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Brasília e Modernidade sob uma Perspectiva histórica: A Histórica Influência da Construção do Espaço Organizacional da Capital ao Brasil

Autoria: Takeyoshi Imasato, Marcelo Lima Véras

Resumo Passado meio século da inauguração Brasília, o tema permanece polêmico. Apesar do grande importância do processo de mudança da capital brasileira durante o século XX, ainda são diminutas as reflexões teóricas acerca desse grandioso projeto desenvolvido no Brasil. Em termos acadêmicos, indicam-se, neste ensaio, que duas dimensões epistêmicas têm sido negligenciadas por boa parte da produção acadêmica na área de Administração Pública. A primeira se trata da dimensão histórica, fundamental para desenvolver abordagens teóricas que evitem os riscos de universalismos abstratos e pretensamente neutros. A segunda se relaciona a elementos espaciais, particularmente geográficos e geo-políticos, que refletem o fato de as relações sociais ocorrerem não em um ambiente desterritorializado, mas em contexto(s) organizacional(is) localizado(s) em um espaço(s) determinado(s). No ensaio, também foi ressaltado que o projeto de transferência da capital federal e a construção e consolidação de Brasília como o centro do poder político nacional requereram o alinhamento de três elementos cruciais: (a) a ideologia desenvolvimentista; (b) a ideologia do modernismo; e (c) a imposição da vontade pessoal do presidente JK ao aparato estatal. Nesses três elementos, a pertinência e influências dos conceitos de modernidade, modernismo e modernização foram debatidas, na qual a reflexão acerca desses conceitos demonstra conexões com teorizações necessárias a perspectivas históricas a serem desenvolvidas na área de Administração Pública. O presente ensaio se destina a mostrar, por meio de uma análise histórica, que a construção e a transferência da nova capital, ao invés de inaugurar a modernidade no Brasil, se referem a questões de natureza de geopolítica e de interesse que vão além. A construção do espaço organizacional de Brasília foi influenciado por outros movimentos simbólicos e geo-históricos, como o impulso do ideário modernista e da modernização, não se restringindo a um fenômeno “puramente” nacional. Por outro lado, Brasília passa a exercer fascínio e passa a ocupar um espaço importante na cultura brasileira. Após a introdução, o ensaio foi subdividido em mais seis seções. No primeiro deles, analisam-se os conceitos de modernismo, modernidade e modernização, para mostrar que esses conceitos trazem consigo epistemes geograficamente e historicamente localizáveis. Em seguida, são analisados os esforços para que a interiorização da capital tomasse força na construção de Brasília, ressaltando diversos níveis de análise relacionados a esse processo. Nas duas seções subseqüentes, questões ideológicas e simbólicas são ressaltadas para contextualizar a análise não apenas em termos acontecimentos lineares, mas como complexas redes de relações sociais e epistemológicas em termos históricos. Na sexta seção, apresentam-se argumentos geo-políticos e estratégicos relacionados ao processo de mudança da capital. Por fim, são apresentadas considerações finais e sugestões de pesquisas futuras a serem desenvolvidas, por meio de perspectivas históricas, na área de Administração Pública.

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Se, como diz Lionel March, projetar é redistribuir a riqueza, no amplo sentido, então Brasília deve ter feito montanhas de dinheiro trocar de mãos, em parcelas que abrangeram desde o salário do candango, a renda da terra, o lucro das empreiteiras, até a arrecadação pública, com efeitos que se prolongam até hoje. Interesses colossais estão acoplados e contaminam a assumida e proclamada pureza. Luminosidade do céu do arado e transparência da forma urbana contrastam com densidade de negócios e acordos.

Rômulo Krafta

1. Introdução

Brasília, a atual sede dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário federais da República Federativa do Brasil, foi inaugurada no dia 21 de abril de 1960 pelo então presidente Juscelino Kubitschek (JK), tornando-se a terceira capital na história brasileira. A efetivação da mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central, à época, foi um dos principais projetos conduzidos pelo governo do então presidente. Criar uma nova cidade para sediar o Governo Federal do Brasil ocupava uma posição central no Plano de Metas de JK e na sua busca de concretização do seu lema de campanha, o “50 anos em 5”.

O projeto de transferência da capital brasileira para o interior do país, entretanto, já havia sido proposto por José Bonifácio de Andrada e Silva, uma das personalidades políticas mais influentes na história brasileira, ainda no período do Império. Na ocasião, a medida visava precipuamente a dois objetivos: intensificar o povoamento no interior do país e proteger a capital contra as tentativas de invasão litorânea estrangeira (Penna, 2002).

Como conseqüência, a primeira constituição nacional, de 1824, considerou o alvitre da transferência. Não tendo sido levada a efeito, as constituições seguintes – 1891, 1934 e 1937 – mantiveram a proposta, que somente se concretizou 136 anos depois da primeira previsão constitucional. Fica evidente, destarte, que os motivos determinantes para a realização da transferência tiveram menos a ver com os fundamentos legais e mais com uma série de outros fatores responsáveis por uma conjuntura favorável à mudança.

Passado meio século da inauguração da nova capital, o tema permanece polêmico. Canzian (2006), por exemplo, classificou como “um erro histórico mandar nossos políticos para tão longe do morro e do asfalto” i. Segundo esse repórter, a capital é distante e choca pelas disparidades socioeconômicas ao ser comparado com o restante do país, o que corrobora com a idéia de que se cria uma desvinculação entre a agenda de trabalho dos políticos, em Brasília, e as necessidades a serem supridas nas demais regiões do Brasil. Por outro lado, os defensores da mudança – dentre os quais figuram personagens célebres e contrastantes como o Marquês de Pombal e Joaquim José da Silva Xavier – alegam, entre outras razões, que a interiorização da capital foi importante para promover o desenvolvimento da região Centro-Oeste.

