As várias faces de Baudelaire
Margarete HÜLSENDEGER1
Resumo
Este artigo tem por objetivo apresentar ideias de diversos autores sobre a poesia de
Charles Baudelaire. Para atingir esse objetivo foram analisados diversos poemas do
poeta francês extraídos de sua obra fundamental As flores do mal. Procurou-se a partir
da seleção de textos de alguns teóricos importantes – Walter Benjamin, Paul Valéry,
Alfonso Berardinelli, Hugo Friedrich, entre outros – analisar os vários aspectos da
poética de Baudelaire, procurando traçar um perfil, ainda que incompleto, das várias
faces desse poeta que acreditou que só conseguiria a poesia perfeita captando o noturno
e o anormal.
Palavras-chave: Charles Baudelaire. Poesia. Crítica Poética.
Abstract
This article aims to present ideas from various authors about the poetry of Charles
Baudelaire. To reach this goal were analyzed several poems of the french poet,
extracted from his fundamental work As flores do mal. From a selection of texts of some
important theorists – Walter Benjamin, Paul Valéry, Alfonso Berardinelli, Hugo
Friedrich, among others – it was analyzed the various aspects of Baudelaire's poetics,
trying to trace a profile, even if incomplete, of the many faces of this poet who believed
that he could only achieve perfect poetry,by capturing the nocturnal and the abnormal.
Keywords: Charles Baudelaire. Poetry. Poetic Criticism.
O Estrangeiro
1 Ma. em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. Ma. em Teoria da Literatura/PUCRS.
Doutoranda em Teoria da Literatura/PUCRS (CAPES). E-mail
acadêmico:[email protected]. E-mail pessoal: [email protected]. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5215940595095768
- De quem gostas mais homem solitário? De teu pai, de tua mãe, de
tua irmã ou irmão?
- Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
- Dos teus amigos?
- É uma expressão de que não sei o sentido.
- Da tua pátria?
- Não sei onde está situada.
- Da beleza?
- Amá-la-ia se a conhecesse, e a sua imortalidade.
- Do oiro?
- Odeio-o tanto como vós a Deus.
- Então que amas tu, singular estrangeiro?
- Amo as nuvens... as nuvens que passam... lá longe... as maravilhosas
nuvens!
(BAUDELAIRE, 2007, p. 3).
Em nove de abril de 1821 nascia, em Paris, Charles Baudelaire. Considerado o
poeta precursor do modernismo – expressão criada por ele (FRIEDRICH, 1978) – e
teórico da “poesia pura” (BERARDINELLI, 207). Segundo Paul Valéry (2007), é
graças a Baudelaire que a poesia francesa ultrapassou as fronteiras da nação e para
Hugo Friedrich (1978), ele conseguiu reunir um gênio poético a uma inteligência
crítica. Um homem preso em uma espécie de paralisia letárgica da vontade,
paradoxalmente vivendo às voltas com o caos no qual se transformou a sua vida,
incapaz de encontrar, em sua existência, algum tipo de ordem (BERARDINELLI,
2007).
Como explica Marcel Raymond (1997), Baudelaire sempre foi atraído e repelido
pelos extremos, o que acabou por imobilizá-lo em seu próprio centro. Perseguido
durante toda a sua vida por um “horror estático” que o mantinha isolado, mas que
também o transformava em uma força em si mesmo. Um horror que, mesmo tornando-o
“insaciavelmente sedento”, o enchia de orgulho:
- Deste céu bizarro e nevoento,
Convulso como o teu destino,
À tua alma que pensamento
Desce? responde, libertino.
- Insaciavelmente sedento
Do que não vejo e não defino,
Reprovo a Ovídio o seu lamento
Quando se foi do Éden latino.
Céus destroçados e tristonhos,
De vós o meu orgulho é fruto;
Vossas grossas nuvens de luto
São os esquifes de meus sonhos,
E vosso espectro a imagem traz
Do Inferno que à minha alma apraz
(BAUDELAIRE, 2012, p. 293).
Por essa razão, um sentimento de vazio sempre esteve no âmago da idealidade
pretendida por Baudelaire. Idealidade que se construía em uma tensão sem saída e no
mistério de uma alma extraordinariamente complexa. Sua poética, como esclarece
Friedrich (1978), baseava-se na desconcretização, no sentindo de mistério, nas forças
mágicas da linguagem e da fantasia absoluta.
