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  • Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 111

    O CARTER ESTTICO DO TEXTO LITERRIO NA FORMAO DO

    LEITOR

    THE AESTHETIC CHARACTER OF LITERARY TEXT IN THE READERS

    FORMATION

    Audemaro Taranto Goulart*

    Viviane de Cssia Maia Trindade**

    Resumo

    O presente texto tem por finalidade argumentar sobre o potencial de

    efeito esttico das estruturas lingusticas do texto literrio sobre o

    leitor. Nos espaos de formao de leitor, quase sempre, ao se

    explorar os textos literrios, d-se enfoque s questes psicolgicas,

    opinies subjetivistas e expresses individuais sem que a estrutura

    lingustica seja ressaltada como o elemento propulsor das

    elucubraes do leitor. No outro extremo, h tambm as abordagens

    que deixam de lado a relao forma e contedo e seus efeitos,

    destacando somente as estruturas textuais, em nome de uma

    interpretao do texto com foco em elementos gramaticais.

    Considerando-se esse aspecto, sero ressaltadas as ideias de Wolfgang

    Iser sobre o carter esttico da obra literria e seus efeitos sobre o

    leitor. Outra questo que ser abordada diz respeito ao potencial

    humanizador da literatura, que ser discutido a partir das ideias de

    Friedrich Schiller e do texto O direito literatura, de Antonio Candido.

    Palavras-chave: Formao de leitor; Efeito esttico; Carter

    humanizador da literatura.

    Abstract

    This paper aims to discuss the potential aesthetic effect of linguistic

    structures on literary texts on the reader. In readers educational training circles, while exploring literary texts, the focus is driven most

    frequently to psychological issues, subjective opinions and individual

    expressions, without emphasizing the linguistic structure as the

    propulsive element of the readers reflections. On the opposite extreme we find approaches that leave aside the relationship between

    * Professor doutor da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais.

    **

    Mestra em Literaturas de Lngua Portuguesa pela PUC Minas. Tcnica da Secretaria Municipal de

    Educao de Belo Horizonte.

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    form and content and its effects, emphasizing just the textual

    structures on behalf of an interpretation of the text with a focus on

    grammatical elements. Considering this aspect, Wolfgang Iser's ideas

    about the aesthetic character of the literary work and its effect on the

    reader will be highlighted. Another issue that will be addressed

    concerns the humanizing potential of literature, which will be

    discussed in the perspective of Friedrich Schillers ideas and through the text "The right to literature" by Antonio Candido.

    Keywords: Readers formation; Aesthetic effect; Humanizing character of literature.

    INTRODUO

    No presente artigo trataremos dos aspectos que definem um texto como literrio,

    ou de como sua estrutura pode ser a causa de um efeito esttico.

    Nos espaos de formao de leitor, quase sempre, ao se explorar os textos

    literrios, d-se enfoque s questes psicolgicas, opinies subjetivistas e expresses

    individuais sem que a estrutura lingustica seja ressaltada como o elemento propulsor

    das elucubraes do/no leitor. No outro extremo, h tambm as abordagens que deixam

    de lado a relao forma e contedo e seus efeitos, destacando somente as estruturas

    textuais, em nome de uma interpretao do texto com base em elementos gramaticais.

    Porm, a experincia de dar sentido a um texto, que resulta na realizao da

    leitura, motivada pela estrutura aberta do texto esttico. No jogo de escolhas de

    sentidos para um texto, a forma esttica a grande motivao para que o leitor mobilize

    seu conhecimento de mundo, suas experincias, e atualize cada texto que l.

    Outra questo que ser abordada diz respeito a um aspecto da literatura que o

    de facilitar ao homem rever sua condio trgica de assujeitado diante do destino e, por

    meio da forma esttica, ter cincia dessa condio, compreender, denunciar, negar.

    Nessa acepo, a literatura pode ser vista como um exerccio de reflexo do homem

    sobre sua prpria condio. No apontamento desses aspectos, as cartas de Friedrich

    Schiller oferecero os elementos de compreenso do papel de formao pela arte. Tal

    carter humanizador ser enfatizado tambm a partir de O direito literatura, de

    Antonio Candido.

    O panorama da presente discusso ser traado, portanto, por meio de princpios

    filosficos ligados a uma definio geral do carter esttico da arte. Como o objeto

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    esttico que ser tratado por esta anlise o literrio, outra dimenso a ser apresentada

    pela discusso a do campo da teoria literria. Considerando-se esse aspecto, sero

    ressaltadas as ideias de Wolfgang Iser sobre o carter esttico da obra literria e seus

    efeitos sobre o leitor. Aps fazer esse percurso por alguns aspectos do campo da

    Esttica e da Teoria da Literatura, ser analisado o texto Por parte de pai, de

    Bartolomeu Queiroz, com base na funo de suas estruturas lingusticas. A noo de

    estrutura lingustica com a qual sero operadas as anlises est relacionada com o que

    Iser prope, ou seja, que o aspecto verbal do texto dirige, at certo ponto, a reao do

    leitor, impedindo sua arbitrariedade interpretativa. Essa noo revela que para o autor as

    estruturas do texto so a prefigurao da recepo, j que elas possuem um potencial de

    efeito que se realiza com o ato do leitor. Desse modo, na acepo apresentada, o que se

    pode concluir que, para Iser, as estruturas do texto so, ao mesmo tempo, estrutura

    verbal, medida que do forma ao texto, e estrutura afetiva, j que preenchem sua

    funo medida que afetam o leitor. Assim, o texto ser dividido em trs partes. Uma

    tratar dos pressupostos tericos que explicam o carter humanizador da literatura, a

    outra, o aspecto ficcional como ato intencional de formatao de um imaginrio e, por

    fim, na ltima parte, pretende-se evidenciar a forma do texto literrio e seus efeitos

    estticos.