Apesar do grande importância do processo de mudança da capital brasileira, são diminutas as reflexões acerca desse grandioso projeto desenvolvido no Brasil. Em termos acadêmicos, indicam-se, neste trabalho, que duas dimensões epistêmicas têm sido negligenciadas por boa parte da produção acadêmica na área de Administração Pública. A primeira se trata da dimensão histórica, fundamental para desenvolver abordagens teóricas que evitem os riscos de universalismos abstratos e pretensamente neutros (Booth e Rowlinson, 2006). A segunda se relaciona a elementos espaciais, particularmente geográficos e geo-políticos, que refletem o fato de as relações sociais ocorrerem não em um ambiente desterritorializado, mas em contexto(s) localizado(s) em um espaço(s) determinado(s) (Santos, 1985).

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Tendo em vista as vívidas controvérsias que envolvem o tema e o alcance deste trabalho, em termos empíricos e teóricos, não se cogita esgotar ou propor um entendimento definitivo sobre o assunto. O que se pretende é promover uma releitura da matéria, agregando-lhe novos elementos que permitam aprofundar a sua compreensão. Neste ensaio, parte-se do pressuposto que, para abarcar a complexidade que o episódio encerra, é fundamental, em primeiro lugar, compreender o contexto histórico daquele momento, mormente os acontecimentos ocorridos desde a vinda da Corte portuguesa ao Brasil, em 1808, até o evento inaugural da cidade em 1960.

Desde a sua inauguração, mais do que uma cidade desenhada para ser arquitetonicamente funcional e planejada, por meio do esforço ímpar dos projetos elaborados por Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, ou uma mudança para o interior, em um local geograficamente central do país, supostamente “neutra” e desvinculada da influência histórica do Rio de Janeiro (Bomeny, 1991), a nova capital deveria simbolizar, inequivocamente, a entrada da nação brasileira na era da modernidade (Holston, 1984; Bomeny, 1991), aos moldes do capitalismo vigente na Guerra Fria. Tal necessidade também foi elemento decisivo para impulsionar a transferência dos Podes Federais para Brasília.

Igualmente importante é perceber que o sucesso do projeto de transferência da capital federal e a construção e consolidação de Brasília como o centro do poder político nacional requereram o alinhamento de três elementos cruciais: (a) a ideologia desenvolvimentista; (b) a ideologia do modernismo; e (c) a imposição da vontade pessoal do presidente JK ao aparato estatal. Nesses três elementos, a presença de influências da modernidade, do modernismo e da modernização surgem, justificando a reflexão acerca desses conceitos. O emprego desses conceitos foi feita de modo a enriquecer conceitualmente o ensaio, evitando o risco de se realizar análises históricas destituídas de teoria (Booth e Rowlinson, 2006).

O presente ensaio se destina a mostrar, por meio de uma análise histórica, que a construção e a transferência da nova capital, ao invés de inaugurar a modernidade no Brasil, se referem apenas a questões de natureza de segurança militar ou a um projeto político partidário de JK. A construção do espaço organizacional de Brasília é influenciada por outros movimentos simbólicos e geo-históricos, como o impulso do ideário modernista e da modernização, não se restringindo a um fenômeno “puramente” nacional. Por outro lado, Brasília passa a exercer fascínio e passa a ocupar um espaço importante na cultura brasileira.

2. Modernismo, modernidade e modernização

Modernismo, modernidade e modernização estão entre os conceitos essenciais e mais debatidos durante os últimos dois séculos. Apesar das inter-conexões e da aparente similaridade entre esses termos, eles têm diferentes conotações, tanto na teoria quanto na prática, que necessitam ser consideradas para fins da análise proposta neste ensaio. Esse esclarecimento é importante visto que, uma vez que não há consenso entre os teóricos e acadêmicos sobre esses conceitos, definições relativas aos domínios de cada conceito são imprescindíveis para que se estabeleça um rumo para as interpretações aqui propostas.

A modernidade é, via de regra, tida como um marco que permite a periodização de uma nova era, ou seja, a demarcação de uma distinção, no tempo, entre períodos históricos. A emergência da era da modernidade estaria caracterizada pelo surgimento de idéias, práticas e conceitos novos, consideradas modernas, em contraposição com o “antigo” e “tradicional”, tidos como antiquados e ultrapassados. Os ideais da razão, da liberdade e do progresso são algumas das novas concepções sociais que permitiriam, nessa lógica, romper com as bases dos valores sociais e políticos do período predecessor.

A modernidade como simples periodização, todavia, é alvo de críticas, especialmente quanto à sua natureza (Santos, 2004; Venn & Featherstone, 2006). Em primeiro lugar, as análises dessa orientação tendem a reordenar os eventos históricos em um sentido linear, ou

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seja, compreendem e (re)interpretam a história como um conjunto de eventos contínuos que evoluíram progressivamente em uma direção única. Essa postura faz com que os processos de rupturas e fragmentações internas, inerentes à modernidade – que são, como coloca Harvey (1992), uma característica da modernidade tão importante quanto a ruptura das condições históricas precedentes – sejam escamoteadas em prol de uma pretensa coerência em sua racionalidade como uma era.

[...] a idéia de que a história tem sentido e direcção únicos e conhecidos. Esse sentido e essa direcção têm sido formulados de diversas formas nos últimos duzentos anos: progresso, revolução, modernização, desenvolvimento, crescimento, globalização. Comum a todas estas formulações é a idéia de que o tempo é linear e que na frente do tempo seguem os países centrais do sistema mundial e, com eles, os conhecimentos, as instituições e as formas de sociabilidade que neles dominam. [...] É nos termos desta lógica que a modernidade ocidental produz a não-contemporaneidade do contemporâneo, a idéia de que a simultaneidade esconde as assimetrias dos tempos históricos que nela convergem. (Santos, 2004, p. 787)

Outra crítica, que está intimamente relacionada à primeira, é a marginalização de

outras dimensões relativas ao contexto da modernidade. Durante o tempo que se estipula ou se imputa pertencer a esse período, por exemplo, o mesmo não ocupou, como um conceito, a proeminência e centralidade, de forma uniforme, em diferentes momentos ou contextos (Venn & Featherstone, 2006). Por outro lado, é inegável que, contemporaneamente, o interesse pela modernidade, modernismo e modernização teve um grande aumento, especialmente após a Segunda Guerra, especialmente nos EUA e na Europa.