Com uma vida turbulenta, odiando o padrasto, envolvendo-se com prostitutas,
viciado em ópio, perseguido pelos credores, morreu prematuramente, com apenas 46
anos, tendo, por conta disso, de seguir o caminho mais curto na elaboração de sua
poética (VALÉRY, 2007). Ele, então, vai procurar o que se é, o que se pode e o que se
quer e unir em si mesmo as virtudes espontâneas de um grande poeta (VALÉRY, 2007).
De tal maneira que a poesia de Baudelaire se tornou uma combinação de matéria e
espírito, um misto de solenidade, calor, angústia, do que é eterno e íntimo.
Segundo Alfonso Berardinelli, “Baudelaire sabe que fracassa como autor da
própria vida, como esteta e como dandy, por isso deve vencer como poeta”
(BERARDINELLI, 2007, p. 44). Portanto, escrever sobre Baudelaire não é uma tarefa
simples. Contudo, para tornar o processo um pouco menos árido, é possível recorrer às
vozes de diferentes autores que, se lidos em conjunto, ajudarão a compreender melhor a
poética de Charles Baudelaire. A combinação dessas distintas vozes também servirá
para traçar um perfil, ainda que incompleto, das várias faces desse poeta que, apesar de
odiar o próprio corpo e o coração, soube agarrar-se a eles amorosamente (RAYMOND,
1997).
O Inimigo
A juventude não foi mais que um temporal,
Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
As chuvas e os trovões causaram dano tal
Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.
Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
E agora o ancinho e a pá se fazem necessários
Para outra vez compor o solo lamacento,
Onde profundas covas se abrem como ossários.
E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Não achem nessa gleba aguada como praia
O místico alimento que as fará radiosas?
Ó dor! O Tempo faz da vida uma carniça,
E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
No sangue que perdemos se enraíza e viça!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 151–153).
A Revolução Industrial, iniciada no século XVIII, modificou de maneira
irrevogável a face da sociedade. As cidades transbordavam de pessoas, a maioria delas
oriundas do campo, fugindo da fome e de um futuro ausente de perspectivas. Indústrias
surgiram, transformando o que antes eram pequenos povoados em grandes centros
urbanos cheios de movimento.
A infância de Baudelaire foi marcada pela mudança radical do mundo que o
cercava. Com apenas oito anos ele pôde ver circular pelas ruas de Paris carruagens
movidas a vapor. Estruturas barulhentas que jogavam toneladas de fumaça no ar e
destruíam as estradas. Também deve ter presenciado o aparecimento da iluminação a
gás, trazendo mais segurança às cidades, mas, ao mesmo tempo, expulsando as estrelas
do cenário das movimentadas metrópoles. Essas e muitas outras mudanças podem tê-lo
afetado fortemente, fazendo com que, desde muito cedo, encarasse esse novo mundo,
que surgia diante de seus olhos, como uma ameaça; algo, portanto, a ser combatido.
E as mudanças não foram apenas de ordem social e econômica, mas também
política. Quando Baudelaire nasceu, em abril de 1821, menos de um mês depois morria
Napoleão Bonaparte, encerrando definitivamente uma época. Segundo Berardinelli,
Baudelaire terá, então, de lidar durante toda a sua vida com “uma burguesia retórica,
sentimental, comerciante e usurária”, que encarnava “na forma mais clássica o culto do
Útil e do Progresso” (BERARDINELLI, 2007, p. 45). E será contra ela que Baudelaire
se empenhará numa luta que será um misto de desafio e autodefesa, pois, para ele, a
burguesia encontrava-se nas garras de um “demônio/vampiro” que sabia apenas morder,
sugar e escravizar a alma de quem a ela se submetia:
Tu que, como uma punhalada,
Em meu coração penetraste,
Tu que, qual furiosa manada
De demônios, ardente, ousaste,
De meu espírito humilhado,
Fazer teu leito e possessão
- Infame à qual estou atado
Como o galé ao seu grilhão,
Como ao baralho o jogador,
Como à carniça o parasita,
Como à garrafa o bebedor
- Maldita sejas tu, maldita!
...
Ai de mim! com mofa e desdém,
Ambos me disseram então:
“Digno não és de que ninguém
Jamais te arranque à escravidão,
Imbecil! – se de teu retiro
Te libertássemos um dia,
Teu beijo ressuscitaria
O cadáver de teu vampiro!”
(BAUDELAIRE, 2012, p. 193).