    FRIEDRICH SCHILLER E ANTONIO CANDIDO

    Antonio Candido (2004), no artigo O direito literatura, desenvolve

    importantes reflexes sobre a sociedade contempornea que muito se assemelham s

    ideias de Friedrich Schiller (1990) sobre a sociedade de sua poca. Seus argumentos

    denunciam a barbrie na qual vivemos, porm, diferentemente do momento sobre o qual

    Schiller faz suas reflexes, quando os avanos tcnicos comeavam a interferir nos

    modos de vida da sociedade, Antonio Candido flagra uma sociedade altamente

    tecnolgica, mas que, nem por isso, mais justa. Consciente dessa contradio, o crtico

    brasileiro define a barbrie como estando ligada ao mximo da civilizao, e, apesar de

    possuirmos meios materiais e tecnolgicos para fazermos essa sociedade mais justa,

    isso no ocorre. Essa constatao nos permite aproximar tal fato afirmao de Schiller

    (1990) de que a sociedade de seu tempo vivia uma incoerncia entre a teoria e a prtica,

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    j que, com o Iluminismo, o esclarecimento, do qual as camadas mais altas daquela

    poca se vangloriavam, tratava-se apenas de uma cultura terica. Da mesma maneira

    que Schiller ansiava por uma cultura que transformasse o cotidiano das formas de vida,

    Antonio Candido, por sua vez, argumenta em favor de uma sociedade mais democrtica,

    em que os direitos humanos fossem garantidos, pois, em sua opinio, fazemos parte de

    uma era na Histria em que possvel, ainda que do ponto de vista terico, solucionar

    as grandes injustias e desarmonias.

    A FORMA ESTTICA COMO ESTRATGIA HUMANIZADORA

    No artigo O direito literatura, Antonio Candido constri seus argumentos no

    sentido de conclamar aqueles que lutam pelos direitos humanos1 a pensarem que o

    fundamento de tal causa reconhecer que aquilo que consideramos indispensvel para

    ns tambm indispensvel para o prximo (CANDIDO, 2004, p. 172). Nesse sentido,

    dentre o direito de todos a bens fundamentais como casa, sade, comida, educao, ele

    insere o direito literatura, pois, como todos os outros, esta tambm um bem

    incompressvel. Seu argumento para insero da literatura entre aquilo que essencial

    se baseia no fato de que a literatura uma manifestao universal de todos os povos em

    todos os tempos. A partir da, Candido conclui que sua importncia se constitui como

    fator indispensvel de humanizao. Na opinio desse intelectual, homem algum pode

    viver sem entrar em contato com alguma fabulao, e as criaes literrias agem como

    fator de equilbrio social, confirmando o homem na sua humanidade. Argumenta ainda

    que cada sociedade cria as suas manifestaes ficcionais, poticas e dramticas de

    acordo com seus impulsos, as suas crenas, os seus sentimentos, as suas normas, a fim

    de fortalecer em cada um a presena e atuao deles (CANDIDO, 2004, p. 175).

    Mais uma vez, assim como Schiller, Candido recorre arte como meio

    pedaggico de emancipao da humanidade. Ele reivindica o direito literatura por ser

    esta um meio de humanizao. O autor v nesses argumentos a justificativa para o

    interesse sobre a literatura como instrumento poderoso de instruo e educao, como

    1 O contexto do artigo em questo foi, originalmente, uma palestra proferida em 1988, em curso

    organizado pela Comisso de Justia e Paz, da Arquidiocese de So Paulo, e, posteriormente (1989),

    publicado no livro Direitos humanos um debate necessrio, organizado por Antonio Carlos Ribeiro Fester. A verso que consultei do texto O direito literatura encontra-se em: CANDIDO, Antonio. Vrios escritos. 4 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul/ So Paulo: Duas Cidades, 2004.

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    equipamento intelectual e afetivo. Os valores que as sociedades apregoam e tambm os

    que consideram como prejudiciais so manifestados na fico, na poesia, na

    dramaturgia. Assim, a literatura age de maneira dinmica, pois

    [] confirma e nega, prope e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. Por isso

    indispensvel tanto a literatura sancionada quanto a literatura

    proscrita; a que os poderes sugerem e a que nasce dos movimentos de

    negao do estado de coisas dominante (CANDIDO, 2004, p. 175).

    A literatura vista, ento, como uma poderosa fora de iniciao na vida,

    complexa e variada, nem sempre desejada pelos educadores, pois seus padres nem

    sempre elevam ou edificam, mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e

    o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo porque faz viver (CANDIDO,

    2004, p. 176). Nessa perspectiva, a literatura tem uma funo ligada sua complexidade

    por ser obra do carter humano. Parafraseando o autor, quando o poeta e o narrador

    organizam as palavras, essa habilidade gera uma fora que prope ao leitor um modo de

    ver as coisas atravs de um modelo de coerncia e, ainda que no seja percebido, a

    partir da obra literria, o leitor torna-se capaz de ordenar a prpria mente e sentimentos;

    como consequncia, torna-se mais capaz de organizar a sua viso do mundo. Isso se d

    porque

    [] a organizao da palavra comunica-se ao esprito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. Isto ocorre

    desde as formas mais simples, como a quadrinha, o provrbio, a

    histria de bichos, que sintetizam a experincia e a reduzem a

    sugesto, norma, conselho ou simples espetculo mental (CANDIDO,

    2004, p. 177).