A definição de um ponto de referência que possa ser considerado como o início da modernidade também ilustra críticas relativas a esse conceito. Para Habermas (1981), a fundamentação da modernidade, ao que ele se refere como “projeto da modernidade”, está relacionado ao esforço intelectual, que pode ser verificado a partir do século XVIII, de construção de uma nova racionalidade empreendido pelos filósofos Iluministas.

The project of modernity formulated in the 18th century by the philosophers of the Enlightenment consisted in their efforts to develop objective science, universal morality and law, and autonomous art, according to their inner logic. At the same time, this project intended to release the congnitive potentials of each of these domais to ser them free from their esoteric forms. The Enlightenment philosophers wanted to utilize this accumulation of specialized culture for the enrichment of everyday life, that is to say, for the rational organization of everyday social life. (Habermas, 1981, p. 9)

Esse projeto se fundamenta no ideal de que a emancipação humana seria possível pelo

acúmulo de conhecimento gerado pelo saber científico; que a ciência diminuiria a dependência e protegeria a humanidade das arbitrariedades da natureza; e que o desenvolvimento de formas racionais de organização social promoveria a libertação das irracionalidades do mito, da superstição e da religião (Harvey, 1992). Pela magnitude do esforço, esse projeto incorporou um moralismo e universalismo de tal modo que a modernidade deveria ser considerada um fenômeno essencialmente, e quase que exclusivamente, europeu (HABERMAS, 1981; FAORO, 1992).

Não há dúvidas de que, nas diversas sociedades que constituem a Europa, a modernidade significou um amplo movimento de ruptura histórica e de mutações das estruturas sociais produzidos durante o período medieval, em que houve um envolvimento intenso das pessoas nesse continente (Faoro, 1992; Quijano, 1993). Foram resultados dessas mudanças sociopolíticas, por exemplo, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, em

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que as estruturas de poder se alteraram de tal modo que possibilitam, dentre outras, a emergência do capitalismo e a consolidação do Estado-nação.

Essa modernidade, entretanto, só foi possível, tanto como fenômeno histórico como conceito, na medida em que a Europa pôde afirmar-se como o “centro” do processo de constituição de uma História Mundial (Dussel, 1993). Mais especificamente, a Europa, como civilização, passou a se entender e a se afirmar como a mais desenvolvida e superior dentre todas. Porém, para tal, ela precisava de um outro, ou seja, de outras sociedades a que pudesse atribuir um desenvolvimento retardatário, do ponto de vista europeu. Portanto, esse processo necessitava da existência ou da construção de uma “periferia”, constituída de não-europeus, como um sistema que circunda e se relaciona com esse centro.

O período das Grandes Navegações entre os séculos XV e XVI marcaram o começo do intenso processo de colonização de países europeus em diversos territórios na África, Ásia e nas Américas. A parir desse momento, em que o Ocidente, e principalmente a Europa, passa a se auto-afirmar como o “centro” do mundo, também se inaugura a modernidade como um conceito (Dussel, 1993), não apenas como uma demarcação de distinção entre períodos históricos. A partir desse ponto de partida, há uma radical transformação da racionalidade, da economia, da política e da cultura nas relações sociais no contexto europeu, em que o Novo Mundo representava não apenas uma nova descoberta de novas terras, mas inauguraria uma intensiva visualização de novas oportunidades, sejam nos âmbitos econômicos, espirituais, políticos, religiosos, entre outros.

Já o modernismo é mais bem compreendido como um movimento, ou melhor, como um conjunto de movimentos culturais que surgem, necessariamente, no contexto da modernidade (Cooper & Burrell, 1988). Apesar de não haver uma manifestação que possa ser indicada ou considerada como a origem dessa ampla e difusa manifestação social, sua consolidação está relacionada aos filósofos iluministas e a apreciação da razão como um valor superior na constituição humana.

O modernismo, como conceito, envolveu várias áreas do conhecimento, como artes, arquitetura, filosofia, literatura, música, sociologia, entre outras. Suas manifestações estiveram vinculadas, principalmente no século XIX, a provocações e a radicais contraposições às normas vigentes. Representações de beleza, do corpo humano, da continuidade da forma, do progresso, são algumas dessas regras que foram desafiadas pelos modernistas (Levenson, 2005).

Os adeptos do modernismo buscam desvelar o universal e o eterno em suas obras, em que a razão universalista é tanto a inspiração e como o fundamento primordial. Os modernistas tentavam representar, por meios de conceitos e pela sua estética, formas que revelassem a “verdadeira natureza de uma realidade subjacente unificada” (Harvey, 1992, p. 28), mesmo que, para isso, tivessem que adotar um certo perspectivismo e um relativismo – o que torna paradoxal a própria crença na razão e no modo racional de apreender e representar o mundo. De todo modo, o surgimento do modernismo está inexoravelmente relacionado às controvérsias inerentes ao seu desenvolvimento, em seus diversos contextos e situações históricos.

Por fim, a modernização reflete um conjunto de imagens de mudança social que se direcionam “à melhora com relação ao passado” (Eyoh, 2005, p. 1485). Essa “melhora”, em especial, está vinculada ao percurso de desenvolvimento histórico europeu que, como já afirmado, que endente que o caminho da modernidade passa pelo postulado da suposta superioridade da Europa frente às demais sociedades (Dussel, 1993; Quijano, 1993). Construiu-se, assim, a noção de que todos os demais países e culturas do mundo deveriam seguir o mesmo caminho de desenvolvimento europeu (Dussel, 1993). É por esse motivo que Faoro (1992) afirma que ocidentalização, europeização, industrialização, revolução passiva,

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via prussiana, revolução do alto, revolução de dentro são algumas formas alternativas de denominar esse mesmo fenômeno.

