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TEMPEST – O INÍCIO
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JULIE CROSS
TEMPEST – O INÍCIO
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Título original: Tomorrow Is Today Story. Copyright © 2011 Julie Cross. Copyright da edição brasileira © 2012 Editora Pensamento‐Cultrix. Ltda. Texto de acordo com as novas regras ortográficas da língua portuguesa e adaptado para o português do Brasil. 1a edição 2012.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas.
A Editora Jangada não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro.
Esta é uma obra de ficção. Todos os personagens, organizações e acontecimentos retratados neste romance são produto da imaginação da autora ou usados de maneira fictícia.
Coordenação editorial: Denise de C. Rocha Delela e Roseli de S. Ferraz
Jangada é um selo da Editora Pensamento‐Cultrix Ltda.
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14 de maio de 2009, 18:30. – Não entendo por que precisamos preencher isso – reclamou Holly, enquanto
espalhava seus formulários pelo chão. Eu me aproximei dela, que estava deitada de bruços no carpete, com uma caneta na
mão. – Bem... O primeiro é só um punhado de perguntas sem sentido que você responde e
depois guarda num envelope fechado, para que ninguém possa ver. – E pra que tudo isso?... – O diretor do acampamento arquiva esse formulário e depois envia pra você por e‐
mail antes do início do próximo treinamento de monitores, para que você possa ver o quanto evoluiu em um ano.
Ela riu e revirou os olhos. – Ai, meu Deus, que coisa mais piegas... Talvez eu deixe as minhas respostas em
branco. – Diga apenas que a sua vida é uma tabula rasa agora – brinquei. – Hoje é o primeiro
dia do resto da sua vida... – Adam, o que você está escrevendo? – ela perguntou. – Se eu contar, posso pôr a sua vida em perigo! – respondeu Adam, fazendo graça. Holly riu e colocou o questionário de lado. – A outra tarefa é fazer o planejamento de atividades da primeira semana de
acampamento? – É isso aí – respondi, folheando os meus formulários. – Já temos a lista de alunos
também, então podemos começar a decorar os nomes. – Pra quê? – perguntou Holly. – Muitas dessas crianças devem pagar alguém para ir ao
acampamento no lugar delas. Assim podem ficar em casa jogando videogame como crianças normais.
Eu não deveria rir, visto que fui uma dessas crianças, mas não pude evitar. As piadas de Holly sobre crianças ricas tinham sido o ponto alto dos nossos dois meses de treinamento como monitores.
Quando ela se levantou para fazer o planejamento das suas atividades, eu aproveitei a oportunidade para falar com Adam.
– Seu aniversário é amanhã, não é? Meus colegas de dormitório vão dar uma festa – eu disse, baixando a voz para que o convite não se espalhasse. Afinal, meu dormitório não era tão grande assim. – Sabe... pra comemorar o final do ano. Você quer vir? Talvez a gente possa fazer mais alguns experimentos de viagem no tempo num lugar diferente.
Um sorriso apareceu no rosto de Adam. – Maneiro!... Na verdade, já tenho algumas ideias. – Eu desconfiava... Ele passou a falar das várias ideias que tinha para possíveis experimentos e teorias que
precisávamos comprovar. Eu ouvi por alguns minutos e depois meus olhos começaram a vagar pelo ambiente, enquanto Holly se esparramava no chão outra vez. Ela tinha colocado o cabelo louro atrás da orelha e tirado os chinelos de dedo. Memorizei o jeito como a caneta se movia com fluidez pela página. Era quase sexy, o que era totalmente bizarro. Talvez eu estivesse imaginando secretamente que ela estivesse rabiscando o meu nome. Mas não tenho certeza se Holly é o tipo de garota que faria isso. E não tenho certeza se eu queria que ela fosse.
Ela deve ter me flagrado olhando, porque sua cabeça se voltou lentamente na minha direção e suas bochechas ficaram vermelhas.
– Está preenchendo o formulário piegas, não é, Holly? – eu disse, para disfarçar os longos cinco minutos em que fiquei olhando para ela. – Eu tinha um palpite de que você ia gostar de fazer isso.
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Adam soltou uma risada anasalada ao meu lado e presumi que eu estava certo. Holly na verdade não queria deixar suas respostas em branco.
Os olhos dela se voltaram para a folha, mas eu pude ver que estava dando uma risadinha, e eu me peguei fazendo o mesmo. Então procurei o meu formulário entre os papéis e escrevi meu nome no topo da página.
– Olha só, Holly... também estou a fim de preencher isso. Não precisa ficar constrangida.
– E eu também – acrescentou Adam. – Não vejo a hora de me encontrar com o meu eu futuro.
Quando disse isso, Adam e eu nos entreolhamos e começamos a rir. A ironia era boa demais para não rirmos.
15 de maio de 2009, 20:30. – Jackson! E aí, garoto? Eu me virei na direção da voz. Dois sujeitos que eu não reconheci estavam entrando no
dormitório que eu dividia com meus dois colegas de faculdade. Nós tínhamos uma suíte espaçosa, mas ela já estava quase lotada e a noite só estava começando.
– Ei! E aí? –cumprimentei, acenando com a cabeça para os dois desconhecidos. Atrás deles, com um sorriso tímido, vinha Adam Silverman. Ele ainda não se sentia muito seguro para sair do seu mundinho de colegial em Nova Jersey e entrar no mundo das festas universitárias em Manhattan. Acenei para ele, com um sorriso. Um dos meus colegas de dormitório, Danny, tentou bloquear sua passagem.
– Sem essa, Jackson! Nada de pivete aqui. A gente tinha combinado. – Mas ele tem 18. Está fazendo hoje. – Ah, não, cara! – Danny gemeu, jogando as mãos para cima. – Vem vindo mais gente... Demorou um segundo até que eu visse mais dois “pivetes do secundário” atrás de
Adam. Holly Flynn entrou na sala, acompanhada por um cara alto e magro que parecia mais nervoso em estar ali do que o próprio Adam. Ele me estendeu a mão.
– Sou David... Valeu por deixar a gente invadir a sua festa... Foi demais! – Não esquenta, cara. Legal vocês virem. A música aumentou de volume e Adam me puxou pela manga até a cozinha. – Desculpe, eles insistiram pra vir – disse em voz baixa. – Bem, na verdade foi mais a
Holly do que o David, mas é sempre assim com esses dois. Eu me encostei contra o balcão e olhei Holly conversando com meu vizinho. Seu cabelo
loiro estava solto e esvoaçante, não preso num rabo de cavalo como geralmente ficava nas noites de treinamento. Ela também vestia um vestido preto justo no corpo e uma sandália de plataforma, mas mesmo assim mal chegava a bater no ombro de David.
– Eles estão juntos? – É, faz mais de um ano agora. Se conhecem desde o primeiro ano... Quer dizer...
Todos nós nos conhecemos. Um ano?! Holly estava com o mesmo cara há um ano e nos dois meses que passamos
juntos, Adam, ela e eu, isso nunca foi mencionado? – Ok, pronto pra se divertir de verdade? – eu disse, batendo palmas. – Estou pronto, mas ainda precisamos de algumas horas... Sabe, demora pra registrar a
cena atual e aí comparar tudo depois que você tiver conseguido informações sobre o salto. – Tudo bem. Nos trinta minutos seguintes, eu fiz o papel do anfitrião perfeito e conversei e dancei
com duas garotas que moravam no prédio em andares diferentes e com outra garota da minha classe. Então vi Holly sozinha, encostada no balcão da cozinha. Perambulei um pouco por ali e depois me encostei do outro lado do balcão.
– Então... onde está o Doug?
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– David – ela corrigiu, e depois deu uma olhada pela sala. – Não sei muito bem. A última vez que eu o vi, estava com Adam. Estavam conversando sobre filmes e dando risada.
– E por que você está aqui sozinha? Pensando em seus planos para o futuro? Ela me lançou um olhar de desaprovação, mas estava sorrindo. – Não gosto de fazer planos. – Não negue. Sei que você adora fazer planos para o futuro... – Fiz uma pausa por um
segundo, escolhendo as palavras certas para descrever essa garota, que ainda era um mistério para mim. – Não, você é mais daquelas que têm “grandes sonhos”... Gosta de estabelecer metas e fazer todas aquelas bobagens dos livros de autoajuda. Aposto que tem até um diário.
