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Os Trs Estados do Capital Cultural. O texto se inicia com uma explicao relativa noo de capital cultural, a qual seria: "(...)uma hiptese indispensvel para dar conta da desigualdade de desempenho escolar das crianas provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o sucesso escolar (...) que as crianas das diferentes classes e fraes de classe podem obter no mercado escolar (p. 73)". Com o objetivo de precisar esta noo e dessa forma tornar possvel compreender sua ao em relao aos agentes e estruturas, indica que o capital cultural pode existir sob trs formas: incorporado (parte integrante da "pessoa", uma disposio adquirida, um habitus), objetivado, sob a forma de um bem cultural (por exemplo, livros, obras de arte...), ou, institucionalizado, sob a forma de um algum tipo de "certificado de competncia cultural" (geralmente escolar), como um diploma, por exemplo. Devido ao fato de consistir numa espcie de capital, o capital cultural possui, da mesma forma que o capital econmico, uma propriedade de acumulao relativa ao tempo necessrio para que esta ocorra. Naquilo que tange relao entre o estado incorporado e o estado objetivado, Bourdieu afirma que: "o capital cultural no seu estado objetivado detm um nmero de propriedades que se definem apenas em sua relao com o capital cultural em sua forma incorporada [especialmente no que se refere durao biolgica de seu portador](p. 77)". Tais propriedades estaria relacionadas com o uso (aprendido culturalmente pelos agentes) dos bens culturais, no obstante isso, alm dessa apropriao simblica (mediada pelo habitus) do capital cultural objetivado, haveria uma apropriao concreta desse capital cultural, apropriao essa que requereria necessariamente a utilizao de capital econmica (por exemplo, como dinheiro despendido para a aquisio de livro). No que se refere ao capital cultural institucionalizado, o autor afirma que a converso do capital cultural objetivado em capital cultural institucionalizado possibilitaria a sua reproduo, desvinculando, nesse processo a sua durao e a durao biolgica de seu portador, bem como se acrescentaria pelo efeito causado pela institucionalizao do capital cultural, uma competncia cultural independente at mesmo do capital cultural acumulado pelo seu portador2. 1 BOURDIEU, Pierre. Os trs estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice & CATANI, Afranio. Escritos de Educao. Petrpolis, 1998: Vozes. 2 Isso explicaria, por exemplo algumas incongruncias entre o ttulo escolar de um indivduo e a (in)competncia por ele demonstrada no desempenho de alguma tarefa cuja realizao estaria em primeira instncia condicionada pelo ttulo de que se faz portador Fonte: http://pt.shvoong.com/social-sciences/sociology/1152251-os-tr%C3%AAsestados-capital-cultural/#ixzz1NBJKLuXj

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Captulo IV

Os trs estados do capital culturalPIERRE BOURDIEUTraduo: Magali de Castro Reviso Tcnica: Maria Alice NogueiraFonte: Bourdieu, Pierre, "Les trois tats du capital culturel", publicado originalmente in Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, n. 30, novembro de 1979, p. 3-6.

