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NEM TUDO ERA CRISE: NEGÓCIOS E NEGOCIANTES EM BELÉM NO PÓS

CABANAGEM

Mábia Aline Freitas Sales (PPGH-UFF)

Carlos Gabriel Guimarães (Faculdade de História UFF)

Palavras-chave: Cabanagem, comércio dos portugueses, Império.

A defesa de que o último quinquênio da década de 1830 teria sido marcada

exclusivamente por uma crise econômica tornou-se um lugar comum entre relatos de

presidentes da Província, economistas, historiadores desde o século XIX. A crise

econômica, seria o resultado dos conflitos políticos e sociais causados pelos “motins”

cabanos, segundo o discurso dos legalistas. A construção de uma nova ordem seria

garantida por Soares de Andréa, incumbido de reerguer a Província a partir de 1836.

Em 1838, Soares de Andréa traçava “um quadro sombrio da economia paraense

agravado pela destruição dos ativos (...),” uma diminuição dos engenhos, das fazendas,

dos campos de agricultura, pecuária, etc.1 Esse discurso em tom desanimado sobre a

economia do Pará encontrou eco em outros discursos produzidos no calor dos

acontecimentos ou a posteriori. Domingos Antonio Raiol, contemporâneo da Cabanagem,

que teve seus pais mortos pelos cabanos, ajuda a compor um cenário desastroso do

movimento que, para ele, não fez distinção de individualidades ou de classes, alcançando

desde os maçons, bicudos, brancos até os tapuios e homens de cor.

Para Raiol, os “motins”, que por largos anos agitaram a sociedade paraense,

repercutiram nas camadas sociais, “com perturbação da ordem e sacrifícios incalculáveis

à segurança individual, à propriedade, à indústria, às artes, ao comércio, a toda a

província”2 [grifo meu]. Segundo a afirmativa do autor, o comércio seria um dos aspectos

atingidos pelos movimento dos rebeldes.

Roberto Santos, por sua vez, afirmou que de 1805 a 1840 “a tendência geral da

economia foi declinante”. Segundo ele, isso teria ocorrido “não só pelos azares da

economia mundial que inverteriam o movimento antes ascendente do preço do cacau e

desencorajaria a agricultura nos trópicos”, mas também “devido a ação de fatores

específicos de outra natureza.” Assinalou como um desses fatores “o prolongado período

1SANTOS, Roberto. História econômica da Amazônia (1800-1920). São Paulo: T. A. Queiroz, 1980, p.

35. 2 RAIOL, Domingos Antonio. Motins políticos ou História dos principais acontecimentos políticos da

Província do Pará. Tomo V. Belém: Universidade Federal do Pará, 1970, p. 1005.

de distúrbios políticos que viriam a culminar na guerra civil amazônica (1835).”3 Na

narrativa de Santos, mais uma vez a Cabanagem aparece como um dos pontos nevrálgicos

da economia da Província.

Em contraposição a essa ideia, autores já começaram a sugerir, alguns até há

bastante tempo, que data do ano de 1836 o início de uma recuperação do comércio no

Pará. Um desses autores é Ernesto Cruz. Ele destaca que em 1835 “o comércio esteve em

ponto morto,” e “os navios não se aventuravam a entrar num porto dominado pelos

rebeldes.” Mas, de 1836 a 1837, 66 embarcações de procedência estrangeira entraram no

porto da capital.4

Nesse mesmo caminho, Daniele Moura destacou que “ao longo do governo de

Soares de Andréa eram inúmeras as referências às tentativas de ordenamento da produção

e do comércio. Aponta que a documentação dá conta de uma “riqueza e variedade da

produção e movimentação comercial na Província, mesmo em dias tão repletos de

incertezas e conflitos.”5

Entre os autores há um pequeno consenso de que foi a partir de 1840 que a

economia do Pará começaria a prosperar. O próprio Ernesto Cruz, já citado anteriormente,

embora tenha apontado alguns pontos de crescimento no tocante a navegação já a partir

de 1836, diz que “vem exatamente do ano de 1840 a restauração da paz, do comércio e

da indústria, proporcionando a todos os habitantes da capital e do interior perspectivas

mais acalentadoras”.6 Siméia Lopes corrobora essa ideia quando fala que “após a

pacificação da população abalada pelas agitações políticas”, o Grão-Pará experimentava

um “reflorescimento econômico”.7 Esse reflorescimento, de acordo com a autora, foi

possível em função da modernização da produção agrícola e extrativa paralela aos

investimentos econômicos.