Ela desviou os olhos dos meus rapidamente e suas bochechas coraram. – Ah! Eu sabia! – Tudo bem. – Ela deu de ombros. – Tem razão... Mas, na verdade, se eu morasse aqui
em Nova York a vida toda, acho que não teria nada sobre o que escrever. Ficaria o dia inteiro fora de casa... e, não escrevendo sobre o que planejo fazer. Pra mim, os melhores escritores são os que têm uma vida muito chata.
Ergui as sobrancelhas. – Boa sacada. Não tenho certeza se posso continuar zoando com você agora. Ela sorriu para mim. – Você vai pensar num outro jeito... – Quer ver algo bem legal? – perguntei, depois de tomar uma decisão rápida e
impulsiva. – Ok... Procurei algumas ferramentas na gaveta da cozinha e levei Holly até a porta,
apontando o cabideiro para que ela pegasse o casaco. Quando estávamos no corredor vazio, com a porta da minha suíte fechada, tirei as ferramentas do bolso de trás da calça.
– Avise se aparecer alguém. Ela deu uma olhada pelo corredor. – Não vem vindo ninguém... Aposto que não vamos tomar café ou... fazer alguma coisa
normal... Minhas mãos congelaram no cadeado da porta que dava para o terraço. Holly queria ir
tomar um café comigo? Será que eu deveria tê‐la convidado para tomar um café?... Não, Jackson, ela tem namorado! Sacudi a cabeça e me concentrei em abrir a droga do cadeado, tentando não quebrá‐lo.
– O terraço? É para lá que estamos indo? – ela perguntou, já abrindo a porta para as escadas, no segundo em que eu metia o cadeado no bolso.
Ela tirou os sapatos altos e segurou‐os embaixo do braço. Eu sorri, adorando seu entusiasmo declarado, e comecei a subir os degraus.
– Esta é uma experiência nova‐iorquina que você não pode registrar no seu diário. Principalmente porque é ilegal... Você não está com impulsos suicidas, está?
– Hoje não. – Ela subiu os cinco lances de escada com facilidade, como se já estivesse pronta para essa aventura há muito tempo. – Acha que alguém pode pegar a gente?
Abri a porta para ela e nós dois sentimos no rosto uma lufada de ar frio da noite. – Se alguém nos pegar, podemos dizer que eu estava convencendo você a não pular...
– Holly riu de mim e depois foi direto para a borda do telhado, para olhar a vista. – Uau!... É lindo... Agora me diga para o que eu estou olhando. Eu parei ao lado dela, evitando ao máximo olhar para o chão lá embaixo, e apontei
para os prédios e parques até onde conseguíamos ver. Holly ouviu tudo tão atentamente que quase me deixou nervoso... Quase. Esse não era o tipo de conversa que eu costumava ter com uma garota, mas eu não costumava mesmo conversar com garotas como Holly.
O tipo de garota que namora mais de um ano.
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Então eu me lembrei por que ela poderia estar tão interessada nos detalhes daquela parte da cidade. Ela começaria a cursar a Universidade de Nova York dali a alguns meses...
– Ei... Você já sabe onde vai ser o seu dormitório? Ela sorriu para mim, constrangida. – Já... Rubin Hall. – Mas aqueles dormitórios são minúsculos... Me diga pelo menos que vai ficar
sozinha... – Com mais duas garotas... – Ela fitou um prédio do outro lado da rua. – É muito mais
barato do que o quarto duplo... Eu não ligo de ficar sem ar‐condicionado e dormir numa beliche, contanto que meu endereço não seja mais em Nova Jersey e eu tenha mais coisas pra fazer à noite do que simplesmente passear na praça, me sentar dentro do carro, beber cerveja quente e fumar um baseado.
Eu ri dela, e acusei‐a de estar blefando. – Você não é o tipo de garota que fuma maconha. – Mas soou muito melhor quando acrescentei essa parte, não é? – Ela riu um pouco e
então começou a andar pelo terraço, para olhar a cidade de outro ângulo. Depois daquela conversa, percebi que ela não era um mistério tão grande assim,
embora me assustasse a ideia de querer desvendá‐la. Mas eu não podia pensar em nada daquilo agora. Tudo o que eu podia fazer era olhar o vento soprando em seu cabelo, solto e embaraçado... E a maneira como ela estava ali, descalça e na ponta dos pés, tentando ter uma visão melhor do chão lá embaixo, com os músculos das pernas tensionados. Nada em Holly era falso. Claro, tudo isso me deixou morto de vontade de ver um pouco mais da sua pele...
Não, não pense nisso!... Ela é amiga do Adam. – Te assusta? – ela perguntou. – O quê? Olhar pra baixo? – Eu dei uma olhada de meio segundo para o chão lá
embaixo, que era tudo o que eu conseguia fazer. – Bom... é... me apavora um pouco. Prefiro olhar pra frente... ou pra cima.
– Não, não quis dizer isso... Quis dizer, sair de casa. Morar com estranhos. Ficar sozinho. Ter responsabilidades.
– Ah, está se referindo a isso. – Descansei os braços na mureta, ao lado dela. – Sabe, eu provavelmente não sou a pessoa mais indicada pra responder essa pergunta. Quase posso ver o apartamento do meu pai daqui. Nem parece que saí de casa. E os meus colegas de dormitório pagam uma faxineira... Além disso, temos ar‐condicionado.
Ela abriu um sorriso. – Estou orgulhosa de você. É preciso coragem pra admitir isso. Eu senti que tinha chegado mais perto dela sem perceber. Pare! Ela tem namorado... É amiga do Adam... Não é pro seu bico. Meu corpo seguiu minhas instruções e recuou um pouco mais, aumentando a distância
entre nós. – É melhor eu descer... Ver se meus colegas não se mataram... Holly concordou e então respirou fundo. – Só vou ficar por aqui mais uns minutinhos, ok? Eu dei a ela o cadeado que estava no meu bolso. – Claro, só coloque isso na porta quando voltar. Quando voltei para o dormitório quente, abafado e cheirando a suor, Adam e David
estavam na cozinha e Adam ria como louco. – Jackson! – Adam gritou alto o suficiente para que todos no prédio ouvissem, antes de
me dar um soco no ombro. – Adivinhe só quem acabou de ganhar trezentas pratas! David cobriu a boca de Adam, por trás, e me lançou um olhar preocupado. – Foi mal... Acho que ele está um pouquinho... – ...alegre? – terminei, rindo. Esse Adam menos responsável era como um estranho
para mim.
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– Hã... é – concordou Adam, sacudindo um maço de notas de dólar na frente do meu nariz.
David soltou um suspiro e balançou a cabeça. – O seu colega de dormitório apostou que ele não conseguia tomar seis garrafas de
Red Bull sem vomitar... Foi a vez de David levar uma porrada de Adam no ombro. – Você não achou que eu ia conseguir, hein, cara? – Adam e a cafeína não costumam se dar muito bem... – explicou David. Eu imediatamente dei um passo para trás, me afastando de Adam, só por precaução. – O banheiro é virando ali... Preferimos não ter que limpar vômito, mas, se acontecer,
você não seria o primeiro a vomitar aqui. Adam levantou a mão na minha frente, revelando um óbvio tremor, depois flexionou
os joelhos, como se estivesse se aquecendo para uma corrida. – Eu preciso comer alguma coisa... algo pra rebater a cafeína. Apontei para a cozinha. – Danny cola etiquetas azuis nas coisas dele... Não coma a comida do cara ou ele vai
ter um infarto. – Eu nunca vi Adam assim antes... Pelo menos não tão mal. Só precisa de uma lata de
Coca‐Cola pra ficar acordado a noite inteira construindo pontes de palitos de dente ou coisa parecida – explicou David, olhando Adam encher a boca com batatas fritas. – Só não sei por que a cafeína o afeta tanto... Nunca consegui entender.
Eu entendia... ou pelo menos tinha uma teoria. – O cérebro dele já é acelerado demais... Não acho que precise dormir muito nem em
circunstâncias normais. – Só preciso conseguir arrastá‐lo pra fora daqui e conseguir alguma coisa pra ele
comer no caminho... – Ele não está me incomodando, se é com isso que está preocupado... – eu disse. –
Mais uma hora de festa e vai ter gente em muito pior estado do que Adam Silverman. – Valeu. – David desabou no braço do sofá e esfregou os olhos. – Esses dois me cansam
às vezes. Juro que são como dois animais enjaulados, prontos pra fugir e sair correndo na primeira oportunidade.
Imaginar Holly como um animal enjaulado fez surgirem na minha cabeça várias imagens que tive que me obrigar a esquecer imediatamente.
