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Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves
Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro.
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Educao do Departamento de Educao do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio.
Orientadora: Prof.Roslia Maria Duarte
Rio de Janeiro Abril de 2013
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Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves
Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em Educao do Departamento de Educao do Centro de Teologia e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo assinada.
Prof. Roslia Maria Duarte
Orientadora
Departamento de Educao PUC-Rio
Prof. Maria Cristina Monteiro Pereira de Carvalho
Departamento de Educao PUC-Rio
Prof. Milene de Cssia Silveira Gusmo
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Prof. Denise Berruezo Portinari
Coordenadora Setorial do Centro de Teologia e Cincias Humanas
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 15 de abril de 2013.
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou
parcial do trabalho sem autorizao da universidade, da autora
e da orientadora.
Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves
Graduou-se em Comunicao Social com habilitao em
Cinema & Vdeo na Universidade Federal Fluminense (2009).
Tem experincia na produo de oficinas e eventos na rea de
Cinema & Educao. secretria executiva da Rede Latino
Americana de Educao, Cinema e Audiovisual Rede Kino,
produtora do segmento infanto juvenil do Festival do Rio
(cinema), a Mostra Gerao, e do Festival Internacional de
Filmes Sobre Globalizao globale Rio.
Ficha Catalogrfica
CDD:370
Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo Porto Cinema, educao e o Cineclube nas escolas:
uma experincia na rede pblica do sistema municipal de ensino do Rio de Janeiro / Beatriz Moreira de Azevedo Porto Gonalves ; orientadora: Roslia Maria Duarte. 2013.
149 f. : il. (color.) ; 30 cm Dissertao (mestrado)Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Educao, 2013.
Inclui bibliografia 1. Educao Teses. 2. Cinema &
Educao. 3. Cineclubismo. 4. Cultura escolar. 5. Audiovisual. I. Duarte, Roslia Maria Duarte. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Educao. III. Ttulo.
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Agradecimentos
Aos meus pais.
minha orientadora, Roslia Maria Duarte.
Ao GRUPEM (Grupo de Pesquisa em Educao e Mdia) da PUC-Rio.
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro e ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelos auxlios concedidos,
sem os quais este trabalho no poderia ter sido realizado.
s professoras que participaram da Comisso Examinadora e suplentes.
Gerncia de Mdia-Educao da Secretaria Municipal de Educao do Rio de
Janeiro e equipe.
s escolas pesquisadas, professores e alunos dos cineclubes.
Ao Coletivo Cidadela, Cineduc, Imagens em Movimento, Festival Vises
Perifricas.
Adriana Gomes Ribeiro, Andrea Garcez, Prof. Adriana Hoffmann Fernandes,
Prof. Adriana Mabel Fresquet, Agustin Kammerath, Bete Bullara, Camila Moura,
Daniel Garcia, Felicia Krumholz, Isabella Zappa, Julliana Malerba, Julia Levy,
Luciana Bessa, Luciana Santos, Prof. Luiz Carlos Manhes, Prof. Luiz Carlos
Motta Lima, Marcus Faustini, Manuela Green, Marcus Tavares, Prof Maria Ins
Gurjo, Prof. Miguel Serpa Pereira, Nancy Ferreira, Pedro Aguiar, Priscila
Corra, Raphael Dias Nunes, Rita Peixoto Migliora, Rodrigo Bouillet, Simone
Monteiro e Thais Martins (DSC Espao) e todos os amigos e familiares que de
uma forma ou de outra me estimularam ou me ajudaram.
sorte.
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Resumo
Porto Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo; Duarte, Roslia Maria.
Cinema, Educao e o Cineclube nas Escolas: uma experincia na Rede
Pblica do Sistema Municipal de Ensino do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
2013, 149 p. Dissertao de Mestrado - Departamento de Educao,
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Esta dissertao tem como objetivo central descrever e analisar prticas
cineclubistas em escolas vinculadas ao Projeto Cineclube nas Escolas, uma
poltica pblica da Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro (SME-
RJ), iniciada em 2008. Em 2012, perodo em que foi realizado o presente estudo,
248 unidades da Rede estavam envolvidas no Projeto. Idealizado pela Gerncia de
Mdia-Educao da SME-RJ, com a participao dos professores, o Projeto
estimula aes cineclubistas nas escolas: projeo, discusso e produo de
filmes. A pesquisa, de base qualitativa, teve como foco as atividades
desenvolvidas em nove escolas, adotando como estratgias principais de produo
de material emprico: observao participante; realizao de entrevistas
semiestruturadas, registradas em udio; coleta de materiais didticos e de
exerccios elaborados pelos professores e anlise de documentos e declaraes
oficiais. Todo o material produzido no trabalho de campo foi submetido anlise
de contedo, procurando identificar as concepes de cinema, cineclubismo e de
educao que so praticadas no cotidiano do Projeto. O referencial terico da
dissertao triangula o pensamento de Alain Bergala e de Jacques Rancire
autores que, sinalizando o potencial transformador do cinema e problematizando
as estruturas e finalidades das instituies de ensino formais, inspiram a proposta
do Cineclube nas Escolas com os apontamentos que Jean-Claude Forquin
elencou ao estabelecer relaes entre escola e cultura (Forquin, 1993). Jess
Martn-Barbero completa o quadro conceitual da pesquisa, oferecendo chaves
para a compreenso das dinmicas presentes nas mediaes que tomam lugar nos
cineclubes e nos estabelecimentos de ensino formal. A investigao observou que
o Projeto estudado assume diferentes feies, de acordo com a realidade e cultura
prprias de cada escola visitada. Ainda que a concepo da gesto central do
Projeto vise a valorizao da linguagem audiovisual pelo prazer esttico ou como
um discurso artstico diferente do conhecimento cientfico, de um modo geral,
predominam, na prtica cotidiana do Projeto, a tradicional interpretao de texto e
outros usos focados nos contedos escolares presentes nas narrativas audiovisuais.
Isso demonstra que o audiovisual na escola sempre estar a servio de um modelo
de educao, que, por sua vez, definido na tenso entre as finalidades de
preservao ou de transformao social da instituio escolar.
Palavras-chave Cinema & Educao; Cineclubismo; Cultura Escolar; Audiovisual
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Abstract
Porto Gonalves, Beatriz Moreira de Azevedo; Duarte, Roslia Maria.
(Advisor). Cinema, Education and the Cineclube nas Escolas Project
on the Municipal schools of the city of Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
2013. 149 p. MSc. Dissertation Departamento de Educao, Pontifcia
Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
The present research aims to describe and analyze the practice of the
Cineclube nas Escolas Project, an Educational Policy offered by the Municipal
Secretariat of Education of Rio de Janeiro (SME-RJ) since 2008 aimed at building
film societies in public schools. In 2012, the year in which this investigation was
conducted, more than 240 schools of the public municipality school system have
participated of the Project. Conceived by the Department of Media & Education
(SME-RJ) with the participation of teachers, the proposal is to encourage schools
communities to watch, discuss and to produce movies using Film Societies as
model. This qualitative study visited nine schools participating in the Cineclube
nas Escolas, having as main strategies to produce empirical data: participant
observation; semi-structured interviews, recorded on audio; collecting didactic
material and exercises prepared by school teachers, as well as capturing
photographs. The data were fully submitted to Content Analysis proceeding,
identifying the conceptions of cinema and education and which Film Societies
activities are practiced in daily context of the SME-RJs Project. The theoretical
framework of the research relates the thought of Alain Bergala and Jacques
Rancire with the connections between school and culture pointed out by
Jean-Claude Forquin (1993), since Bergala and Rancire have inspired the
proposal of Cineclube nas Escolas signaling the transformative potential of
cinema and questioning the structures and purposes of formal education
institutions. Jess Martn-Barberos perspective of Education, considering it as a
Communication issue (2002), completes the conceptual framework, providing
keys for understanding the dynamics present in the mediations (2003) that take
place in schools' film clubs. The current study have observed that the Cineclube
nas Escolas Project assumes different layouts, according to the reality and to the
culture of each school visited. Although the Department of Media & Education
(SME-RJ) aims to exploring the audiovisual language for aesthetic pleasure or as
an artistic discourse, the schools' traditional exercises focused on the audiovisual
narrative content predominate in the context of the Projects practices, showing
that the presence of the audiovisual at schools is always submitted to the this
institutions finalities in preserving or changing society.