    No desenvolvimento de seus argumentos, Antonio Candido ressalta que o efeito

    que uma mensagem de carter literrio pode provocar no leitor assegurado pelo

    cdigo que, conforme sua construo, evidencia uma escolha lapidar que impressiona,

    por meios tcnicos, a percepo do leitor. Antonio Candido acredita que o contedo s

    atua pela forma, esta, por sua vez, sendo definida pela coerncia daquele que a escolhe,

    traz em si o humano, aquele que, do caos originrio, escolheu a forma e trouxe a

    ordem (CANDIDO, 2004). Num movimento similar, o caos interior do leitor tambm

    se ordena e a mensagem pode atuar. Assim, toda obra literria pressupe a superao do

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    caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de

    sentido (CANDIDO, 2004, p.178).

    Por isso, para que um poeta comunique os sentimentos e evocaes constitutivos

    de uma determinada obra para seu leitor, de maneira a auxili-lo no processo de leitura,

    o primeiro precisa escolher uma forma que ganhe expresso ao ser recebida por este. A

    forma escolhida pode, por exemplo, ser de versos livres ou versos de dez slabas,

    explorar certas sonoridades, combinar as palavras com percia ou sintagmas de alto

    poder sugestivo, promover alternncias entre slabas tnicas e slabas tonas, fazer

    sugestes de ideias pelas rimas ou criar cadncia atravs de ritmos etc. A escolha de

    uma ou outra forma se d pelo contedo que se quer evidenciar. A qualidade de um

    determinado texto pode ser percebida se a sua forma, ao transformar o informal ou o

    inexpresso em estrutura organizada, permite que o contedo venha tona provocando a

    imaginao do leitor. So esses os recursos utilizados na poesia ou na fico que

    encaminham o leitor s snteses e consequente compreenso do texto. A organizao

    entre forma e contedo, a partir de escolhas de um autor, deve possibilitar a expresso

    de determinados sentimentos e experincias de maneira que a forma atue apresentando o

    contedo ao leitor, requisitando deste sua capacidade de ver, ouvir, refletir (CANDIDO,

    2004, p. 179).

    A forma de expresso encontrada na literatura, para Antonio Candido, pode ser

    entendida como uma modalidade de construo de conhecimentos que satisfazem

    necessidades bsicas do ser humano como emoes, sentimentos que se processam no

    inconsciente, mas que se traduzem em enriquecimento do humano, porm difcil de

    avaliar. Ainda segundo o autor, as produes literrias enriquecem nossa viso e

    percepo de mundo. A humanizao por meio da literatura se d por conhecimentos

    oriundos de uma ordem redentora da confuso (CANDIDO, 2004, p. 180),

    enriquecendo as personalidades e os grupos.

    Uma quota de humanidade desenvolvida em ns pela literatura quando esta

    nos torna pessoas mais compreensivas e abertas para a natureza, a sociedade, o

    semelhante. Existe outra ordem de conhecimentos possibilitados pela literatura, aqueles

    planejados intencionalmente pelo autor e conscientemente assimilados pelo receptor.

    Um autor pode influir no posicionamento do leitor, medida que o expe aos

    sentimentos e sociedade, a partir de termos esteticamente vlidos, sob pontos de vista

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    humanitrios e polticos. Nesse aspecto, Antonio Candido considera que a eficcia

    humana funo da eficcia esttica e, portanto, o que na literatura age como fora

    humanizadora a prpria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes

    (CANDIDO, 2004, p. 182). Assim, de maneira similar educao pela arte proposta por

    Schiller, Antonio Candido concebe uma proposta de aprimoramento do homem pela via

    da reflexo em consonncia com a sensibilidade.

    TEXTOS DE FICO

    A partir dos caminhos abertos por Antnio Cndido, nesta seo, pretendo

    construir um elo entre o propsito humanizador da literatura e sua eficcia esttica, por

    meio de argumentos calcados nas ideias de Wolfgang Iser.

    Como proposto por Iser (2002), a fico resultado de um ato intencional de

    fingir, por meio do qual o autor d uma forma ao seu imaginrio, ato que resultar no

    objeto esttico. Por meio dessas ideias, possvel construir outras ilaes, ou seja, como

    todo sujeito situado num tempo histrico, seu imaginrio ser influenciado por essas

    circunstncias, assim, de supor que cada texto literrio represente uma perspectiva do

    mundo, criada por seu autor.