O conceito de desenvolvimento como indutora do processo de modernização passa a ganhar proeminência na política mundial a partir do final da Segunda Guerra. Adotando a narrativa de progresso evolucionário do século XIX, a teoria de modernização, desde então, passa a preconizar que, por meio da adoção dos pilares institucionais da industrialização e do Estado-nação, seria possível protagonizar as transformações sociais necessárias para o desenvolvimento das sociedades tidas como retardatárias ou subdesenvolvidas (Eyoh, 2005).

Uma das características da modernização é que, diferentemente das transformações ocorridas na Europa e em outros países tidos como centrais, ela não com a mudança como um movimento amplo da sociedade. Enquanto que houve um comprometimento das diversas classes sociais, no contexto europeu, por exemplo, para impulsionar os processos de mudanças sociopolíticas, na modernização, via de regra, apenas as classes dirigentes se mobilizam para direcionar os rumos das novas políticas. Ela resulta, portanto, de esforços voluntários de grupos ou coalizões dominantes que busca, seja pela ideologia ou pela coação, a implementação de uma certa política de mudança (Faoro, 1992).

Por causa dessa concepção majoritariamente unilateral de impulsão do desenvolvimento, em que não há um amplo envolvimento das diferentes classes da sociedade, a iniciativa promovida pelos grupos dominantes é praticamente soberana. É a partir dessa natureza peculiar da prática da modernização que partem análises críticas que afirmam que essa concepção é potencialmente mais parte do problema do que da solução dos problemas socioeconômicos em países considerados menos desenvolvidos (Quijano, 1993; Escobar, 1995). Isso se deve, em especial, porque a modernização tende a reproduzir a histórica dependência dos países periféricos em relação aos países centrais.

3. A interiorização da capital: da chegada da Corte à inauguração de Brasília

A idéia da interiorização da capital, como foi visto, data da época da independência do Brasil. Entretanto, a idéia de integração do Brasil como um projeto de nação unitária, iniciou-se com a vinda da Corte de Portugal ao Brasil em 1808, ao que Dias (1972) chamou de “interiorização da metrópole”. Foi a partir desse momento histórico que esforços para a integração interna do país, por meio de abertura de estradas, pela melhora na comunicação entre capitanias, aumento do comércio interno e o povoamento do interior.

Não é apenas, contudo, pela melhora da infra-estrutura que se inicia a interiorização da metrópole; é a iniciativa do enraizamento do estado português, com a vinda da Corte, que dá início à transformação da colônia em metrópole (Dias, 1972). A intenção de permanência da Corte no Brasil, e da sua subseqüente necessidade de manter a continuidade da sua estrutura política que criam um contexto propício para se iniciar a ocupar efetiva do interior do território brasileiro, principalmente no Centro-Sul.

No entanto, pode-se dizer que o ciclo que se iniciou em 1930 e encerrou-se em 1954 – compreendendo, portanto, o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930 a 1945), o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946 a 1951) e o segundo governo de Vargas (1951 a 1954) – foi o período decisivo para que se criassem condições para a concretização do projeto da transferência da capital e a ocupação do Centro-Oeste brasileiro. Ao longo desses vinte e quatro anos, consolidou-se o modelo de direção econômica estatal e foram geradas as bases para o desenvolvimento industrial avançado e para a consolidação do capitalismo no Brasil.

Há que se ressaltar, contudo, que o ritmo das mudanças não foi o mesmo nos três governos. Se a gestão de Getúlio Vargas imprimiu um ritmo acelerado ao desenvolvimento da industrialização e à solidificação das bases capitalistas no país, o governo Dutra promoveu um avanço mais lento, que não visava a uma transformação tão radical do panorama econômico nacional.

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O governo de Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), por sua vez, representou uma mudança importante, se comparado aos seus antecessores, no tocante à participação do Estado na condução das atividades econômicas. Sob a vigência do Plano de Metas, JK conjugou, de forma inaudita até então, o grande capital internacional, a iniciativa privada nacional e o setor público. Draibe (1985, p. 242) analisa este ponto:

No desenho dos novos blocos setoriais de investimento, comandados pela empresa estrangeira, oferecia-se ao capital nacional uma nova fronteira de acumulação a taxas de lucro elevadas. [...] Ao capital estrangeiro, por outro lado, o governo oferecia uma generosa gama de incentivos, isenções, facilidades de importação de equipamento, etc., através dos quais negociava as condições de entrada e associação com o capital nacional [...] A expansão e criação das empresas públicas, como forma mais flexível, descentralizada e conveniente do ponto de vista do financiamento, constituiu e viabilizou, de maneira programada, a base material mínima para a implantação e posterior sustentação das operações correntes dos novos blocos industriais.

Para superar os inevitáveis entraves a que estaria exposto, o governo criou uma

estratégia peculiar de administração e coordenação dos investimentos públicos e privados sustentada pela retórica do otimismo e do progresso. Tal estratégia incluiu a montagem de uma estrutura paralela de poder, com o objetivo de garantir agilidade e evitar atritos na execução dos investimentos públicos. A esse respeito, Draibe (1985, p. 245) ressalta que “a opção reiterada pelas soluções mais convenientes, de menor resistência; ainda que isto remetesse a expedientes pouco ortodoxos, ajustes marginais, esquemas provisórios [...], permitia que o avanço do investimento público e da regulação do investimento privado se efetuasse dentro do vetor conciliatório”.

Aliás, um traço marcante da personalidade Juscelino era o perfil conciliador. Vários autores destacam a sua habilidade política para explicar a notável estabilidade alcançada em seu governo. Jaguaribe (1972, p. 199), por exemplo, afirmou que:

[...] o governo Kubitschek adotara uma dupla política de adiamentos: uma de ordem estratégica, e outra de ordem tática. Esta última se revelou de maneira mais inequívoca por ter sido aplicada no final do mandato com o objetivo de transferir os problemas pendentes acumulados para a administração seguinte. Aquela, porém, constituía a própria base da concepção que tivera do desenvolvimento o Presidente Kubitschek, e foi o motivo pelo qual esta concepção se esvaziou de conteúdo ao findar o seu governo. Este adiamento estratégico consistia, em última análise, na negociação de um armistício com as forças reacionárias, deixando intactos os alicerces de seu poder – o regime de propriedade e de exploração do complexo rural agrícola – em troca de sua tolerância para a execução do Programa de Metas.