– E você? Tem planos para o próximo semestre? Eu estava falando sério? Estava mesmo perguntando a outro cara quais os planos dele
para o futuro? Droga! O que havia de errado comigo aquela noite? Ele coçou a nuca, parecendo tão desconfortável quanto eu. – Hã... Vou para um instituto de ensino superior em Newark... Por ora, pelo menos. – Bem, acho que vai ser bom, então. Não vai ficar muito longe de Holly. Agora ele parecia ainda mais incomodado, então se levantou e olhou para a porta. – Falando em Holly... você sabe onde ela está? – Acho que subiu até o terraço... pra dar uma olhada na vista. Eu não sei por que preferi não mencionar que eu estava lá com ela. Não era como se
tivesse acontecido alguma coisa. Por sorte, Holly apareceu no mesmo instante e se aproximou de David, jogando‐se sobre ele, como se estivesse muito feliz em vê‐lo.
Ele pousou as mãos em suas bochechas. – Estava frio lá fora? Seu rosto está congelando! – Minhas mãos também. Eu só olhei por mais alguns instantes, o suficiente para ver David segurando as mãos
dela e soprando‐as antes de beijar sua testa. O cara era um pau‐mandado... E muito alto... Alto demais para ela.
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Adam estava saindo da cozinha e indo para o corredor, carregando alguns pacotes de salgadinhos.
– Cara... onde é o seu quarto? – Ah, boa ideia. Precisamos nos trancar no meu quarto, mas tomando cuidado para
não confundir certas pessoas. – Você quer dizer não confundir as “minas” – ele disse, rindo. – Melhor não confundir
as garotas com quem você anda. Mal posso acreditar que elas estão por aí, na festa, e nenhuma ainda te deu um chute no saco.
Eu o empurrei para dentro do meu quarto antes que ele começasse a falar alto demais. – Não faço ideia do que você está falando – eu disse. Ele desabou na minha cama. – Certo... Não quer se incriminar... Entendi. Eu me sentei na cadeira da minha escrivaninha, na frente de Adam. – Estou meio entediado. Podemos fazer alguma viagem no tempo ou coisa assim?
Tentar um experimento novo? – Ei... Você pode comer alguma coisa... Se empanturrar de comida... E depois voltar e
ver se ainda está cheio. Já tentamos isso? Eu revirei os olhos. Esse não era o Adam nos seus melhores momentos. E não era só a
cafeína. Outra coisa o estava aborrecendo. Geralmente, ele ficava tão focado na ideia de estabelecer algum objetivo específico para mim, que ficava pensando nisso dias e dias.
– Se é isso mesmo que você quer tentar, eu topo. – Por que não?... A gente tem que acabar fazendo um pouco de tudo. – Os olhos dele
estavam tão arregalados que pareciam prestes a saltar das órbitas. E ele ficava estalando os dedos por qualquer motivo.
Demoramos alguns minutos para tomar nota de algumas coisas, mas eu não o pressionei, porque a mania dele de estalar os dedos estava realmente me irritando, pra não falar do tamborilar do lápis. Tive a familiar sensação de ser rasgado ao meio quando me concentrei e saltei para uma hora atrás no tempo...
Eu me vi no meu quarto de novo, justamente como eu tinha planejado, porque o meu
outro eu estava perambulando pela sala de estar, conversando com todo mundo, e eu sabia que ele não entraria no quarto tão cedo. Agora, tudo o que eu tinha que fazer era ir até a cozinha sem topar com o outro Jackson.
No segundo em que entrei no corredor, dei de cara com um sujeito enorme com um copo cheio de cerveja na mão. O cara sem querer derrubou o copo e deixou quase toda a cerveja cair sobre a roupa de Holly, que estava do lado de fora do banheiro, provavelmente esperando sua vez de entrar.
– Ai, não! – ela gritou. – Putz, que droga... – gemeu o grandalhão. Eu só fiquei olhando para Holly, enquanto a cerveja escorria pelo seu vestido e até
pelo cabelo. Ela olhou pra mim, sem jeito. – Puxa... o carpete vai ficar arruinado... – Não se preocupe com isso. – Eu a levei até o meu quarto. – Tenho um banheiro aqui.
Você não precisa pegar fila. Ela ficou na frente do espelho de corpo inteiro pendurado na porta do banheiro e
começou a rir. – Sabia que eu devia ter colocado uma muda de roupa na bolsa. – Quer alguma coisa emprestada? – Vasculhei minhas gavetas e achei uma calça de
moletom velha e uma camiseta dos Arctic Monkeys. Por alguns segundos apoiei as mãos na gaveta antes de passar as roupas para ela.
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Isso não é real... É só um salto no tempo. Eu não estou mudando o passado. O carpete manchado de fato não tinha importância nenhuma e eu poderia deixar Holly se virar sozinha para secar o vestido, porque ela não teria nenhuma lembrança desse estranho incidente.
– Obrigada. – Ela pegou as roupas da minha mão e entrou no banheiro. – Não tem tranca na porta? Tem certeza que ninguém vai entrar aqui?
– Claro! – respondi, ainda perdido em pensamentos. Ela saiu depois de alguns minutos, secando o cabelo com uma toalha. Eu peguei das mãos dela o vestido molhado. – Não quer que eu mande lavar isso pra você? Acho que não vai querer levá‐lo pra casa fedendo a Budweiser.
– Não precisa – ela disse, mordendo o lábio. – Na verdade... pensando bem... isso eliminaria muitos possíveis problemas.
– Não custa nada. – E o meu cabelo? Está cheirando a cerveja? Havia alguma coisa em sua expressão que me fez pensar que ela queria que eu
chegasse mais perto. Que eu invadisse o seu espaço pessoal, mas sem exagerar no flerte, como muitos caras fazem. Era quase pura curiosidade.
Isso foi algo que eu senti desde o momento em que pus os olhos em Holly. Como seria beijá‐la? E agora eu podia descobrir isso sem causar nenhuma consequência. Sem que significasse alguma coisa.
Encostei o nariz no cabelo dela e respirei fundo. Uma das minhas mãos se ergueu e alisou os fios dourados e ela ofegou. Isso é errado... Será que é errado?
– Está com um cheiro bom... – Eu voltei a me afastar e seus olhos encontraram os meus, arregalados e confusos, mas mantendo o olhar... Então avancei o sinal.
Meus lábios tocaram os dela delicadamente a princípio e depois minhas mãos emolduraram seu rosto, atraindo‐a mais para perto. Mas tudo o que eu queria sentir e saborear parecia meio insosso. Era como ir ao concerto de uma banda de rock e não conseguir enxergar o palco. Os lábios dela deveriam estar quentes, eles deveriam ter o gosto de algo... o gosto de Holly. Então por que eu não conseguia sentir o aroma do seu xampu? Eu já tinha percebido o aroma de melancia semanas atrás. Mas hoje, nada.
Porque não é real. É como uma fantasia. Um devaneio. Eu me afastei rápido e olhei para o chão. – Desculpe, Holly... Isso foi... – Olhei para ela e suspirei. – Podemos esquecer o que
acabou de acontecer... por favor? A pergunta era mais dirigida a mim do que a ela. Eu já sabia que ela não se lembraria
de nada quando eu saltasse de volta no tempo. E isso me aborrecia mais do que qualquer outra coisa. Mas mesmo assim esperei até ela concordar levemente com a cabeça antes de pôr um ponto final àquele louco experimento.
– E aí? Já de volta à terra dos vivos? – Adam perguntou quando fui projetado de volta à
realidade. – É, estou de volta. – Eu me levantei da cadeira e andei pelo quarto por um minuto
antes de me esticar na cama. – Eu me distraí um pouco. – Está tudo bem? Eu não conseguia olhar para ele depois do que tinha acabado de fazer com Holly. – Em vez de comer alguma coisa... eu pensei que podia tentar beijar... alguém. Pra
saber... se a sensação era diferente. – Legal. Precisamos de mais provas de que você não está alterando o futuro ao mudar
o passado. – Não estou e você sabe disso. – Desculpe, estou meio confuso esta noite. Eu deveria estar cooperando mais com este
estudo científico. – Ele encostou a cabeça na parede e fechou os olhos.
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– Ei... é seu aniversário. Você tem todo o direito de estar confuso. Sério. A gente pode repassar tudo com mais detalhes amanhã.
– Eu preferia estar bêbado do que entupido de cafeína – ele corrigiu. – Sabe o que os meus pais me deram de aniversário?