    Porm, a forma do imaginrio como literatura se d pelo cdigo verbal. Iser, em

    seu artigo Os atos de fingir ou o que fictcio esclarece que o imaginrio por ns

    experimentado antes [quando sem forma] de modo difuso, informe, fluido e sem um

    objeto de referncia (ISER, 2002, p. 958). Para que o imaginrio seja apreendido pela

    linguagem verbal, esta precisa suspender sua condio designativa, conotativa e assumir

    uma posio mais aberta quanto a sua capacidade determinativa de nomear as coisas. A

    linguagem verbal ou as estruturas dentro de um texto literrio ou fictcio assumem,

    assim, feies mais imprecisas, metafricas, figurativas e ser essa linguagem que

    provocar o leitor, propondo a ele experimentar a configurao do imaginrio em sua

    conscincia como alguma coisa que no corresponde s suas disposies habituais. O

    carter de experincia propiciada pela leitura literria est sempre vinculado a este

    princpio do estranhamento. Em outro texto, Problemas da teoria da literatura atual: O

    imaginrio e os conceitos-chave da poca, Iser (2002) esclarece que o imaginrio, ao

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    ser convertido em objeto esttico2, ganha forma e, por isso mesmo, pode ser

    experimentado pelo leitor. A experincia proveniente da leitura, nessas condies,

    solicita do leitor a capacidade de produzir o objeto imaginrio em sua conscincia como

    um correlato do texto. Sendo assim, o leitor pode dirigir a ele atos de compreenso, o

    que ser a tarefa da interpretao.

    A converso do objeto imaginrio em uma dimenso semantizada implica dizer

    que a recepo do texto literrio est mais prxima da experincia do imaginrio do

    que a interpretao, que pode apenas semantizar o imaginrio (ISER, 2002, p. 950).

    Como a interpretao do texto literrio ser sobre os efeitos de uma estrutura que d

    forma ao imaginrio, uma organizao textual aberta, metafrica, ambgua; ento, o

    sentido do texto no pode ser visto como a sua finalidade. Nesse ponto das reflexes

    podemos concluir que o imaginrio parece ser a dimenso que o texto literrio pretende

    alcanar. Nessa medida, o texto literrio pode ser compreendido como estratgia de

    configurao do imaginrio, e sua leitura, uma possibilidade de entrar em contato com o

    imaginrio. A partir dessa ao, h uma consequente possibilidade de algo ainda no

    percebido se revelar ao leitor.

    O movimento assim dialtico. O imaginrio tende a interferir na realidade do

    sujeito leitor, pois, ao ser formulado pela fico, torna-se apreensvel. O texto ficcional

    movimenta-se desse modo entre o mundo da realidade e o imaginrio, com a finalidade

    de provocar sua mtua complementaridade. Quando o texto ficcional pe a realidade

    entre parnteses, provocando a conscincia daquilo que foi dado a perceber pelo ato de

    fingir, a funo do fictcio compreendida como ordenao de seus atos como

    experimentabilidade de reformulao dentro do mundo (ISER, 2002, p. 983).

    POR PARTE DE PAI

    Pensando em todos os elementos da literatura apresentados por este texto at

    aqui, como o aspecto esttico, a sua funo reflexiva e de provocar sentimentos,

    passaremos, ento, ao exerccio de anlise de um texto literrio, Por parte de Pai, de

    Bartolomeu Campos de Queirs. Farei um pequeno resumo da obra e no decorrer de

    minhas anlises citarei alguns trechos.

    2 O texto literrio criado intencionalmente pelo autor, a partir da forma que este imprime ao seu

    imaginrio.

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    O texto de Bartolomeu Campos de Queirs narrado em primeira pessoa pela

    voz de um menino. Ele conta histrias sobre a casa onde vivia em companhia de seu av

    paterno. A histria no linear. Em alguns momentos se refere morte da me, em

    outros posteriores refere-se ao perodo da doena dela. O menino narra situaes em que

    os afetos escondidos so dados a perceber por pequenos gestos. A narrativa, ao ser

    construda na perspectiva de uma criana, que, porm, relembra as situaes que conta,

    evidencia uma condio de enunciao peculiar, deve ser indiciada como ato de fingir.

    S assim o narrador , ao mesmo tempo, representado pela perspectiva de uma criana e

    por algum que relembra acontecimentos passados, mas com uma reflexo baseada no

    presente. A condio da escrita como possibilidade de reflexo e desvelamento daquilo

    que o narrador parece procurar representada pela frequente referncia a um hbito de

    seu av: ele registrava acontecimentos, provrbios, frases que inventava por toda a

    parede de sua casa. So vrias as situaes em que o menino revela esses escritos.

    O escuro apertava minha garganta, roubava meu ar. O fio da luz

    terminava amarrado na cabeceira do catre. O medo assim maior do

    que o quarto me levava a apertar a pera de galalite e acender a luz,

    enfeitada com papel crepom. O claro me devolvia as coisas em seus

    tamanhos verdadeiros. O nariz do monstro era o cabo do guarda-

    chuva, o rabo do demnio o cinto do meu av, o gigante, a capa

    Ideal cinza para os dias de chuva e frio. Ento, procurava distrair meu pavor decifrando os escritos na parede, no canto da cama, to

    perto de mim. Mas era minha a dificuldade de acomodar as coisas

    dentro de mim. Sobrava sempre um pedao. (QUEIRS, 1995, p. 18).

    O escuro aqui no somente a condio para que as sombras dos mveis e

    outras coisas em seu quarto se transformassem em monstros e assombraes. Era a

    condio de escurido de suas emoes. O menino era criado por seus avs paternos, o

    pai vivia viajando, a me morrera de uma doena que antes a fez sofrer muito. Ele temia

    no ser filho de seu suposto pai, pois, assim, perderia o av. O afeto do menino pelo av

    evocado sempre numa relao com a escrita, que, nesse texto, ora revela, ora encobre

    os sentimentos do menino.

