar e sair das diversas salas da Fun-dação, e nada. Nenhum adulto. Ordem, organização, trabalho bem feito e risada de crianças batendo bola, penduradas na ponte de corda ou jogando bila. E de repente aquilo que só se ouvia falar fica patente: no meio do sertão cearense um bando de jovens e crian-ças pensa, elabora e executa ações de arte e cultura que servem de exemplo para políticas públicas a se-rem executadas em qualquer parte do mundo.

Diferente do que se imagina, não foram Alemberg Quindins e sua esposa Rosiane Limaverde – funda-dores da Casa Grande – que introduziram as crianças nos projetos da Fundação. “Quando a Casa Grande começou, o foco era a coleta e a pesquisa dos vestí-gios arqueológicos e mitológicos do homem Kariri pré-histórico. Reformamos a casa e criamos o Memorial do Homem Kariri. As crianças ficavam brincando no terreiro, de bila, de pião, elástico, macaca. Depois os meninos passaram a observar e a explicar aquilo que a gente explicava no museu, além de entrar na admi-nistração da Casa. Então, foram praticamente eles que criaram essa história da Casa Grande ser uma escola de gestão cultural a partir da infância”, conta Alemberg.

Os três primeiros cargos criados foram os de di-retor de cultura, diretor de pesquisa e manutenção. Segundo Alemberg, eles foram inventados pelos pró-prios meninos. “As meninas antes de brincar varriam a calçada, os meninos viam algo quebrado e conserta-vam. Aí nasceu o cargo de manutenção. Os meninos

CrianÇaS e JoVenS no Comando

explicavam o museu, então surgiu o primeiro diretor de pesquisa. E os diretores de cultura eram os que orga-nizavam as brincadeiras. A gente deu esses nomes de adulto para as crianças, que receberam isso como uma grande honraria”.

As pautas de discussões que hoje são debatidas e vivenciadas pelos jovens e crianças da Casa Grande envolvem a formação antropológica do homem Kariri, democratização da comunicação, turismo de conteú-do, desenvolvimento sustentável e estreitamento dos laços entre países de língua portuguesa e espanhola. Para dar conta de todas as vivências que acontecem na Fundação, a instituição possui quatro programas: Memória, Artes, Comunicação e Turismo.

ACumuLANDO CAPITAL SOCIALNo programa Memória, capitaneado por Rosiane Li-maverde, as crianças ampliam o conhecimento sobre a vida e as práticas do homem pré-histórico Kariri. No Museu do Homem Kariri, ficam resguardados, catalo-gados e expostos os achados arqueológicos da pré-história do homem da região, para depois serem reela-borados em forma de quadrinhos e documentários nos laboratórios de produção. Não ficam de fora também os mitos e lendas dos índios, narrados pelas crianças e expostas para o visitante, no intuito de proteger o uni-verso imaginário Kariri.

Sem se preocupar em formar “artistas” e sim em despertar as sensibilidades individuais, estimulando a inteligência, os gostos e a imaginação, o programa de Artes conta com uma gibiteca, dvdteca, discoteca e biblioteca para livre consulta. Mais do que teorizar sobre a construção de um indivíduo crítico, autônomo, consciente e inventivo por meio das artes, o programa oferece recursos e produtos de qualidade, que estão sempre à disposição das crianças. Só a gibiteca possui mais de 3.200 títulos, que podem ser lidos em cabines individuais. O acervo inclui HQs clássicas, mangás ja-poneses e livros sobre perspectiva e bonecos articula-dos. Oficinas de técnicas de desenho em vários níveis acontecem ao longo do ano.

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Já o programa de Comunicação tem como obje-tivo a produção de materiais educativos e a formação de leitores, ouvintes e telespectadores. A rádio comu-nitária 104.9 Casa Grande FM vai ao ar sob o comando dos pequenos, que mostram tudo o que sabem sobre sonoplastia, locução e boa música. Esse programa vem se expandindo a partir da Rede de Crianças Co-municadoras em Língua Portuguesa, que une Brasil, Moçambique e Angola, com apoio da uNICEF. Em 2006, o programa “De Criança para Criança”, criado pela Casa Grande, foi escutado em sete províncias de Angola. Em Moçambique são 32 programas, envol-vendo duzentas crianças nas províncias.

No meio do sertão o intercâmbio de culturas

Eles estão desenhando o novo mapa do cariri

FOTOS: RAFAEL VILAROuCA

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No alto do Rio São Francisco, nos sertões da Bahia, uma casa muito alta se destacava em meio à paisagem rude. Ali se criava touro, novilhas, cavalos. Escravos africanos e indígenas serviam de mão-de-obra na lida da casa imensa e nas penosas expedições pelos sertões misteriosos. Era a afamada Casa da Torre, enorme sesmaria concedida ao português Garcia d’Ávila, com a estrita condição de que este povoasse as terras do interior.

Corria o fim do século XVII e o “Ciclo do Couro” fazia brotar dinheiro por onde o gado passava. Foi então que numa manhã do ano de 1680, Afonso Sertão, imediato da família D’Ávila, foi encarregado de levar até as terras do Piauí a bandeira da Casa da Torre. Ele deveria tocar um rebanho dos leitos do São Francisco até a cidade de Oeiras, então capital do Estado. Recebeu ordens expressas para que, em sua passagem, construísse currais primitivos, pontos seguros para abrigar e proteger o rebanho.

A 741 km de seu ponto de partida, Afonso Sertão chegou a um imenso vale cercado por

E ASSIM NASCEUUMA CASA AZUL...

uma vasta chapada. O clima ameno, após tantos dias enfrentando um intenso calor, foi a senha para o pretendido descanso. Seguindo as instruções recebidas, ergueu uma tapera para pousar com o gado, uma armação rude de paus entrecruzados, sem paredes laterais.

