Auto da Barca do Inferno
Gil Vicente
O autor
Algumas datas:
1460-70: década do nascimento de Gil Vicente
1502: representação da primeira peça
1536: representação da última peça e data provável
da morte do autor.
Gil Vicente, escultura de Francisco Assis
Rodrigues (frontão do Teatro D. Maria II).
A primeira obra de Gil Vicente data de 1502, a última de 1536. A
carreira activa do autor desenrola-se, por conseguinte, sob os
reinados de D. Manuel I (1495- 1521) e D. João III (1521-
1557).
A obra, no seu conjunto, caracteriza o Portugal anterior à
Inquisição, pois termina precisamente em 1536, quando esta foi
introduzida no país.
REINADOS
Um dos problemas maiores que se apresentam no estudo da
biografia do autor é o da identificação do poeta Gil Vicente
com um outro Gil Vicente, ourives muito conhecido na época
e autor da célebre custódia de Belém. Trata-se do mesmo
homem ou de dois homens diferentes?
PROBLEMAS DA SUA BIOGRAFIA
Uma só dessas «folhas» foi conservada até aos dias de hoje e num
só exemplar: a primeira das três Barcas, tradicionalmente designada
por Barca do Inferno, exemplar precioso, que se encontra na
Biblioteca Nacional de Madrid, não traz data, mas remonta
presumivelmente a 1518. Começa com estas palavras: «Auto de
moralidade composto per Gil Vicente por contemplação da
sereníssima e muito católica rainha dona Lianor.» E no final lê-se:
«Auto das Barcas que fez Gil Vicente per sua mão, corregido e
empremido per seu mandado, para o qual e todas suas obras tem
privilégio del-rei nosso senhor, com as penas e do teor que pêra o
Cancioneiro Geral português se houve.» Temos, assim, nesta folha
volante, um texto perfeitamente autêntico da Barca do Inferno.
É GIL VICENTE O FUNDADOR DO TEATRO PORTUGUÊS?
Garcia de Resende, contemporâneo de Gil Vicente e testemunha
particularmente bem informada, falando na sua Miscelânea das
«representações» de mestre Gil, escreve:
Ele foi o que inventou isto cá e o usou com mais graça e mais
doutrina posto que João del Enzina o pastoril começou.
Segundo este testemunho, por conseguinte, Gil Vicente foi o primeiro
que fez representar peças de teatro em Portugal. O seu único
inspirador teria sido o espanhol Juan del Encina.
AS FONTES DE GIL VICENTE
As primeiras peças que ele concebeu são imitações das éclogas dos
poetas de Salamanca Juan del Encina e Lucas Fernández,
chegando até a adoptar a língua deles. Mas, a partir desses
modestos começos, Gil Vicente foi construindo, por
enriquecimentos sucessivos, uma obra de extraordinária Gil Vicente
inspirou-se também na tradição popular portuguesa transmitida
através do folclore e da literatura oral.
A vida de Gil Vicente corresponde aos reinados de:
D. Afonso V (1438-81) D. João II (1481-95)
D. Manuel I (1495-1521) D. João III (1521-57)
É uma época de grandes marcos históricos da Expansão portuguesa:
1486: Bartolomeu Dias dobra o cabo da Boa Esperança;
1498: Vasco da Gama descobre o caminho marítimo para a Índia;
1500: Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil.
A época
Gil Vicente escreveu cerca de 50 peças
de teatro, em português e castelhano,
muitas por encomenda real.
As peças eram representadas na corte,
na qual o dramaturgo teve a proteção
da rainha D. Leonor (viúva de D. João II),
de D. Manuel I e de D. João III.
A obra vicentina é influenciada pelo teatro
medieval e pela época em que o autor viveu.
O dramaturgo
Gil Vicente Representa na Corte,
Roque Gameiro.
As influências medievais
Na Idade Média, realizaram-se em Portugal representações
dramáticas. Tinham um caráter simples e versavam temas religiosos
ou profanos, como acontecia por toda a Europa. Consoante
a temática, existiam diferentes géneros ou tipos de peças.
Géneros do teatro pré-vicentino
Teatro religioso: mistérios; milagres; moralidades.
Teatro profano: momos; entremezes; farsas.
O contexto histórico: matéria para crítica
É uma época de grandes transformações, no auge das Descobertas,
com reflexos na vida da capital e na sociedade portuguesa:
D. Manuel I, em 1505, sai dos velhos paços reais da Alcáçova
de Lisboa e vai para um palácio à beira-rio;
A Corte aumenta, multiplicando-se os cargos pagos pelo Estado;
A nobreza perde o seu caráter militar e assume postos de chefia,
de cariz burocrático;
Muitos portugueses tentam fortuna na América do Sul e no
Oriente;
Muitos produtos e pessoas de outros continentes chegam a Lisboa.
Características da obra vicentina
A nível formal:
Gil Vicente não dividiu a sua obra
em atos e cenas (característica
medieval), apesar de existir, por
exemplo, entrada e saída de
personagens;
Composição em heptassílabos
(redondilha maior), de rimas
regulares.