noo de capital cultural imps-se, primeiramente, como uma hiptese indispensvel para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianas provenientes das diferentes classes sociais, relacionando o "sucesso escolar", ou seja, os benefcios especficos que as crianas das diferentes classes e fraes de classe podem obter no mercado escolar, distribuio do capital cultural entre as classes e fraes de classe. Este ponto de partida implica em uma ruptura com os pressupostos inerentes, tanto viso comum que considera o sucesso ou fracasso escolar como efeito das "aptides" naturais, quanto s teorias do "capital humano"1. Os economistas tm o mrito aparente de colocar explicitamente a questo da relao entre as taxas de lucro asseguradas pelo investimento educativo e pelo investimento econmico (e de sua evoluo). Entretanto, alm de sua medida do rendimento do investimento escolar s levar em conta os investimentos e os benefcios monetrios ou diretamente conversveis em dinheiro, como as despesas decorrentes dos estudos e o equivalente em dinheiro do tempo dedicado ao estudo, eles tambm no podem dar conta da parte relativa que os diferentes agentes ou as diferentes classes concedem ao investimento econmico e ao investimento cultural por no considerarem, sistematicamente, a estrutura das chances diferenciais de lucro que lhes so destinadas pelos diferentes mercados, em funo do volume e da estrutura de seu patrimnio (cf. em particular, G.S. BECKER, Human Capital, Nova York, Columbia University Press, 1964). Alm disso, deixando de colocar as estratgias de investimento escolar no conjunto das estratgias educativas e no sistema de estratgias de reproduo, sujeitam-se a deixar escapar, por um paradoxo necessrio, o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos, a saber, a transmisso domstica do capital cultural. Suas interrogaes sobre a relao entre a "aptido" (ability) para os estudos e o investimento nos estudos provam que eles ignoram que a "aptido" ou o "dom" so tambm produtos de um investimento em tempo e em capital cultural (Id., p. 63-66). Compreende-se, ento, que, em se tratando de avaliar os benefcios do investimento escolar, s lhes resta se interrogar sobre a rentabilidade das despesas com educao para a "sociedade" em seu conjunto (social rate of return; p. 121) ou sobre a contribuio que a educao traz "produtividade nacional" (the social gain of education as measured by its effects on national productivity; Id., p. 155). Essa definio tipicamente funcionalista das funes da educao, que ignora a contribuio que o sistema de ensino traz reproduo da estrutura social, sancionando a transmisso hereditria do capital cultural, encontra-se, de fato, implicada, desde a origem, numa definio do "capital humano" que, apesar de suas conotaes "humanistas", no escapa ao economicismo e ignora, dentre outras coisas,1

A

Ao falar de um conceito em si mesmo, como aqui, em lugar de faz-lo funcionar, corre-se sempre o risco de ser, ao mesmo tempo, esquemtico e formal, isto , "terico" no sentido mais comum e mais comumente aceito deste termo.

que o rendimento escolar da ao escolar depende do capital cultural previamente investido pela famlia e que o rendimento econmico e social do certific ado escolar depende do capital social tambm herdado - que pode ser colocado a seu servio. O capital cultural pode existir sob trs formas: no estado incorporado, ou seja, sob a forma de disposies durveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais - quadros, livros, dicionrios, instrumentos, mquinas, que constituem indcios ou a realizao de teorias ou de crticas dessas teorias, de problemticas, etc.; e, enfim, no estado institucionalizado, forma de objetivao que preciso colocar parte porque, como se observa em relao ao certificado escolar, ela confere ao capital cultural - de que , supostamente, a garantia - propriedades inteiramente originais.

O ESTADO INCORPORADO

A maior parte das propriedades do capital cultural pode inferir-se do fato de que, em seu estado fundamental, est ligado ao corpo e pressupe sua incorporao. A acumulao de capital cultural exige uma incorporao que, enquanto pressupe um trabalho de inculcao e de assimilao, custa tempo que deve ser investido pessoalmente pelo investidor (tal como o bronzeamento, essa incorporao no pode efetuar-se por procurao)2. Sendo pessoal, o trabalho de aquisio um trabalho do "sujeito" sobre si mesmo (fala-se em "cultivar-se"). O capital cultural um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", 3 um habitus . Aquele que o possui "pagou com sua prpria pessoa" e com aquilo que tem de mais pessoal, seu tempo. Esse capital "pessoal" no pode ser transmitido instantaneamente (diferentemente do dinheiro, do ttulo de propriedade ou mesmo do ttulo de nobreza) por doao ou transmisso hereditria, por compra ou troca. Pode ser adquirido, no essencial, de maneira totalmente dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condies primitivas de aquisio. No pode ser acumulado para alm das capacidades de apropriao de um agente singular; depaupera e morre com seu portador (com suas capacidades biolgicas, sua memria, etc.). Pelo fato de es ligado, tar de mltiplas formas, pessoa em sua singularidade biolgica e ser objeto de uma transmisso hereditria que sempre altamente dissimulada, e at mesmo invisvel, ele constitui um desafio para todos aqueles que lhe aplicam a velha e inextirpvel distino dos juristas gregos entre as propriedades herdadas (ta patra) e as propriedades adquiridas (epiktta), isto , acrescentadas pelo prprio indivduo ao seu patrimnio hereditrio; de forma que consegue acumular os prestgios da propriedade inata e os mritos da aquisio. Por conseqncia, ele apresenta um grau de dissimulao mais elevado do que o capital econmico e, por esse fato, est mais predisposto a funcionar2