– Credenciais de acesso da CIA? Um kit para fazer explosivos em casa? – brinquei, tentando amenizar o humor sombrio que não era característico de Adam.
Ele riu e balançou a cabeça. – Uma enciclopédia. – Quem usa enciclopédias? Não é pra isso que serve a Wikipédia? – Pois é – disse Adam com um suspiro. – Quando vi todos aqueles livros, tive uma
prova instantânea de que meus pais ignoram completamente que eu nunca precisei consultar uma enciclopédia... Não tem muito numa enciclopédia que eu já não tenha memorizado no ensino fundamental. – Ele esfregou o rosto com as mãos. – Eu amo meus pais... sério... mas vivemos em planetas diferentes e não há nada que eu possa fazer pra mudar isso. Estou cansado de fingir.
– É, acho que se embebedar esta noite teria sido melhor pra você do que voltar pra casa com trezentas pratas no bolso – eu disse, porque era a resposta mais honesta que eu poderia dar.
– Provável... Eu fiquei em silêncio por vários minutos, com os olhos cravados no teto. – Por que você nunca mencionou David? – Sei lá... nunca me ocorreu, acho. – Então isso explica por que vocês dois não estão juntos? Você e Holly?... Todo mundo
no acampamento pensava... A risada alegre de Adam me deteve. – É, David é parte da razão... mas tem outra coisa... ela é Holly Flynn... Eu a conheço
desde o primeiro ano... A gente via as espinhas um do outro ou os restos de comida presos no aparelho dos dentes. Essas imagens tendem a ficar gravadas na nossa cabeça. Meio que matam qualquer romance em potencial.
Então, talvez se imaginasse Holly com o aparelho com restos de comida e defeitos em todos os lugares, eu seria capaz de parar de pensar nela e de evitar beijá‐la quando saltava no tempo? Eu não tinha certeza de que seria o suficiente.
Talvez eu pudesse convencê‐la a dar um pé no namorado e sair comigo? Mas e depois? A batida forte na minha porta me distraiu dos meus devaneios. Abri a porta e vi Danny. – O que foi? – O homem que acaba com as festas... – ele sussurrou. – O encarregado do dormitório
acabou de sair... estamos chutando todo mundo pra fora antes que ele volte com o segurança. Eu contornei Danny e fui até a sala de estar. Podia ouvir os passos de Adam atrás de
mim. A música tinha parado e metade dos convidados já tinha ido embora. – Desculpem por isso – eu disse a David e Holly, que ainda estavam sentados no sofá.
Mas, ao verem Adam, eles pareceram mais do que prontos para fugir dali. – Tudo bem – disse David. – Holly está sempre procurando situações emocionantes em
que possa correr riscos. Holly riu um pouco, então colocou a cabeça em seu ombro, bocejou e fechou os olhos. – Vou tirar um cochilo. David sacudiu os ombros de Holly. – Não vai cair no sono aqui, não... Não vou carregar você até a estação de metrô. São
seis quarteirões. Mas o jeito como disse isso, o carinho em sua voz, me fez imaginar se ele não a
carregaria. Não é isso o que os namorados fazem? E quando eles estavam prontos para ir embora, eu me peguei observando os dois um
pouco mais de perto... Coisas como David colocando o casaco nos ombros de Holly e beijando
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seu rosto, a maneira como ele segurou no braço de Adam para que ele conseguisse andar em linha reta e não trombasse com nada. Eu sabia que nunca ia pôr em prática o meu plano de fazer Holly largar o namorado. Não porque achasse que ela não iria me querer, mas porque ele era melhor do que eu. Muito melhor.
08 de junho de 2009, 06:05. Acordei sobressaltado, com Paper Planes, do M.I.A., soando aos brados no meu
celular, pela manhã. Eu me atrapalhei no escuro, mas consegui levar o telefone ao ouvido antes que ele parasse de tocar e fosse para o correio de voz.
– Cara, já está acordado? – perguntou Adam. – Agora estou. – Primeiro dia de acampamento! Pronto para o trabalho, playboy? – Ele riu ao
telefone e eu pude ouvir outra risada abafada no fundo... e o barulho do trem. Ele já devia estar a caminho... com Holly.
Sentei‐me, esfreguei os olhos e olhei ao redor do quarto. – Claro... Ou pelo menos vou estar depois de um banho e um café. E vocês dois? – Holly e eu tivemos que enfrentar a primeira de muitas festas de formatura ontem. Eu
estou de ressaca e ela está... nervosa. Eu ouvi o som de um tapa contra a pele e, em seguida, Adam disse: – Ei! Esquece, Jackson... ela está ótima. Nem um pouco nervosa. E você? Chegou em
casa tarde noite passada? Os eventos da noite anterior inundaram novamente a minha cabeça enquanto eu me
levantava para abrir a janela e deixar entrar um pouco de luz no quarto. – Não estou no viva‐voz, estou? – perguntei. – Não. – Fiz o que você me disse – contei, baixando o tom de voz. – Vasculhar o escritório do
meu pai, aqui em casa. – Ah! E então...? – Eu não sabia que horas ele ia voltar, então tirei um monte de fotos... Provavelmente
umas cem... – Como você salvou as fotos? Onde está a câmera? – perguntou ele. – Relaxa, ok? Gravei tudo num cartão de memória que já está na minha carteira. E
apaguei tudo da câmera. – Legal. – Ele soltou um suspiro. – Você usou o que eu disse pra usar? Revirei os olhos, mesmo sabendo que ele não podia me ver. – Não, eu não usei luvas de borracha. E se ele entrasse? Eu posso arranjar uma
desculpa para estar no escritório dele, mas não para estar no escritório dele usando luvas... Isso é um pouco mais difícil de justificar.
Ele suspirou. – É, acho que sim. Só que ia ser tudo mais fácil se você não deixasse nenhum tipo de
pista. – Esta é a minha casa, Adam. Minhas impressões digitais estão em todo lugar. – Cara,
Adam podia ser muuuito paranoico às vezes! – Ok, ok – concordou ele. – Vou deixar você ir tomar café. Te vejo daqui a pouco. Depois que desliguei, verifiquei a minha carteira para me certificar de que tinha posto
o cartão de memória lá dentro, e então fui para o chuveiro. Quando cheguei à ACM uma hora depois, vi Adam e Holly imediatamente. Ambos
estavam sendo bombardeados pelos pais que traziam os filhos para o acampamento. Adam estava certo... Holly de fato parecia nervosa. Fui até onde ela estava e bati em seu ombro. – Bela camiseta.
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Ela me deu um meio sorriso e olhou de relance a polo verde dos monitores do acampamento, idêntica à minha.
– Você sabe que horas vamos entrar no ônibus? Sabe se eles usam produtos de limpeza químicos nos banheiros do acampamento? – Os olhos dela desviaram‐se para a prancheta em seus braços. – Ah!... E você sabe se os salva‐vidas são certificados pela Cruz Vermelha ou pela Associação Americana do Coração?
Eu coloquei a mão em cima da prancheta dela, encobrindo todas as anotações que tinha rabiscado pela manhã.
– Nós vamos entrar no ônibus quando o Sr. Wellborn mandar. Peço a Deus que eles usem produtos químicos para limpar os banheiros. Você nem vai querer saber o que eu encontrei lá ao longo dos anos... E uma ambulância vai chegar antes que qualquer salva‐vidas tenha tempo de pensar em usar o ressuscitador. Os paramédicos ficam sentados no estacionamento o dia todo. Mas ninguém vai se afogar, Holly.
– É, eu sei disso... mas, obviamente, esses pais não sabem, porque continuam a perguntar um monte de coisa que eu não sei responder – ela sussurrou, inclinando‐se para chegar mais perto e evitar que alguém ouvisse. – E então eles olham para mim como se eu fosse uma idiota.
– Vou te contar uma coisa sobre essas pessoas – eu disse a ela, não me preocupando em sussurrar. – Elas não estão nem esperando uma resposta. Mas perguntam esse monte de bobagem porque isso faz com que se sintam importantes ou mais orgulhosas de si mesmas ou menos culpadas por deixarem os filhos com a babá 24 horas por dia, sete dias por semana.
Ela abriu a boca para responder, mas uma mulher com um terninho Armani nos interrompeu. Um menino com cabelo castanho e rosto redondo se escondia atrás da perna dela.