A terra fértil da Chapada do Araripe logo despertou o interesse dos invasores, que no lugar da tapera construíram uma casa grande, uma capela e um cemitério, para pouco depois surgirem as primeiras casas no entorno. As construções transformariam o lugar no povoado de Tapera. Trezentos e trinta e um anos depois, o povoado é agora a cidade de Nova Olinda.

Entre seus 14 mil habitantes, seria natural que nomes como Afonso Sertão ou Casa da Torre nada significassem. Menos ainda uma construção erguida no século XVII. Mas o caso, é que incrustada bem no meio da cidade, pintada em azul e amarelo berrantes, lá está a casa grande que deu origem à cidade de Nova Olinda, agora conhecida por Fundação Casa Grande - Memorial do Homem Kariri, centro irradiador de cultura e desenvolvimento para todo o planeta, única casa de ideias no mundo a ter seu núcleo pensante composto por jovens e crianças.

JOÃO PAuLO MAROPO

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TurISmO DE CONTEÚDOEm 2006, a Casa Grande recebeu 28.050 visitantes, nove vezes a população urbana da cidade de Nova Olin-da – o que mostra a expressiva capacidade da institui-ção de atrair turistas de todas as partes do mundo. Por causa da falta de infraestrutura que o município ainda apresenta para receber essas pessoas, foi criada a CO-OPAGRAN, cooperativa dos pais dos meninos da Casa Grande, que desde então recebem os turistas em suas casas, adaptadas em um número maior de quartos e ba-nheiros. O turista convive com a família, senta à mesa e come a mesma refeição de um sertanejo. É o chamado “turismo de conteúdo”, que atrai cada vez mais pessoas ansiosas por participar de novas experiências.

Recentemente a Fundação criou o programa de Esporte e Meio Ambiente, que tem o objetivo de ocu-par a área urbana da cidade com o desenvolvimento de esporte de rua, mais preczisamente o futebol. O programa será desenvolvido no centro da cidade, em uma área doada pela Prefeitura, onde antes ficava a

aldeia indígena. Em parceria com a Fundação Nestlé, a Casa Grande reurbanizou o lugar para que as crianças pudessem brincar. Por último, através de um convênio com o Futebol Clube Barcelona, a Fundação terá uma unidade do clube para a capacitação das 80 crianças que farão parte do projeto. A parceria foi oficializada em junho deste ano, na abertura da Copa Barcelona FC de Futebol infantil sub 12, que contou com a presen-ça de Eric Roca, patrono do Barcelona.

SEm PrObLEmA DE AuTOESTImA A 45 km de Nova Olinda, na cidade do Crato, em uma sala recoberta de fotos de times de futebol e banners de eventos, Alemberg Quindins, fundador e presidente da Fundação Casa Grande, trabalha ao lado de Rosia-ne Limaverde, co-fundadora da Fundação, presidente do conselho científico da instituição e também sua es-posa. Juntos, acompanham a movimentação da Casa Grande de longe, porém, de perto, ou mais precisa-mente, pela tela do computador.

Rosiane e Alemberg com as crianças da fundação

FOTOS: RAFAEL VILAROuCA

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No momento dessa reportagem, a Fundação, está envolvida nos últimos retoques da Mostra Cariri de Música Ibero-Americana. A mostra internacional, com músicos e produtores das culturas ibero-americanas, foi criada no intuito de estabelecer e fortalecer os la-ços entre países de língua portuguesa e espanhola. No evento, com a participação de músicos como Manu Chao, será discutido a papel dos coletivos de músicos e gestores culturais para a afirmação e criação de es-paços alternativos de cultura.

Eventos como este atraem visitantes do mundo inteiro e ajudam a explicar como uma cidade pequena, no interior do Nordeste, reordenou o mapa do turismo em sua região. Tanto é, que o Ministério do Turismo incluiu Nova Olinda entre os 65 destinos indutores do turismo no Brasil, em função de sua projeção nacional por meio da Fundação Casa Grande. No Ceará, os ou-tros destinos escolhidos ficam todos no litoral: Jericoa-coara, Fortaleza e Aracati.

A Fundação hoje integra um novíssimo nicho de negócios - o do turismo comunitário. Seduzidos pelo acervo da gibiteca, os filmes da dvdteca, as oficinas e experiências dos laboratórios, as produções e eventos de alto nível, muitos artistas, pesquisadores e curiosos

do mundo inteiro vão a Nova Olinda, no intuito de vi-venciar e trocar conhecimentos, gerando um intercâm-bio de culturas e negócios.

“Esse recurso que vem a Nova Olinda gera distri-buição de renda porque quem recebe são as famílias da cidade e as pequenas pousadinhas. Muitos pro-prietários de grandes hotéis do Cariri não apóiam os eventos culturais. Então nós resolvemos trabalhar com quem faz o turismo comunitário local. Hoje nós temos condições de receber até 40 pessoas nas pousadas”. Durante os principais eventos, os hotéis e pousadas de Nova Olinda têm sua capacidade esgotada com ante-cedência. Alemberg acredita que a diferença está na maneira como os eventos são concebidos. A ideia é que gerem cultura e desenvolvimento social.

O QuE A ImAGINAçÃO NÃO CONCEbENão faltam turistas. Basta uma rápida olhada no cader-no de visitas que fica na Fundação para ver nomes pro-venientes dos cinco cantos do planeta. Gente que sai dos lugares mais longínquos apenas para ver com os próprios olhos o que a imaginação não concebe. “No início houve uma não aceitação disso. Pois se acostu-mem os brasileiros, porque é pelos caminhos do social

1 - Em 2004, a Casa Grande recebeu das mãos do presidente Luis Inácio Lula da Silva a ‘Ordem do Mérito Cultural’, maior comenda dada pelo Ministério da Cultura pelo trabalho realizado em favor da cultura nacional.