Segue-se que, de todas as medidas do capital cultural, as menos inexatas so aquelas que tomam por padro de medida o tempo de aquisio - com a condio, certamente, de no o reduzir ao tempo de escolarizao e de levar em conta a primeira educao familiar, dando-lhe um valor positivo (de um tempo ganho, de um avano) ou negativo (de um tempo perdido e, duplamente, uma vez que ser necessrio gastar tempo para corrigir seus efeitos) segundo a distncia em relao s exigncias do mercado escolar (Seria necessrio dizer, para evitar qualquer mal entendido, que essa proposio no implica em qualquer reconhecimento do valor dos veredictos escolares e limita-se a registrar a relao que se estabelece, nos fatos, entre um certo capital cultural e as leis do mercado escolar? Talvez no seja intil, todavia, recordar que as disposies marcadas com um valor negativo no mercado escolar podem ter um valor altamente positivo em outros mercados - e, em primeiro lugar, claro, nas relaes internas sala de aula). 3 Segue-se que a utilizao ou explorao do capital cultural coloca problemas particulares aos detentores do capital econmico ou poltico, quer se trate de mecenas privados ou, em outro extremo, de empresrios que empregam "quadros" dotados de uma competncia cultural especfica (sem falar dos novos mecenas do Estado): como comprar esse capital estreitamente ligado pessoa sem comprar a pessoa - o que significaria privar-se do prprio efeito de legitimao que pressupe a dissimulao da dependncia? Como concentrar o capital - o que necessrio para certas empresas - sem concentrar os portadores desse capital - o que pode ter todo tipo de conseqncias negativas?

como capital simblico, ou seja, desconhecido e reconhecido, exercendo um efeito de (des)conhecimento, por exemplo, no mercado matrimonial ou no mercado de bens culturais, onde o capital econmico no plenamente reconhecido. A economia das grandes colees de pintura ou das grandes fundaes culturais, assim como a economia da assistncia, da generosidade e dos donativos, repousam sobre propriedades do capital cultural, das quais os economistas no conseguem dar conta. Com efeito, o economicismo deixa escapar, por definio, a alquimia propriamente social pela qual o capital econmico se transforma em capital simblico, capital denegado ou, mais exatamente, no reconhecido. Ela ignora, paradoxalmente, a lgica propriamente simblica da distino que assegura, por acrscimo, benefcios materiais e simblicos aos detentores de um forte capital cultural que retira, de sua posio na estrutura da distribuio do capital cultural, um valor de raridade (este valor de raridade tem por principio, em ltima anlise, o fato de que nem todos os agentes tm meios econmicos e culturais para prolongar os estudos dos filhos alm do mnimo necessrio reproduo da fora de trabalho menos valorizada em um dado momento histrico). Mas , sem dvida, na prpria lgica da transmisso do capital cultural que reside o princpio mais poderoso da eficcia ideolgica dessa espcie de capital. Sabe-se, por um lado, que a apropriao do capital cultural objetivado - portanto, o tempo necessrio para realiz-Ia - depende, principalmente, do capital cultural incorporado pelo conjunto da famlia por intermdio, entre outras coisas, do efeito Arrow generalizado4 e de todas as formas de transmisso implcita. Sabe-se, por outro lado, que a acumulao inicial do capital cultural - condio da acumulao rpida e fcil de toda espcie de capital cultural til - s comea desde a origem, sem atraso, sem perda de tempo, pelos membros das famlias dotadas de um forte capital cultural; nesse caso, o tempo de acumulao engloba a totalidade do tempo de socializao. Segue-se que a transmisso do capital cultural , sem dvida, a forma mais dissimulada da transmisso hereditria do capital; por isso, no sistema das estratgias de reproduo, recebe um peso tanto maior quanto mais as formas diretas e visveis de transmisso tendem a ser mais fortemente censuradas e controladas. V-se, imediatamente, que por intermdio do tempo necessrio aquisio que se estabelece a ligao entre o capital econmico e o capital cultural. Com efeito, as diferenas no capital cultural possudo pela famlia implicam em diferenas: primeiramente, na precocidade do incio do empreendimento de transmisso e de acumulao, tendo por limite a plena utilizao da totalidade do tempo biologicamente disponvel, ficando o tempo livre mximo a servio do capital cultural mximo; e depois na capacidade assim definida para satisfazer s exigncias propriamente culturais de um empreendimento de aquisio prolongado. Alm disso, e correlativamente, o tempo durante o qual determinado indivduo pode prolongar seu empreendimento de aquisio depende do tempo livre que sua famlia pode lhe assegurar, ou seja, do tempo liberado da necessidade econmica que a condio da acumulao inicial (tempo que pode ser avaliado como tempo em que se deixa de ganhar).