3 SANTOS, Roberto. Op. cit. 4 CRUZ, Ernesto. História da Associação Comercial do Pará. 2ª Ed. Belém: Editora Universitária. UFPA,

1996, p. 113. 5 Moura, Daniele. Economia e idéias de civilização no contexto da Cabanagem, 1836-1839. In:

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de; ALVES, Moema de Barcelar (Orgs.). Tesouros da Memória: História

e Patrimônio do Grão-Pará. Belém: Ministério da Fazenda, 2009. 6 CRUZ, Ernesto. História da Associação Comercial do Pará. 2ª Ed. Belém: Editora Universitária. UFPA,

1996, p. 115. 7 LOPES, Siméia de Nazaré. O comércio interno no Pará oitocentista: atos sujeitos sociais e controle

entre 1840-1855. Dissertação (Mestrado em Planejamento do Desenvolvimento). Belém: Universidade

Federal do Pará, 2002, p. 39.

De acordo com a descrição, existem pelo menos dois grupos de autores. Os que

defendem uma profunda crise da economia paraense que só começaria a mudar partir de

1840 e os que acreditam que o reflorescimento do comércio teria começado logo a partir

de 1836. Isso para não falar dos que postulam que a economia somente teria tomado

fôlego a partir de 1850 com a exportação da borracha. É inegável que quanto mais se

apaga os efeitos da Cabanagem há uma tendência para o crescimento da economia.

Entretanto, defende-se a ideia de que a Cabanagem causou maior estagnação do comércio

somente de julho de 1835 a maio de 1836. E mesmo com as intempéries que assolaram

os comerciantes portugueses, há uma continuidade do negócio dos portugueses.

Assim, o discurso de Andréa e outros que seguem a mesma linha, ajudam a

construir uma imagem sobre a economia do Pará que destoa de outros dados disponíveis

para o mesmo período. Ainda em 1833, o oficial graduado do Regimento de Artilharia de

Belém, Antônio Ladislau Monteiro Baena descrevendo a estrutura comercial da cidade

relata que:

A cidade numera dois jurisconsultos sem exercício de cargo ou lugar judicial;

dois rábulas; dois médicos; quatro cirurgiões; nove boticários; vinte

negociantes matriculados; dezesseis negociantes estrangeiros; setenta e

duas lojas de fazenda; cento e vinte e seis tavernas: cinco pequenas lojas de

ourives; oito botequins; cinco bilhares; quinze lojas de sapateiro; vinte lojas de

alfaiate; oito lojas de barbeiro; dez ferrarias; nove lojas de marceneiro; uma tanoa; dois relojeiros; três penteeiros; um caldeireiro e picheleiro; um funileiro

dezenove seges e carrinhos; quatro casas de pasto assim chamadas, e duas

destas são semelhantes aos armazéns da Boa Vista, de que se lembra o lépido

e polido Tolentino pintando uma bulha de dois bêbados. Há também pedreiros,

e carpinteiros de construção civil e náutica; exceto os ofícios indicados faltam

todas as mais artes fabris. [grifo meu]8

Entenda-se que os vinte negociantes matriculados eram portugueses e nacionais

e os dezesseis negociantes estrangeiros eram de diferentes nacionalidades, incluindo

ingleses, norte americanos, franceses, italianos e espanhóis. Destaca-se também o elevado

número de lojas (72) e tabernas (126).

Já em 1848, a presença marcante do comércio dos portugueses foi registrada pelo

viajante naturalista Henry Walter Bates que esteve em Belém pela primeira vez, em 1848.

Ele escreveu que no Pará,

O comércio, tanto em grosso como a retalho, estava em mãos dos

portugueses, que eram então uns 2.500. Muitos ofícios manuais são

exercidos pela gente de cor – mulatos, mamelucos, negros forros e índios. Os

8 BAENA, Antonio Ladislau Monteiro. Ensaio Corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado

Federal, 2004, p. 211.

brasileiros das classes mais elevadas detestam o ofício insignificante do

comércio a retalho, e se não são negociantes atacadistas, preferem a vida de

agricultores no interior. [grifo meu]9

Também o norte americano James Orton que esteve em Belém em 1868,

referindo-se ao comércio escreveu: “Commerce is carried on almost exclusively by

Portuguese, Fruit Peddlers and other foreigners.”10

No final da década de 1860, a presença dos portugueses que atuavam no

comércio nas mais diversas atividades era marcante. “Em dezembro de 1868 Belém

contava com 1.578 negociantes e 495 marítimos,”11 dos quais a maioria era portuguesa.