Importante notar, desde já, que essas características da personalidade de JK, quais

sejam, evitar conflitos, adiar reformas administrativa, tributária, fiscal e financeira em profundidade e criar uma estrutura alternativa e informal para a consecução de seus objetivos pessoais coadunam-se, e mesmo entrelaçam-se, com a ideologia do desenvolvimentismo e com a lógica do modernismo. Tal lógica era a imperativa para a sustentação e justificação da interiorização da capital no Planalto Central.

No final da década de 1950, anunciava-se a crise do Estado e a exaustão deste modelo, cujas conseqüências seriam sentidas intensamente no governo subseqüente, ecoando até os dias de hoje. Na esfera financeira, a incapacidade do Estado de fazer frente às despesas tornou necessárias emissões monetárias para garantir o fluxo de investimento estatal, que causaram um severo aumento inflacionário nos anos seguintes (ver Tabela 1).

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Tabela 1: Endividamento externo, 1960-1963

Ano Inflação 1960 25% 1961 43% 1962 55% 1963 81%

Fonte: Adaptado de Alencar et al. (1979, p. 306-310)

Já o endividamento externo, outra fonte de recursos, passou dos US$ 2,367 bilhões, antes do governo JK, para US$ 3,802 bilhões após o seu mandato. Esse aumento foi de 60% em período de pouco menos cinco anos, mostrando a voracidade das necessidades financeiras para a execução dos projetos desse governo.

Além da crise financeira, durante a administração JK ocorreu um agravamento das assimetrias sócio-econômicas, em virtude do caráter concentrador do processo de industrialização implantado. Observou-se um nítido descompasso entre o crescimento do salário mínimo nacional, da produtividade da indústria e dos lucros dos industriais. Segundo Alencar et al. (1981), no período entre os anos de 1955 a 1959, os lucros industriais aumentaram em média 76%, enquanto a produtividade aumentou 35%. O salário mínimo, nesse mesmo período, aumentou apenas 15%, demonstrando a não distribuição da renda nesse processo.

O novo perfil da indústria nacional passou a exibir também uma internacionalização extrema em vários setores (ver Tabela 2): Tabela 2: Controle industrial pelo capital estrangeiro

Tratores 99,8%

Automobilística 98,2%

Cigarros 85%

Farmacêutica 88%

Eletricidade 82%

Máquinas 70%

Química 76% Fonte: Adaptado de Alencar et al. (1979, p. 304)

O vulto dos projetos postos em andamento, em particular o da construção da nova e faustuosa capital, as denúncias de corrupção e as críticas quanto ao insulamento dos governantes em relação à opinião pública foram objeto de intenso debate à época, especialmente por meio da imprensa do Rio de Janeiro, sede da antiga capital. O que fica claro, nesse projeto de interiorização da capital, é que a forma motora da sua implementação não viria de uma indústria nacional; ela foi majoritariamente assumida pelo capital internacional.

4. A ideologia do desenvolvimentismo

Como pretendemos mostrar, para que o ambicioso projeto de interiorização da capital federal obtivesse êxito, foi necessária uma sustentação ideológica potente, cativante e consistente com relação ao modo pelo qual se pretendeu fazer essa transição. A resposta foi o

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desenvolvimentismo. O “progresso evolutivo” seria, aos moldes da modernização preconizada pelos países tidos como centrais, o referencial para mudanças a serem seguidas no Brasil desta época.

Cardoso (1978) examina esse processo de construção ideológica do desenvolvimentismo em JK sob quatro categorias analíticas. Primeiramente, a autora destacou que a preocupação central de JK era eminentemente, e quase que exclusivamente, de cunho econômico (Cardoso, 1978). Ele creditava ao crescimento da produção industrial, ao desenvolvimento da infra-estrutura e ao aumento do consumo o condão de produzir os ganhos sociais desejados para proporcionar o aumento do nível de vida da população. Com o crescimento do tamanho da economia, supunha-se que a melhoria no padrão de vida da sociedade decorreria de forma natural.

Em segundo lugar, a importância da miséria, que grassava tanto na crescente massa de trabalhadores urbanos quanto na população rural, foi solenemente minimizada pelo governo, que apostava na sua erradicação como efeito do progresso. Acreditava-se, como demonstram alguns fragmentos das Diretrizes Gerais do Plano Nacional de Desenvolvimento de JK, que “o desenvolvimento econômico terá como conseqüência a eliminação da pobreza” (Cardoso, p. 96).

Conseqüentemente, a pobreza foi tratada como um elemento abstrato, “como um dado que a realidade mostra” (Cardoso, 1978, p. 125), captando-se apenas a frieza dos números. Não havia a intenção de discutir suas causas, a dinâmica das relações sociais e os caminhos para a redução da iniqüidade decorrente da intensa diferenciação dos assalariados urbanos. Esses problemas seriam sanados automaticamente quando houvesse o crescimento da economia como um todo.

Em terceiro lugar, a presença constante do conceito da ordem, concomitantemente às propostas de prosperidade econômica e às promessas de um destino grandioso para a nação. Para Cardoso (1978, p. 97), os três elementos – prosperidade, destino e ordem – estiveram intimamente ligados: “o processo que os assegura é um só: ele gira em torno da prosperidade, e como é nosso destino alcançá-la, o percurso se fará em paz, fortalecendo, assim, a ordem e ampliando as suas condições de vigência”. A autora reforça a relevância deste fator quando acrescenta que a ordem era tida como um dado e que “mesmo o esforço de desenvolvimento visa garanti-la” (ibid, p. 97).