Keywords Film & Education; Audiovisual languages; Film Societies; School Culture
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Sumrio
1. Uma ideia na cabea: introduo 12
1.1. Apresentao 12
1.2. Plano Geral e Argumento: contexto e referencial terico 14
2. Imagem em Movimento: prticas e pedagogias cineclubistas 23
2.1. Cineclubismo e Educao 38
3. Storyboard: desenho da pesquisa 45
3.1. Anlise Tcnica: trajetria da investigao 48
3.2. Montagem: anlise de contedo 57
4. Profundidade de Campo: focalizando os dados 61
4.1. Primeiro Corte: qual cinema? 63
4.1.1. Em cartaz: os ttulos exibidos nos eventos observados 73
4.1.2. Janelas de Exibio 78
4.2. Projeo: qual cineclubismo? 80
4.2.1. Raccord: CNEs e movimento cineclubista, relaes 81
4.2.2. Decupagem: os cineclubes em ao 83
4.2.3. Zoom in 84
4.3. Enquadramento: qual projeto de educao? 99
4.3.1 Tomadas: perspectivas pedaggicas e disciplinares 100
4.3.2. Preto & Branco 103
4.3.3. Ponto de Virada 106
5. Dilogos: consideraes finais (to be continued) 110
6. Referncias Bibliogrficas 118
ANEXO I Roteiros de entrevistas e informaes dos projetos 126
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Lista de abreviaturas e siglas
ANCINE Agncia Nacional do Cinema
Cineduc Cinema e Educao
CNC ou CNC Brasil Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros
CNEs cineclubes escolares do projeto Cineclube nas Escolas
CPC Centro Popular de Cultura
CRE Coordenadoria Regional de Educao
EA Escola do Amanh
EGE Escola Ginsio Experimental
EMBRAFILME Empresa Brasileira de Filmes S/A
EMs Escolas Municipais
ENA Escola com Ncleo de Artes
ER Escola Regular
ESLP Escola com Sala de Leitura Polo
GME Gerncia de Mdia-Educao
MAR Museu de Arte do Rio
MEC Ministrio da Educao
MinC Ministrio da Cultura
OCE Oficina Cine-Escola, programa educativo do Circuito Estao
ONG Organizao No Governamental
ONU - Organizao das Naes Unidas
PCN Parmetros Curriculares Nacionais
RRs reunio com responsveis
SAv Secretaria do Audiovisual do Ministrio da Cultura
SME-RJ Secretaria Municipal de Educao do Rio de Janeiro
TICs tecnologias de informao e comunicao
UEs Unidades Escolares ou Unidades de Ensino
UFF Universidade Federal Fluminense
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNE Unio Nacional de Estudantes
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Unesco - Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e
a Cultura
UPP Unidade de Polcia Pacificadora
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Lista de grfico, figuras e tabelas
Grfico 1 datas de lanamento dos filmes do acervo do CNE 70
Figura 1 - macrocategorias analticas
58
Figura 2 foto de cartaz de um dos CNEs pesquisados 73
Figura 3: Foto de brindes distribudos nas sesses do CNE-EA2 87
Tabela 1 - aspectos observveis das macrocategorias analticas 49
Tabela 2 - relao das UEs, CNEs e articuladores pesquisados 53
Tabela 3 - relao dos eventos observados 54
Tabela 4 aspectos considerados na Observao Participante 60
Tabela 5 - filmografia observada, contedos e temas escolares que apresenta
76
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Na parede onde se brinca
No chapisco encarpado
A parede que escora
O fininho da vida
Os verdadeiros heris so os guerreiros da lida
Por entre as trincheiras-barracos
Passam num sopro da vida
Subindo e descendo em silncio
No caminho apertado que tem
o fininho da vida
Disciplina de trem, virtuose na vida tem
Maioria tem, maioria contida tem
Nordestina tem, na havaiana furiosa
Ruminando, engolindo sapo da vida
Olho baixo de quem tem emprego
Enquanto as letras se escrevem nos muros
Nas paredes: grafites, buracos, escrita do futuro
Em meio a tudo e muito, muito barulho
Nervosos, os peitos se aquecem
Respirando cortado, ansiando por furo
No buraco da vala
A laje brinquedo
Em meio a pet e plsticos
Num domingo festivo, num domingo lindo
(Marcos Lobato, Marcelo Falco, Xando, Lauro Farias, Marcelo
Lobato, Fininho da Vida)
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1. Uma ideia na cabea: introduo
1. 1. Apresentao
Desde pequena, ouo as histrias dos cineclubes universitrios e de bairro que
meus pais frequentaram em meados das dcadas de 1970 e 1980. Por conta dessa
experincia, eles me ensinaram a histria das escolas cinematogrficas mais
cultuadas, assistindo a muitas fitas de VHS em casa, comigo, e me levando sempre
ao cinema. Os meus pais e as escolas em que estudei tiveram participao decisiva
na escolha da minha carreira.
Cursando Cinema & Vdeo, na UFF, testemunhei o renascimento da atividade
cineclubista no Brasil do incio do sculo XXI. Neste perodo, que tambm se
compreende dentro da Retomada do Cinema Brasileiro1, frequentei, embora sem
participar ativamente da organizao, vrios desses espaos de exibio, discusso
de filmes e festas: Cine Buraco; Cachaa Cinema Clube; Tela Brasilis; Sesso
Cineclube e Cineclube Sala Escura.
Foi o trabalho dentro do programa educativo do Circuito Estao2 de salas de
exibio uma empresa de cineclubistas histricos (1970/80) que se
profissionalizaram como exibidores produzindo o segmento infantojuvenil do
Festival do Rio3, a Mostra Gerao, que me fez entrar em contato com grupos
cineclubistas que desenvolviam mais a dimenso de expresso e criao de
narrativas audiovisuais experimentais: Cineclube Vdeo Digital Fundio; Mate
com Angu (Duque de Caxias-RJ); Cinemaneiro/Fora do Eixo e Beco do Rato;
1 No ano de 1990, o governo federal fechou o principal rgo de fomento produo
cinematogrfica do Brasil, a Empresa Brasileira de Filmes S/A (EMBRAFILME). O nmero de
filmes ficou reduzido a praticamente zero at o ano de 1995, quando novas polticas culturais foram
implementadas permitindo a retomada das produes nacionais. 2 O Oficina Cine-Escola (OCE): www.grupoestacao.com.br/oce
3 Tendo sua primeira edio no ano de 1999, o Festival do Rio um evento que acontece anualmente
na cidade do Rio de Janeiro, exibindo um panorama da produo cinematogrfica mundial, com
mostra competitiva de filmes nacionais e uma pauta de encontros voltados para a produo,
financiamento, circulao e formao tcnica no setor audiovisual, alm de um espao para
realizadores e distribuidores fazerem negcios facilitando, a difuso de filmes nacionais e
estrangeiros.
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CineolhO/Campus Avanado (Niteri-RJ) e, mais recentemente, o cineclube
Subrbio em Transe.
Minhas principais experincias profissionais levaram a me especializar na
interface entre cinema e educao e, por isso, ainda na graduao, cursei a
disciplina Cinema e Educao, ministrada pelo professor Joo Luiz Leocadio, onde
tomei conhecimento das reflexes do crtico, cineasta e educador francs Alain
Bergala, que me encantaram pela (po)tica pedaggica proposta. Muitos aspectos
do texto de Bergala (2008) reforaram minhas convices sobre prticas que vinha
desenvolvendo profissionalmente. Mas, outras questes permanecem abertas como
problemas para os quais preciso encontrar uma resposta mais brasileira.
No ano seguinte, levei Bergala debaixo do brao para a Oficina de
Capacitao de Equipe para Cineclube no Ncleo de Cultura do Colgio Estadual
Guadalajara (Duque de Caxias-RJ). O projeto foi proposto pela ONG Cinema
Nosso, viabilizado atravs de edital das Secretarias de Estado de Educao e
Cultura do Rio de Janeiro, e fui a educadora responsvel pelo planejamento das
atividades e por coloc-las em prtica junto a jovens matriculados no Ensino
Fundamental da escola. O curso explorou noes de curadoria, produo e
divulgao de cineclube e o trabalho nessas aulas foi um processo de negociao
constante. Alm das demandas da escola, enquanto instituio, os contedos foram
sendo adaptados (na base da tentativa e erro) para estimular mais os diferentes
interesses e talentos de cada um dos alunos. Como Bergala, acredito que o gosto
pelo cinema se forma por meio de um processo ntimo e pessoal e, para mim, isto
torna o projeto de trabalhar o potencial pedaggico do cinema e do vdeo na escola
pblica brasileira ainda mais desafiador.
Foi ento que senti a necessidade de buscar o respaldo do campo da educao
para continuar meu trabalho. Ingressei no mestrado da PUC-Rio e, ao longo das
aulas, conheci o projeto Cineclube nas Escolas, cuja observao parecia poder
iluminar o caminho das minhas indagaes.
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1.2. Plano Geral e Argumento: contexto e referencial terico
Em A Centralidade da Cultura: notas sobre as revolues do nosso tempo,
Stuart Hall (1997) chama a ateno para o papel central que a cultura ocupa no
cotidiano das pessoas e em todos os campos do saber e da produo de valores nos
dias de hoje, atravs de um processo deflagrado na segunda metade do sculo XX.
Segundo o autor, a produo de smbolos e significados sempre foi importante, mas
algumas transformaes nos arranjos socioeconmicos, intensificadas por
inovaes tecnolgicas, neste sculo, expandiram as experincias de fruio e
produo culturais e evidenciaram as aes sociais como prticas de significao:
os processos de globalizao, com seus impactos no mundo do trabalho, as novas
tecnologias de informao e comunicao (TICs) e o crescimento da indstria
cultural, basicamente, so fenmenos que associados, de diferentes formas (no
atingem de maneira igual todas as partes do globo), tm posicionado a cultura, em
seus aspectos substantivos, no centro da vida social com enorme impacto na vida
interior, na constituio de identidades e subjetividades; e a evoluo do
pensamento cientfico, acompanhando as dinmicas sociais, por sua vez, se
encaminhou para o que Hall chama de virada cultural, ou seja, uma outra anlise
das dimenses epistemolgicas da cultura. Esta ganha um maior peso explicativo
para as demais esferas sociais, sendo entendida como condio constitutiva da vida
social, ao invs de uma varivel dependente (p.27).
Este cenrio de centralidade da cultura que os Estudos Culturais apontam
pode ser bem ilustrado pelas relaes entre cultura e desenvolvimento que Gusmo
(2007, p.23) destaca:
Na condio contempornea, a maior distribuio de bens
simblicos pelas redes do comrcio mundial deu esfera
cultural um protagonismo maior do que em qualquer outro
momento da histria da humanidade. (...) h quem defenda que
a cultura se transformou na prpria lgica do capitalismo
contemporneo.
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Na contrapartida desse processo, as discusses sobre o assunto
tambm so intensificadas por instituies do circuito das
relaes internacionais a exemplo da Organizao das Naes
Unidas (ONU) mediante sua agenda especializada para
educao, cincia e cultura (UNESCO)...
Nesta perspectiva, complementar de Franco (2010), a mdia e isso inclui o
cinema como a mdia mestre do sculo XX uma instncia de socializao.
Como espao de circulao, criao e transformao de conhecimento, os filmes,
que tocam particularmente aos indivduos e o cinema, como fenmeno social,
participam da nossa formao, em sentido amplo, que no se limita ao mbito
escolar/acadmico.
Desde o advento do cinematgrafo, o audiovisual vem conquistando cada vez
mais espao e telas no cotidiano das sociedades globalizadas, dentre as quais a
brasileira pode ser considerada uma das mais audiovisuais (DUARTE, 2008, p.
17), principalmente pela alta audincia televisiva. No Brasil, o campo do cinema e
demais linguagens audiovisuais vem se destacando pelo aumento da produo e
difuso de seus produtos e pela influncia sobre importantes cargos e rgos de
desenvolvimento de polticas pblicas.