2 - A carta que regula as Casas de Patrimônio no Brasil chama-se Carta de Nova Olinda, por ter sido concebida na Fundação Casa Grande.

3 - A COOPAGRAM arrecadou em 2010 um total de R$ 35.011,75. Número modesto para uma grande cidade, mas bastante representativo num pequeno núcleo como Nova Olinda. A lojinha que vende produtos e artesanato no interior da Fundação gerou com seus produtos R$ 9.808,75. O restaurante, que serve apenas comida sertaneja, arrecadou R$12.000,00, e as pousadas, suítes que ficam nas casas dos meninos, amealharam R$13.202,10. Dinheiro que vai direto para as famílias, contribuindo para uma maior distribuição de renda.

CURIOSIDADES

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que o Brasil está se colocando no grupo dos oito e se destacando a nível internacional. Não adianta centrali-zar”, enfatiza Alemberg.

Os diversos prêmios angariados pela Fundação também ajudam na captação de turistas. Devido à excelência do trabalho em pesquisa arqueológica e ao cuidado patrimonial, em 2009 o Instituto do Patrimô-nio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN concedeu à instituição o título de Casa do Patrimônio da Chapada do Araripe. Assim, a Casa Grande, agora com respaldo federal, possui um termo de cooperação técnica com o objetivo de constituir-se num espaço para o aperfeiço-amento da gestão, proteção, salvaguarda, valorização e usufruto do patrimônio cultural.

Em 2011 a distinção veio através do Prêmio Trip Transformar, que destaca projetos de empreendedo- Alemberg Quindins: o cariri como estado de espírito

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rismo social. Alemberg foi uma das 13 personalidades reconhecidas pelo trabalho desenvolvido, assim como o ex-jogador Raí, que leva adiante o projeto Gol de Letra, com reconhecimento da unesco, e de Ana Primavesi, precursora da agroecologia no Brasil, hoje com 90 anos.

Alemberg comemora: “Do Cariri nós conhecemos outro mapa. Como foi a formação da personalidade do homem Kariri. Então, a gente passa a ver o Cariri não como um estado político, mas como um estado de es-pírito. E isso não é separatismo, isso é personalismo. É a personalidade que é construída a partir desse estado de espírito, muito presente em todos os momentos da história do homem no Nordeste. Essa chapada sempre foi um entroncamento humano muito forte. O Cariri é o Exu, é a Paraíba é o Piauí. É um estado de espírito que tem como mãe a Chapada do Araripe”. Rosiane limaverde: aguçando sensibilidades

FOTOS: RAFAEL VILAROuCA

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RAFAEL VILAROuCA

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#caririperfil

Por Raquel paris

Sentado em uma velha cadeira de rodinhas para escritório, o senhor de barba tosada, óculos escuros e chapéu de massa observa

tranquilamente a rua. Ao seu redor, uma variedade impressionante de objetos novos e usados estão expostos ao sol e ao gosto do freguês. Atrás dele uma loja se estende apinhada de bugigangas, algumas tão velhas que levantam dúvidas sobre seu uso e utilidade.

Porém, para quem passa pela Rua Santa Luzia, centro comercial da cidade de Juazeiro do Norte, o senhor de ar monótono e impávido é um ícone quase tão famoso quanto o Padre Cícero, com o adicional óbvio: está vivinho da silva. De nome ninguém o conhece. Há muito que passou ao estágio de ser descorporificado, habitante fantástico de histórias que percorrem todo o Nordeste e além.

Seu Joaquim está aborrecido. As histórias que se atribuem a ele alimentam há anos a imaginação popular. Respostas abrutalhadas para perguntas descabidas fizeram deste homem simples um verdadeiro mito no anedotário nordestino. O cidadão real, porém, nega a lenda inventada. Despindo a capade “ignorante” e zangado, quer ser visto apenas como bom vizinho e poeta inspirado.

o aVeSSo da lenda

Há até quem diga que ele simplesmente não existe. E os que sabem de sua existência preferem desconsiderar sua vida real. Joaquim Santos Rodrigues, ou para ser mais claro seu Lunga, segue vivendo assim uma vida dupla: a de ser homem e lenda ao mesmo tempo.

O HOmEmO homem nasceu em 1927, em Caririaçu, cidade fronteiriça a Juazeiro. Seus pais eram alagoanos, viviam da agricultura e assim criaram todos os oito filhos. A chegada de Joaquim em Juazeiro se deu em 1947, quando ele tinha 20 anos e a ourivesaria reinava soberana na terra do Padre Cícero. O recém-chegado passou a fabricar joias, para logo negociar cereais no mercado público da cidade.

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Casado desde 1951, em 60 anos de casamento Joaquim estendeu a família em 13 filhos e 12 netos. A loja de ferragens, que existe até hoje, foi montada em 1960. Dessa época para cá ele abre suas portas às oito da manhã, fecha ao meio-dia, reabre às duas da tarde e fecha novamente às 18h. Todo dia, religiosamente.

O mITOA data exata em que nasceu a lenda é difícil precisar. O certo é que o cordelista Abraão Bezerra Batista foi pioneiro ao publicar, em 1983, um folheto de cordel intitulado “As Histórias de Seu Lunga, o Homem mais Zangado do Mundo”. A partir daí surgiram outros 78 títulos de cordel, de 39 cordelistas diferentes, que podem ser encontrados em feiras, bancas e livrarias em todo Nordeste.