– Você é Jackson Meyer? – Sim, sou eu. – Olhei para Holly por uma fração de segundo e disse "Fique olhando"
sem fazer nenhum som. – Eu sou a mãe de Hunter Bollman – disse a mulher. – Me disseram que ele está no seu
grupo este verão. Eu chequei minha lista e encontrei o nome de Hunter no topo. – Isso mesmo, ele está comigo. – Não recebi nenhuma informação sobre as especificações de segurança do
acampamento... Vocês têm um plano de incêndio? Um procedimento de evacuação em caso de ameaça terrorista? E de tempestades? E vocês não estão planejando só praticar esportes todos os dias, estão? – Os olhos dela estavam pregados em mim, como um raio X, e talvez decidindo que eu provavelmente não tinha cérebro suficiente para ensinar ao seu filho qualquer coisa além de chutar uma bola. – Hunter já está muito adiantado em leitura e sua babá está lhe ensinando duas línguas estrangeiras desde que ele tinha 3 anos. Ele é praticamente fluente em francês e chinês. Eu detestaria ver todos esses estímulos sendo desperdiçados.
Eu me abaixei e estendi a mão para Hunter e disse, em francês, exibindo o meu melhor sotaque:
– Bom dia... Que bom que você está no meu grupo este verão! Nós vamos nos divertir muito.
O menino franziu a testa e uma expressão perplexa se estampou em seu rosto. Levantei‐me e sorri para a mãe dele.
– Eu tenho uma atividade incrível prevista para esta manhã. Vamos organizar um tipo de pega‐pega em que as crianças terão de gritar palavras em latim para não terem que virar estátuas.
– Latim! – exclamou a mãe de Hunter, sorrindo para mim. – Nosso orientador acadêmico estava me contando outro dia sobre como o latim vai ser enfatizado no curso preparatório para o SAT.
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Preparatório para o SAT aos 8 anos de idade... parecia muito divertido . Com isso, fui liberado pela mãe de Hunter e imediatamente me virei para Holly, que
me olhou com curiosidade e disse: – Você nem respondeu às perguntas dela... Dei de ombros. – Eu sei. Ela riu e pareceu relaxar um pouco. – E você viu a cara do garoto quando falou em francês com ele?... Ele não fazia ideia do
que você estava dizendo. Até eu entendi a parte do “bom dia” e não sei nada de francês. – Superfluente, o garoto, hein? – Desta vez, inclinei‐me para chegar mais perto e
sussurrar no ouvido dela, porque os pais estavam mais próximos. – Você não pode se intimidar com essas crianças só porque são ricas e...
– ...praticamente de outro planeta – completou Holly. – Eu não vou responder, porque tenho que defender os iguais a mim. – Sorri para ela
e, em seguida, apontei algumas crianças que estavam perto de nós. – Tente pensar nessas crianças como... cheeseburgers.
– Cheeseburgers? – É, cheeseburgers. Um prato americano típico. Tão básico quanto a própria vida.
Então pegue esse cheeseburger e dê a ele um nome fantasia. Contrate um chef mundialmente famoso para prepará‐lo numa grelha de 10 mil dólares e enfeite o prato com redemoinhos de mostarda francesa e caviar. Mas, na verdade, quando você olhar de perto, vai ver que ainda é só...
– ...um cheeseburger – Holly terminou. – Você entendeu. – Eu dei um tapinha no topo da cabeça dela. – A maioria dessas
crianças não pode fazer metade das coisas que seus pais dizem que podem... Elas são tão comuns quanto o resto de nós, mas você diz a alguém que uma criança estuda violino com o diretor da orquestra sinfônica de Nova York, que, para sustentar seu vício em drogas e jogos de azar, por acaso dá aulas para pirralhos de 6 anos, de nariz escorrendo, e de repente o garoto é um prodígio.
– E ninguém se importa que o professor seja viciado em drogas? Eu coloquei a mão no peito, fingindo que estava chocado. – Holly, ele é um artista!... Angústia e dor sempre acompanham esse tipo de talento.
Todo mundo sabe disso. – Uau! – admirou‐se Holly, olhando ao redor e balançando a cabeça. – Você realmente
coloca as coisas em perspectiva. E agora posso ter absoluta certeza de que tudo o que você diz é noventa por cento bobagem... Sabe... já que você foi uma dessas crianças.
Ela sorriu para mim e começou a se afastar. – Provavelmente, uns 95 por cento – gritei para ela, recebendo alguns olhares de
funcionários e pais. – Ok... Pega‐pega em latim? Sério? – Adam perguntou. Eu nem tinha notado que ele estava ao meu lado agora. – Hã... é... por que não? Você sabe latim, certo? Talvez a gente possa ensinar alguns
palavrões a eles. Ele levantou a mão em concha e eu passei o cartão de memória para ele. – Você ensina os palavrões e eu vou tentar manter o meu emprego... sabe, porque, ao
contrário de você, eu não sou voluntário e preciso da grana – Adam disse, rindo. Aproximei‐me dele e mantive a minha voz tão baixa quanto possível, com o olhar
atento nas pessoas à nossa volta. – Então, o que você está esperando encontrar nos arquivos do meu pai? Nada
realmente me surpreendeu, mas eu estava tão ocupado tirando fotos que não olhei nada com atenção.
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– Sinceramente, não sei bem. Talvez não haja nenhuma pista para descobrirmos por que você é... você sabe... diferente.
– Jackson – disse Brook, outra monitora do acampamento, andando atrás de mim. – Como foi o encontro noite passada?
Meu coração acelerou e imediatamente senti meus olhos se arregalando. – Merda! – eu murmurei para Adam, que parecia totalmente confuso. A melhor amiga de Brooks, do acampamento de arte ou algo assim... Alison... Eu a
conhecera na semana anterior e Brook tinha me pedido para convidá‐la para sair, pois ela não conhecia ninguém em Nova York.
– Ah, não! – disse Brook, balançando a cabeça. – Não brinca, Jackson! Não me admira que ela não tenha retornado as minhas ligações ontem à noite. Eu vou te matar!
Bati a mão na testa. – Esqueci completamente... É que eu... estava ocupado com... um projeto e... Ela levantou a mão para me interromper. – Me poupe. Eu devia saber que não ia adiantar te pedir. Adam e eu ficamos lá enquanto ela virava as costas e se preparava para sair andando.
Eu peguei a mão dela antes que se afastasse. – Brook... Ela tentou se desvencilhar, mas eu podia vê‐la tentando não sorrir. – Devo dar uma desculpa e deixá‐lo marcar outro encontro ou prefere continuar
agindo como um imbecil e não sair com uma menina legal e bonita como Alison? Cocei a cabeça e vi de relance Holly do outro lado da academia. – Hã... agir como um imbecil, eu acho. Ela suspirou. – Pelo menos você é sincero. Adam ainda estava rindo de mim por ter esquecido o encontro quando finalmente
embarcamos no ônibus escolar amarelo, rumo ao acampamento de um dia. Quando passei pelo assento de Holly, eu a vi escrevendo furiosamente numa folha de papel. Parei para dar uma olhada melhor e ler o título no topo da página: ESTA SOU EU, UM ANO ATRÁS.
– Ainda preenchendo esse questionário idiota? Ela pulou no assento e olhou para mim. – É... o sr. Wellborn vai recolhê‐los hoje. Eu li rapidamente o alto da página enquanto ela estava ocupada respondendo à minha
pergunta. Isso foi tudo o que eu consegui ver antes que ela cobrisse a folha com a mão: NOME: HOLLY MARIE FLYNN Data da entrevista: 8 de junho de 2009 Secundário: George Washington, em Newark, NJ, turma de 2009 Faculdade: caloura da NYU, outono de 2009 Matéria básica: Literatura Inglesa. Data de Nascimento: 7 de setembro de 1990 Idioma principal: Inglês Idioma secundário: Um espanhol muito, muito ruim – Ainda bem que você anotou o seu aniversário aí – eu disse, sem vergonha de ter
espiado suas respostas. Se ela não queria que eu visse, não deveria preenchê‐lo ali. – Sete de setembro... engraçado...
– O que tem de engraçado nisso? – Ela me encarou, esperando que eu dissesse que fazíamos aniversário no mesmo dia ou algo assim.
– Nada ... é só que... eu não sabia que... você era só... – Eu fiz a conta rapidamente de cabeça. – Três meses... e meio mais nova do que eu.
Ela revirou os olhos. – Por que é engraçado? Porque você é muito mais maduro?
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Eu ri. – Hã... bem observado. Adam acenou para mim e eu me sentei no assento ao lado dele. Ainda podia ver Holly
enquanto ela voltava a responder às perguntas. Talvez eu preencha o meu formulário. Talvez realmente me transforme em algo diferente este ano. Tirei o papel amassado da minha mochila e comecei a procurar uma caneta.