Aps a Retomada da produo cinematogrfica nacional, que havia sido
paralisada com o fechamento da EMBRAFILME em 1990, o prestgio do cinema
enquanto linguagem artstica importante para a expresso da cultura nacional tem
crescido socialmente, embora o nmero de ingressos vendidos seja baixo
considerando o total da populao e comparando com a bilheteria domstica de
pases como EUA e ndia, que tm indstrias cinematogrficas fortes4. A medida
deste prestgio o atual volume de recursos pblicos investidos no fomento
produo de filmes e distribuio dos mesmos, em editais de difuso, incentivo
realizao de festivais, em abertura e manuteno de pontos de exibio ou
cineclubes e, mais recentemente, na distribuio de vouchers para o pblico5
aes que tm sido propagadas pelos governos da ltima dcada como um esforo
mais geral no sentido de democratizao do acesso cultura e seus meios de
produo (GUSMO, 2007; SOUZA, 2010).
4C.f. DATABASEmundo 2008 (ano base 2007).
5C.f. Aes/propostas de polticas pblicas voltadas ao setor exibidor, pp.50-52. In:
OBSERVATRIO BRASILEIRO DO CINEMA E DO AUDIOVISUAL: banco de dados, 2010
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De 2002 a 2011, a Agncia Nacional do Cinema (ANCINE) registrou
aumento do total de ingressos vendidos nas salas comerciais e o ltimo ano assistiu
ao maior nmero de lanamentos de longas-metragens brasileiros em dez anos6. O
surgimento de um novo movimento cineclubista, no incio dos anos 2000, e o
aumento do nmero de cursos voltados para as linguagens audiovisuais, verificado
por Norton (2011), tambm expressam e reforam esse grande interesse7. No campo
da educao, que flerta com o cinema desde os seus primrdios (DUARTE &
ALEGRIA, 2008; DUARTE & TAVARES, 2010), o debate e as experincias esto
se ampliando em todo o pas8. O cenrio est propcio
9 para o desenvolvimento de
reflexes e aes que explorem o carter educativo do cinema. Ao mesmo tempo, as
disputas pela regulao da(s) cultura(s), discutidas por Hall e Gusmo neste
contexto, refletindo, por exemplo, uma maior participao de setores econmicos,
miditicos e de grupos sociais no debate em torno dos rumos da educao no Brasil,
intensificam preocupaes com a qualidade do ensino, o que passa por uma
discusso sobre culturas dominantes, ao mesmo tempo em que a cultura percebida
em sua diversidade como canal para melhor acolhimento dos alunos nas instituies
de ensino, como dimenso fundamental do currculo e da socializao que se d
dentro da escola.
Todas essas questes permeiam o que Forquin (1993), discutindo o arcabouo
da sociologia da educao, delimita como sendo a cultura da escola a seleo de
contedos que, dentre toda a produo da cultura humana, as instituies de ensino
escolhem para conservar, e afetam assim todo o conjunto de saberes a ensinar e
6 C.f. TELA VIVA. Ancine divulga balano do mercado de exibio em 2011. On-line, 30/01/2012
7 No cinema, o Brasil j o principal mercado latino-americano em receitas de bilheteria: s em
2011, foram vendidos 143,9 milhes de ingressos, estabelecendo um novo recorde de arrecadao
para a atividade. Filmes brasileiros de todos os gneros, feitos para todos os pblicos, ganham o
reconhecimento do pblico e da crtica, pela qualidade das produes e porque a sociedade gosta de
se enxergar nas telas. (ANCINE. Contedo nacional na nova Lei da TV Paga. On-line, 28/02/2012) 8S para citar algumas, V Ao Cinema (SP) e Cinema Para Todos (RJ) so exemplos de projetos que
unem esforos das secretarias estaduais de cultura e educao. O programa Mais Educao, dos
ministrios da Educao, Cultura, Esportes e Desenvolvimento Social e Combate Fome, tambm
fomentou diversas aes envolvendo cinema em escolas pblicas, entre outras atividades extraclasse. 9Incrementando ainda mais o cenrio, enquanto esta pesquisa se desenvolvia, a ANCINE
regulamentava a Lei da TV Paga (Lei 12.485, de 12 de setembro de 2011), garantindo, de acordo com publicao no site da ANCINE (On-line, 27/02/2012), a presena de mais contedos nacionais e independentes nos canais de TV por assinatura, a diversificao da produo e a articulao das empresas brasileiras que atuam nos vrios elos cadeia produtiva do setor.
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condutas a inculcar mais as prticas que permitem a transmisso desses saberes e
a incorporao desses comportamentos (JULIA, 2001, p.09), a cultura escolar.
Os estudos de Duarte & Alegria (2008) e Duarte & Tavares (2010) revelam
uma variedade de relaes entre a educao e a linguagem audiovisual concebidas
na Europa, nos EUA e no Brasil em diferentes momentos histricos desde a
inveno do cinematgrafo. Apesar da riqueza das propostas, a literatura consultada
at agora aponta que a apropriao conteudista e utilitria do cinema, muito atrelada
aos programas disciplinares e funes sociais da prpria escola, majoritria nas
escolas.
Com o intuito de ampliar os usos que a educao formal pode fazer do cinema
e do audiovisual, em 2008, a prefeitura do Rio de Janeiro, atravs da sua Secretaria
de Educao (SME-RJ), iniciou o Projeto Cineclube nas Escolas. Conforme
declarao de Adelade Lo (apud Revistapontocom, On-line, 23/07/2011), ex
Coordenadora do Projeto, a proposta consiste em:
[I]mplantao de uma poltica pblica no campo do
audiovisual. O projeto est organizado em trs eixos: aquisio
de equipamentos como projetor, telo, caixas de som e
acervos de livros e filmes para as escolas; formao de
professores e alunos; e ao cineclubista na escola, que se
traduz em exibies de filmes, ida ao cinema e produo
audiovisual por parte de alunos e professores. (...) Quando o
projeto foi elaborado, havia tambm uma inteno de garantir
aos alunos o direito de acesso s produes audiovisuais,
sobretudo aos curtas-metragens nacionais.
Envolvendo 248 unidades da Rede Municipal de Ensino10
, evidentemente, o
Projeto dialoga com as orientaes poltico-pedaggicas e institucionais da SME-
RJ, acrescentando outras especficas do campo cinema/educao, sendo referncias
importantes a hiptese-cinema de Alain Bergala/Jack Lang e a tradio cineclubista.
A participao dos alunos no Projeto no obrigatria nem vale nota e os
idealizadores do Cineclube nas Escolas alegam adotar um vis diferente do
tradicional tratamento dado ao cinema no espao escolar:
O projeto tem como premissa desconstruir a ideia de que a
presena de filmes na escola limita-se ao puro entretenimento
ou ao simples pretexto de ensinar determinado contedo.
necessrio entender o cinema e a produo audiovisual como
importantes caminhos para a ampliao de conhecimentos e
10
Dado de Maro/2013.
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do patamar cultural dos estudantes. (ADELADE LO apud
Revistapontocom, On-line, 23/07/2011) [grifos meus]
A novidade11
trazida por Bergala (2008) o lugar privilegiado que se deve
dar, na educao, ao cinema como linguagem/meio externo escola, como um
estrangeiro, uma hiptese de alteridade. Para ele, o cinema no se ensina: o
cinema uma cultura com a qual nos encontramos. E, como ensino, o autor
refere-se transmisso e produo de conhecimentos que se do na lgica do
conjunto de culturas e prticas do cotidiano escolar, que implicam: organizao do
espao; planejamento do tempo; normas de conduta; relaes de poder e domnio de
contedos, rigidamente estabelecidos e controlados. Ainda que este conjunto, que
configura a cultura da escola e a cultura escolar (FORQUIN, 1993; JULIA, 2001),
seja sempre contingente de tenses e conflitos, sua razo padronizada e seu
movimento padronizante, na viso do crtico de cinema e professor francs.
Contrariamente, o gosto pela arte, segundo Bergala, absolutamente ntimo e
pessoal.
Sua teoria afirma que a tendncia da escola a controlar e adaptar para seus
fins o que lhe externo pode ser extremamente prejudicial, pois ignora, exclui e
desperdia o que a arte traz de estranho e de desestabilizador, e, por isso,
potencialmente libertador e mobilizador, pois nos faz pensar.
A proposta, ento, consiste em aceitar que a arte por definio um
elemento perturbador dentro da instituio (BERGALA, 2008, p.30) e que os
educadores devem correr os riscos de serem professores-passadores de filmes e
no explicadores, perdendo o medo de abrir mo dos atalhos pedaggicos
tranquilizantes da frmula de trabalho que funciona (p.27), pois
conhecimentos se adquirem quando conhecemos o desconhecido. A anlise fria que
procura dissecar todos os elementos de uma obra a fim de provar a sua qualidade,
ou a falta dela, definida por Bergala como o uso ideolgico. Este seria
inadequado porque, ao hierarquizar sujeitos e culturas, alm de intervir
demasiadamente na relao do aluno com as obras, pouco estimulando seu
11
Uso o termo novidade para marcar uma diferena na proposta terica do Projeto, inspirado em
Bergala, em relao s prticas audiovisuais mais restritas e submetidas cultura escolar, embora
seja possvel afirmar que a hiptese-cinema seja herdeira das vanguardas cinematogrficas da dcada
de 1920 e do cineclubismo, surgido no mesmo perodo - precursores da ideia de apropriao
pedaggica da stima arte enquanto linguagem artstica.
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pensamento autnomo e orientando excessivamente sua construo de sentido,
costuma contrariar algumas opinies que os estudantes tm sobre produtos da
grande mdia, contribuindo ainda mais para o desinteresse.