De seu Lunga, o mito, pouco se sabe. Nascido em Juazeiro do Norte, ele é tido como o homem mais mal-humorado do mundo. Sua fama se deve precisamente às respostas grosseiras que dirige a quem fizer uma pergunta “besta”. Impaciente, ignorante, brabo, cabra da peste: são adjetivos costumeiramente associados ao personagem fictício. As histórias são passadas oralmente, geração após geração, fazendo de seu Lunga um ser sem idade exata e definida. A rabugice, logo associada à velhice, tornou-o idoso pela vida inteira.

A VINGANçAO homem, cansado da lenda, resolveu então se vingar. Moveu uma ação contra o cordelista Abraão Batista, alegando que este se utiliza de seu nome indevidamente, o que consolidaria uma imagem negativa. Joaquim Santos Rodrigues teve ganho de causa e Abraão Batista não poderá mais usar o nome “Seu Lunga” em seus escritos.

“Na minha opinião, no meu pensamento, na minha lógica, isso só acontece por falta de justiça. São 157 histórias sobre a minha pessoa e nenhuma é verdade. Esse cabra que escreveu isso nunca me deu um bom-dia. Dizer o que você não é, é ruim. Me diga uma coisa, como é que o camarada vai escrever sobre essa personagem que você pensa da minha pessoa e não pesquisa pra saber se isso é verdade? Eu sou comerciante desde 1950 e tenho um só preço”, esbraveja seu Joaquim.

A mágoa é contra o que o mito esconde. “Esse camarada Abraão botou no folheto que eu sou o homem mais ignorante do mundo, aí tem gente que chega aqui pensando que eu sou um homem ignorante e vem com perguntas imbecil, vem com proposta desagradável. Mas olhe, eu sei ler, sei escrever, sei as operações de conta, e além disso eu crio discursos, eu faço discurso político e tenho várias poesias que é de minha autoria. Eu sei dialogar e nunca recebi uma reclamação, eu sei onde eu me meto”, afirma.

O OCuLTO O que o povo desconhece é que Joaquim Santos Rodrigues, quando assim o deseja e a verve está afiada, é um poeta atilado, de criações espontâneas e firmes. Dedo em riste, sorriso nos lábios, declama em alto e bom som:

RAFAEL VILAROuCA

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“Quem não mora muito longe, morando perto é vizinho.Encostado a essa mata, mata que tem espim.Cada pau tem o seu galho, cada galho tem um nim.Não vou morar nessa mata por causa dos Passarim.”

“Morava bem em Juazeiro, me transportei daqui,Mas fui morar em Salgueiro.Lá existe uma fazenda que só existe vaqueiro.Existe também um boi que é um grande boi mandingueiro.E eu montado em meu cavalo, cavalo muito ligeiro,Eu vou derribar um boi, cavalo, boi e vaqueiro.”

RAFA

EL V

ILAR

OuCA

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E muito de repente, o “homem mais ignorante do mundo”, o senhor de respostas ferinas, nordestino brabo transformado em piada nacional, se converte em um cidadão tranquilo e vaidoso. “Como essas eu tenho umas outras tantas!”. E seu Joaquim se revela um anfitrião conversador, prático e honesto, embora intransigente, como os diversos Joaquins que existem em todo o sertão Nordestino.

“Quem me conhece não me interessa. Mas quem me conhece me preza”, afirma ele, categórico. E de sorriso no rosto, aperto forte na mão direita, se despede em verso com a gentileza típica do sertanejo:

“Adeus amante querido,Meu amor sempre livrado,Aceite lembranças minhas, E recordações do passado.”

RAFAEL VILAROuCA

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Cariri Revista: O senhor é um dos autores da

Carta da Terra, que é um dos documentos

mais importantes do começo do século XXI.

Gostaríamos de começar falando sobre isso.

Leonardo boff: Trata-se de um grupo criado por Gor-batchev depois que ele deixou a presidência da Rússia, preocupado com o futuro do planeta. Gorbatchev viu que a lógica capitalista que estava se homogeneizan-do depois da queda do império soviético era demasia-damente devastadora para os recursos da Terra. Se nós seguíssemos todos naquele ritmo poderíamos pôr fim às condições físico-químicas da vida e ao futuro da civilização humana. Então, dentro dessa preocupação, trabalhamos durante oito anos, de 1992 até 2000, consultando os povos quilombolas, os indígenas, vá-rios grupos da humanidade... Desse trabalho surgiu a Carta da Terra, um dos documentos mais significativos assumidos pela uNESCO. A partir daí eu passei a me preocupar muito com essa questão da ecologia.

CR: Hoje este é o tema central de seus livros.

O que o faz perseguir tanto o assunto?

Lb: Vejo que nós estamos num vôo cego e que se não cuidarmos podemos criar uma situação em que a vida,

LEONARDO BOFFe o admirÁVel noVo mundo

#caririconversa

Com mais de 80 livros publicados em vários idiomas, Leonardo Boff dispensa apresentações. Autoridade mundial quando se fala em Teologia da Libertação

e questões ambientais, ele esteve pela segunda vez em Juazeiro do Norte para debater sobre educação e inclusão. Muito assediado pelos admiradores – católicos ou não –, o catarinense de 73 anos é neto de imigrantes italianos da região do Vêneto. Formado em Filosofia e Teologia, é doutor honoris causa em Política pela universidade de Turim (Itália) e em Teologia pela universidade de Lund (Suécia).