O ESTADO OBJETIVADO4

o que designo por efeito "Arrow" generalizado, ou seja, o fato de que o conjunto de bens culturais, quadros, monumentos, mquinas, objetos trabalhados e, em particular, todos aqueles que fazem parte do meio ambiente natal, exercem um efeito educativo por sua simples existncia, , sem dvida, um dos fatores estruturais da exploso escolar, no sentido em que o crescimento da quantidade de capital cultural acumulado no estado objetivado aumenta a ao educativa automaticamente exercida pelo meio ambiente. Se se acrescentar a isto o fato de que o capital cultural incorporado cresce constantemente, vse que, em cada gerao, cresce o que o sistema escolar pode considerar como aquisio. O fato de que o mesmo investimento educativo ter um rendimento crescente um dos fatores estruturais da i nflao de diplomas (ao lado dos fatores conjunturais que esto ligados a efeitos de reconverso do capital).

O capital cultural no estado objetivado detm um certo nmero de propriedades que se definem apenas em sua relao com o capital cultural em sua forma incorporada. O capital cultural objetivado em suportes materiais, tais como escritos, pinturas, monumentos etc., transmissvel em sua materialidade. Uma coleo de quadros, por exemplo, transmite-se to bem (seno melhor, porque num grau de eufemizao superior) quanto o capital econmico. Mas o que transmissvel a propriedade jurdica e no (ou no necessariamente) o que constitui a condio da apropriao especfica, isto , a possesso dos instrumentos que permitem desfrutar de um quadro ou utilizar uma mquina e que, limitando-se a ser capital incorporado, so submetidos s mesmas leis de transmisso. Assim, os bens culturais podem ser objeto de uma apropriao material, que pressupe o capital econmico, e de uma apropriao simblica, que pressupe o capital cultural. Por conseqncia, o proprietrio dos instrumentos de produo deve encontrar meios para se apropriar ou do capital incorporado que a condio da apropriao especfica, ou dos servios dos detentores desse capital. Para possuir mquinas, basta ter capital econmico; para se apropriar delas e utiliz-Ias de acordo com sua destinao especfica (definida pelo capital cientfico e tecnolgico que se encontra incorporado nelas), preciso dispor, pessoalmente ou por procurao, de capital incorporado. Esse , sem dvida, o fundamento do status ambguo dos "quadros": se acentuamos o fato de que no so os possuidores (no sentido estritamente econmico) dos instrumentos de produo que utilizam e que s tiram proveito de seu capital cultural vendendo os servios e os produtos que esse capital torna possveis, colocamo-Ios do lado dos dominados; se insistimos no fato de que tiram seus benefcios da utilizao de uma forma particular de capital, colocamo-los do lado dos dominantes. Tudo parece indicar que, na medida em que cresce o capital cultural incorporado nos instrumentos de produo (e, pela mesma razo, o tempo de incorporao necessrio para adquirir os meios que permitam sua apropriao, ou seja, para obedecer sua inteno objetiva, sua destinao, sua funo), a fora coletiva dos detentores do capital cultural tenderia a crescer, se os detentores da espcie dominante de capital no estivessem em condies de pr em concorrncia os detentores de capital cultural (alis, inclinados concorrncia pelas prprias condies de sua seleo e formao - e, em particular, pela lgica da competio escolar e do concurso). O capital cultural no estado objetivado apresenta-se com todas as aparncias de um universo autnomo e coerente que, apesar de ser o produto da ao histrica, tem suas prprias leis, transcendentes s vontades individuais, e que - como bem mostra o exemplo da lngua permanece irredutvel, por isso mesmo, quilo que cada agente ou mesmo o conjunto dos agentes pode se apropriar (ou seja, ao capital cultural incorporado). preciso no esquecer, todavia, que ele s existe e subsiste como capital ativo e atuante, de forma material e simblica, na condio de ser apropriado pelos agentes e utilizado como arma e objeto das lutas que se travam nos campos da produo cultural (campo artstico, cientfico, etc.) e, para alm desses, no campo das classes sociais, onde os agentes obtm benefcios proporcionais ao domnio que possuem desse capital objetivado, portanto, na medida de seu capital incorporado5.