Sem adotar a concepo de um espectador passivo, que aceitaria sem
questionamentos tudo o que os meios de comunicao de massa lhe impusessem (e
que foi cultivada durante muito tempo pela Igreja, pelo Estado, pelos apocalpticos
da Escola de Frankfurt e pela educao formal), Bergala admite que a grande mdia
dispe de inmeros recursos para seduzir ou persuadir uma parcela significativa da
populao: fora os recursos materiais investidos pelos produtores e as possibilidades
tcnicas e de linguagem, que permitem um extenso e atraente cardpio de
estratgias estticas e de organizao do discurso; a penetrao da mdia em quase
todos os espaos do cotidiano do espectador, inclusive dentro de sua prpria
residncia, desequilibram a relao entre os produtores e os consumidores. Mesmo
que o indivduo receptor, isoladamente, rejeite uma determinada mensagem, ocorre
que, se esta for amplamente aceita pelo seu meio social, surge certa presso para
que essa rejeio se transforme em adeso ou, pelo menos, em uma aceitao
mnima12
. O que o crtico alega que uma ingenuidade (e uma perda de tempo)
crer que um jovem negar intimamente o prazer de ter assistido a um filme
puramente comercial, ainda que lhe provem, com os argumentos mais convincentes,
que tal filme ruim.
Assim, defende o acesso s maiores variedade (de gneros e origens) e
quantidade possveis de filmes como a nica maneira de garantir que cada aluno
forme seu gosto de maneira autnoma. De certa forma, Bergala acredita que o
desenvolvimento do esprito crtico dos estudantes se dar com o crescimento do
repertrio cultural dos mesmos, como ampliao das possibilidades de mediaes
entre os espectadores e os produtos audiovisuais.
Segundo Martn-Barbero (2003), um dos principais representantes dos
Estudos de Recepo, os pressupostos e valores da comunidade qual o receptor
pertence, o contexto espao-tempo (no qual ele se localiza no momento da
recepo) e tambm sua trajetria de vida so mediaes que influenciam o
12
Certamente, o indivduo tambm pode, diante desta presso social, no raramente, radicalizar a sua
rejeio. Mas isto, em geral, no altera substancialmente a configurao de desequilbrio descrita.
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processo pelo qual os sujeitos formulam sentidos possveis para as obras a partir dos
significados dados por elas. Logo, os filmes a que assistimos em nossas trajetrias
pessoais so experincias que enriquecero nosso repertrio cultural e,
consequentemente, nossas mediaes.
Nesse sentido, aqui interessante assinalar que os cineclubes tambm atuam
nessa lgica de mediadores e so vistos pelos formuladores de polticas para o setor
como importantes para o desenvolvimento do olhar crtico dos espectadores. Os
movimentos cineclubistas, enquanto movimentos sociais organizados e
institucionalizados, que preferi grafar com as iniciais maisculas - Movimentos
Cineclubistas, ou simplesmente as prticas e dinmicas sociais que se tecem nos e
em torno dos clubes de cinema, que preferi grafar com letras minsculas -
movimentos cineclubistas, em suas diferentes vertentes e pocas, e Jess Martn-
Barbero compem o quadro conceitual da pesquisa, oferecendo chaves para a
compreenso das dinmicas presentes nas mediaes que tomam lugar nos clubes
de cinema e nos estabelecimentos de ensino formal.
O presente trabalho ainda aprecia parte da obra de Jacques Rancire, filsofo
argelino radicado na Frana, que trata de temas como poltica; esttica e cinema e
que, tratando tambm de educao, escreveu um dos livros que compem o acervo
bibliogrfico do Projeto Cineclube nas Escolas. Narrando a histria de Joseph
Jacotot, pedagogo francs exilado nos Pases Baixos poca da restaurao da
monarquia ps Revoluo Francesa, O Mestre Ignorante: cinco lies sobre a
emancipao intelectual (RANCIRE, 2011) relata uma experincia educativa
avessa s instituies, que se reproduzem fundamentadas na ilusria e eterna
promessa da transmisso de conhecimentos de mestres sbios para alunos
ignorantes. Tendo que lecionar para estudantes que no falavam sua Lngua e sem
falar a Lngua deles, Jacotot baseou sua atividade no princpio da Igualdade das
Inteligncias: No h ignorante que no saiba uma infinidade de coisas, e sobre
este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar
(RANCIRE, 2011, p.11).
Partindo da autonomia dos aprendizes na construo de conhecimentos,
Jacotot estabeleceu uma prtica educativa emancipatria que vai ao encontro das
demais questes centrais, na filosofia de Rancire anteriormente mencionadas:
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poltica; esttica e cinema. Em 11 de outubro de 2012, no encerramento do
Colquio internacional Arte, Esttica e Poltica: dilogos com Jacques Rancire
13, evento que presenciei no Palcio Capanema (cidade do Rio de Janeiro), ao ser
questionado, sobre quais mediaes seriam necessrias para a emancipao do
espectador, o conferencista que d nome ao colquio, perguntou: Como contribuir
para as pessoas serem livres para agir ou no agir?. Poltica; esttica; arte e os
processos de ensino-aprendizagem que transformam a nossa percepo so
possibilidades e no frmulas prontas. De acordo com Rancire (2012), cinema,
fotografia, vdeo, instalaes e todas as formas de performance do corpo, da voz e
dos sons, dentro do que poderamos enquadrar tambm os rituais escolares, devem
se contentar em ser apenas contribuies para reconstruir o mbito de nossas
percepes e o dinamismo de nossos afetos (p.81). As prticas audiovisuais
emancipatrias, bem como uma educao emancipatria, portanto, so propostas
que, conscientes de suas limitaes e que, permitem-se correr os riscos de
desencadear processos de conhecimento autnomos, horizontais e libertrios.
O quadro terico da dissertao, assim, triangula consideraes de autores
chave na concepo do Projeto Cineclube nas Escolas - Bergala; Martn-Barbero e
Rancire - colocando-as em relao construo coletiva dos movimentos
cineclubistas e com os apontamentos sobre as bases sociais e epistemolgicas do
conhecimento escolar que Jean-Claude Forquin elencou ao estabelecer relaes
entre escola e cultura (1993). Referncias que sinalizam o potencial transformador
do cinema e da escola e problematizam as estruturas e finalidades das instituies
de ensino formais.
Considerando o longo histrico de dilogos do cinema com a educao por
meio da prtica cineclubista, o presente projeto de pesquisa pretendeu investigar o
Cineclube nas Escolas no sentido de verificar onde est sua originalidade e de
entender que concepes de cinema, cineclubismo e educao esto em jogo.
Assim, trs so as questes centrais:
13
Colquio internacional Arte, Esttica e Poltica: dilogos com Jacques Rancire. Organizado por MAR, UFRJ e UFF. Rio de Janeiro, 8 a 11 de outubro de 2012.
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- Que tipo de cinema est sendo cultivado? caracterizao da lista dos
filmes exibidos conforme diversidade e quantidade de ttulos, facilidade de acesso
s obras, opes estticas e temticas que sejam preferidas ou constantes.
- Como se organiza o cineclube na escola? quem so os atores envolvidos
(professores, alunos, funcionrios, comunidade escolar) e como participam das
atividades? Quanto tempo dedicam ao cineclube, que tarefas e responsabilidades
tomam para si? Que dimenses e prticas do cineclubismo so privilegiadas?
- Qual projeto de educao se configura? seria uma proposta de educao
por meio do cinema ou para o cinema? O que se ensina e o que se aprende; que
conhecimentos so eleitos para serem transmitidos?
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2. Imagem em movimento: prticas e pedagogias cineclubistas
No website do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC Brasil),
Macedo & Pimentel Neto (s/d) informam que os cineclubes assumiram diferentes
prticas conforme o desenvolvimento das sociedades em que se instalaram. Este
captulo pretende apresentar uma reviso de literatura que, junto aos depoimentos
dos cineclubistas entrevistados, possibilite entender, posteriormente no campo,
quais prticas/dimenses do cineclubismo so privilegiadas nas escolas
participantes do projeto Cineclube nas Escolas, da Secretaria Municipal de
Educao do Rio de Janeiro (SME-RJ).
A partir do breve histrico do cineclubismo apresentado nas pginas
seguintes, ser possvel perceber que as dinmicas praticadas nestas associaes e a
relao que seus membros estabelecem com o universo simblico e imaginrio do
cinema/audiovisual configuram muitas pedagogias e formas de ao social.
Apesar da possibilidade de registros anteriores do uso do termo cineclube, a
origem desse tipo de associao amplamente atribuda a um grupo de intelectuais
e artistas que, em 1920 na Frana, lanou a revista Cin Club (1920-1921). Em
reunies regulares e com produo de textos para discutir filmes e as possibilidades
cinematogrficas, o grupo, que envolveu personalidades como Louis Delluc e
Germaine Dulac14
, pretendia abrir espao para um cinema inovador e esteticamente
criativo, que no era exibido nas salas comerciais e tinha expectativas de formar
espectadores que soubessem apreciar este tipo de cinema. O que nos permite supor
que o cineclubismo teve, desde a origem, vocao educativa.
Na Europa desse momento, as vanguardas artsticas engajavam-se em afirmar
a importncia da arte como expresso humana fundamental, leitura, ou meio de
transformao do social e a iniciativa cineclubista alimentava o debate sobre a
vocao e a natureza do cinema. De uma forma geral, o cinema era considerado
socialmente como uma diverso vulgar, mero entretenimento. Porm, surrealistas,
14
Germaine Dulac (1882-1942) foi uma cineasta, jornalista, crtica e terica do cinema francesa,
precursora do cinema surrealista. Louis Delluc (1890-1924) era roteirista, crtico e diretor de filmes,
mais associado corrente impressionista.
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expressionistas, construtivistas, knoks15
, artistas experimentavam a temporalidade, a
impresso de realidade e/ou a expresso dela proporcionadas pelo cinematgrafo.
Empenhavam-se na inveno de uma linguagem cinematogrfica especfica e/ou no
reconhecimento do estatuto artstico do que Ricciotto Canudo, fundador do Club
des Amis du Septime Art C.A.S.A (1921-1924), definiu como a sntese de todas
as artes, chamando o cinema de stima arte16
, em 1911.
Mesmo dentro do cinema industrial, os fundadores da escola clssico-
narrativa, da qual o norte-americano D.W. Griffith considerado o grande pai,
buscavam sofisticao em produzir obras de valor artstico, preocupando-se com a
verossimilhana na representao das emoes humanas e investindo no espetculo
de cenrios luxuosos e elencos formados por estrelas e figuraes numerosas.