– Obrigado por me lembrar – disse Adam. – Tenho que acabar de preencher isso hoje, se quiser ganhar o almoço grátis que o sr. Wellborn vai nos oferecer como suborno.
– Almoço grátis? Ele se supera a cada ano. O ônibus começou a andar e eu encontrei a minha caneta e comecei a escrever.
Realmente não sei por que ainda me preocupava em fazer aquilo agora... não é como se eu realmente me importasse em ler as respostas dali a um ano ou achasse que elas seriam diferentes ou que eu seria diferente. Eu ainda estaria na faculdade... ainda moraria no mesmo lugar... ainda teria um emprego como voluntário... e eu moraria na cidade de Nova York por toda a minha vida, por isso duvido que meus lugares favoritos ou coisas desse tipo mudariam. Mas por alguma razão, eu queria que Holly pensasse que eu era pelo menos um pouquinho melhor do que a imagem de menino rico e mimado que ela tinha de mim. Uma imagem que eu não tinha feito muito esforço para mudar, talvez porque não pudesse.
NOME: JACKSON ANDREW MEYER Data da entrevista: 8 de junho de 2009 Secundário: Loyola Academy, em Manhattan, turma de 2008 Faculdade: Segundo ano na NYU, outono de 2009 Matéria Básica: Poesia Francesa e Literatura Inglesa Data de nascimento: 20 de junho de 1990 Idioma principal: Inglês Idioma secundário: Francês, espanhol, um pouco de alemão e italiano (banheiro,
pizza, etc....)
Depois do almoço, encontrei Adam sentado sozinho no laboratório de informática e o convenci a fazer uma caminhada comigo pelo acampamento. Eu adorava estar lá. Havia todas as boas lembranças e nenhuma das ruins. E ninguém para me lembrar de nenhuma delas. Eu só pensava no que queria pensar e não tinha que compartilhar esses pensamentos com ninguém.
– Onde está o seu grupo de crianças? – ele perguntou antes de entrarmos numa trilha no bosque.
– Aulas de natação por uma hora e, em seguida, artes e ofícios. Quando terminarem, nenhuma delas nem vai lembrar quem eu sou.
– Como vai indo a Holly? – ele perguntou. – Não sei bem... Não a vejo desde os avisos da manhã. – Parei para amarrar uma fita
vermelha num galho de árvore. Adam apontou para a fita e eu respondi antes que ele pudesse perguntar. – É pra nossa caça ao tesouro de amanhã. O sr. Wellborn me pediu pra marcar uma trilha para as crianças seguirem.
Caminhamos em silêncio por alguns minutos e uma pergunta que só Adam poderia responder surgiu na minha cabeça.
– Você acha que eu sou mais velho? – Como assim, mais velho? – ele pegou uma fita das que eu tinha na mão e escolheu
uma planta para amarrá‐la. – Isso é hera venenosa. – Ele retirou a mão rapidamente e eu ri. – Cara, pensei que
fosse você o inteligente aqui. Enfim, de volta à minha pergunta... Quero dizer, mais velho por causa de todos os saltos no tempo... Como a nossa experiência de outro dia no Central Park. Eu saltei para trás e vivi alguns minutos a mais do que você, certo?
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– Você se sente mais velho? Eu ri. – Que droga de pergunta é essa? Sim, eu me sinto exatamente dez dias mais velho. – Você não vai fazer 19 logo? – ele perguntou. – É, logo – eu disse, mas não tive vontade de dar mais informações do que isso. Não é
fácil compartilhar o seu dia de aniversário com uma irmã morta. – A gente registrou todos os seus minutos no passado. Posso acrescentá‐los ao seu
tempo de vida e dizer quanto deu. Não deve ser mais do que umas duas semanas. – Ele esperou até encontrar outro galho que não fosse de hera venenosa antes de finalmente amarrar uma das fitas.
– Vire à direita aqui – eu disse. – Você sabe o que eu acho mais legal nessa sua viagem no tempo? – Em comparação às viagens no tempo de outras pessoas? Você tem mais amigos com
quem faz experimentos? Talvez a gente devesse se conhecer e tomar um drinque. – Quer dizer, a maneira como a coisa funciona com você é um grande contraste com a
maioria das teorias, tanto as científicas quanto as de ficção científica. Então, mesmo um gênio como Adam era influenciado por Hollywood. – Ok, me diga, qual é a coisa mais legal sobre a minha viagem no tempo? – Bem... o dia em que você queimou o braço durante um salto... depois que caiu sobre
o fogão ... e no final tudo acabou bem. – Então a invencibilidade é a parte legal? – Achei a árvore perfeita para marcar com
outra fita e comecei a escalar o tronco para chegar a um ramo maior e mais visível. – Veja bem, essa é a questão... você não é realmente invencível. Você tinha uma
cicatriz, lembra? Chegou a sentir um pouco de dor. Olhei para a mancha cor‐de‐rosa que agora quase não se via no meu antebraço. – Mas não tanto quanto se eu tivesse me ferido na minha base principal, como uma
pessoa normal. Eu pulei da árvore e aterrissei na frente de Adam. – A diminuição da dor durante o salto é semelhante à desaceleração do tempo na sua
base principal, enquanto você está fora. Claro, você está fisicamente aqui, mas sabe o que estou querendo dizer. Se fica no passado durante uma hora, quando volta só se passaram sete segundos.
– Ainda assim, seria mais legal ser completamente invencível. – Mas é estranho, não é? Você não é invencível e não volta exatamente no momento
em que saltou. Algum tempo se passa. Mas não tanto quanto se passa no passado, durante o salto.
Eu finalmente entendi seu raciocínio e, olhando para ele de uma perspectiva externa, vi que aquilo era muito... típico do Adam.
– Ambos são simétricos. É por isso que você gosta. A diminuição da dor num salto é igual à desaceleração do tempo na minha base.
– Exatamente! Você é muito mais esperto do que pensa – disse ele. – A maioria das pessoas não acompanha meu processo de raciocínio. Nunca.
– Estou acompanhando muito bem. Basicamente, você está feliz porque o Deus da Viagem no Tempo tem TOC como você, e quer que tudo na vida seja simétrico.
Ele riu. – Bem, nem tudo. Quando chegamos ao final da trilha, Adam e eu mudamos de assunto e passamos a
conversar sobre temas mais amenos, pois havia crianças e monitores em toda parte. Depois que o meu intervalo chegou ao fim, eu o deixei no laboratório de informática e fui para o prédio de Artes e Ofícios.
O meu grupo já estava em fila, esperando por mim. – Vocês se divertiram na natação? E que projeto fizeram na oficina de artes?
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O pequeno Hunter levantou o que parecia uma bola de papel de seda lambuzada de cola.
– É um vulcão. – Você precisa colocar fezes de animal no vulcão pra ele entrar em erupção – disse
uma garotinha de óculos... Annabel, eu me lembrei. A estranha. Há sempre uma estranha. Todo ano.
– Eu não acho que... – comecei a dizer ao mesmo tempo que Hunter perguntava: – O que é fezes? E a mãe ainda dizia que o filho era brilhante... Dei um tapinha na cabeça do garoto. – Não se preocupe. Eles vão te ensinar essa palavra no curso preparatório para o SAT.
Eu acho que é derivada do latim. Hunter apenas olhou para mim e disse: – Quê? Nesse momento, Holly virou a esquina, enxugando o suor da testa com a barra da
camisa polo. – Espere! Todo mundo pare onde está! Eu preciso contar as cabeças. Meu grupo inteiro parou de discutir sobre matéria fecal e eu vi as dezenas de alunos
de segunda e terceira série de Holly andando numa fila irregular que mais parecia um amontoado de gente.
O sr. Wellborn dirigia o carrinho de golfe que costumava usar para supervisionar o acampamento. Ele viu Holly e olhou para nós duas vezes antes de parar o carro bem na frente dela.
– Senhorita Flynn... parece que está com um probleminha de organização... Lembre‐se... segurança antes de diversão... Sempre.
O sr. Wellborn acenou para mim e Holly olhou, aborrecida, na minha direção. – Jackson, a sua fila parece ótima... Mostre a Holly como você faz uma contagem
precisa de cabeças. Eu me senti humilhado por ela. A última coisa que eu queria agora era que Holly
ficasse constrangida por minha causa. Mas as minhas crianças já tinham feito uma fila mais perfeita ainda, prontas para se exibir ao nosso diretor. O sr. Wellborn era responsável pelo acampamento há mais de vinte anos e tinha uma grande influência sobre as crianças.