Finalmente, no campo da educação, o governo adotou uma postura altamente pragmática. Se o aumento da produtividade era imperativo, o desenvolvimento da capacitação tecnológica dos trabalhadores igualmente o era. A estrutura do ensino deveria, deste modo, concentrar-se na qualificação técnica, considerada essencial ao desenvolvimento. Assim, a escola reduziu a ênfase nas questões de cunho acadêmico e nas disciplinas humanísticas e volveu-se às de caráter técnico ou científico.

Essa visão utilitarista da educação gerou conseqüências que não devem ser desprezadas. Partindo-se do entendimento vigente à época de que o talento individual era o responsável pelo grau de escolaridade a ser alcançado, fica evidente que somente os tecnicamente mais aptos lograriam acesso ao nível universitário. Em outras palavras, a reformulação das bases do ensino tinha como pressuposto que um contingente expressivo de alunos cursasse apenas a escola primária e ingressasse precocemente no mercado de trabalho para engrossar as fileiras do proletariado urbano em expansão.

A gravidade da situação educacional na ocasião era considerável. Registrou-se que o percentual de analfabetos atingia, no último ano do governo de Juscelino, era em torno de 39,35% da população com idade superior a 15 anos (Bomeny, 2007). Acima de tudo, essa proporção de analfabetos dá indícios das dificuldades de se falar em desenvolvimento e modernização.

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Se esta política educacional vai levar a que cada vez menor número de jovens consiga, relativamente falando, acesso ao nível superior de ensino – em que se desenvolve, ainda que precariamente nas condições da Universidade do subdesenvolvimento, a capacidade de crítica e de análise global e em que se abrem as perspectivas para transcender a simples técnica de grau médio – não é problema que a ideologia do desenvolvimentismo levante. Ela absolutamente não está preocupada com questões que vão além das necessidades práticas que o desenvolvimentismo coloca, nem mesmo no que concerne à educação. (Cardoso, 1978, p. 222)

A ideologia do desenvolvimentismo, dessa forma, não tinha uma preocupação com um

envolvimento geral da sociedade nas transformações a serem empreendidas com a mudança da capital, via-a-vis com as novas estruturas delas subjacentes. Influenciado pelo caráter unilateral característico da modernização (Faoro, 1992), não logrou ver uma modificação efetiva nas condições materiais, educacionais e culturais das classes menos favorecidas, uma vez que elas eram subordinadas ao desenvolvimento econômico.

5. A Ideologia do Modernismo No âmbito deste trabalho, interessa-nos analisar o Modernismo a partir de 1930,

quando os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM) passaram a ditar a teoria, a prática e a difusão da moderna arquitetura e planejamento urbanos pelo mundo. Além disso, limitar-nos-emos a apreciar determinadas características do movimento que, como entendemos, mostrou-se adequado como sustentáculo do projeto da construção da nova capital. Nesse sentido, Lopes (1996, p. 26) declara: “o modernismo arquitetônico serviu a governos, a economias e a sociedades conservadoras. As soluções para o espaço arquitetônico das maiorias foram facilmente conversíveis em adereços de projetos que, de fato, beneficiaram as minorias”.

O ideário do movimento modernista propõe uma vinculação inquebrantável entre o urbanismo moderno e as transformações sociais. Partindo dessa relação, crê-se na arquitetura social como meio para se alcançar a solução dos problemas da coletividade. Além disso, parte-se do pressuposto de que as necessidades humanas seriam as mesmas em todos os lugares, daí a proposta de “uma solução padronizada para o equipamento urbano de todo o mundo [...]. Não foram consideradas as peculiaridades do desenvolvimento histórico de cada região” (Lopes, 1996, p. 24).

As premissas desse movimento modernista na arquitetura, que influencia o projeto de

Brasília, se fundamentam em (Holston, 1984):

(1) its anti-capitalist/egalitarian basis; (2) its “machine metaphor”; (3) its redefinition of the social “functions” of urban organization; (4) its development of revolutionary building typologies and planning conventions as instruments of social transformation; (5) its environmental determinism and anti-contextuality; and (6) its reliance on state authority, “total planning” and the “techniques of shock” to realize its objectives of social change.

A análise de tais premissas revela fortes inter-relações e exibe a complementaridade

entre elas. A metáfora da máquina coaduna-se com a definição de funções (sociais) e com o desenvolvimento de mecanismos (arquitetura) numa perfeita lógica mecanicista. Tudo sob a égide do determinismo do meio sobre o(s) indivíduo(s) e da crença inquestionável na capacidade técnica do planejamento para a consecução de mudanças sociais.

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As premissas acima têm elementos que, de certa forma, a tornam pretensiosas e autoritárias. A idéia do planejamento total, para começar, é de ambição impressionante. Tudo se passa como se fosse possível abranger cabalmente a vida de uma cidade em um simples projeto; como se na prancheta de um arquiteto coubesse toda a complexidade inerente ao convívio de milhares (ou milhões) de pessoas reunidas em um espaço urbano.

Desconsideram-se, dessa forma, dois aspectos cruciais. Em primeiro lugar, o fato de que as pessoas são diferentes, têm necessidades e anseios distintos, portanto, demandam, consomem e se satisfazem de maneiras diversas. A adoção monolítica da arquitetura modernista e de suas soluções generalizantes e deterministas exclui as possibilidades de outras concepções urbanísticas e impede a representação de tendências arquitetônicas diversas.

Em segundo lugar, não devem ser desconsideradas as particularidades do contexto de cada região e de cada momento na história, posto que a sociedade encontra-se em um processo de permanente mudança. Assim sendo, a aspiração da ideologia modernista de engendrar uma cidade ideal e definitiva é, no mínimo, discutível.

Finalmente, tais premissas afrontam o princípio democrático da participação popular, no momento em que os formuladores dos projetos modernistas avocam o direito de conceber um modelo urbano e arquitetônico completo, excluindo-se a participação da maior interessada no assunto: a sociedade. Age-se como se a simples configuração urbanística tivesse o condão de realizar as mudanças requeridas na sociedade, sem a necessidade de se consultarem os interesses daqueles que irão habitar as cidades.