Como observam Duarte & Tavares (2010, p.26), a ideia de que o cinema
deveria participar diretamente da educao, poltica e esttica das massas parece ser
recorrente nos textos fundadores desses movimentos, embora tenha adquirido
caractersticas distintas em cada um deles. Desde a inveno do cinematgrafo, o
aparato foi utilizado como ferramenta pedaggica, podendo auxiliar estudos e
demonstraes cientficas. Mas entre as vanguardas artsticas, havia uma
preocupao com a formao de um pblico mais crtico para a arte, enquanto
criao transformadora. O poder de alcance do advento, na comunicao com as
massas, tambm evidenciava sua capacidade de influncia na formao poltico-
ideolgica de indivduos e grupos. Esta possibilidade inspirou no s uma srie de
filmes revolucionrios na Unio Sovitica (URSS), como as obras de Serguei
Eisenstein, mas tambm reuniu milhares de trabalhadores por toda a Europa em
associaes sindicais ou em organizaes, em iniciativas muitas vezes incentivadas
pelo governo sovitico, voltadas para a exibio de fitas para as classes populares.
O militante mais conhecido deste movimento foi o francs Lon Moussinac, amigo
de Louis Delluc e criador do cineclube Les Amis de Spartacus, em 192817
.
Embora os grupos pioneiros tenham produzido alguns filmes, pode-se
destacar, como contribuio principal para a cultura cinematogrfica, a realizao
15
C.f. Duarte & Alegria, 2008. 16
A expresso foi difundida com a divulgao, entre 1911 e 1912, do Manifesto das Sete Artes e
Esttica da Stima Arte, publicado pelo intelectual Canudo, italiano radicado na Frana. C.f. idem. 17
Fechado pela polcia no mesmo ano. C.f. Macedo, On-line, s/d (b).
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de encontros e conferncias sobre cinema e as publicaes que, alm de divulgar a
programao das salas de exibio, compartilhavam aspectos tcnicos e ideias sobre
os rumos da arte cinematogrfica, defendendo claramente o valor esttico dos
filmes, salientando seus fins sociais e educativos, e condenando a produo com
fins meramente comerciais. Tais iniciativas, que Gusmo (2007, p.166) descreve
como sendo uma atitude ligada muito mais crtica cinematogrfica que
produo, tiveram um importante papel na consolidao das bases de uma teoria
sobre as imagens em movimento.
Em 1917, dialogando com o debate europeu e tambm com a indstria
estadunidense, atividades de carter cineclubista j eram realizadas no Rio de
Janeiro pelo Paredo, um grupo de jovens que, querendo fazer cinema como atores
e tcnicos, se reuniam para ver filmes, coment-los e debat-los a propsito do
cinema brasileiro (ANDRADE, publicao eletrnica, 200918
). A publicao de
revistas especializadas em arte e cinema foi um esforo de intelectuais e cineastas
empreendedores da poca em promover produes cinematogrficas de qualidade
no pas e refletir sobre elas.
De acordo com Rud de Andrade (idem), o termo cineclube foi utilizado
pela primeira vez no Brasil, em 1925, pelo clube de jogos do cantor, ator e,
posteriormente, diretor do Cassino da Urca Jayme Redondo. As projees eram
um meio de atrair os jogadores. O resultado desta aventura foi a produo de dois
filmes pelo Cineclube (Op. Cit.). Porm, a literatura consultada reconhece como o
primeiro cineclube brasileiro o Chaplin Club, fundado em 1928 na cidade do Rio de
Janeiro. Segundo o crtico Luiz Zanin Orichio (2007), a escolha do nome no se deu
por acaso: criador do grande vagabundo do cinema mudo, Charles Chaplin era
mais ou menos como um sinnimo da arte cinematogrfica ento. Herdeiro da
tradio da vanguarda francesa (GUSMO, 2007, p. 167), esse coletivo operava
como um grupo de pesquisa sobre o cinema, enquanto linguagem artstica
especfica, e editava o peridico O Fan (1928-1930) para divulgar suas atividades e
reflexes. Uma de suas bandeiras era a luta contra o advento dos filmes sonoros19
,
18
Trecho do relatrio A ao dos cineclubes e das cinematecas na Amrica Latina para o
desenvolvimento da cultura cinematogrfica (1961), de autoria de Rud de Andrade (na poca,
conservador-adjunto da Cinemateca Brasileira de So Paulo). 19
O lanamento de O Cantor de Jazz (Alan Crosland), primeiro filme com falas, data de 1927.
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sendo assim extinto em vista do sucesso inexorvel do cinema falado (ZANIN
ORICHIO, 2007).
A preocupao com relao a possveis perdas que o cinema sonoro poderia
implicar para o desenvolvimento de uma linguagem indita nas artes, de acordo
com Lunardelli (2000, p. 93) foi importante para que cineclubes da poca
desenvolvessem a dimenso de preservao da memria e da cultura
cinematogrficas20
:
A valorizao de um filme antigo leva ao desejo de t-lo
preservado. Ainda que algumas vozes pioneiras tenham se
manifestado a favor da conservao de filmes, medidas efetivas
s comearam a ser tomadas depois da inveno do cinema
sonoro, como gesto de resistncia em favor do filme silencioso.
Correntes hostis aos talkies promoviam dentro dos clubes de
cinema a exibio de filmes mudos prestigiados como clssicos.
Do quadro desses clubes surgiram os organizadores e
conservadores de cinematecas em Paris, Berlim, Milo, Londres
e Nova York, pessoas como Iris Barry, Henri Langlois, Luigi
Rognoni e Ernest Lindgren.
No por acaso, a histria da Cinemateca Brasileira tem origem no segundo
cineclube brasileiro de que se tem registro: o Clube de Cinema de So Paulo (1940).
Seus fundadores eram jovens estudantes do curso de Filosofia da USP, entre eles,
Paulo Emilio Salles Gomes, Dcio de Almeida Prado e Antonio Candido de Mello e
Souza21
. A proposta era estudar o cinema como arte independente, por meio de
projees, conferncias, debates e publicaes (BUTRUCE, 2011, p.20), ainda
restrita a uma certa intelectualidade urbana.
A popularizao das sesses sistemticas com discusso de filmes, pelo
mundo, ocorreu no fim da 2 Guerra e a queda de regimes totalitrios, associada
propagao de mensagens civilizatrias e humanistas. Nos anos 1940-60, os
cinfilos compartilhavam a percepo do cinema como manifestao cultural, ao
tempo em que consideravam ser o consumo cinematogrfico um meio para
viabilizar a manuteno ou a transformao de atitudes humanas e de condutas
cotidianas (GUSMO, 2007, p. 170).
20
Sobre a preservao da memria e cultura cinematogrficas, c.f. Gomes, 1959. e c.f. Correa Jr.,,
2007. 21
Extrado da seo Histria, do website da Cinemateca Brasileira, s/d:
Acesso em 23 jun. 2012.
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O carter pedaggico do cinema foi enfatizado na prtica cineclubista desse
perodo. Foi nesse momento que os cineclubes entraram nas escolas, expanso da
qual a Igreja Catlica foi o principal agente no Brasil at o incio dos anos 1960. Por
meio da publicao de encclicas22
, o Vaticano expressava seu interesse e
preocupao com o cinema, visto como um poderoso meio de influncia. Nesta
perspectiva, so criados o Ofcio Catlico Internacional do Cinema OCIC, em
1928, e, no contexto nacional, o Servio de Informaes Cinematogrficas (1936) e
o Centro de Orientao Cinematogrfica (1953)23
. O objetivo destas organizaes
era a promoo de filmes edificantes e o controle dos contedos que circulavam
pelas telas, por meio da realizao de sesses e cursos de cinema e da publicao de
crticas, da concesso de prmios e de classificaes morais das fitas.
Segundo Campelo (apud CHAVES, 2010, p. 84) o discurso oficial da Igreja
media os valores artsticos das obras por seus valores morais. E toda essa
mobilizao em torno do cinema d uma medida de como este era considerado um
meio efetivo de realizar um projeto de sociedade alis, uma disputa constante em
toda a histria da Igreja:
O Secretariado Nacional de Cinema [da Ao Catlica
Brasileira] servia de guia aos espectadores catlicos em prol da
elevao do nvel moral e cultural da arte cinematogrfica,
orientados pelos princpios da encclica Vigilanti Cura e
tambm buscando entrar em entendimento com os poderes
competentes a fim de que seja oportunamente melhorada a
legislao referente aos problemas criados pelo cinema no meio
social.
Para Butruce (2011, p.21), a Igreja com suas organizaes, seminrios,
documentos, declaraes e crticas sobre cinema elaborou um verdadeiro mtodo
cineclubista catlico, baseado na promoo dos princpios cristos, que se aplicava
ao cinema e na educao do pblico.
Para alm das intenes do Vaticano, o professor do Departamento de
Comunicao Social da PUC-Rio Miguel Serpa Pereira, que iniciou sua atuao em
cineclubes quando era seminarista no incio da dcada de 1960, ressaltou, em
entrevista gravada concedida a esta pesquisa, que o trabalho dos padres foi crucial
para a disseminao do conhecimento sobre cinema no Brasil, pois promoveu o
22
C.f. Chaves, 2010. 23
Fonte destas datas: Gusmo, 2007.
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acesso no s a filmes inditos no pas como a toda uma bibliografia especializada,
principalmente francesa e italiana. Segundo o professor, os cursos da Ao Social
Catlica (ASA) contriburam para a formao de cineastas como Lus Srgio
Person, Carlos Reichenbach e Cac Diegues. Ele lembra que Andr Bazin um dos
principais crticos de cinema da Frana, um dos criadores da Bblia dos cinfilos,
a revista Cahiers du Cinma (1951) era catlico. E, aqui, Cosme Alves Netto,
uma importante referncia para o Movimento Cineclubista brasileiro, muito antes
de ser diretor da Cinemateca do MAM-RJ, atuava na Juventude Estudantil Catlica
(JEC), com a qual ajudou a criar vrios cineclubes, tanto catlicos quanto no
catlicos.