Essas descrições ajudam a construir um cenário local muito demarcado pela atuação dos

lusos em várias frentes de atuação, sobretudo no comércio.

A introdução da navegação a vapor em 1853,12 a abertura do rio Amazonas ao

comércio internacional13 e a ascendente valorização da borracha14 poderia sugerir que o

comércio português tendeu a esmorecer em função da intensificação da presença de

outros estrangeiros no Pará. Todavia, os portugueses tendem a acompanhar o

desenvolvimento da Província e estabelecer relações comerciais e de outras ordens15 em

um contexto cada vez mais favorável ao comércio.

9 BATES, Henry Walter. O naturalista no rio Amazonas. São Paulo: Brasiliana, 1944, p. 72-73. 10 ORTON, James. The Andes and the Amazon or Across the continent of South America. New York: HARPER & BROTHERS Publishers, 1870, p. 259. 11 PARÁ. Almanach Administrativo, Mercantil, Industrial e Noticioso da Província do Pará para o ano de

1871. Belém: Livraria, papelaria e officina de encadernador de Carlos Seidl & Cia, 1871, p. 167. 12 A navegação a vapor teve início nos Estados Unidos, que foi o primeiro a usar esse tipo de embarcação

em viagens transatlânticas. A primeira delas ocorreu em 1819 em uma viagem de Nova Iorque a Liverpool

num barco denominado Savannah. Para saber mais sobre navegação a vapor, ver: SAMPAIO, Marcos

Guedes Vaz. Uma contribuição à história dos transportes: A Companhia bahiana de navegação a

vapor (1839-1894). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História Econômica.

São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006. Em nível local a implantação regular de linhas a vapor ocorreu

em 1853, após intensos esforços do governo provincial. Para saber mais sobre a navegação a vapor no

Amazonas ver: GREGÓRIO, Vitor Marcos. Uma face de Jano: A navegação do rio Amazonas e a

formação do Estado brasileiro (1838-1867). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História Social. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 13 GREGÓRIO, Vitor Marcos. Op. cit., p. 20; MEDEIROS, Fernando Sabóia. A liberdade de navegação

do Amazonas: relações entre o Império e os Estados Unidos da América. São Paulo: Cia. Editora

Nacional, 1938; PALM, Paulo Roberto. A Abertura do Rio Amazonas à Navegação Internacional e o

Parlamento Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Relações Exteriores). Brasília: Fundação Alexandre de

Gusmão, 2009. 14 WEINSTEIN, Barbara. A borracha na Amazônia: Expansão e Decadência (1850-1920). São Paulo:

Edusp, 1993. 15 CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha. Tese

(Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História Social. São Paulo: USP, 2006, p. 247.

Como bem destacado pela historiografia, a arte de mercadejar parecia ser

inerente aos indivíduos lusos residentes nas cidades portuárias brasileiras.16 Estes

dominavam não apenas o comércio com Portugal, mas também com outros portos:

americanos, ingleses e franceses.17

Um aspecto que demonstra a dimensão do comércio dos portugueses no Pará são

os registros de matrícula no Tribunal de Comércio. O Tribunal de comércio foi criado

após a instituição do Código Comercial do Império do Brasil em 1850. Segundo Lená

Medeiros e Paula Cypriano, “a década de 1850 seria marcada por importantes avanços

legais e mudanças econômicas vitais à implantação de um capitalismo dependente e

periférico.”18 Cabe enfatizar que até 1850, a legislação inerente aos tratos comerciais que

regiam o comércio no Brasil depois de 1822 residia nas Ordenações Filipinas, cartas

régias, alvarás e decretos, havendo a ausência de um Código de Comércio brasileiro.