Nascido Genézio Darci Boff, Leonardo ingressou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em 1959, mas renunciou em 1992, depois de ameaçado pela cú-pula da Igreja com uma segunda punição. A primeira havia acontecido em medos dos anos 1980, devido à defesa dos preceitos da Teologia da Libertação no livro “Igreja: Carisma e Poder”. Em entrevista exclusiva à Cariri Revista o filósofo, teólogo, professor e escritor, que hoje vive no Rio de Janeiro, fala sobre uma nova concepção da Terra, os riscos do consumo desenfre-ado, a importância de Padre Cícero e a riqueza cultural do catolicismo popular.

“Quando não há educação, nós nos tornamos vítimas da cultura do consumismo”

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a biodiversidade, será grandemente reduzida. Nosso comportamento com a Terra é agressivo, devastador, sem nenhum cuidado com a água, as florestas, o solo... Se não trocarmos de rumo, podemos ir ao encontro do fim. É fundamental uma ética ecológica capaz de entender a Terra como a entendem os povos primá-rios, os indígenas Kariris, a terra como Pacha Mama, a Grande Mãe. O fato é que nós já consumimos tanto que o planeta precisa de um ano e meio para repor o que tiramos dele.

CR: Existem pessoas que antes levantavam a

bandeira do neo-liberalismo e hoje propagam o

discurso ecológico.

Lb: A expressão que eles adotam é “capitalismo na-tural”. Significa seguir produzindo, incorporando ritmos da natureza, respeitando também os recursos limitados, etc. A expressão não só é infeliz, como é contraditória. Porque a lógica do capitalismo é explorar a natureza, ti-rar o máximo de sua riqueza e apropriar-se dela privada-mente. Então, isso é falsa ecologia, uma ideologia que incorpora o discurso ecológico para esvaziá-lo. Temos que produzir sim, mas produzir em equilíbrio com os ci-clos da natureza, respeitando cada ecossistema.

CR: O senhor veio a Juazeiro do Norte há dez

anos. Passado todo esse tempo, o que mais

o impressionou?

Lb: Depois de dez anos Juazeiro mudou muito no quesito infraestrutura. Tornou-se um centro universi-tário – o que é importante porque alarga as consciên-cias e questiona a realidade. uma cidade só é madura quando começa a pensar em si mesma. Mas devemos ressaltar um segundo ponto. No Brasil, aqueles que antes tinham insuficiência de consumo, que viviam na pobreza, comiam mal, passavam fome, começaram a consumir. Ter a sua casa, a sua geladeira, o seu micro-ondas e realizar os desejos da vida é um direito. Agora, ele abre espaço para que se crie a cultura do consu-mismo. É a lógica do capital e o capital faz as famosas liquidações. O camarada pensa: “eu não preciso disso ou só vou precisar daqui a um ano”. Mas compra. Essa é a lógica do consumismo, que acarreta os problemas ecológicos. A terra não agüenta, não tem recursos su-ficientes para suportar tal lógica.

CR: E como se muda isso?

Lb: É preciso apostar na educação ambiental, ter um novo conceito de Terra, uma nova apreciação do que é ser feliz. Ser feliz não é acumular, ter alta conta no ban-co, tantos tênis, tantos vestidos. É ter o suficiente e se envolver no capital humano, ou seja, cultivar a cultura, a música, as tradições. O capital humano, espiritual, é ilimitado. Você pode acrescer cada vez mais arte, be-leza, integração... Mas antes de tudo é preciso educa-ção. Se não há educação, nós nos tornamos vítimas da cultura do consumismo.

CR: Existe uma solução política?

Lb: Esse é o problema maior da humanidade. Quem é acostumado a comer bife não quer comer ovo, e nós vamos ter que nos acostumar a comer ovo para que to-dos possam comer. Atualmente há mais de um bilhão e 200 milhões de pessoas passando fome. Antes da crise de 2008 eram 860 milhões. Emigrados climáti-cos já são mais de 100 milhões. Nos próximos cinco anos serão entre 150 e 200 milhões, e isso vai criar um problema político no mundo inteiro, porque essas pessoas não vão aceitar a morte, vão invadir países. A humanidade terá que criar necessariamente aquilo que constitui uma grande discussão hoje, uma governança global. Tem que haver uma planificação planetária, se nós não chegarmos a isso, assistiremos a grandes ca-tástrofes humanas.

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CR: Voltando ao Cariri, como o senhor entende

a devoção em torno do Padre Cícero?

Lb: É um fenômeno ambíguo. Por um lado ele é man-tenedor de uma espiritualidade, de um sentido de in-tegração, o que é importante. E por outro lado, ele en-trou no mercado e virou um produto. A gente tem que explorar, no fenômeno do Padre Cícero, as dimensões que são contemporâneas, que estão mais ao menos esquecidas, como por exemplo, os dez mandamentos da ecologia. Isso precisa ser resgatado pelos padres, pelos coordenadores de comunidades, pela imprensa.

CR: O senhor acha que a Igreja consegue

normatizar esse fenômeno que é tão popular?

Lb: Eu acho o seguinte: existem dois tipos de catolicis-mo. O catolicismo oficial, do catecismo, dos dogmas, e o catolicismo popular. Qual é o mais forte? O mais forte, o mais permanente, é o popular. Tanto faz que o papa diga isso ou aquilo, que proíba isso ou aquilo. É indiferente. O catolicismo popular tem uma força própria, ele não é a decadência do catolicismo oficial,

“O Padre Cícero é um fenômeno ambíguo. Por um lado ele é mantenedor de uma espiritualidade, de um sentido de integração, o que é importante. E por outro lado, ele entrou no mercado e virou um produto.”