    Apreciava meu av e sua maneira de no deixar as palavras se

    perderem. Sua letra, no meio da noite, era a nica presena viva,

    acordada comigo. Cada slaba um carinho, um capricho penetrando

    pelos olhos at o passado. Meu av pregava todas as palavras na

    parede, com lpis quadrado de carpinteiro, sem separar as mentiras

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    das verdades. Tudo era possvel para ele e suas letras. No ser filho do

    meu pai era perder meu av. (QUEIRS, 1995, p. 18).

    No trecho citado, pelas aproximaes que o narrador faz entre as lembranas, o

    av e a escrita, um caminho delineado para compreenso da narrativa sua proposio

    metalingustica. A ideia de que tudo era possvel pelas palavras anuncia o ato de fingir

    como possibilidade de desvelamento daquilo que o menino no podia compreender e

    acomodar dentro de si. a escrita, portanto, que o narrador conclama a elucidar a

    escurido nas lembranas do menino. No texto h uma recorrncia da oposio noite e

    dia para a figurao dos sentimentos do menino. H uma passagem comovedora quando

    ele declara seu amor por Jeremias, um galo. Nessa passagem possvel perceber o

    ponto de vista do narrador sobre um galo cego de um olho e a maneira como uma

    estrutura altamente potica pode descrever uma situao simples, mas comovedora.

    Jeremias ciscava solto por todo canto. Vivia privilgios que outros

    galos no tinham, no galinheiro e fora dele. Passeava pela horta,

    enfarado de alface ou tomate, bicando sementes e insetos,

    calmamente. Tambm pudera. Cego de um olho! Seu mundo se

    dividia em luz e trevas. De um lado o dia, e de outro a noite. Ele

    morava num meio-termo e isto me causava pena. Com um olho via a

    luz, com o outro via a noite, eternamente. [...] Um olho era um

    presente, o outro um castigo. Jeremias, meio lerdo, no saa desse

    crepsculo. [...] Ter a noite inteira simples, basta fechar os olhos,

    mas ter o poente preciso cincia. Eu mantinha um amor imenso por

    Jeremias. Desse amor que a gente aperta o amado para contentar o

    corao, sem se descuidar para no matar de amor (QUEIRS, 1995,

    p. 28).

    O narrador, ao descrever a situao de Jeremias, no fala somente da condio

    do galo. A maneira como o animal percebido e descrito faz com que o leitor sinta a

    afeio do menino pela ave. As estruturas escolhidas pelo autor para falar da relao

    entre menino e galo parecem elucidar a prpria condio do menino. E, por fim, o leitor,

    ao perceber, pela organizao do texto, a condio do menino, comove-se ao se deparar

    com um sentimento que, por vezes, de todo ser humano. Outra referncia importante

    ao ato da escrita como reveladora do no dito evidencia-se no episdio em que o relgio

    de parede deixa de funcionar. Esse objeto representa uma metfora importante sobre o

    tempo na narrativa e tambm uma representao afetiva do menino. Se por um lado o

    tempo ser traduzido pelo av como sendo implacvel com o homem, para o narrador

    ele significa a possibilidade da experincia do passado, quando a presena do av de

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    novo possvel pelas letras, insinuao que sugere ao leitor os efeitos da literatura. Num

    certo ponto da narrativa, quando o leitor j conhece a importncia do relgio de parede

    da casa do av para o menino, ele para de funcionar. com muita emoo, como

    descreve o narrador, que o av constata o fato. Se ele acredita que o tempo

    implacvel, como outro trecho do texto mostra, aquela avaria no relgio poderia ser um

    prenncio nada confortvel. A av estava doente na cama, a me j havia morrido, o

    av envelhecia e o menino percebia estar sendo expulso lentamente da casa do av, pois

    a tia solteirona reclamava do servio. A situao assim descrita pelo narrador:

    Antes de tir-lo [relgio], meu av tomou do lpis quadrado de

    carpinteiro, ajoelhou-se sobre a mesa e contornou o relgio na parede.

    Foi um risco largo e definitivo, definindo seu lugar entre tantas

    histrias e consideraes. Fiquei engasgado. No sei qual o pedao de

    mim nasceu naquela hora desmarcada. O relojoeiro deitou nos braos

    aquele oito infinito e partiu. Meu corao bateu forte de saudade

    antecipada. Li medo no olhar de meu av enquanto minha av, na

    cama, mornava a vida sem acusar perdas ou manifestar ganhos

    (QUEIRS, 1995, p. 67).

    A maneira como o av decide preservar a lembrana do relgio riscando sua

    forma na parede de onde foi retirado. A situao, ao ser descrita pelo narrador, sugere a

    mesma relao da estrutura da escrita literria com o no dito. O texto construdo da

    seguinte maneira, cada passagem minha pela copa, eu via a falta do relgio desenhada

    na parede e me perguntava se eu estaria presente em seu retorno (QUEIRS, 1995, p.

    68). A marca na parede signo do que no est l. Assim, a ausncia que assinalada

    pela representao.

    Essa uma caracterstica da escrita literria. O desvelamento do sentido do texto

    se d quando o leitor consegue significar a experincia da leitura. Quando o leitor

    preenche as estruturas do texto, as marcas lingusticas, deixando que o texto se projete

    em sua conscincia, ele experimenta os efeitos daquilo que o texto sugere, mas que no

    est nele. O que sugerido pela escrita so as emoes que um dado acontecimento

    pode provocar se ele for percebido pelo leitor como um correlato de uma emoo da

    realidade. Como esse acontecimento percebido pelo leitor, a partir de um contrato

    tcito pela literatura como encenao, ele recebe o fato literrio como se (ISER, 2002,

    passim) estivesse numa situao da realidade.