Até 1850 vigorou a Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação que

havia sido criada em 1755 por D. José I e transferida para o Brasil com a vinda da família

real para o Rio de Janeiro. Essa junta tinha a função de “orientar as atividades econômicas

em Portugal e em suas colônias,”19 tendo funcionado como um instrumento de

organização importante até 1850. Foi somente em 1850 que se criou efetivamente um

Código Comercial Brasileiro, embora a ideia de elaborá-lo tenha surgido logo depois da

vinda da Corte para o Brasil.20 Este Código, teve importância indelével na conformação

do Estado Imperial, visando a ampliação e a dinamização das atividades econômicas.

Significou um dos grandes marcos jurídicos no Brasil, tais como a Lei de Terras e a Lei

Eusébio de Queiroz. Portanto, a partir de 1850, o Estado institucionaliza a ação dos

16 A respeito da presença portuguesa no comércio brasileiro do século XIX cf. LOBO, Eulália M.Lahmeyer.

História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao industrial e financeiro. Rio de Janeiro: IBMEC,

1978, 2 vols.; ALENCASTO, Luis Filipe de, e RENAUX, Maria Luíza. Caras e modos dos migrantes e

imigrantes. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.). História da Vida Privada no Brasil. Império: a

corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia das Letras, 1998; Bruno Augusto Dornelas. O "retalho"

do comércio: a política partidária, a comunidade portuguesa e a nacionalização do comércio a

retalho, Pernambuco 1830-1870. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em História Social. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2012. 17 SALES, Mábia Aline Freitas. Viagem das coisas e das ideias. O movimento das embarcações e

produtos estrangeiros nos meados da Belém oitocentista. Dissertação (Mestrado em História). Programa

de Pós-graduação em História Social da Amazônia. Belém: Universidade Federal do Pará, 2012. 18 MENEZES, Lená Medeiros de; CYPRIANO, Paula Leitão. Imigração e negócios: comerciantes

portugueses segundo os registros do Tribunal do Comércio da Capital do Império (1851-1870). In:

MATOS, Maria Izilda S. de; SOUZA, Fernando de; HECKER, Alexandre (orgs). Deslocamentos e

Histórias: os portugueses. São Paulo: EDUSC, 2008, p. 103. 19 MENEZES, Lená Medeiros de; CYPRIANO, Paula Leitão. Op. cit. 20 Idem, Ibidem.

comerciantes e da relação de trocas, uma vez que a consolidação da política imperial do

Segundo Reinado se estruturou tendo como base a organização da produção, do sistema

financeiro e do comércio.21

Assim, após a instalação do Código de Comércio, os comerciantes que

quisessem gozar de crédito e proteção22 deviam se matricular em algum dos Tribunais de

Comércio do Império instalados no Rio de Janeiro, em Recife, Salvador e,

posteriormente, em São Luís. Mesmo os comerciantes que já tinham registro na antiga

Junta de Comércio deveriam se matricular novamente dentro de quatro meses após a

instalação do Tribunal de Comércio, podendo este prazo ser prorrogado apenas para os

comerciantes que morassem em lugares distantes.23

Essas políticas construídas em âmbito macro serviram para nortear o comércio

de todo o Império, mesmo com suas especificidades históricas e seus momentos

individuais diferenciados. Observando essas especificidades, alguns lugares que tinham

expressividade no comércio, mas que não receberam um Tribunal de Comércio,

receberam uma seção denominada Junta de Comércio tendo suas atribuições exercidas

“na parte administrativa pelas Autoridades administrativas, e na parte judiciaria pelas

Autoridades judiciarias”.24 O Decreto n.738 de 25 de novembro de 1850 estabeleceu que:

Haverá nas Provincias do Pará, S. Paulo e S. Pedro do Rio Grande do Sul, e

nas mais onde as necessidades do commercio o exigirem, Juntas do

Commercio, compostas de hum Presidente, e dous Deputados, nomeados pelo

Governo d'entre as Autoridades e Empregados das Repartições administrativas

da capital ou cidade das mesmas Provincias, onde for mais conveniente que as

referidas Juntas se estabeleção.25

Embora a Província do Pará não tenha recebido um Tribunal de Comércio, o

estabelecimento da Junta expressa que o comércio nesta parte do Império tinha

notoriedade no cenário imperial. As Juntas de Comércio das Províncias podiam exercer

todas as atribuições conferidas pelo Código Comercial aos Tribunais do Comércio, com

exceção somente da matrícula dos comerciantes, que era função privativa dos Tribunais.26