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como normalmente se dizia. Ele tem uma lógica, uma totalidade, os seus santos, seus dogmas, suas festas. Darcy Ribeiro achava que a maior criação cultural que a América Latina fez foi o catolicismo popular. Ele deu sentido ao povo, manteve o significado da união, ali-mentou a razão espiritual da vida – que não é só con-sumista e que independe da Igreja Católica.

CR: E como o Padre Cícero se encaixa nisso?

Lb: O Padre Cícero é uma figura catalisadora. Lógico que a Igreja procura não perder seus fiéis, mas eles têm uma dupla pertença. Se há missa, eles vão à missa, mas o importante não é a missa. É fazer a devoção ao Padre Cícero. E Cícero, para mim, é o exemplo do pa-dre novo. Ele viveu há muitos anos, mas representa a novidade. Não é aquele que detém o monopólio do sa-cramento, da palavra, da doutrina. É aquele que acon-selha, que acompanha as famílias, que ensina o povo a não cair na criminalidade, ajudava os necessitados. É o cristianismo na prática, a prática libertadora, huma-nitária. Esse é o catolicismo que precisamos. O dou-

trinário não leva a nada, está diminuindo cada vez mais para dar lugar a outras denominações cristãs. Ao passo que o catolicismo popular cresce e tem grandes valores, porque mantém viva a alma criativa do povo. Trata-se de uma grande criação cultural do povo brasileiro, que ape-sar da Igreja criou esse espaço de liberdade.

“Darcy Ribeiro achava que a maior criação cultural que a América Latina fez foi o catoli-cismo popular. Ele deu sentido ao povo, manteve o significado da união, alimentou a razão espiritual da vida – que não é só consumista e que independe da Igreja Católica.”

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o que Faz do Cariri um luGar úniCo

o que faz do Cariri um lugar único? Por que será que o sertanejo afirma que somente em caso extremo e “no último pau-de-ara-ra” deixará seu torrão natal? Será a força

telúrica de suas paisagens sem fim, que a todos restitui suas verdadeiras e ínfimas dimensões?

Ou os céus imensos banhados do sol implacável que leva os olhos a se defenderem da invasão de luz?

Será a religiosidade arraigada que é responsável pelas peregrinações e oferendas, num diálogo cons-tante com o céu e os santos?

Certamente todos esses elementos se combinam sobre o pano de fundo das devastadoras secas que ciclicamente rememoram aos homens sua dependên-cia da natureza. Foi graças à companhia de excelen-tes amigos que conheci, recentemente, um pouco da complexa realidade da região do Cariri.

Desde logo verifiquei que ela se destaca como pólo difusor da cultura popular para o extenso território que,

#caririespecial

Por Ellen Grace[Ministra do Supremo Tribunal Federal]

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independentemente de divisas estaduais, pode ser con-siderada como o coração do Nordeste. Resguardado da invasão turística que caracteriza o litoral, o Cariri permite um relance no que de mais autêntico a sociedade local produziu: uma população altiva, consciente de sua sin-gularidade e orgulhosa de seu patrimônio histórico.

A relativa solidão em que se desenvolveu a cultura do hinterland nordestino protegeu sua autenticidade e lhe conferiu o acento já raro de um arcaísmo que vem revelado em ditos e expressões populares, nos ofícios tradicionais, nos festejos, cantares e danças e em seu extraordinário misticismo.

A par disso, entusiasma verificar o crescente de-senvolvimento industrial para ocupação de uma mão-de-obra cuja atividade não fique à mercê do clima. Como também o estabelecimento de inúmeras casas de ensino superior que irão qualificar as novas gera-ções. Com isso o Cariri se aparelha para enfrentar a competição de um mundo globalizado.

A um só tempo autêntico e atual o Cariri surpreen-de agradavelmente. Por isso, como o sertanejo que não o quer deixar, os visitantes gostariam de levá-lo no coração, para recordarem sempre a majestade dos pa-noramas e a profunda dignidade do seu povo.

DIVuLGAÇÃO

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Originalmente, a palavra era empregada para definir o medo de lugares abertos ou com muita gente. Hoje, é usada para defi-nir comportamentos de esquiva, que apa-recem quando a pessoa se encontra em situações ou locais dos quais seria difícil ou embaraçoso escapar, ou mesmo receber socorro, se algo de errado acontecesse.

Não se conhece a causa do distúrbio, que se manifesta mais nas mulheres do que nos homens. Em alguns aspectos, ele pode se confundido com a fobia social, uma vez que os portadores da desordem tendem a reduzir os contatos sociais como forma de esquivar-se das situações em que imaginem ser difícil obter auxílio.

Nos casos mais graves, a agorafobia compromete a vida social e profissional dos pacientes. A antecipação do medo de sentir medo e de um ataque de pânico inesperado impede, muitas vezes, que a pessoa realize atividades banais, por con-siderá-las potencialmente de risco..

Agorafobia é um transtorno de ansiedade, na maioria das vezes, associado às crises de pânico.

DIAGNóSTICOO diagnóstico leva em conta a história e os sintomas apresentados. Estabelecer o diagnóstico da agorafobia é importante para diferenciá-la de outras fobias (fobia social, estresse pós-traumático, etc.) e orientar o tratamento. SINTOmASOs sintomas são semelhantes aos da crise de pânico e a intensidade varia de pessoa para pessoa. Eles podem ser classificados em:

1. Psicológicos (medo de morrer, de enlou-quecer, de perder o controle sobre si próprio);2. Somáticos (taquicardia, palpitação, falta de ar, sudorese abundante, náuseas, vômi-tos, dor de estômago, diarréia, tremores, tonturas).