Igualmente, o Estado Novo concebia o cinema como instrumento pedaggico,
mas, atuando de forma diferenciada da Igreja, via com maus olhos a instituio de
alguns cineclubes, tendo ordenado o fechamento do Clube de Cinema de So Paulo,
em 1941. Com o fim da Ditadura Vargas, o Clube saiu da clandestinidade e outros
cineclubes de carter laico comearam a se difundir pelas capitais brasileiras, como
o Clube de Cinema da Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de Janeiro, 1946), o
Clube de Cinema de Porto Alegre (1948) e o Centro de Estudos Cinematogrficos
(Belo Horizonte, 1951). Nesse grande intervalo que vai dos 1940 aos 60, o
cineclubismo se consolidou no Brasil como um projeto de ao maior do que a pura
cinefilia. Fosse em nome do projeto civilizatrio, inspirado no modelo francs24
,
fosse na tomada de posies poltico-ideolgicas ou na f em uma moral religiosa,
era forte a crena no cinema como poderoso veculo de comunicao de massas, o
principal entretenimento das cidades. Em outro trecho do relatrio de Rud de
Andrade (1961)25
, percebemos uma sntese do que se pensava a respeito do papel
do cineclube e de que tipo de experincias ele seria capaz de instituir pelas
cidadezinhas da Amrica Latina:
(...) atravs dele que se abrem para jovens exclusivamente
cinfilos os horizontes da literatura, do teatro, da msica e das
artes plsticas. Numa dessas cidades, criou-se uma escola de
ensino superior, e o professor de Literatura Inglesa confessa que
s conseguiu atingir esteticamente os alunos atravs do clube de
cinema recm-criado. Nessas localidades longnquas da
Venezuela, Argentina e Brasil, ou de qualquer outro pas latino-
24
C.f. Lisboa, 2007. 25
Trecho extrado de Gusmo, 2007, p. 170.
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americano, o clube tende a ultrapassar o seu papel de simples
difuso intelectual e artstica, para transformar-se num dos
ncleos mais intensos da vida social, num rgo sensvel de
receptividade inovao de ideias ou de costumes, e em
instrumento capaz de introduzir modificaes nos sistemas de
valores correntes.
tambm a partir desse perodo que se pode falar da articulao de um
Movimento social Cineclubista no Brasil, com a realizao dos primeiros encontros
e a criao de federaes regionais e nacional, com conexes internacionais. Os
cineclubes e cinematecas dos anos de 1940-50 foram as escolas que formaram os
cineastas mais influentes nas mobilizaes juvenis das duas dcadas subsequentes,
como os franceses Franois Truffaut e Jean-Luc Godard e os brasileiros Joaquim
Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Cac Diegues e Glauber Rocha, representantes
do Cinema Novo.
Sobre a gerao cineclubista seguinte, Butruce (2011, p.21) escreve:
Diante de toda agitao pela qual passava a sociedade brasileira
na dcada de 1960, especialmente entre os jovens, o
desenvolvimento dos cineclubes concentrou-se principalmente
em universidades e escolas, acompanhando o ritmo de algumas
manifestaes culturais do perodo, como o Centro Popular de
Cultura organizado pela Unio Nacional dos Estudantes.
A pesquisa Cineclubismo: memrias dos anos de chumbo, em que Rose Clair
Matela (2008) entrevista cineclubistas do perodo mais duro do Regime Militar at
a democratizao do pas, revela o papel do cineclubismo na mobilizao de uma
juventude empenhada na construo de uma sociedade democrtica, polifnica, que
compartilhava utopias polticas, estticas e comportamentais com os jovens
cinfilos de maio de 1968, na Frana. Para a autora (p.156), importante ressaltar
que este movimento tambm se identificava com a movimentao estudantil
internacional (...) lutando contra as injustias, as guerras, os colonialismos e
ditaduras presentes em vrias partes do mundo.
As restries da ditadura militar fortaleceram a dimenso do engajamento
poltico no cineclubismo: com a priso das principais lideranas polticas e
sindicais, os movimentos culturais e estudantis catalisaram as resistncias (Matela,
2008, p.155). Apesar de a represso ter desarticulado parte do Movimento
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Cineclubista26
, os cineclubes eram os poucos espaos nos quais ainda era possvel
se reunir em grupos e expor ideias alternativas; algumas vezes se estabeleceram
como pretexto para atividades de partidos clandestinos. Segundo Miguel Serpa
Pereira (2012), a Igreja, com suas contradies internas, tambm foi importante
para a manuteno das atividades cineclubistas nesse perodo, abrigando, por
exemplo, o Cineclube Glauber Rocha (1972) na Igreja de So Francisco do
Engenho Velho27
, frequentado por militantes do Partido Comunista Brasileiro.
Neste contexto, uma das entrevistadas por Matela, salienta a importncia da
associao dos cineclubes com partidos polticos para esta gerao:
...onde tinha uma manifestao pelas liberdades democrticas
ou pela liberdade de expresso, a gente estava l,
organizadamente, jovens, em nmeros expressivos, nunca era
um ou dois, era sempre nmero grande, ento eu acho que isso
teve uma importncia, teve um papel que no se pode desprezar,
nada, nem na resistncia, nem na construo das condies de
abertura (Aninha apud MATELA, 2008, p.158).
Naturalmente em consequncia de todas estas questes levantadas poca, os
cineclubes viviam a tenso entre aqueles que viam a cultura como meio de
mobilizar ou engajar pessoas para fins estritamente partidrios, (...), e aqueles que
percebiam que a cultura estava envolvida pela dimenso poltica, mas no poderia
ser instrumentalizada por esta (MATELA, p.164). Mas a discusso sobre a
orientao poltica ou esttica dos cineclubes no era o nico debate no modelo
cineclubista das dcadas de 1960-70. A organizao democrtica tambm era um
dos objetivos principais destas associaes.
Entre as narrativas reunidas na pesquisa de Matela, encontram-se as de jovens
que viam no cineclube uma forma de atuao poltica alternativa ao prprio
movimento estudantil, envolvendo uma variedade de atores, interesses e projetos
polticos, que compreendia trabalhadores e a recente, na poca, mobilizao
homossexual. Por isso a autora, que entrevistou cineclubistas atuantes na cidade do
Rio de Janeiro, afirma que a diversidade marca a constituio do movimento
cineclubista brasileiro entre a segunda metade da dcada de 1960 e o princpio dos
26
De acordo com Macedo, On-line, s/d (a), aps a 7 Jornada Nacional de Cineclubes, em 1968, os
cineclubes passam a ser perseguidos. estabelecida na prtica a censura prvia s suas atividades e
todo tipo de entraves e presses vo desmantelando todas as entidades no Pas. 27
Na Tijuca, bairro do Rio de Janeiro.
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anos 1980 (p.161). Como sugere o depoimento a seguir, a participao em um
cineclube era vivida por muitos como um exerccio de intercmbio e negociao:
Era uma coisa muito de troca, mesmo, de conhecimento e
menos engajado. Ento, menos ideologicamente fechado,
tnhamos posies polticas diversas, as brigas, as filiaes
partidrias, mas isso tudo era... era menor do que a afinidade, o
amor ao cinema, o interesse pelo cinema era maior que as
divergncias. (depoimento de Ana apud MATELA, 2008,
p.21)
Alm das sesses regulares com debates, nas quais eram distribudos jornais e
folhetos sobre os filmes programados e sobre o cinema de uma forma geral, os
cineclubes desse perodo organizaram mostras, festivais, retrospectivas de
cinematografias e de cineastas consagrados pela crtica, muitas vezes enfrentando as
dificuldades impostas pelo regime autoritrio da ditadura militar. Pois,
independentemente das tendncias polticas dos filmes, desde que a gerao cinfila
anterior reconheceu o valor dos autores da indstria28
, interessava aos
cineclubistas o acesso a tudo que fosse considerado importante ou alternativo no
campo do cinema.
Outra prtica cineclubista dessa gerao que merece destaque era a
distribuio de ttulos em 16 mm, com a criao da Distribuidora Nacional de
Filmes para Cineclubes (Dinafilme), durante a X Jornada Nacional de Cineclubes
(1976) em Juiz de Fora (MG). Segundo Macedo (Macedo, s/d), a Dinafilme foi
criada para:
1) garantir a existncia de um movimento realmente nacional,
atravs da distribuio de filmes para todo o territrio
brasileiro; 2) criar as bases para um circuito alternativo,
constitudo pelos cineclubes e entidades semelhantes, que
servisse de base para a alimentao de um cinema mais prximo
das realidades das comunidades em que os cineclubes atuam o
que, ao fim e ao cabo, significa lanar as bases de um cinema
mais popular, livre das injunes e padres do cinema
comercial. Outro elemento fundamental de constituio da
Dinafilme era a resistncia Censura, que na poca reinava
absoluta.
28
A poltica dos autores promovida pelos crticos da revista francesa Cahiers du Cinema a partir do
final da dcada de 1950, defendia a noo de autoria no cinema compreendendo o diretor como
figura central das produes cinematogrficas. Sobre a poltica dos autores c.f. Berdardet, 1994.
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Para tanto, a distribuidora dos cineclubes chegou tambm a investir em
algumas produes. Seus objetivos sintetizavam os propsitos do Movimento
Cineclubista no final dos anos de 1970, mas a Dinafilme no conseguiu se sustentar
financeiramente. Encerrando suas atividades em meados da dcada de 198029
, o
fornecimento de cpias para exibio em cineclubes foi ainda mais dificultado.
Aps uma drstica retrao, no perodo da redemocratizao do pas e
coincidente momento de fechamento de muitas salas de exibio, o incio do sculo
XXI testemunhou uma expressiva proliferao de cineclubes, novamente com
grande diversidade de propostas. Em 2006, o ento diretor administrativo da
Associao de Cineclubes do Rio de Janeiro (ASCINE-RJ), Rodrigo Bouillet
(2006) escreveu que, apesar da heterogeneidade, h um esprito que parece
permear (e unir) a todos, que o de proporcionar uma forma alternativa de lazer,
cultura e reflexo atravs da exibio do audiovisual (p.106). O cineclubista da
Retomada30
cria um ambiente de encontro festivo com o cinema, aliando-o a outras
linguagens artsticas; apropria-se das novas tecnologias de exibio e captura de
imagem e som para construir e expressar sua identidade, usando as mdias digitais
para se articular politicamente, ou apenas para manifestar seu amor ao cinema
(BOUILLET, 2006; BUTRUCE, 2011; FAUSTINI, 2011).