    Por tudo isso que levantei sobre a constituio estrutural da obra e seus possveis

    efeitos sobre o leitor, a minha impresso sobre o narrador de que ele cumpre uma

  • Audemaro Taranto Goulart e Viviane de Cssia Maia Trindade

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 122

    dupla funo no texto. Essa dupla funo fortalece a intuio que tive na primeira

    leitura da obra de que as metforas seguidas do texto promovem uma narrativa em dois

    planos. Nos pargrafos anteriores, quando fao citaes da obra e indico que o menino

    quem est narrando, isso ocorre porque as estruturas parecem desvelar seus sentimentos

    diante dos fatos narrados. Quando destaco o narrador porque as estruturas exercem sua

    funo de distanciamento do fato fictcio. O narrador promove assim uma orientao do

    leitor, manipulando, conduzindo o seu olhar. O enunciado a explicitao de uma

    necessidade da existncia do leitor para que ele desvele o que as marcas verbais

    escondem.

    Para cumprir essa funo da estrutura e compreender o no dito do texto, o

    leitor libera sua prpria imaginao, vivenciando aquilo que o texto sugere. A maneira

    como as estruturas afetam o leitor possibilita que ele sinta as emoes do menino

    configuradas pela narrativa. As estruturas do texto tambm cumprem assim a sua dupla

    funo, a de conduzir o leitor na atualizao do cdigo verbal impedindo sua

    arbitrariedade e a de produzir afetao pelos efeitos que mobiliza no leitor. Se destaco

    separadamente a mobilizao exercida pelo plano do enunciado e pelo plano dos afetos

    para que a potencialidade da estrutura seja compreendida, tornando clara a

    organizao intencional do plano estrutural da obra e como ela promove no leitor seus

    atos de compreenso do texto.

    UM CASO DE UTILIZAO DE POR PARTE DE PAI EM MANUAL

    DIDTICO

    Voltando aos propsitos iniciais deste texto, quando destaco a necessidade de

    compreenso dos elementos estticos que caracterizam o texto literrio, e a necessidade

    de sua explorao nas leituras mediadas para formao de leitores, gostaria de discutir

    um exemplo para contraponto.

    Assim, apresento a maneira como o manual didtico Se bem me lembro

    Olimpada de Lngua Portuguesa (2010)3 prope a anlise da estrutura do texto de

    Bartolomeu Campos de Queirs. Transcrevo do referido manual parte da proposta de

    compreenso da obra Por parte de pai.

    3 SE BEM me lembro... Caderno do professor: orientao para produo de textos [equipe de produo:

    Regina Andrade Clara, Anna Helena Altenfelder, Neide Almeida]. So Paulo: Cenpec, 2010. (Coleo da

    Olimpada).

  • O carter esttico do texto literrio na formao do leitor

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 123

    A atividade a partir de sua leitura consiste em propor ao aluno que observe trs

    textos com a finalidade de perceber as diferenas entre gneros textuais. Assim, so

    citados fragmentos de Minha vida de menina, de Helena Morley4, classificado como

    dirio; Mercador de escravo, de Alberto da Costa e Silva5, como relato histrico e Por

    parte de pai, de Bartolomeu Campos Queirs (1995), que aparece no manual como

    memria literria. s citaes, segue a seguinte orientao:

    Ajude os alunos a perceberem que h semelhanas entre os textos:

    todos so escritos em primeira pessoa; o autor tambm o narrador

    ou o relator dos fatos6. Alm disso, os autores relatam

    acontecimentos que marcaram experincias de vida (SE BEM me

    lembro..., 2010, p. 44).

    Aps propor uma atividade em que os alunos devero encontrar as marcas de um

    narrador em primeira pessoa, h uma orientao de que o professor deve explicar que o

    texto em primeira pessoa revela que o narrador tambm personagem da histria que

    conta (SE BEM me lembro..., 2010, p. 58). Essas explicaes so complementadas

    com a afirmao de que a presena explcita do narrador uma marca lingustica dos

    textos que se organizam com base em relatos de experincia vivida, como os dirios, as

    memrias (literrias ou no), entre outros gneros (SE BEM me lembro..., 2010, p. 59).

    Essa afirmativa de que o narrador do texto de memrias o prprio autor se dar

    em vrias partes do manual. Portanto, os fatos fictcios so compreendidos como

    acontecimentos da realidade, o que torna incompreensvel a necessidade de o material

    adotar uma classificao para o texto Por parte de pai de memrias literrias.

    Uma dimenso importante da fico que cada personagem uma perspectiva

    de apresentao da narrativa, uma estratgia lingustica do autor para apresentar pontos

    de vista na narrativa. O narrador no o autor, ele uma entidade de fico que s

    existe no texto.

    Para esclarecer mais a questo, cito as observaes de Cndida Gancho (2006),

    na obra Como analisar narrativas, quando observa que numa anlise de narrativas no

    4 MORLEY, Helena [Alice Dayrell Caldeira Brant]. Minha vida de menina. So Paulo: Companhia das

    Letras, 1998.

    5 SILVA, Alberto da Costa. Mercador de escravo. In:___. Francisco Felix de Souza, o mercador de

    escravos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.