Em artigo no qual defende a necessidade de mudanças na forma de definir as necessidades do povo e nas suposições sobre política e planejamento, Campos (1980, p. 29) afirma que “os planejadores não podem presumir que são mais sábios e agir como se isso fosse verdade”. Dessa forma, a pesquisadora sugere integrar o planejamento central e a participação da comunidade nos esforços em busca do desenvolvimento social. A proposição da autora não desaconselha o uso do conhecimento técnico e científico, cujo valor é incontestável, mas alvitra associá-lo à chamada sabedoria popular, de sorte que as partes afetadas sejam trazidas à condição de sujeito na atividade de planejamento e não mais meros objetos das decisões de política pública (Campos, 1980).

6. Brasília: um projeto pessoal de Juscelino Kubitschek

A decisão de mudar a capital federal para o interior do país antecede a posse de Juscelino Kubitschek. Era uma das promessas de campanha. Na véspera da posse, JK proclamou: “Tudo farei para que a capital do Brasil seja levada para Goiás” (Ribeiro, Alancar & Ceccon, 1988, p. 168).

A construção de Brasília e a transferência da capital foram, antes de tudo, ações políticas. Juscelino ocupou um papel central nesse processo. Lopes (1996) compara o presidente com o Moderno Príncipe, de Antonio Gramsci. Segundo este filósofo e cientista político, o Estado, simbolizado pelo governo, impõe a sua autoridade fundamentando-a nas razões soberanas do Príncipe: “A figura do presidente da República foi o centro das decisões, de acordo com o estilo imperial brasileiro e latino-americano, onde o [...] decide e impõe o que pensa aos aparelhos de Estado” (p. 56).

A própria Presidência da República encarregou-se de produzir um documento oficial com artigos, entrevistas, dispositivos legais e discursos presidenciais, no qual descreve a cronologia dos acontecimentos, que culminaram com a construção da nova capital. A versão oficial apresenta os fatos históricos de forma seqüencial e evolutiva como se o desenlace fosse resultado de um processo natural e progressivo.

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Por outro lado, a proximidade dos quartéis tornara o Rio de Janeiro uma cidade perigosa. Além disso, as intrigas da corte e o suicídio de presidente Getúlio Vargas, em 1954, indubitavelmente influenciaram Juscelino.

A importância política do Rio de Janeiro havia crescido. Na velha capital havia um clima propício ao desenvolvimento das lutas sociais. Abandonar uma cidade politizada e cosmopolita era um modo de garantir a inexistência de risco do comando do Estado sair das mãos dos representantes dos fazendeiros e industriais. Tentava-se fechar a porta para “aventuras” da classe média radicalizada, representada por militares extremados, Carlos Lacerda e a UDN carioca, na posição de direita, e, à esquerda, pelos intelectuais comunistas, socialistas e trabalhistas que exerciam na cidade do Rio de Janeiro significativa influência. (Lopes, 1996, p. 228)

Até a consolidação da nova capital, que somente ocorreu no governo de Emílio

Garrastazu Médici (1969-1974), Brasília permaneceu em uma situação indefinida. Cogitou-se, nesse período, o retorno da sede do governo à antiga capital. Nesse contexto, um acontecimento emblemático revela a importância do caráter político na mudança do centro de decisões nacional: o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil – Charles Burke Elbrick – nas ruas do Rio de Janeiro.

O fato, que teve ampla repercussão internacional, serviu de catalisador para a consolidação da transferência. Além disso, a partir deste episódio, houve a obrigatoriedade de todas as representações estrangeiras de se estabelecerem em Brasília. A nova capital, por sua vez, ficou entre as dez maiores cidades brasileiras onde as atividades da guerrilha urbana pouco se manifestaram (Lopes, 1996).

7. Considerações finais

Assim como o passado colonial e escravocrata ajuda-nos a entender a composição social contemporânea e a formação do Estado moderno brasileiro, a análise do processo histórico, que culminou com a construção de Brasília, pode ser utilizada como instrumento para a compreensão do que é a capital brasileira na atualidade: seu papel no cenário nacional, sua dinâmica como cidade e as razões dos desvios da realidade em relação ao projeto original.

Historicamente, a despeito do propalado discurso liberal, o Estado brasileiro tem sido dominado por certas práticas elitistas (ver Faoro, 2000). Desde as raízes coloniais, atravessando a monarquia e chegando um federalismo republicano fortemente centralizado, o Estado foi incapaz de romper com o passado aristocrático e de produzir uma sociedade igualitária e verdadeiramente democrática.

Os governantes, imbuídos da autoridade estatal, impuseram sistematicamente seus interesses particulares sob o pretexto da ordem, da coletividade, do trabalho, da propriedade, enquanto alimentavam o imaginário popular com promessas de um destino grandioso para a nação. O governo de JK trilhou o mesmo caminho: “o período que coincide com a construção e consolidação de Brasília não difere substancialmente dos anteriores, no que se refere ao conteúdo antidemocrático das relações políticas entre a população e o governo” (Lopes, p. 61). No entanto, para que as pretensões de JK se verificassem, foi preciso convencer a todos da necessidade e inexorabilidade de suas decisões. Para tal, os dois fatores abordados anteriormente, o desenvolvimentismo e o modernismo, serviram com perfeição.

Assim, se o objetivo foi a concretização dos planos concebidos ao talante do Príncipe – utilizando-se da referência à formulação de Gramsci, suscitada por Lopes (1996, p. 56) – por meio de expedientes realizados ao arrepio das práticas democráticas, o desenvolvimentismo apresentou-se bastante apropriado. Afinal, nada mais conveniente do que uma política que se concentrava em metas objetivas e quantificáveis como estatísticas econômicas ou obras de infra-estrutura e que simplesmente desconsiderava discussões morais

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ou questões sócio-políticas. Ademais, esta opção tinha forte apelo na sociedade, tanto no seio da burguesia industrial e dos latifundiários, quanto na classe média e no proletariado e ainda logrou conquistar a aprovação da maior parte da intelectualidade nacional. A resistência limitou-se a focos pontuais pelo país e setores da burguesia e da classe média cariocas.