No h tanto daquela preocupao dos pioneiros da dcada de 1920 em
distinguir o que seria o bom cinema as perspectivas so a de pesquisa, dos
diferentes fatos cinematogrficos que vo das raridades ao cinema pipoca31
, e a
da incluso de novos grupos produtores. Muitos cineclubes so organizados por
alunos de cursos de cinema que tambm se espalham pelo pas (NORTON, 2011).
Ao mesmo tempo, mudanas na poltica social do governo federal, na perspectiva
da reduo do Estado, que desde a dcada de 1990 vm configurando novas formas
de mobilizao social e cultural, impulsionaram o surgimento de um grande nmero
de organizaes no governamentais trabalhando com jovens de comunidades de
baixa renda, usando o audiovisual como ferramenta de empoderamento e elevao
da autoestima.
29
A data precisa do encerramento das atividades da Dinafilme no foi encontrada. Em Macedo, On-
line, s/d (c), a ltima referncia do ano de 1984. 30
Como Bouillet (2006, p. 106), uso o termo em aluso chamada Retomada do Cinema Brasileiro. 31
Jargo do meio cinematogrfico para se referir pejorativamente a grandes produes do cinema
industrial, geralmente norte-americano.
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A produo de filmes passou a ser central nos cineclubes ligados s ONGs
que, em meio discusso sobre um contexto multicultural, trabalham a questo da
comunicao para a cidadania. Se, dos anos 1940 at os 1960 era bastante difundida
uma ideia de que os jovens pobres eram carentes de cultura e conhecimento, hoje a
prtica cineclubista no Brasil, alm de contribuir para formao de novos cineastas,
tem um papel importante na ocupao das telas por minorias polticas32
.
No novo contexto, muitos grupos que comearam assistindo a filmes se
autorreferenciam como coletivos ou cooperativas, enfatizando sua atuao
como realizadores de filmes/vdeos e de eventos que integram o audiovisual a
outras linguagens. importante notar a troca desses produtos entre os cineclubes, a
colaborao para adquirir novos contedos agora atrelada possibilidade de
difuso dos seus prprios. O audiovisual alternativo que circula majoritariamente
a produo de curtas-metragens dos cursos de cinema ou dos prprios cineclubes e
coletivos afins. Entre agosto e setembro de 2006, 25 cineclubes realizaram a
primeira edio do Circuito Cineclubista de Estreias (CCE):
De cara, cineclubes em oito estados do pas (ES PB, PR, RJ,
SC, RN, RS, SP) tomaram a empreitada de selecionar filmes
curtos, organizando ou no programas para exibio, gravar
DVDs domesticamente (lembremos que filmes continuam
procura de serem vistos...) e envio via correio da mdia Carta
Registrada mesmo! Tudo realizado de forma muito comunitria,
cada cineclube assumindo os encargos de envio pela vontade
mesmo de levar frente uma ao que vai de encontro s
estruturas de distribuio e exibio audiovisual ainda muito
rgidas no Brasil. (BEZ, On-line, s/d)
No incio de 2007, a Secretaria do Audiovisual (SAV/MinC) lanou a
Programadora Brasil, uma espcie de verso digital da Dinafilme, com distribuio
em DVD de um catlogo de filmes nacionais, e coordenada pelo Centro Tcnico
Audiovisual (CTAv), rgo da SAV, em parceria com a Sociedade Amigos da
Cinemateca. A Programadora Brasil fruto da necessidade de ampliar o pblico
para o cinema brasileiro e de democratizar o acesso cultura, desenvolveu-se no
dilogo da SAV com o Movimento Cineclubista, que se reestruturou a partir do
32
A comparao entre os longas-metragens Cinco Vezes Favela, produzido pelo CPC/UNE (1962), e
5x Favela, Agora Por Ns Mesmos (2010) so um bom exemplo de como cineclubistas de duas
geraes se colocaram diante dessa questo.
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chamado do grupo de cineclubistas histricos33
, chefiado por Orlando Senna, que
assumindo a Secretaria em 2003, no mesmo ano convidou os diferentes cineclubes
para um encontro durante o 36 Festival de Braslia do Cinema Brasileiro. A partir
da, o CNC foi reativado e as Jornadas Nacionais voltaram a ser realizadas. Alm
do flego da sociedade organizada, o estmulo abertura de cineclubes passou a ser
poltica pblica. Leopoldo Nunes, diretor-geral da Programadora Brasil poca de
seu lanamento, explicou os objetivos da SAV:
Ele, o secretrio, foi educado num colgio marista, em que os
padres mantinham cineclubes, fundamentais na educao, na
formao artstica e na formao do olhar para uma das mais
belas artes. Eu, igualmente, iniciei-me no cinema atravs do
cineclubismo. (...) Queramos principalmente, retomar a
dimenso no-comercial do filme, digo, pensar em alternativas
ao filme de lanamento, de shopping, de bilhete caro, ou seja,
um circuito cineclubista. (NUNES, 2007)
At dezembro de 2011, a Programadora Brasil e outras aes envolvendo
uma srie de programas do governo federal (no mbito dos ministrios MEC e
MinC) como o Cultura Viva34
, editais de Pontos de Cultura, Mais Cultura e Mais
Educao fomentaram um circuito alternativo de exibio, atuando em 830
cidades do pas35
. A ao Cine Mais Cultura (orientada pelo programa Mais
Cultura) a mais especfica para a abertura de salas de exibio alternativas,
chamadas de Cines. Por meio de editais, a iniciativa disponibiliza equipamento
audiovisual de projeo digital, obras brasileiras do catlogo da Programadora
Brasil36
e oficina de capacitao cineclubista37
para instituies sem fins
lucrativos. Em 2012, havia mais de mil Cines cadastrados, atendendo
prioritariamente periferias de grandes centros urbanos e municpios, de acordo com
33
De acordo com o Caderno 4: formao de pblico e cineclubismo dos Cadernos Cine Mais , s/d,
p.15: [d]epois de 14 anos organizada, por iniciativa de um cineclubista, ento atuando no
Ministrio da Cultura, Leopoldo Nunes, uma Jornada de Reorganizao do Movimento Cineclubista,
em Braslia, em 2003. 34
Lanado em 2004 pelo MinC. Fonte:
Acesso em 10 mar. 2013. 35
C.f. Programadora Brasil, On-line, 23/12/2011: A Programadora Brasil alcanou em 19 de
dezembro de 2011, a marca de 500.917 espectadores, em mais de 13 mil sesses informadas pelos
pontos de exibio associados, localizados em mais de 830 cidades de todos os Estados do pas. Mais
de 300 destes municpios no possuem salas comerciais de exibio. 36
Que no obrigatrio exibir. 37
De acordo com o site da Ao Cine Mais Cultura: http://www.cinemaiscultura.org.br/
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35
os indicadores utilizados pelo Programa Territrios da Cidadania (site do Cine
Mais Cultura idem).
De acordo com Rodrigo Bouillet, que tambm foi Coordenador de Rede do
Cine Mais Cultura (2008-2012), essas polticas contriburam para uma nova
situao de diversidade para o movimento cineclubista38
. As geraes anteriores
eram ou de pessoas ligadas profissionalmente ao cinema, fs, amadores, aspirantes,
realizadores e tericos; ou de grupos com um projeto poltico que apostasse
fortemente na metodologia da formao tico-ideolgica e/ou moral-religiosa
atravs do cinema. Devido s dificuldades de acesso s informaes necessrias
para o funcionamento de um cineclube, de aquisio de filmes e equipamentos,
alm das pessoas da rbita do cinema, quem conseguia articular os cineclubes ou
era a Igreja ou uma elite universitria, que dialogava ou no com outros
movimentos sociais:
Voc precisa que o grupo tenha uma resoluo muito forte ou
uma pessoa do grupo tenha uma resoluo muito forte, porque a
mecnica era muito difcil. (...) O Cine Mais Cultura, qualquer
instituio pode concorrer. Ento, o cara no tem compromisso
com audiovisual. O compromisso da colnia de pescador, antes
de ser com o audiovisual, com a colnia. O cara da associao
de bairro tem compromisso com as questes prementes da
associao e no com audiovisual. O audiovisual apoio,
instrumental, ele resolve outras coisas que no o carter de
cinema. Digo isso priori, porque os grupos de audiovisual tem
o audiovisual como coisa principal. (BOUILLET, 2012)
Desde a gesto do ministro Gilberto Gil at o momento em que esta pesquisa
encerrou, em que Marta Suplicy39
assumiu a pasta da Cultura e nomeou Leopoldo
Nunes como secretrio da SAV, o Movimento Cineclubista nacional manteve
constante dilogo com o governo federal. Alm disso, grande parte dos estados
brasileiros e um nmero expressivo de municpios passaram a interagir com o
Movimento Cineclubista da maneira mais intensa de toda a sua histria. Como
afirma Bouillet, para os editais do Cine Mais Cultura muitos lugares s tiveram o
nmero de inscritos por causa do esforo da secretaria estadual de cultura (2012).
38
Em 8 de novembro de 2012, a campanha de filiao do CNC Brasil, havia cadastrado 449
entidades. Fonte: Re: [Circuito RS] Segue a Campanha de (Re)Filiao e mobiliza in:
[CNCdialogo] Resumo 3208[1 Anexo] , Correspondncia da lista CNCdialogo em 10/11/2012. 39
Precedida por Ana de Hollanda; Juca Ferreira e Gilberto Gil (em ordem decrescente de sucesso de
ministros at 2003.
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Nestas circunstncias, e com a incontestvel contribuio das novas tecnologias de
captura e exibio de vdeo, a articulao e manuteno de atividades cineclubistas
hoje encontram condies favorveis, principalmente para indivduos sem
experincia de trabalho com audiovisual.