Assim, em sua ânsia de combatê-la, viu-se forçado a inventar um mundo o mais
distante possível de uma classe social que desprezará até o dia da sua morte. A própria
expressão “modernidade”, cunhada por ele, expressa a aptidão do poeta de ver, na
esterilidade desse momento, não só a decadência do homem, mas também a beleza
misteriosa ainda não descoberta (FRIEDRICH, 1978). Para Friedrich (1978), Baudelaire
mediu em si mesmo todas as fases desse período, acreditando que só conseguiria a
poesia perfeita captando o noturno e o anormal.
O poeta viu-se, então, tomado por um sentimento anticientificista que se tornou
ainda mais intenso com o surgimento da fotografia. Para ele, a fotografia representava
uma reprodução limitada do real, colaborando para restringir o universo com a perda do
mistério e da força da fantasia (FRIEDRICH, 1978). A técnica transformou-se em um
de seus “inimigos”, pois cooperava com a burguesia emergente. Logo, para se proteger
da moral burguesa, Baudelaire criou uma moral individualista e negativa.
No entanto, paradoxalmente, segundo Walter Benjamim (1989), Baudelaire
encarnava o autor por excelência do século XIX. É ele que revela pela primeira vez a
cidade como forma e temática moderna:
A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.
Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.
Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 331-332).
Nesse poema, a atração pela transeunte pode ser também interpretada como o
amor estigmatizado à metrópole. Baudelaire vê o flâneur, o andarilho, como um
“observador apaixonado” das cidades e das multidões que as compõem, “um pintor do
circunstancial e tudo o que este sugere de eterno” (BENJAMIN, 1989).
A existência de Baudelaire foi, portanto, um jogo de contrastes. De um lado sua
aversão à técnica e à ciência, uma das faces de uma burguesia que depreciava. Do outro,
o homem que, segundo Benjamim (1989), mesmo gostando de estar só, preferia sentir-
se isolado no meio da multidão.
O Príncipe da Altura
Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.
Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.
Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!
O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar
(BAUDELAIRE, 2012, p. 135–137).
Apesar de ter nascido sob o signo dos românticos, Baudelaire decidiu romper com
eles. Não o fez completamente, mas esforçou-se. Assim, enquanto os românticos não se
preocupavam com o rigor ou a profundidade, Baudelaire construiu uma obra perfeita na
síntese e cujos elementos psíquicos e musicais entraram todos num sistema
infinitamente complexo e coerente de relações recíprocas (RAYMOND, 1997). Como
explica Marcel Raymond, Baudelaire soube dar atenção a “algumas das mais violentas
reivindicações do romantismo” (RAYMOND, 1997, p. 16).
Do mesmo modo, enquanto os românticos acreditavam que a paixão e a
inspiração bastavam a si mesmas, Baudelaire lutou por despersonalizar a lírica,
neutralizando o coração pessoal. Para o poeta, a inspiração estaria carregada de uma
subjetividade impura. Logo, quando compõe poesias, ele mal olha para si mesmo e sua
lírica adquire coragem para ser anormal (FRIEDRICH, 1978).
E nesse universo cheio de dissonâncias e contrastes, Baudelaire não se importava
em trazer à vida figuras grotescas e bizarras. Ao contrário. Os conteúdos de sua poética
estavam além do limite do compreensível, sem pretender em nenhum momento
comunicar verdades ou trazer algum tipo de consolo. Sua poesia revela-se menos
sentimental e mais psíquica do que a dos primeiros românticos, estabelecendo como um
de seus objetivos sensibilizar as regiões mais obscuras do espírito (RAYMOND, 1997).
Portanto, para Baudelaire não era estranho escrever um poema no qual a beleza de
uma manhã radiante e palavras aparentemente afetuosas ocupassem o mesmo espaço
poético de um corpo em decomposição na beira de uma estrada. Afinal, uma das
características mais importantes de sua poesia era saber harmonizar o extraordinário e o
louco:
Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.
As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.
...
E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.
...
Então querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 187–189).
Baudelaire elegeu como belo o que convencionalmente era visto como feio e
repugnante. Ele achava banal, comum e vulgar o que os outros consideravam raro. A
prostituta, por exemplo, era mais sugestiva e atraente que a esposa de maneira que, para
ele, a verdadeira prostituição se encontrava no casamento (BERARDINELLI, 2007, p.
55). Situações construídas para chocar e, por consequência, afastá-lo da moral burguesa
que tanto combatia:
Porias o universo inteiro em teu bordel,
Mulher impura! O tédio é que te torna cruel
Para teus dentes neste jogo exercitar,
A cada dia um coração tens que sangrar.
Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.
Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Como não te envergonhas ou não vês sequer
Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
A grandeza do mal de que crês saber tanto
Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
- A ti, vil animal -, para um gênio forjar?
Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 179).
Por outro lado, apesar das imagens grotescas e bizarras de muitos de seus poemas,
Baudelaire tem uma voz que, por instantes, cede à eloquência, mas também conserva e
desenvolve quase sempre uma linha melódica e uma sonoridade que a distingue
(VALÉRY, 2007). Ele soube desenvolver o tema romântico da rebelião e da fuga até o
mais alto grau do trágico, de forma que suas dissonâncias internas se tornaram
dissonâncias entre a obra e o leitor. O leitor, portanto, precisa compreender essa “nova
beleza”, entregando-se a ela sem preconceitos, pois Baudelaire, não crendo na
divinização do humano, não trará redenção, mas apenas mais mistérios para serem
desvendados.
Um Abismo Infinito
A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;
...
Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões
No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 271–273).
Segundo Paul Valéry, a “Poesia é uma arte da Linguagem; certas combinações de
palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos
poética” (VALÉRY, 2007, p. 205, grifo do autor). Quando se analisa o universo poético
de Baudelaire, percebe-se que a sua linguagem se encontra em continuo movimento:
“cada frase gera outra frase; cada frase diz algo diferente e todas dizem o mesmo”
(PAZ, 1984, p. 97). Assim, o mundo, para ele, não seria um conjunto de coisas, mas de
signos, escritos em uma linguagem secreta. E é na linguagem que Baudelaire acreditava
que estaria a salvação da poesia.
Sua luta para dar sentido a cada frase e ir além do simples discurso o fez, por
exemplo, utilizar em vários de seus poemas o oxymoron – antiga forma de discurso
poético que reúne duas palavras contraditórias – tentando assim aproximar o que é
naturalmente incompatível:
Jamais serão essas vinhetas decadentes,
Belezas pútridas de um século plebeu,
Nem borzeguins ou castanholas estridentes,
Que irão bastar a um coração igual ao meu
(BAUDELAIRE, 2012, p. 165).
O sol crestou nos castiçais as chamas frias;
Assim, triunfante, o teu fantasma se parece,
Alma radiosa, ao sol que eterno resplandece!
(BAUDELAIRE, 2012, p. 223).
Certa noite bem junto a uma horrenda judia,
Como ao longo de um morto outro morto estendido,
Pus-me a pensar ao pé desse corpo vendido
Na beleza infeliz que aos olhos me fugia
(BAUDELAIRE, 2012, p. 195)
Segundo Friedrich (1978), a construção de As Flores do Mal comprova a distância
que separou Baudelaire do Romantismo. Ele queria fazer algo diferente e, para fazê-lo,
procurou exagerar todas as fraquezas e lacunas do movimento romântico. Mesmo
admirando Victor Hugo – dedicou a ele vários poemas, entre eles: As Velhinhas, O
Cisne e Os Sete Velhos –, descobriu suas falhas e pontos vulneráveis, preocupando-se
em se afastar de todos os aspectos nos quais ele era invencível. Além disso, aproximou-
se das abstrações matemáticas (conceito de cálculo, formas métricas) e das curvas
melódicas da poesia, consagrando-se e consumindo-se ao tentar definir e construir uma
linguagem dentro da linguagem que o coloca em oposição ao sistema com o qual
desejava romper (VALÉRY, 2007).
Assim, na opinião de Friedrich (1978) As Flores do Mal são o livro arquitetônico
mais rigoroso da lírica moderna. Segundo ele, não se trata de uma lírica obscura. Ao
contrário. Seus estados de consciência anormais, seus mistérios e dissonâncias se
expressam em versos compreensíveis e em uma teoria poética clara. Não há tiradas
filosóficas e as descrições são raras e sempre significativas. As Flores do Mal, para
Valéry (2007), é luxo, forma e volúpia e, para Octávio Paz (1984), um mundo que perde
a sua realidade e se transforma numa figura de linguagem.
O mais triste dos alquimistas
Um te ilumina com ardor,
O outro te enluta, Natura!
O que diz a um: Sepultura!
Ao outro diz: Vida e esplendor!
Hermes que oculto me conquistas
E para sempre me intimidas,
Tu me fazes igual a Midas,
O mais triste dos alquimistas
(BAUDELAIRE, 2012, p. 291).