Frontispício da Compilaçam de todalas
obras de Gil Vicente, 1562.
A nível do conteúdo:
Crítica materializada em personagens-tipo, que representam
grupos sociais, e crítica de atitudes e comportamentos gerais,
como a ganância ou a infidelidade conjugal;
Intenção didática, isto é, denúncia de comportamentos visando
uma reflexão e mudança por parte do público.
A nível estilístico:
Uso de recursos expressivos (por exemplo, metáfora, ironia)
Utilização de uma linguagem coloquial, marcada por alguns
arcaísmos de emprego frequente na época.
A Barca do Inferno é uma peça de riqueza
excecional.
É uma evocação de certos tipos sociais do
Portugal quinhentista.
É também uma sátira feroz contra os
grandes e os poderosos ― o aristocrata
orgulhoso, o frade dissoluto, o juiz corrupto
― mas não poupa os pecadores de condição
mais modesta.
Argumento da peça
O Auto da Barca do Inferno integra uma trilogia cujo ponto comum
é o julgamento das almas depois da morte:
Auto da Barca do Inferno (1517);
Auto da Barca do Purgatório (1518);
Auto da Barca da Glória (1519).
A ação da peça ocorre depois de as personagens terem morrido.
Estas chegam ao cais de um rio (elemento da mitologia clássica),
onde há dois barcos (barcas ou batéis): um é conduzido pelo Anjo
e leva ao Paraíso; o outro é conduzido pelo Diabo e leva ao Inferno.
Símbolos
Cais do rio o lugar aonde chegam as almas para serem
julgadas
Barcas a viagem para o Céu ou para o Inferno,
consoante a vida terrena das personagens
Anjo e Diabo o Bem e o Mal (Alegoria)
Rio o percurso para a Glória ou para a Perdição
Personagens
As personagens centrais são o Anjo
e o Diabo, que tem um companheiro
no barco. Encontram-se dentro
dos seus barcos, à proa, no cais do rio.
As personagens que vão surgindo,
os que morrem, dirigem-se ao cais
e vão alternando entre uma barca
e outra, no processo de julgamento
da sua alma.
Movimentação
O percurso das personagens é quase sempre o mesmo:
1) chegam ao cais
2) dirigem-se à barca do Diabo
3) recusam-se a entrar
4) vão à barca do Anjo, são rejeitadas
5) aceitam a condenação.
Há, porém, quatro personagens que não seguem este esquema.
Personagens
Julgamento
Cada réu conta com o Anjo e o Diabo como advogados de acusação.
A defesa cabe à própria personagem, que apresenta os argumentos
pelos quais deve ser salva.
A sentença, que é sobretudo de condenação, tanto pode ser
proferida pelo Anjo como pelo Diabo.
Sequência das personagens
São onze as personagens que chegam ao rio:
• Fidalgo
• Onzeneiro
• Joane (o Parvo)
• Sapateiro
• Frade
• Alcoviteira
• Judeu
• Corregedor
• Procurador
• Enforcado
• Quatro Cavaleiros
Veredicto
Salvam-se Joane (o Parvo) e os Quatro Cavaleiros, entrando
na barca do Anjo. As restantes entram na barca do Diabo, tendo
sido condenadas ao Inferno.
Fidalgo
Elementos/símbolos cénicos
Pajem- desprezo pelos mais pobres
Manto -vaidoso
Cadeira - julgava-se importante e poderoso
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Altivez, soberba, arrogância:
«Pera vossa fantesia / mui pequena é esta barca.» (vv. 87-88)
«desprezastes os pequenos» (v. 104)
Vida de prazeres:
«Do que vós vos contentastes.» (v. 65)
Intenção crítica
Crítica à nobreza, mostrando a sua vaidade e presunção;
Denúncia da exploração dos mais desfavorecidos e da tirania
com que os fidalgos tratam o povo;
Denúncia da infidelidade conjugal.
Onzeneiro
Elemento/símbolo
Bolsa.
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Ganância, ambição:
«Mais quisera eu lá tardar. / Na safra do apanhar» (vv. 188-189);
Usura:
«pois que onzena tanto abarca / nam lhe dais embarcação?»
(vv. 226-227)
«[…] esse bolsão / tomará todo navio.» (vv. 220-221)
Intenção crítica
Denúncia do enriquecimento fácil e rápido pelos elevados juros
cobrados em empréstimos de dinheiro a pessoas necessitadas;
Ambição desmedida.
PERSONAGEM- TIPO
Representa a Nobreza (representa os seus vícios,
tirania, vaidade, arrogância e presunção)
Referência ao pai de Don Anrique porque é uma
denuncia social, porque também o pai do Fidalgo
já tinha entrado na Barca do Inferno, isto é, toda a
classe nobre tinha os mesmos pecados.
Joane, o Parvo
Elementos/símbolos
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Intenção crítica
Enaltecimento dos «pobres de espírito»;
Valorização da simplicidade e da inocência.