Porm, o contexto atual complexifica alguns antigos desafios do Movimento
Cineclubista. Em 2010, o CNC, juntamente com a Associao de Difuso Cultural
de Atibaia (SP) e o Difuso Cineclube, organizou o I Encontro Internacional dos
Direitos do Pblico, entendendo que:
Desde que surgiram, no incio do sculo passado, os cineclubes
foram as nicas instituies a questionar a uniformizao e a
unilateralidade do discurso cinematogrfico hegemnico.
Apenas os cineclubes tm por objetivo a organizao do pblico
para a sua participao no processo integral da comunicao
audiovisual. Somente os cineclubes se estruturam, se enrazam,
de maneira sistemtica e permanente nas diferentes
comunidades em que se encontra o pblico. No campo do
audiovisual, os cineclubes so os representantes do pblico.
(CNC in: Primeiro Encontro Internacional dos Direitos do
Pblico, p.17)
Hoje, os avanos tecnolgicos problematizam a propriedade intelectual e a
bandeira do acesso cultura enfatizada. Esta, por sua vez, frequentemente
vinculada a outra dimenso cineclubista tradicional que se atualiza: a vocao
pedaggica. No mesmo encontro, a ento diretora de Memria do CNC, Saskia S
(2010, p.40), argumentou:
A imerso no universo audiovisual atravs da prtica
cineclubista como forma de implantao de uma educao que
respeite as diferenas e que trabalhe a auto-organizao do
pblico em coletivos, atravs do livre acesso ao mundo cultural
e audiovisual como um direito, traz em si, a prtica
transformadora democrtica e plural sem a qual, corremos o
risco de renunciarmos a nossa humanidade.
O que o Movimento Cineclubista contemporneo reivindica, diante das
diferentes esferas de governo, deriva de uma histria de prticas e lutas muito
diversificadas que tensionam outros interesses do campo do audiovisual.
Entre as tantas possibilidades de aes e relaes disparadas pela organizao
cineclubista, vistas aqui, apenas duas caractersticas, quando combinadas,
identificam a atividade cineclubista: 1) reunir pessoas em torno do audiovisual; 2)
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proporcionar a troca de percepes e concepes entre diferentes sujeitos40
. No
entanto, a presena destas duas condies no suficiente para distinguir os
cineclubes do circuito comercial de exibio. Procurando proteger a tradio
cineclubista sem comprometer a sustentabilidade do setor audiovisual produtor, a
ANCINE faz a distino necessria, definindo o que um cineclube. Por meio da
Instruo Normativa n 63 (2007)41
, que estabelece normas para o seu registro
facultativo e d outras providncias, o rgo regula a atividade:
Art. 3 Os cineclubes devero constituir-se sob a forma de
sociedade civil, sem fins lucrativos, em conformidade com o
Cdigo Civil Brasileiro e normas legais esparsas, aplicando
seus recursos exclusivamente na manuteno e
desenvolvimento de seus objetivos, sendo-lhes vedada a
distribuio de lucros, bonificaes ou quaisquer outras
vantagens pecunirias a dirigentes, mantenedores ou
associados.
Sem fins lucrativos, os cineclubes potencializam suas caractersticas
essenciais anteriormente apontadas, no sentido de proporcionar oportunidades
educativas. No website do CNC-Brasil, Macedo & Pimentel Neto (s/d42
) entendem
que,
Organizados com base na mobilizao de seus associados em
funo de um objetivo no financeiro, os cineclubes se voltam
para fins culturais, ticos, polticos, estticos, religiosos. Quase
sempre realizam, de alguma forma, mesmo parcialmente, seus
objetivos. Ou seja, os cineclubes produzem fatos novos,
interferem em suas comunidades, contribuem para mudar
conscincias e formar opinies, mobilizam. No raro, so as
sementes que chegam florao de cineastas e outros artistas;
crescem como instituies, transformando-se em museus,
cinematecas, centros de produo; criam o caldo de cultura para
mudanas culturais, comportamentais, para a gerao de
movimentos sociais. Os cineclubes produzem e modificam a
cultura.
40
Lugar de encontros de pessoas e destas com o cinema (Cf. Bergala, 2008). 41
http://www.ancine.gov.br/legislacao/instrucoes-normativas-consolidadas/instru-o-normativa-n-63-
de-02-de-outubro-de-2007 42
Disponvel em O que cineclube, site do CNC-Brasil: http://cncbrasil.wordpress.com/o-que-e-
cineclube/
[citado 2012-06-20]
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2.1. Cineclubismo e Educao
Na origem do cineclubismo, Lunardelli (2000, p.18) chama ateno para sua
vocao pedaggica:
Contra a percepo ligeira e descartvel, o cineclubismo
buscava valorizar o cinema como cultura, interpondo-se na
relao do espectador com o filme no intuito de criar um
pensamento crtico. Ao mesmo tempo em que propunha uma
forma superior de recepo, o cineclube reconhecia a condio
coletiva do espetculo cinematogrfico ao tomar a forma
associativa como modelo de agrupamento. Considerando seus
elevados ideais, os cineclubes sero, invariavelmente, criados
pelas elites intelectuais, desejosas de constituir um espao de
recepo diferenciada. Revestiam-se de um dissimulado papel
educativo, que est na gnese do cineclubismo, evidenciado na
linha doutrinria adotada pelos cineclubes catlicos.
De acordo com MATELA (2008, p.20), as atividades cineclubistas
cumpriram um papel poltico-pedaggico importante na formao dos brasileiros
que participaram deste movimento durante o Regime Militar:
ofereceu condies para a elaborao de uma perspectiva de
vida voltada para os ideais de liberdade e de concepes ticas e
estticas como fundamentos de constituio dos seres humanos,
no momento em que o conhecimento difundido e ensinado nas
universidades e nas escolas sofria censura por parte das
instituies dominantes.
Hoje, o Movimento Cineclubista acena para que as escolas participem mais, e
melhor, das mediaes que marcam a relao de estudantes/espectadores com o
audiovisual. De acordo com Leite (2012, pp.101-102), na plenria Cineclubes e a
democratizao do acesso produo audiovisual, realizada na Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Alerj, em 12 de dezembro de 2011:
foi recorrente nas falas dos cineclubistas presentes a
necessidade das escolas municipais serem locais de divulgao
do cinema e de formao audiovisual, tornarem-se, portanto
espaos cineclubistas. Esta reivindicao foi direcionada aos
representantes da ASCINE-RJ e das Secretarias Municipais de
Cultura e de Educao do Rio de Janeiro que estavam
presentes.43
43
Infelizmente, a fonte no nos permite saber se eram de diversos municpios do Estado ou se eram apenas as secretarias do municpio do Rio de Janeiro.
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Alm das mencionadas polticas culturais especialmente voltadas para o
incentivo atividade cineclubista, polticas educacionais atuais tambm tm
investido em projetos envolvendo o cinema e o audiovisual, algumas apontando
para o cineclubismo, como o caso do Projeto Cineclube nas Escolas.
O quadro terico do Projeto CNE e tambm desta pesquisa assinala que a
potncia da experincia esttica e as dinmicas de mediao permeiam a forma
como os sujeitos se relacionam com o audiovisual, dentro e fora dos clubes de
cinema. Mas a reviso de literatura tambm aponta que o cineclubista experimenta
uma recepo especial dos filmes e do cinema. De acordo com Gusmo (Gusmo,
2007), em 2003, o discurso do ento secretrio Orlando Senna da Secretaria do
Audiovisual (rgo do MinC) compreendia que:
O cineclube a maneira mais ativa, coletiva e penetrante de
acmulo da cultura cinematogrfica. Ao longo do tempo tem se
mostrado a forma mais dinmica de relacionamento com essa
cultura, pois alm de possibilitar a assistncia de filmes, a
atividade cineclubista pode incluir em sua programao
informao histrica, crtica sobre os filmes e a partir dos
comentrios a reflexo sobre essa exemplar expresso artstica.
(p. 173)
Alguns cineclubes tm uma proposta que define seu carter ou perfil,
orientando toda a sua programao: temas, identidades profissionais ou culturais,
cinematografias especficas, ideologias... pretextos. Outros j preferem ter uma
programao mais aberta. Mesmo nestes casos, temticas ou um recorte podem ser
positivos como um ponto de partida para cada sesso programada, desde que haja
predisposio para uma conversa livre. O professor e cineclubista Miguel Pereira
v o cineclubismo como uma forma de coparticipao, de interao de ideias:
O cineclube no apenas voc ver o filme, mas intercambiar
vises a respeito de filmes. E do ponto de vista da proposta de
ensino e aprendizagem, isso absolutamente fundamental.
Voc nunca aprende sozinho, voc aprende sempre com os
outros. Sejam eles prximos a voc, vis a vis, seja atravs da
leitura ou da viso flmica que voc tenha. Voc est entrando
no universo do outro. Ento, o cineclube um pouco isso, um
processo pedaggico de entrar no espao que o outro abre pra
voc e voc interagir com ele. Ento um processo educativo
fundamental. (PEREIRA, 2012)
Cada grupo e cada contexto definem os caminhos dos debates na prtica
sistemtica, mas estabelecer relaes, colocar ideias em dilogo, desde a concepo
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de cada sesso uma das contribuies mais frteis dos cineclubes, estes espaos de
educao no-formal, para a reflexo sobre a educao formal. Enquanto uma das
principais finalidades desta ltima o desenvolvimento nos indivduos da
capacidade de anlise relacional, justamente esta competncia que permite ao
espectador interpretar e atribuir sentidos, ao que v e ouve, e compartilhar esses
sentidos com outros.
O exerccio de pr em relao discursos e ideias, em torno do universo de
contedos e formas audiovisuais, to importante para a formao de um cidado
crtico e emancipado que, em seu pequeno tratado de transmisso do cinema
dentro e fora da escola, Bergala (2008) constata o prazer do lao (p.68) e
defende uma pedagogia da articulao (p.113). Segundo este autor, o espectador
pode afetar-se por uma obra flmica estabelecendo relaes ntimas e pessoais com
ela. Para ele, isto positivo, mas, a esta apropriao individual, a educao deve
acrescentar o acesso a algo de mais universal do que a satisfao fugid