– Ok, galera. – Estalei os dedos, esperando que eles se enfileirassem por ordem alfabética como havíamos treinado logo pela manhã. – Vamos contar, começando pelo Hunter.
– Um! – ele gritou. A contagem continuou até que o número 12 foi chamado. O sr. Wellborn fez um gesto
de aprovação e, em seguida, lançou a Holly um olhar de advertência antes voltar a acelerar o carrinho.
– Ele só está testando suas técnicas de liderança – eu disse a Holly. – Não se preocupe com isso, sério. Você devia ter visto as filas tortas nos campos de beisebol há alguns minutos.
– Ah, meu Deus! – Holly disse, passando os olhos pelo seu grupo. – Zoe! Zoe!... Onde ela está?
– Eu vi a Zoe na hora do almoço – disse uma das crianças. O almoço tinha terminado há mais de uma hora. Holly já estava pegando o celular,
parecendo totalmente em pânico. – Espere – eu disse, colocando a mão sobre o telefone dela. – Me dê cinco minutos,
ok? Ela com certeza seria demitida se ligasse para o escritório do acampamento e dissesse
que uma criança havia sumido. – Ela é bem pequenininha... Tem cabelo loiro e marias‐chiquinhas. – Holly apertou os
olhos por um segundo. – É vermelha... A camiseta dela é vermelha e está escrito Coney Island na frente.
– Onde vocês estavam uma hora atrás? – eu perguntei.
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– Hã... perto da casa da árvore. Eu me virei e me sentei na grama, fingindo estudar a programação do acampamento.
Mas na verdade estava me preparando para viajar no tempo. E só precisava de alguns segundos na base principal – tempo que não era nem suficiente para Holly dizer o meu nome duas vezes, então eu não precisava me esconder primeiro.
Quando abri os olhos novamente, havia outro grupo de crianças a uma certa distância,
longe demais para poder me ver. Não que isso importasse aqui. Saí correndo em direção à casa da árvore e me esgueirei sorrateiramente por trás do grupo de Holly enquanto ela tentava reuni‐los. A menina com o cabelo loiro, marias‐chiquinhas e camiseta vermelha esfregou os olhos e ficou para trás. Eu os segui até que eu a vi chegar à borda da floresta, onde um bando de cinco ou seis borboletas, de todas as cores imagináveis, flutuava em direção à trilha para o bosque.
Não precisava ser gênio para descobrir o que Zoe estava prestes a fazer. Esperei mais uns dois segundos para confirmar onde ela havia se desviado do grupo e depois saltei de volta para o presente.
Sacudi a cabeça para espantar a conhecida sensação de desorientação e fiquei de pé. – Acho que sei onde ela está. – Como? – Holly disse, e acrescentou: – Onde? Eu não tinha certeza de como responder sem contar o meu segredo. – Fique aqui, ok? Pode tomar conta do meu grupo um instante? Ela parecia desesperada, mas não tinha outra opção. Dei uma corrida através do
acampamento, em direção aos bosques. Afastei‐me da trilha e ainda assim não vi a menina. Meu coração estava começando a martelar no peito e eu nem podia imaginar o quanto Holly devia estar assustada.
Quando estava a ponto de desistir, organizar uma equipe de busca e colocar o acampamento em estado de alerta vermelho (esse era o nosso procedimento de emergência, embora eu duvidasse que um dia ele tivesse sido usado), vi uma manga vermelha berrante atrás de uma árvore.
– Zoe? Nenhuma resposta. Cruzei a trilha e empurrei alguns arbustos para tirá‐los do caminho
e encontrei a garotinha encostada na árvore, dormindo. Eu gemi quando vi onde uma das pernas e parte do braço dela estavam encostados.
– Zoe... acorda! – Sacudi ligeiramente seu braço e a menina arregalou os olhos. – Anda... Vamos sair do bosque, ok?
Ela balançou a cabeça e se levantou, ainda desorientada de sono. Segurei sua mão com firmeza ao longo de caminho de volta para o prédio de Artes e Ofícios. Holly estava andando de um lado para o outro, roendo as unhas.
– Ai, meu Deus! Onde você a encontrou? – Ela pegou a menina no colo e a abraçou como se fosse um parente perdido há muito tempo. – Você está bem, Zoe?
Eu já estava desconfortável com os acontecimentos da tarde e a última coisa de que precisava era Holly fazendo perguntas ou se desculpando por cometer erros humanos normais. Estalei os dedos, instruindo meu grupo a fazer uma fila.
– Bem... estamos atrasados para o nosso jogo de futebol contra o grupo da Brook. Eu te vejo mais tarde.
Parecia que Holly queria dizer algo, mas eu não lhe dei chance.
No caminho de volta do acampamento naquela tarde, fiquei surpreso quando Holly se sentou no assento ao meu lado no ônibus. Encolhi os ombros para Adam, que andou um pouco mais pelo corredor e foi para um assento diferente, junto com um dos campistas mais velhos.
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– Então... – Holly disse, virando‐se para mim. – Aparentemente, Zoe ficou encantada com as borboletas e foi atrás delas no bosque.
– Então foi isso? – E, pelo jeito, ela costuma tirar um cochilo depois do almoço. – Holly encostou a
cabeça contra o assento, deixando escapar um suspiro enorme. – Obrigada... por me ajudar... por evitar que eu perdesse o emprego. Isso é bem diferente de dar aulas de ginástica. Muito mais coisas podem dar errado.
– Você vai melhorar. É só o primeiro dia, não se preocupe. Sério. – Virei a cabeça para encará‐la e dei uma boa olhada em seus olhos. Algo que eu não consegui ver de perto muitas vezes. O azul‐claro rodeado de branco. Ela parecia tão bonita e vulnerável! Eu queria congelá‐la nessa posição e olhar para ela por horas a fio, sem que parecesse estranho.
– Eu nunca fiquei tão cansada na minha vida – ela me disse, com os olhos nos meus. – Mas acho que entendi por que você adora aquele lugar... o trabalho... mesmo que na verdade não precise dele. Houve vários momentos hoje em que parei e pensei... Puxa!... Essas crianças, provavelmente, vão se lembrar dessa experiência mesmo daqui a dez anos. Ou talvez voltem pra casa se sentindo um pouco mais como pessoas normais.
– É o que eu sentia – eu disse. – O acampamento era o mundo das crianças e a minha casa era o mundo dos adultos. Em casa e até na escola, eu tinha que me comportar como um adulto... Etiqueta... Formalidades... A vida era muito formal... E no acampamento eu podia ficar sujo e suado e ganhar medalhas por acertar o meu melhor amigo nos lançamentos de balões d’água... Cantar músicas idiotas sobre sapos na lagoa... O que tem ali pra não se gostar?
Ela sorriu. – Seus pais eram muito rigorosos quando você era criança? – Meu pai não é tão ruim... é só um pouco antiquado com relação a um monte de
coisas, mas nunca teria agido como a mãe do Hunter, se é isso o que quer dizer... Ele não teria se gabado de que a babá me ensinava húngaro ou coisa assim. – Eu refleti sobre como explicar o meu pai para Holly e vi que, na realidade, para fazer isso direito, eu precisaria dar a ela detalhes do "antes" e "depois", porque ele não era o mesmo pai desde a morte da minha irmã. – Mas eu era arrastado para um monte de eventos formais. Festas de adultos, muitas delas, que geralmente são um porre para uma criança.
Ela estudou o meu rosto por mais alguns momentos e então desviou os olhos para o banco à nossa frente.
– Eu certamente não invejo a sua vida... Ou a dessas crianças. Não conseguia pensar em nada para dizer, então apenas fiquei sentado em silêncio,
tentando desvendar o significado daquela conversa... de Holly me discriminando daquele jeito. De repente, me lembrei de algo que tinha acontecido naquele dia mais cedo. Gemi e bati a palma da mão contra a testa.
– Eu esqueci completamente de te contar... Zoe estava dormindo em cima de um monte de hera venenosa quando a encontrei.
– Ah, não... Coitadinha! Vai ficar toda empipocada. – Holly fechou os olhos. – Amanhã... vou ter que aguentar as consequências.
Dei uma batidinha no joelho dela e ela arregalou os olhos, fitando os meus dedos contra a sua pele. Tirei a mão rapidamente.