Aspetos valorizados
Simplicidade de espírito, ausência de malícia (não é dissimulado,
cínico nem fingido):
«Tu passarás se quiseres / porque em todos teus fazeres / per malícia nam
erraste. / Tua simpreza t’abaste / pera gozar dos prazeres.»
(vv. 313-317)
Sapateiro
Elementos/símbolos
Avental;
Formas de calçado.
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Desonestidade na profissão:
«tu roubaste bem trinta anos / o povo com teu mister.»
(vv. 341-342); «Essa barca que lá está /
leva quem rouba de praça.» (vv. 365-366)
Falta de postura e de educação:
«nem à puta da badana» (v. 356)
Intenção crítica
Denúncia dos que roubam através da profissão;
Denúncia da prática religiosa hipócrita.
Frade
Elementos/símbolos
Moça;
Escudo (broquel) e espada;
Capacete (casco).
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Vida de prazeres: «e folgar com ũa molher /
se há um frade de perder» (vv. 421-422)
Vida de cortesão: «Deo gracias, sam cortesão.»
(v. 384); «Dê vossa reverência lição /
d’esgrima que é cousa boa.» (vv. 434-435)
Intenção crítica
Crítica ao Clero que não seguia as regras de conduta da classe
(castidade e comportamento moral exemplar);
Denúncia da falta de vocação dos seus membros e da contradição
entre os comportamentos e os valores morais.
Alcoviteira
Elementos/símbolos
São vários e enumerados pela
personagem (vv. 506-520), todos
relacionados com a sua atividade.
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Prática de lenocínio:
«eu sou Brísida a preciosa / que dava as moças òs
molhos. // A que criava as meninas / pera os cónegos
da sé.» (vv. 539-542); «tantas cachopas com’eu /
todas salvas polo meu» (vv. 550-551)
Intenção crítica
Denúncia da prática da prostituição
e dos seus agentes;
Denúncia da dissolução dos costumes
por parte do Clero.
Judeu
Elemento/símbolo
Bode (às costas).
Movimentação
Barca do Diabo
Vai a reboque
Aspetos criticados
Sobrevalorização do dinheiro: «Passai-me por meu dinheiro.» (v. 578);
Desprezo pelo catolicismo (por isso vai a reboque
da barca do Diabo): «E s’ele mijou nos finados /
no adro de sam Gião. // E comia a carne da panela /
no dia de nosso senhor» (vv. 611-614)
Intenção crítica
Denúncia do fanatismo religioso dos Judeus
e do seu apego exagerado ao dinheiro;
Crítica à teimosia dos Judeus que recusavam
a conversão ao catolicismo.
Corregedor
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Elementos/símbolos
Processos judiciais («feitos»);
Vara (na mão).
Aspetos criticados
Corrupção: «Quando éreis ouvidor / nonne accepistis rapina? (vv. 658-659)
Falta de consciência religiosa: «Eu mui bem me confessei / mais tudo
quanto roubei / encobri ao confessor.» (vv. 715-717)
Intenção crítica
Denúncia da prática fraudulenta da justiça
e da corrupção dos agentes envolvidos
nos processos judiciais;
Denúncia da decadência dos valores ético-morais (ocultação
dos pecados mais graves aquando do sacramento da confissão).
Procurador
Elementos/símbolos
Livros.
Movimentação
Barca do Diabo
Barca do Anjo
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Corrupção: «Bacharel sou dou-me ò demo.»
(v. 711)
Aceitação de dinheiro: «e é muito mau
de volver / depois que o apanhais.»
(vv. 720-721)
Intenção crítica
Denúncia da prática fraudulenta da justiça
e da corrupção dos agentes envolvidos nos
processos judiciais.
Enforcado
Elemento/símbolo
Corda (baraço).
Movimentação
Barca do Diabo
Aspetos criticados
Ausência de consciência: «que fui bem aventurado /
que polos furtos que eu fiz / sou santo canonizado» (vv. 769-771)
Desvalorização da justiça divina: «Se Garcia Moniz diz /
que os que morrem como eu fiz / são livres de Satanás.»
(vv. 779-781)
Intenção crítica
Denúncia das falsas doutrinas que altos funcionários
da Corte transmitiam a criminosos e ladrões;
Condenação da ideia de que a justiça humana substitui
a Justiça Divina.
Quatro Cavaleiros
Elementos/símbolos
Cruz de Cristo;
Espadas e escudos.
Movimentação
Barca do Anjo
Intenção crítica
Louvor pelo desprendimento dos bens
terrenos;
Apologia do espírito de Cruzada na luta
contra os Mouros.
Aspetos valorizados
Sacrifício e morte pela fé cristã:
«morremos nas partes dalém / e nam queirais saber mais.» (vv. 854-855);
«Ó Cavaleiros de Deos / a vós estou esperando /
que morrestes pelejando / por Cristo senhor
dos céus.» (vv. 856-859)