Nesse caso, cabia ao oficial da Secretaria da Junta de Comércio da Província receber

21 BENTIVOGLIO, Julio. O império das circunstâncias: o Código Comercial e a política econômica

brasileira (1840-1860). São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação em

História Econômica. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002. 22 Código Comercial Brasileiro de 1850, art. 4º e 7º. 23 Op. cit., art. 7 24 Decreto n.738 de 25 de novembro de 1850. Art, 89, p. 15. 25 Idem, Art. 90, p. 15. 26 Idem, Art. 77, p. 13.

todos os documentos necessários ao registro dos comerciantes, e encaminhá-los a um dos

três Tribunais de Comércio do Império.

A Junta do Commercio desta Provincia faz publico que em virtude do Decreto

n.° 930 de 10 de Março de 1852, e conforme foi declarado por Aviso da

Secretaria d'Estado dos Negócios da Justiça de 20 de Julho do anno passado,

compete a mesma Junta rubricar os livros que pelo Código do Commercio os

commerciantes quer matriculados quer naõ, e os Agentes auxiliares do

Commercio desta Provincia saõ obrigados a ter, e bem assim o dos documentos

que devem ser inscriptos no Registro Publico do Commercio; e que desta data

em diante passará a referida Junta a exercer estas attribuições. Secretaria da

Junta do Commercio 20 de Abril de 1854. O Secretario, Manoel Roque Jorge Ribeiro.27

A Junta de Comércio da Província do Pará foi instalada em 1 de março de 1854,

em sessão realizada numa das salas do Palácio do Governo, sendo a mesma presidida pelo

magistrado João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, acompanhada pelos Deputados

Manoel Roque Jorge Ribeiro e Antonio Agostinho de Andrade Figueira, e do Oficial da

Secretaria da Junta Izidoro José Pereira da Motta, e do Amanuense Arquivista João

Frederico Julio Peltre.

Consta no livro de “Registro de matrículas dos comerciantes; agentes auxiliares

de commercio de 1854 à 1855”28 da Junta Commercial do Pará a Carta de Matrícula de

25 comerciantes registrados entre 1851 e 1855.29 Desses, 14 foram matriculados no

Tribunal de Comércio da Capital do Império e 11 foram matriculados pelo Tribunal de

Pernambuco. Já as matrículas realizadas nas décadas de 1860 foram feitas na quase

totalidade no Tribunal do Maranhão. Dos 25 comerciantes registrados, 21 (84%) eram

portugueses, e apenas 4 (16%) eram paraenses. Desse total de matrículas, consta em 20

registros, que o domicílio do negociante era a Capital do Pará, dentre esses, encontrou-se

nos registros de comércio os nomes de alguns dos negociantes portugueses mais

conhecidos da praça de comércio de Belém, o que evidencia uma certa adequação desses

comerciantes a legislação vigente a fim de continuar usufruindo das benesses que o

comércio poderia oferecer, comércio que a medida que os anos passavam se tornava mais

efervescente.

Em 1855, mesmo ano em que foram efetuadas algumas das matrículas citadas

acima, havia em Belém 470 “casas de negócios” registradas na Recebedoria de Rendas

27 Treze de Maio, n. 320, de 21 de abril de 1854, p. 4. 28 Junta Comercial do Pará (JUCEPA). Registro de matrículas dos comerciantes; agentes auxiliares de

commercio de 1854 à 1855. 29 Provavelmente esses não são os únicos registros para esse período.

provinciais do Pará. Essas casas comerciais incluíam lojas, tabernas, armazéns, boticas,

escritórios, casas de capital, açougues, cartórios, fábricas e padarias. Na tabela 1 são

mostrados os números de registros dessas diferentes casas comerciais de Belém.