    6 Grifo nosso.

  • Audemaro Taranto Goulart e Viviane de Cssia Maia Trindade

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    se deve levar em conta a vida pessoal do autor para justificar posturas e ideias do

    narrador, pois, quando se trata de um texto de fico (imaginao), fica difcil definir os

    limites da realidade e da inveno (GANCHO, 2006, p. 30). A autora indica que esse

    pressuposto vlido tambm para as autobiografias, nas quais no temos a verdade dos

    fatos, mas uma interpretao deles, feita pelo autor (GANCHO, 2006, p. 30). O carter

    de verossimilhana da obra literria se d pelo que Iser (2002) chama de atos de fingir,

    que so denominados de seleo e combinao.

    A forma literria determina o imaginrio para que ele possa agir sobre a

    realidade. O autor, ao escolher a forma para organizar o caos mental, decompe o

    mundo da vida e seleciona sistemas contextuais preexistentes, sejam eles de natureza

    sociocultural ou mesmo literria (ISER, 2002, p. 960) para com eles criar um mundo

    fictcio com aparncia de realidade. Dessa maneira, o contedo de sua mensagem,

    atravs das estruturas do texto literrio, pode atuar. Por meio dessa seleo, os

    elementos que compem o texto e que foram escolhidos pelo autor perdem sua

    significao anterior, pois foram desvinculados da estruturao semntica ou

    sistemtica dos sistemas de que foram tomados (ISER, 2002, p. 960).

    O que se depreende dessa estratgia que os elementos contextuais que o texto

    integra no so em si fictcios, porm o leitor no poder recorrer aos campos de

    referncia anteriores, j que as suas fronteiras foram transgredidas. Toda essa dinmica

    entre a realidade e o imaginrio mediada pela fico que permite confirmar a assertiva

    acima de que no mais possvel saber o que realidade ou criao do leitor.

    Ao ato de seleo segue o de combinao. Este ltimo responsvel por um

    relacionamento entre os elementos selecionados do mundo da vida no interior do texto.

    Atravs dessa relao interna promovida pelo ato de combinao do autor, tais

    elementos tm seus valores e significaes anteriores transgredidos.

    Como consequncia da articulao interna dos elementos do texto, a partir da

    seleo e combinao, segundo Iser, surgem ento campos de referncia intertextuais,

    resultantes dos elementos de que o texto se apropriou (ISER, 2002, p. 966). Todas

    essas aes resultam numa transgresso dos significados lexicais em favor de uma

    relacionalidade intensificada (ISER, 2002, p. 967) que tende a anular o significado

    literal da lngua e sua funo designativa em favor de uma liberdade maior para

  • O carter esttico do texto literrio na formao do leitor

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 125

    conjugar situaes, valores e normas que no so passveis de se relacionarem no plano

    extratextual.

    Posto isso, possvel identificar contradies nas abordagens do material

    didtico. O que podemos dizer do autor em relao ao texto Por parte de pai que ele

    escolheu um narrador cujo ponto de vista em primeira pessoa. A perspectiva desse

    autor para tematizar o mundo se d por um eu fictcio. Ao selecionar esse ponto de

    vista, define a estrutura do texto a partir de um campo de viso intimista, dando fora

    proposio de que falar do passado a partir das lembranas desse eu inventado.

    Sendo assim, o texto escrito na perspectiva de um narrador na primeira pessoa

    a preparao de um imaginrio para uso. Uma consequncia importante para o

    tratamento do texto de fico, como desvelador de uma realidade extratextual, que

    essa condio atinge o prprio escritor. No importa se o autor trata de situaes vividas

    de fato ou se so fatos fictcios. O narrador, no sendo o prprio autor, exerce o papel de

    um outro que tambm lhe apresenta o mundo sob nova perspectiva.

    Para explorarmos um pouco mais as abordagens pedaggicas do manual didtico

    Se bem me lembro Olimpada de Lngua Portuguesa (2010), destaco o quadro a

    seguir, tambm retirado do referido instrumento. A partir dele, proponho discutir a

    desestruturao a que a narrativa foi submetida, descaracterizando o aspecto literrio,

    potico e metafrico em funo de um uso pedaggico. O material, ao eleger os

    elementos estruturais, no o faz considerando o seu potencial de efeito esttico e reduz,

    assim, a literatura a uma sequncia de fatos, deixando de lado o aspecto da forma

    esttica criada pelo autor e de suas inencionalidades como fico.

    O texto assim recortado e analisado:

    Bartolomeu Campos Queirs Por parte de pai

    Fatos Fragmentos do texto Como o autor narrou o fato

    O menino esperava a hora do caf para

    levantar.

    ... e eu ficava esperando o cheiro do caf me tirar da cama.

    Quando os raios clareavam as ltimas

    horas da noite...

    ... quando os raios esfaqueavam o resto da noite...

    O av tocava na testa do neto. Ento, com a mo muito branda, arrumava meus lenis e deixava um recado em

    minha testa, uma certa bno leve como

    os gatos.

  • Audemaro Taranto Goulart e Viviane de Cssia Maia Trindade

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 126

    Com uma das mos, o pai levantava a

    cabea do filho. Com a outra, fechada em

    forma de copo, imitava o som de algum

    bebendo gua.

    Fechava a mo em forma de copo, levantava a minha cabea com a outra, e

    fazia gute, gute.

    (SE BEM me lembro..., 2010, p. 83).

    Dadas as condies de anlise da obra propostas nos pargrafos anteriores deste

    texto, so notrios os equvocos cometidos pelo material ao propor uma coluna como

    fatos e a outra demonstrando como o autor os narrou.