– Desculpe. Eu estava me desculpando por ter tocado a perna dela ou por ter me esquecido de
contar sobre a hera venenosa? As duas coisas... acho. O ônibus guinchou ao parar em frente à ACM e nós dois saímos em direção ao
corredor. As bochechas de Holly estavam ligeiramente rosadas e seus olhos estavam baixos. Esse era o ponto em que normalmente eu passaria uma cantada na garota ou, o mais
provável, a convidaria para sair. Eu era um bom ouvinte e prestava atenção tanto no que era dito quanto no que ficava nas entrelinhas, e sabia que ela tinha sentido alguma coisa por mim também. No entanto eu não tinha vontade nenhuma de dizer algo piegas e previsível, e não
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queria convidá‐la para sair. Eu só queria me sentar ao lado dela no banco do ônibus um pouco mais e não pensar em mais nada.
Mas não foi isso que aconteceu. Holly desceu do ônibus e entrou na ACM, porque ela estava escalada para trabalhar até as seis e eu estava indo para casa, a pé.
Por volta das seis horas, deixei meu prédio, depois de tomar banho e vestir jeans e
camiseta, e fui para o jogo de softball do Clube de Robótica do meu colega de dormitório, Danny, que tinha, não sei como, me escalado para jogar toda segunda à noite, pelo resto do verão. Assim que atravessei a rua e digitei uma mensagem para Danny, marcando um ponto de encontro, uma camisa verde‐clara e um cabelo loiro chamaram a minha atenção.
Eu tive que verificar duas vezes para me certificar de que era realmente ela e depois fiquei alguns segundos pensando no que faria.
Holly estava deitada sobre uma toalha de praia, no gramado do Central Park, em frente ao meu prédio, como se tivesse planejado esse possível encontro. Como era tão óbvio, eu sabia que ela provavelmente não tinha planejado.
Havia fones em seus ouvidos e seu cabelo estava esparramado em volta dela, enquanto seus lábios se moviam sem emitir nenhum som, acompanhando a música. A felicidade que senti ao me sentar tão perto dela no ônibus voltou, e meus pés começaram a andar na sua direção sem a minha permissão. Eu me debrucei sobre ela, bloqueando o sol e fazendo com que abrisse os olhos.
– Holly Flynn... você está me perseguindo? – Este é o Central Park, não o seu quarto – ela retrucou, e seu rosto ficou todo
vermelho novamente. Será que ela tinha planejado tudo? Provavelmente não, mas estava tão envergonhada
que eu poderia pensar que planejou... O que poderia significar... Eu me deixei cair na grama ao lado dela e mudei de assunto para deixá‐la mais à
vontade. – Você costuma vir pra cidade encontrar o Danny ou Donald... seja lá qual for o nome
dele? Ela revirou os olhos. – David está trabalhando e eu estou apenas... bem... estou vendo se me acostumo
com isso... de morar em Nova York. – Um pouco diferente de Jersey, em? – Ok. Ela não estava me perseguindo...
Infelizmente. E, sim, eu me lembrava do nome do namorado dela, só não queria que ela soubesse.
Eu me virei de lado para encará‐la. – Você está bem em frente ao meu prédio. Por isso a acusação de estar me
perseguindo. Ela não respondeu com a observação mordaz e sarcástica que eu estava esperando.
Em vez disso, seu rosto pareceu um pouco vago, ao olhar para mim. – Você tem covinhas... – ela murmurou, e seu rosto ficou ainda mais corado do que um
minuto antes. – Quero dizer... Eu nunca tinha notado antes. – Tenho desde que nasci... É uma maldição. Velhinhas beliscando o meu rosto o tempo
todo. – E, de repente, eu estava ansioso para saber tudo sobre ela. Cada pequeno detalhe microscópico... Se isso ia me fazer gostar mais dela ou menos, eu não sabia. Tirei um dos fones do seu ouvido e coloquei‐o no meu. Liguei seu iPod antes que ela pudesse me impedir.
– Estou morrendo de vontade de descobrir que tipo de música escuta uma verdadeira garota de Jersey.
Era uma velha canção que eu reconheci de um episódio de Os Simpsons. – Janis Joplin... Isso é bem típico de uma garota de Jersey. – Você é fã de Bobby Magee? – ela me perguntou, olhando o céu.
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– Claro! Quem não é? – Eu passei para a próxima música e ouvi uma voz monótona começar a recitar as páginas de um antigo romance.
– Dickens, eca!... Isso não se parece nem um pouco com uma garota de Jersey, Holly. Ela pegou a mochila e bateu na minha cabeça com ela, mas estava rindo também.
Deus, eu adorei o riso dela. Seu rosto inteiro ficou brilhante e curioso. E muito, muito bonito. Meus planos e pensamentos pararam. Nós estávamos no nosso mundo particular. Eu e Holly. Completamente sozinhos naquele estranho momento. Só o que eu conseguia sentir eram as folhas de grama fazendo cócegas no meu ouvido e a forma como seu corpo permanecia imóvel, mas os músculos pareciam ansiosos para se aproximar.
Minha boca estava muito perto do ouvido dela e a voz do narrador britânico ainda soava, então comecei a recitar o texto com ele. Era um trecho que eu tinha memorizado anos antes na escola. Ela estava completamente imóvel, ouvindo‐me com total intensidade.
– Por que você sabe esse livro de cor? – ela murmurou, tão baixo que mal consegui ouvir.
– Por causa de uma professora de inglês carrasca do secundário – eu disse, e acrescentei: – Quer ouvir em francês?
– Quero – ela respondeu imediatamente. Fechei os olhos e passei a falar num idioma diferente, que era quase fácil pra mim. O
francês às vezes fluía pelos meus lábios mais ritmicamente do que o inglês. Eu me sentia totalmente envolvido no nosso mundo particular.
E ela também. Depois de alguns minutos, senti seus dedos roçarem na palma da minha mão. As
palavras ficaram presas na minha garganta por uma fração de segundo, enquanto um arrepio se espalhava pelo meu braço. As pontas de seus dedos se moviam, seguindo as linhas da minha mão. Ela mal estava me tocando e ainda assim parecia que suas mãos estavam em todos os lugares ao mesmo tempo.
Minha boca estava tão perto de seu rosto... se eu pudesse sentir sua pele contra os meus lábios só por um segundo...
Uma sombra se projetou sobre nós dois e, em seguida, ouvi a voz de Danny, como se ele estivesse falando da outra extremidade de um túnel.
– Cara? Você está brincando ou o quê? Levantei‐me da grama, meus olhos passando de Holly para o meu colega de
dormitório. – Eu... hã... – Se distraiu? – Danny disse, sorrindo para mim. Holly se sentou e começou a enfiar as suas coisas na bolsa, obviamente acordando do
mesmo torpor em que eu estava. Fiz uma cara de sério e olhei para Danny. – É... Eu estava andando por aqui, indo para os campos de softball, e essa garota
agarrou meu tornozelo e me jogou no chão. Eu quase tive que quebrar sua clava. – Certo. Porque de fato a cena parecia bem violenta quando cheguei... ‐‐ disse Danny.
– E eu poderia até apostar que você pegou uma menina qualquer, só pra fugir do jogo, se eu não reconhecesse a camiseta dela do acampamento.
Revirei os olhos para ele e então olhei para Holly. – Este é Danny. Ele não é um cara socialmente aceitável. – Já nos conhecemos – disse Holly. – Na sua festa. Ops. Eu tinha me esquecido. – Jackson até que está certo – explicou Danny. – Eu tenho uns problemas. Ao contrário
dele. E eu sabia que ele estava prestes a ir além dos limites e começar a falar um monte de
besteiras. Eu lhe dei um empurrão.
23
– Vamos jogar softballl ou o quê? – Depois de mais um empurrão, eu disse por sobre o ombro: – Até amanhã, Holly.
Danny pareceu perceber meu humor ligeiramente melancólico. – O que estava acontecendo ali? – Ele pôs a mão na boca e arregalou os olhos. – Ah,
caramba!... Eu me lembrei agora... Essa é a garota do secundário... E ela tem namorado, não tem? Cara, que rolo!
Eu gemi e esfreguei os olhos. De repente me senti exausto demais para jogar softball. Eu não sabia o que tinha acontecido entre mim e Holly, mas o que quer que fosse, tinha me tirado um pouco do eixo.
Nada era previsível quando eu estava perto de Holly e eu não poderia deixar de me perguntar se acontecia o mesmo com ela. E, mais importante, o que ela pensava a respeito?
Não perca!
Tempest
maio de 2012