Por outro lado, as características deterministas e concentradoras do modernismo – como as premissas da vertente oriunda da arquitetura (Holston, 1984), supostamente igualitárias; o caráter generalista de suas proposições, desconsiderando as peculiaridades de cada contexto; a “metáfora da máquina”; o planejamento total; a crença na arquitetura como instrumento de transformação social – calcadas na supremacia da autoridade estatal, oferecia um arcabouço muito adequado às aspirações de JK, pois associava a nova capital a critérios racionais e científicos e afastava eventuais questionamentos ao revés das pretensões governamentais. Acima de tudo, dada a índole do ex-presidente, surpreendente seria se o governo Kubitschek tivesse submetido seu projeto a alguma forma de consulta popular ou se tivesse entabulado um esquema qualquer de gestão participativa em relação aos projetos para a construção da nova capital.

Tudo isso se passou há quase meio século. O sonho de Brasília como a solução para o problema da ocupação do interior do país, a fantasia da nova capital como ponto de partida para a reinvenção de um Brasil justo e moderno não se realizaram (Bomeny, 1991). Ao contrário, o que se observa é uma pungente reprodução das mazelas nacionais, às vezes de maneira ainda mais aguda.

A expressão “Ilha da Fantasia” largamente usada para se referir à capital justifica-se quando comparamos o PIB per capita de Brasília, o mais alto do país, com o dos municípios que formam a Região Metropolitana da capital federal. Um estudo do Conselho Regional de Economia do Distrito Federal (Beck, 2007) exibe dados que confirmam as desigualdades no âmbito nacional: PIB per capita do Plano Piloto e do Lago Sul, R$ 19.071; PIB per capita de dez municípios da periferia, em Goiás, R$ 3.475. Para que se tenha uma base de comparação, o segundo menor PIB per capita dentre as principais regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife e Salvador), o de Recife, alcança R$ 7.696.

Ainda a tratar de assuntos econômicos, o aprofundamento substancial da dívida externa, mais de 60% no governo JK, é sentido até os dias atuais. A esse respeito, a teoria do crescimento econômico de longo prazo ensina quais são as conseqüências da acumulação sucessiva de déficits orçamentários pelos governos.

Basicamente, existe uma poupança nacional, formada pela soma das poupanças pública e privada; o governo pode alterar a poupança nacional via alterações da poupança pública. Se o governo incorrer em sucessivos déficits orçamentários, isto é, se gastar mais do que arrecada sistematicamente, reduzirá a poupança pública e conseqüentemente a poupança nacional, causando a elevação da taxa de juros e a redução do investimento. As conseqüências da redução do investimento não serão imediatas, mas afetarão as gerações seguintes. A propósito, o professor de Economia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, N. Gregory Mankiw (2004, p.145) afirma:

Quando o gasto do governo supera a receita, diz-se que há um déficit orçamentário, que representa uma poupança pública negativa. [...] um déficit orçamentário aumenta as taxas de juros e desloca o investimento; a redução importante de estoque de capital é parte do fardo da dívida nacional com as futuras gerações.

No que tange à relação entre governantes e governados e entre o serviço público e os

cidadãos, há recorrentes discussões e diversos estudos acadêmicos. Sobre o tema, Campos (1990) afirma que a incapacidade de se traduzir o termo para a língua pátria deve-se, mormente, à insuficiência de desenvolvimento político no Brasil, expressa na deficiência da

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própria noção do que é público. A pesquisadora estabelece a conexão entre accountability e democracia e sentencia: “Quanto mais avançado o estágio democrático, maior o interesse pela accountability.” Prossegue, então, com a constatação de que os sistemas de controle da burocracia estatal têm sido incapazes de conter os abusos, a corrupção e o uso arbitrário do poder e sugere a participação da sociedade civil organizada na avaliação de políticas públicas:

O povo brasileiro mostra vocação maior para ser ajudado do que para exibir autoconfiança. Como conseqüência, abre os braços ao paternalismo, uma forma disfarçada de autoritarismo. A burocracia federal concede a si própria o direito de tomar decisões em nome das clientelas-alvo de seus programas.

Possivelmente, um dos diagnósticos mais precisos para se explicar o descompasso

entre a realidade de Brasília e o sonho acalentado para o futuro da capital – idealizada como um instrumento de promoção de justiça social e símbolo de reconstrução da nação – foi elaborado por Dantas, diretor da Sociedade Brasileira de Urbanismo: “não se pode construir o presente a partir do futuro; somente o futuro a partir do presente. [...] A utopia desfigurou-se ao lidar com gente, matéria de difícil controle e quase nenhuma previsibilidade”.

Os debates sobre a transferência e sobre a lógica urbana e arquitetônica da capital ainda permanecem acesos. Os próprios conceitos de modernidade, modernismo e modernização permanecem como objetos de discussões (Venn & Featherstone, 2006). No entanto, a realidade se impõe e exige reflexões. Não há dúvidas, contudo, que o projeto de interiorização da capital acabou bem sucedido. Entretanto, cabe uma reflexão: para quem? Essa é um dos exemplos de lacuna de vital importância a ser suprida por acadêmicos da área de Administração Pública, na qual perspectivas históricas são relevantes e particularmente úteis na nessa empreitada.

Por fim, alguns outros questionamentos mais específicos continuam em aberto: sabemos, realmente, o que é e o que significa Brasília? Como conhecemos a capital federal? Apenas por meio da imprensa? Ela é realmente o espaço do centro político de tomada de decisões do país? Não cabe, a este ensaio, qualquer conclusão peremptória. Ressalta-se, porém, que pode haver mais a se saber e a se refletir do que, pelo senso comum, podemos imaginar. Referências

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