    Se a obra literria, no sabemos o que fato e o que inveno. Alm disso,

    quando se comparam os textos da coluna da direita com a coluna da esquerda, no se

    pode assegurar que est escrita a mesma coisa em estruturas to diferentes. Assim, ... e

    eu ficava esperando o cheiro do caf me tirar da cama permite que o leitor experimente

    as sensaes criadas pela maneira como o texto organizado. Esfaquear o resto da

    noite no ir produzir no leitor os mesmos efeitos que o termo clarear. A maneira

    como o av toca a testa do menino imaginada pelo leitor por meio da sequncia de

    termos que criam a impresso de suavidade e carinho de um pelo outro. A cumplicidade

    entre pai e filho reveladas numa brincadeira de faz de conta arrematada com um gute,

    gute afetuoso.

    Desse modo, a coluna da esquerda no est dizendo a mesma coisa que a coluna

    da direita. Somente em uma possvel perceber que o autor escolheu a estrutura para

    contar alguma coisa que o leitor ter que descobrir por meio das emoes que lhe sero

    provocadas.

    Perceber os afetos nas entrelinhas experimentar os efeitos da estrutura

    escolhida pelo autor para narrar situaes cotidianas que marcaram o tempo da infncia

    do narrador. Os afetos velados entre os personagens da histria so representados pelas

    estruturas cheias de metforas. As metforas ou conceitos abertos so sintoma de uma

    preciso insuficiente (ISER, 2002, p. 950) quando se tenta expressar o imaginrio por

    discursos governados por cdigos.

    Pelas vrias situaes de tristeza enfrentadas por todos na histria, demonstrar os

    afetos abertamente parece ter se tornado alguma coisa difcil para os personagens, mas o

    menino prefere se lembrar das situaes justamente por esse ngulo. Atravs dos

    escritos do av na parede, ele foi desvelando seu carter. Por meio das marcas do texto

  • O carter esttico do texto literrio na formao do leitor

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 127

    ele revela o que estava escondido. Ao lado dessa emoo, um tom melanclico na

    narrativa tambm poder ser percebido. Contudo, esses so efeitos do texto que s

    podero ser experimentados na leitura completa da obra. Se ao leitor for dada a

    oportunidade de leitura da obra de maneira integral, ele poder perceber que o narrador

    orienta a leitura para um tempo percebido pelo menino como sendo o dos afetos.

    CONCLUSO

    Ao analisar o texto literrio Por parte de pai, ficou claro que a narrativa se

    constitura por meio de referncias prpria literatura, portanto, ao ato criativo do

    escritor. As estratgias literrias que se do a conhecer para o leitor marcam que o texto

    ficcional algo diverso da realidade. No entanto, os diversos signos ficcionais, que

    indicam a ausncia do objeto representado buscam preenchimento para suas carncias

    de sentido no contexto externo ao texto. Desse modo, esses signos no indicam que por

    eles se opera uma oposio realidade, mas antes algo cuja alteridade no

    compreensvel a partir dos hbitos vigentes no mundo da vida (ISER, 2002, p. 969).

    Por parte de pai, por meio das perspectivas de mundo institudas pelas marcas textuais,

    como narradores ou figuras de linguagem, propem ao leitor outras vises de mundo. A

    proposta de leitura do mencionado texto apresentada no manual didtico, ao

    desconsiderar a dimenso de complementaridade da fico ao mundo da realidade,

    denuncia que a interpretao de texto que orientada ao professor busca apenas pelos

    sentidos das estruturas lingusticas. Desconsiderando os aspectos metalingusticos dos

    textos, o material perde a oportunidade de ressaltar que a funo dessas de provocar

    determinados efeitos estticos sobre o leitor, ampliando seu prprio conhecimento sobre

    a realidade. Se h uma justificativa para a formao do leitor quando se apresenta a

    literatura nos espaos educativos, eficincia dessa iniciativa no dever prescindir a da

    abordagem da forma do texto literrio e seus efeitos estticos. Esse aspecto de mtua

    complementaridade entre forma e contedo que potencializar a funo do leitor como

    aquele que faz a sntese do processo, ou seja, que realiza a leitura, reconstruindo os

    elementos de uma realidade ficcional que se d no instante em que capturado pelo

    texto. No processo de leitura o leitor experiementa outras possibilidades de ver a

    realidade, distanciando-se das formas habituais de estar no mundo. Porque ao ser

  • Audemaro Taranto Goulart e Viviane de Cssia Maia Trindade

    Revista ContraPonto, Belo Horizonte, v. 3, n. 4, 2013. 128

    seduzido por uma forma que organiza o caos imposto pela vida social ordinria, ele

    prefere, no momento em que l, viver o que a fico lhe apresenta.

    REFERNCIAS

    CANDIDO, Antonio. O direito literatura. In: Vrios Escritos. Rio de Janeiro: Ouro

    Sobre azul / So Paulo: Duas Cidades, 2004, p. 169-191.

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    ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que fictcio. In: LIMA, Luiz C. (org.) Teoria

    da literatura em suas fontes. V. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2002,

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    SCHILLER, Friedrich. A educao esttica do homem. Trad. Roberto Schwars e

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    SE BEM me lembro...: caderno do professor: orientao para produo de textos

    [equipe de produo: Regina Andrade Clara, Anna Helena Altenfelder, Neide Almeida].

    So Paulo: Cenpec, 2010. (Coleo da Olimpada).


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