Tabela 1 – Casas comerciais de Belém, 1855

Casas Comerciais Quantidade

Tabernas 180

Lojas 140

Armazéns 80

Açougues 18

Escritórios 15

Padarias 14

Cartórios 7

Boticas 5

Fábricas 4

Cocheiros 3

Outras 7

Total 473

Fonte: Treze de maio30

Como mostrado na tabela 1, dos 470 estabelecimentos mercantis de Belém em

1855, as tabernas, lojas e armazéns compreendiam 85% das casas comerciais da Capital,

totalizando 400 recintos de atividade comercial. As outras 70 casas de negócios

compreendiam: 18 açougues (sendo 5 açougues e 13 talhos), 15 escritórios (a maior parte

de advogados e outros de firmas como a Companhia de Navegação do Amazonas e do

Banco Commercial do Pará), 14 padarias, 7 cartórios (5 particulares e 2 eclesiásticos), 5

boticas, 4 fábricas (uma de chapéus, uma de chocolate, uma de sabão e uma de charutos),

3 “locadoras” de seges e 7 outros estabelecimentos: um botequim, uma loja de joias, uma

perfumaria, uma loja de livros e três lojas de pasto.

Os portugueses dominavam grandes e pequenos empreendimentos comerciais.

Observe na tabela 8 as atividades comerciais com as quais estavam engajados os

portugueses residentes em Belém já no final da década de 1850.

Tabela 2 – Relação de casas comerciais e outras atividades dos estrangeiros em Belém, 1859

Atividade comercial Nacionalidades

Atividade comercial Nacionalidades

Portugueses Outras Portugueses Outras

Açougue 9 5 Loja de cabaceiras

(redes)

- 2

Armazém de açúcar 1 - Loja de fazendas 57 6

30 Treze de Maio, n. 360, de 22 de julho de 1854, p.5-6; n. 459, de 10 de março de 1855, p. 3-4 e n. 460 de

13 de março de 1855, p. 4-7.

Armazém de fazendas 21 16 Loja de ferragens 3 -

Armazém de lenha 1 - Loja de funileiro 5 -

Armazém de louças

estrangeiras

2 - Loja de joias - 1

Armazém de louças do país - 1 Loja de latoeiro 4 -

Armazém de molhados 20 5 Loja de livreiro 2 -

Armazém de sal 5 1 Loja de miudezas 5 1

Armazém de depósitos 1 2 Loja de ourives 5 1

Bauzeiro 2 - Loja de relojoeiro - 2

Botequim 1 1 Loja de sapateiro 20 2

Botica 2 - Loja de sirgueiro 1 - Cartório de advogado 1 - Loja de sombreiro 1 2

Casa de vender água 6 - Loja de tanoeiro 4 1

Casa de vender pente 3 1 Loja de torneiro - 1

Casa de vender pólvora 3 - Loja de tintureiro 1 -

Casa de torrar café 2 1 Loja de tamanqueiro 1 -

Cocheiro de aluguel 6 - Oficina de barbeiro 2 -

Cocheiro de carroça 2 - Oficina de cabeleireiro - 1

Escritórios comerciais 6 - Oficina de correeiro

(de correias)

1

1 Estância de madeira 4 -

Fábrica de chocolate 1 - Oficina de curtidores 1 -

Fábrica de foguete 4 - Oficina de cuteleiro - 1

Fábrica de licor 1 - Oficina de escultores 1 - Fábrica de refinar açúcar 2 - Oficina de ferradores 1 -

Hotel 2 - Oficina de ferreiro 3 4

Loja de alfaiate 18 1 Oficina de fundições - 1

Loja de armador 1 - Oficina de marceneiro 9 5

Loja de armeiro (armas) - 2 Padaria 9 5

Loja de chapeleiro 2 - Taberna 142 16

Loja de colchoeiro (colchão) - 1 Tipografia 2 -

Total de portugueses: 429 Total de outras nações: 90

Fonte: Relatório da Presidência da Província do Pará, 1859, p. 38.

Das 519 casas de comercio registradas como propriedade de estrangeiros, 429

pertenciam aos portugueses e apenas 90 eram de ingleses, norte americanos, italianos e

franceses. Os portugueses tinham a posse de aproximadamente 83% das casas comerciais

no final da década de 1850. Eles dominavam quase todas as atividades de comércio, com

exceção das lojas de armas, relojoeiro, sombreiro, torneiro e as oficinas de cuteleiro,

ferreiro e de fundições. Os portugueses se dedicavam as várias atividades do comércio,

sendo que um dos maiores destaques era o comércio de secos e molhados, que na tabela

2 correspondem principalmente ao "armazém de molhados" e "taberna". Os

"comerciantes portugueses eram donos da maior rede de distribuição de secos e molhados

do Império, e na corte e na Província do Pará possuíam armazéns que excediam em

número os dos nacionais".31 Outra tendência que se destacou entre os portugueses, foram

as lojas de fazendas, o que também foi notado no caso do Rio de Janeiro no período de

31 ALENCASTRO, Luiz Felipe de; RENAUX, Maria Luiza. Op. cit., p. 309.

1851 a 1870.32 Essas casas de negócios se dividiam nos dois bairros de Belém, o da

Cidade e o da Campina, com grande destaque para as ruas dos Mercadores, do Açougue

e da Boa Vista.