O ESTADO INSTlTUCIONALIZADO

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Tem-se, na maioria das vezes, reduzido a relao dialtica entre o capital cultural objetivado (cuja forma por excelncia a escrita) e o capital cultural incorporado, a uma descrio exaltada da degradao do esprito pela letra, do vivo pelo inerte, da criao pela rotina, da graa pelo pesado.

A objetivao do capital cultural sob a forma do diploma um dos modos de neutralizar certas propriedades devidas ao fato de que, estando incorporado, ele tem os mesmos limites biolgicos de seu suporte. Com o diploma, essa certido de competncia cultural que confere ao seu portador um valor convencional, constante e juridicamente garantido no que diz respeito cultura, a alquimia social produz uma forma de capital cultural que tem uma autonomia relativa em relao ao seu portador e, at mesmo em relao ao capital cultural que ele possui, efetivamente, em um dado momento histrico. Ela institui o capital cultural pela magia coletiva, da mesma forma que, segundo MerleauPonty, os vivos instituem seus mortos atravs dos ritos do luto. Basta pensar no concurso que, a partir do continuum das diferenas infinitesimais entre as performances, produz descontinuidades durveis e brutais, do tudo ao nada, como aquela que separa o ltimo aprovado do primeiro reprovado, e institui uma diferena de essncia entre a competncia estatutariamente reconhecida e garantida e o simples capital cultural, constantemente intimado a demonstrar seu valor. V-se claramente, nesse caso, a magia performtica do poder de instituir, poder de fazer ver e de fazer crer, ou, numa s palavra, de fazer reconhecer. No existe fronteira que no seja mgica, isto , imposta e mantida (s vezes, com risco de vida) pela crena coletiva. "Verdade aqum dos Pireneus; erro alm". a mesma diacrisis originria que institui o grupo como realidade, ao mesmo tempo, constante (ou seja, transcendente aos indivduos), homognea e diferente, pela instituio arbitrria e desconhecida como tal de uma fronteira jurdica, e que institui os valores ltimos do grupo, aqueles que tm por princpio a crena do grupo em seu prprio valor e que se definem na oposio aos outros grupos. Ao conferir ao capital cultural possudo por determinado agente um reconhecimento institucional, o certificado escolar permite, alm disso, a comparao entre os diplomados e, at mesmo, sua "permuta" (substituindo-os uns pelos outros na sucesso); permite tambm estabelecer taxas de convertibilidade entre o capital cultural e o capital econmico, garantindo o valor em dinheiro de determinado capital escolar. Produto da converso de capital econmico em capital cultural, ele estabelece o valor, no plano do capital cultural, do detentor de determinado diploma em relao aos outros detentores de diplomas e, inseparavelmente, o valor em dinheiro pelo qual pode ser trocado no mercado de trabalho - o investimento escolar s tem sentido se um mnimo de reversibilidade da converso que ele implica for objetivamente garantido. Pelo fato de que os benefcios materiais e simblicos que o certificado escolar garante, dependem tambm de sua raridade, pode ocorrer que os investimentos (em tempo e esforos) sejam menos rentveis do que se previa no momento em que eles foram realizados (com a modificao, de facto, da taxa de convertibilidade entre capital escolar e capital econmico). As estratgias de reconverso do capital econmico em capital cultural, que esto entre os fatores conjunturais da exploso escolar e da inflao de diplomas, so comandadas pelas transformaes da estrutura das oportunidades de lucro asseguradas pelas diferentes espcies de capital.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educao / Maria Alice e Afrnio Catani (organizadores) Petrpolis, RJ: Vozes, 1999, 2 edio. pp. 71 -79.


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