TrATAmENTOOs quadros de agorafobia podem reverter espontaneamente. Quando isso não acon-

tece, a terapia cognitivo-comportamental representa o recurso mais eficaz de trata-mento. Baseia-se numa técnica chamada de auto-exposição ao estímulo fóbico que consiste no enfrentamento gradual das situações geradoras do medo. À medida que são vencidas as etapas, o grau de di-ficuldade aumenta, até que não haja mais nenhum desconforto diante de determina-do estímulo. rECOmENDAçÕES• Pessoa com medos exagerados que desencadeiam crises de pânico não está querendo chamar a atenção: tem um transtorno que pode precisar de cuidados médicos;

• A adesão às sessões de exposição pro-postas pela terapia cognitivo-comporta-mental é indispensável para que o portador de agorafobia volte a ter vida normal, sem as limitações provocadas pela doença.

#cariricolunadesaúde

aGoraFobia

Por drauzio Varella

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bODAS DE VINHODentre as festas comemorativas por anos de casamento, tais como as bodas de prata e a de ouro, temos também as bodas de vi-nho, que são celebradas no Brasil após 70 anos de casamento, feito conquistado em Barbalha (CE), conforme fiquei sabendo, pelo casal Antônio Gondim Sampaio e Ma-ria Zuila Couto Gondimum.

Há uma lenda que diz que a designa-ção boda veio do hábito de se matar uma carneira para festejar o casamento, daí que no Cariri resolveram usar a fêmea do bode, a “boda”, cuja carne era muito mais macia. Matar a “boda” era sinal de que haveria fes-ta. Devido a isto o nome “boda” passou a ser sinônimo de festa. Se duvidam da his-tória podem ver na Wikipédia.

DAS CONSEQuÊNCIAS DO VINHOPovo – Velho Dionísio! um vinho de presen-te. Ontem nós bebemos deste vinho e ficamos muito alegres.Velho Dionísio – Vinho especial.Vinho de doutor. Povo – Mas depois quase brigamos...Velho Dionísio – Que é isso, filhos!Povo – Terminamos discutindo muito.Não sabemos por que isto aconteceu.

Por Sérgio pires[Ex-funcionário do Banco do Brasil, praticante de karatê e aluno do curso profissional para sommelier. No momento elabora dois livros sobre vinho, devidamente engavetados ao lado da adega]

#caririgastronomia

VelhoS VinhoS

Velho Dionísio – Mas eu sei. Meu Profes-sor Sileno contava a história que ouviu de seu avô. Diz a lenda que Baco, o deus do vinho, encontrou certo dia uma planta muito delicada e pequenina cujos frutos saciaram sua sede. Resolveu levar para casa uma mu-dinha. Para proteger a plantinha, colocou-a dentro do osso de um passarinho. Povo – Mas deu dentro do osso de um passarinho?Velho Dionísio – Lógico que deu, não era osso de soldadinho-do-araripe não. Era de um bichão maior. Mas a viagem era longa e a planta começou a crescer e o osso ficou pequeno. Aí Baco a colocou em um osso maior, dessa vez no osso de um leão. Mas a planta continuava crescendo, aí Baco a colocou dentro de um osso de burro.Povo – E depois?Velho Dionísio – Aí ele plantou a mudinha que cresceu até nascerem as uvas. Quando fizeram o vinho descobriram que ele ficou com as características dos animais que emprestaram seus ossos. Igual a vocês ontem.Povo – Como assim?Velho Dionísio – De início vocês ficaram alegres: se sentiam leves como pássaros. Continuaram a beber e queriam brigar, acharam que eram fortes como o leão. Beberam ainda mais e discutiram, ficaram tão estúpidos como os burros.

O PrImEIrO VINHO NO brASILO vinho veio para o Brasil com Cabral e sua frota. Composta, inicialmente, de tre-ze embarcações com 1500 homens, que representavam 2,5% da população de Lis-boa. Cada navio armazenava 200 pipas de vinho, uma vez que para ajudar a enfrentar a dura rotina de bordo e a total falta de hi-giene, cada tripulante recebia uma canada (1,4 litro) diária de vinho.

Pero Vaz de Caminha, em sua carta ao Rei de Portugal, uma verdadeira Cer-tidão de Nascimento do Brasil, descreve a primeira degustação de vinho realizada por brasileiros natos, os primeiro índios levados a bordo: “Trouxeram-lhes vi-nho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.” Nossos antepassados índios já demonstravam bom gosto.

Mais tarde, numa refeição em terra, os paladares se tornaram menos exigentes: “Comiam conosco do que lhes dáva-mos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam be-ber. mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão de beber de boa vontade”! Caminha foi profético!

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O VINHO brANCO mAISCArO DO muNDOEm um leilão realizado em julho deste ano em Londres, foi quebrado o recorde mun-dial de preço para um vinho branco com a venda de uma garrafa de 200 anos de ida-de do Chateau d’Yquem, safra de 1811, por 75 mil libras, ou cerca de R$ 190 mil.

O feliz comprador foi o empresário fran-cês Christian Vanneque, que planeja exibir a garrafa por trás de um vidro a prova de balas em seu restaurante em Bali, na Indonésia. Parece que dentro de alguns anos pretende degustá-la em seu aniversário de 60 anos.

Lógico que logo surge um questiona-mento: por que uma garrafa de vinho pode valer tanto assim? A primeira resposta ób-via é por sua raridade. uma garrafa de 200 anos de idade não se encontra a toda hora. Porém, o mais surpreendente neste caso é que o vinho se encontra em perfeitas con-dições de ser degustado.

Seu bom estado é surpreendente ape-nas para quem leu as notícias sobre o leilão, ou assistiu na televisão, quando o Chateau d’Yquem foi descrito simplesmente como um vinho branco. Como sabemos que em

média os vinhos brancos muito raramente atingem seu sexto aniversário bebíveis, ima-gine como estariam em seu bi-centenário.