A lista de armazéns, lojas e demais casas comerciais da Capital cadastradas na

Coletoria de Rendas Internas da Província do Pará dos anos de 1854 e 1855 traz o nome

do negociante português Agostinho José Lopes Godinho. Na listagem ele aparece como

proprietário de um armazém e mais dois estabelecimentos comerciais, uma loja e uma

taberna, todos sitos na Rua de Belém, no Bairro da Campina33. Muito provavelmente, o

armazém era usado, principalmente, como depósito de açúcar e cachaça provenientes de

suas propriedades em Vigia de Nazaré34.

Em 1835, esse português de negócios já era proprietário da plantação de cana de

açúcar denominada de Santo Antônio da Campina, localizada na cidade de Vigia. Com a

eclosão da Cabanagem, os revoltosos saquearam o lugar, o que levou o português a fugir

do Pará, indo refugiar-se em Portugal, voltando somente depois que os ânimos se

acalmaram35. Mas, em 1846 o Sr. Lopes Godinho já havia restabelecido a produção de

açúcar da propriedade. Nesse ano o entomologista norte americano William Edwards

visitou a fazenda e observou que a plantação de cana estava indo bem “everything about

[plantation] indicated opulence and plenty (…) two mills constantly employed were

insufficient to dispose of his yearly crop.”36

Every thing about indicated opulence and plenty. Black - smiths, carpenters

and masons were at work in their different vocations; the negroes and oxen

were driving the sugar mills; the steam pipe of the distillery was in full blast;

and stacks of demijohns and jars were piled in the rooms, or standing ready to

receive the cashaça or molasses.37

Apesar do negociante português também ser proprietário de uma loja e uma

taberna na cidade, sua principal fonte de renda concentrava-se na produção de suas terras,

em Vigia. Por isso, em abril de 1856 Agostinho Godinho compraria de Maria Raimunda

da Conceição, Verissimo Máximo Gurjão e Raimundo Antonio de Souza mais “um quarto

32 MENEZES, Lená Medeiros de; CYPRIANO, Paula Leitão. Op. cit. 33 Treze de Maio, n. 360, de 22 de julho de 1854, p. 5-6 e n. 459, de 10 de março de 1855, p. 3-4. 34 EDWARDS, William H. A Voyage up the River Amazon Including a Residence at Pará. London:

John Murray, Albemarle Street, 1861, p. 95. 35 CUEVA, Oscar de la Torre. Freedom in Amazonia: the black peasantry of Pará, Brazil, 1850-1950.

Tese (Doutorado em História - Doctor of Philosophy). University of Pittsburgh, 2011, p. 118. 36 EDWARDS, W. H. A Voyage up the River Amazon. New York: Appleton & Company, 1848, p. 91-

94. 37 Idem, Ibidem, p. 91.

de terra de frente com uma legoa de fundos no Igarapé Camihi no 1º Districto da Cidade

de Vigia.”38

Em 1857 o negociante continuaria a expandir suas propriedades, pois nesse ano

ele adquiriu do Convento de Nossa Senhora do Carmo, a propriedade chamada Guajará,

uma porção de terra vizinha a sua fazenda.39 Toda a produção de açúcar, melaço e cachaça

de suas propriedades seriam enviadas para o armazém da Rua de Belém, no Bairro da

Campina, onde ficariam até serem distribuídas para outros comerciantes menores

proprietários de tabernas que venderiam a retalho, ou de lá sairiam para o carregamento

de navios no porto da cidade. Histórias como a do Senhor Godinho não são insuetas. A

história do comércio da Belém do oitocentos está carregada de portugueses como

Godinho que diversificaram seus investimentos e construíram riquezas em tempos

aparentemente sombrios.

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