O Chateau d’Yquem é um vinho de so-bremesa, com elevado teor de açúcar e 14% de álcool – fatores que permitem sua grande longevidade. É produzido a partir de uvas contaminadas com o fungo Botritis Cinerea, que ao invés de destruir as uvas perfura suas cascas e grãos, provocando a saída de água e concentrando o açúcar. As uvas ficam com aspecto de uvas passas ou apodrecidas, daí o nome podridão nobre (pourriture noble). A produtividade é mínima, quase que somente uma taça de vinho por videira.

O padrão de qualidade requerido para o Chateau d’Yquem é tamanho que safras inteiras costumam ser descartadas e não engarrafadas.

O Chateau d’Yquem é a “luz engarra-fada”, uma referência de vinho de sobre-mesa, presença constante em filmes e na literatura, já tendo sido citado por Vladmir Nabokov, Dostoievski, Marcel Proust, Júlio Verne, Alexandre Dumas Filho e outros.

bAIÃO-DE-DOIS bEm HAmONIZADONa edição 02 da Cariri, a linda e talentosa modelo e atriz Suyane Moreira revelou que adora comer e que ama baião-de-dois.

O baião-de-dois que leva em sua re-ceita arroz, feijão, carne-seca, paio e queijo coalho é bastante gorduroso, e ainda é for-temente marcado pelo sabor e aroma da manteiga de garrafa.

A harmonização ideal com o vinho deve levar em conta principalmente a gordura deste prato, e, para ela, o corpo e a acidez no vinho é a melhor resposta.

um tinto de bom corpo e, principalmen-te, com ótima acidez. Cabernet Sauvignon, Shiraz ou Tannat. Muito bom, também seria um espumante brut que vai limpando a boca e a preparando para mais um baião. Mas se quiser ser um pouco ousado, vá com um branco encorpado.

No almoço servido para o presidente Obama com a presidente Dilma no Itama-raty, em Brasília, no primeiro semestre deste ano, o baião-de-dois esteve presente e o cerimonial acertou em utilizar o Espumante Brut Premium e os vinhos branco Chardon-nay e tinto Cabernet Sauvignon, ambos da linha Gran Reserva da vinícola Valduga, de Bento Gonçalves no Rio Grande do Sul.

“Na equação de harmonização, tan­to quanto no prato, temos que pensar no momento e nas pessoas.”

“Agoraque a velhice começapreciso aprender com o vinhoa melhorar, envelhecendoe sobretudoa escapardo perigo terrível de envelhecendovirar vinagre...”[Dom Hélder Câmara, no seu livro“Mil Razões para Viver”]

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As ruas e os bairros das cidades ganham seus nomes ou têm suas alcunhas altera-das no afã nada discreto de homenagem a personalidades falecidas. Familiares e no-bres (e nobres familiares) têm seus regis-tros afixados em letras de placas e muros. Mesmo não tão próximos, são lembrados os mortos alheios de destaque e reconhe-cimento local, nacional ou mundial.

É uma forma digna de valorizar aqueles que foram/são importantes para a cidade ou para o proponente. E como estamos numa peleja eterna contra o acionamento coletivo precário da memória, pode ser até uma distinção didática... Na grande maioria das ruas em que morei, por exemplo, tive que pesquisar posteriormente em enciclo-pédias e google quem havia sido tal perso-nagem que virara endereço.

Por outro lado, n’A Evocação do Recife, Manuel Bandeira escreveu:

nomeSCaririanaS 02:

Por Ricardo Rigaud Salmito[Professor e cronista ]

Esse trechinho do poema vem e volta ao meu pensamento todas as vezes em que repito numa loja ou para um amigo os três nomes que compõem a minha rua e os dois outros que identificam o meu bairro. Além, é claro, dos três que completam quem sou. É nome e sobrenome demais, de gente de-mais para uma única localização.

Começou primeiramente com as ruas esse processo de drfulanização. Mas ago-ra também nos bairros (e até em cidades) é possível encontrar menos referências à na-tureza, às cores ou aos sentimentos e mais aos nomes de pessoas, personalidades.

Pensei sobre isso porque estive no bair-ro Bico da Arara em Caririaçu, circulando por aquelas ruas que sobem e descem e descortinam horizontes de verde, de casas, de história grande da Chapada. Realmente é feliz quem pode dizer seu bairro assim, sem

#cariricrônica

nome e sobrenome. Viajante displicente, não perguntei a razão do surgimento daque-la denominação. Também não quis saber, melhor esse anonimato poético para deva-neio individual, emancipador de imaginação.

Ali D. Dina abriu o portão de sua casa e pude articular vento e sol e a pedra. Pedra como panorama. Era a gruta de Nossa Se-nhora de Lourdes, que olha para o centro da cidade. Com simpatia e sem reservas mostrou o acesso a um mirante com ban-cos e vista para os pontos cardeais de to-dos os lugares. Ao final da visita, o Bico da Arara promoveu encontro com a palavra, palavra-paisagem.

Na periferia do Cariri, o Bico da Arara é como a crônica: periferia das letras, tan-gente de literatura e jornalismo. Lugar de salvação da cidade, da palavra. Salvação-saudação dos nomes do mundo.

(...)Rua da união...Como eram lindos os nomesdas ruas da minha infânciaRua do Sol(Tenho medo que hoje se chamede dr. Fulano de Tal)Atrás de casa ficava aRua da Saudade...(...)

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Assim como erano princípio...

#caririespecial

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XICRA (Xilogravuristas do Crato): Pesquisa em torno do uso da gravura

em diversos suportes.

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