Baudelaire era, simultaneamente, um espiritualista e um materialista, um
prisioneiro de seus desejos e de suas “percepções obscuras”. Ele acreditava não só no
Mal, mas também no demônio. Essa crença acabou por tornar-se uma fonte constante de
imagens e um recurso para a construção de cruéis cenografias de efeito
(BERARDINELLI, 2007). Em As duas boas irmãs, a morte e os prazeres da carne
ocupam o mesmo espaço, oferecendo um vislumbre dos problemas enfrentados pelo
próprio autor:
A Orgia e a Morte são duas jovens graciosas,
Fartas de beijos e de frêmito incontido,
Cujo ventre engastado em ancas andrajosas
Jamais logrou um fruto em si ter concebido.
Ao poeta infausto, hostil às famílias virtuosas,
Favorito do inferno e cortesão falido,
Caves e tumbas oferecem, generosas,
Um leito em que o pesar jamais foi recebido.
A sepultura e a alcova, em blasfêmias fecundas,
Nos dão de quando em vez, como boas irmãs,
Os prazeres do horror e as carícias malsãs.
Hás de enterrar-me, Orgia, em tuas covas fundas?
Quando virás, ó Morte, envolta em negras vestes,
Sobre os mirtos em flor plantar os teus ciprestes?
(BAUDELAIRE, 2012, p. 383 385).
Do mesmo modo, o mísero, o decadente, o mau e o artificial se tornaram matérias
estimulantes para Baudelaire, pois contêm mistérios que guiam a poesia a novos
caminhos (FRIEDRICH, 1978). A deformação era entendida em um sentindo positivo,
porque era nela que reinava a força do espírito. Daí a presença de alegorias infernais e
grotescas:
No tempo em que, com verve tal que nos espanta,
Gerava a Natureza o ser mais fabuloso,
Quisera eu ter vivido aos pés de uma giganta,
Qual junto a uma rainha um gato voluptuoso.
Me agradaria ver-lhe o corpo e a alma em botão
E após segui-la em seus insólitos folguedos;
Saber se a alguma chama lhe arde ao coração
Sob as úmidas névoas de seus olhos quedos;
Tatear-lhe as formas como quem percorre espelhos;
Ascender à vertente de seus grandes joelhos,
E às vezes, no verão, quando tangente ao solo,
O sol violento a deixa exausta na campina,
Dormir languidamente à sombra de seu colo,
Como um burgo tranquilo ao pé de uma colina
(BAUDELAIRE, 2012, p. 167).
No entanto, Baudelaire tinha consciência de uma unidade de vida psíquica. Na sua
poesia, “Em lugar de um ‘jogo de azar’ a arte do poeta tornava-se uma ‘feitiçaria
evocatória’, uma função sagrada” (RAYMOND, 1997, p. 23). Ele tomava do mundo
visível o que precisava para criar uma visão simbólica de si mesmo ou de seu sonho. A
sua poesia abria, então, uma janela para um mundo além do espiritual, permitindo ao
“eu” lírico escapar-se e dilatar-se até o infinito (RAYMOND, 1997). A realidade de
Baudelaire era, portanto, como “uma floresta de símbolos”, que ele precisava interpretar
para atingir o seu sentido oculto.
A estética baudelariana não é, portanto, uma cópia do real, ela emerge por efeito
de choque. Baudelaire provoca uma transformação, criando uma realidade repleta de
paradoxismos, parcialidades e obliquidades (BERARDINELLI, 2007). Nessa
desconstrução do mundo que o cerca ele mistura musas, anjos e demônios no mesmo
cadinho alquímico. Move-se entre figuras mitológicas e personagens vulgares. Recria
uma Paris – a sua Paris – a partir de imagens grotescas que saem à rua sem pretender
esconder a sua verdadeira face. Era um poeta obcecado, possuído por seu próprio
demônio interior:
Grandes bosques, de vós, como das catedrais,
Sinto pavor; uivais como órgãos; e em meu peito,
Câmara ardente onde retumbam velhos ais,
De vossos De profundis ouço o eco perfeito.
Te odeio, oceano! Teus espasmos e tumultos,
Em si minha alma os tem; e este sorriso amargo
Do homem vencido, imerso em lágrimas e insultos,
Também os ouço quando o mar gargalha ao largo.
Me agradarias tanto, ó noite, sem estrelas
Cuja linguagem é por todos tão falada!
O que procuro é a escuridão, o nu, o nada!
Mas eis que as trevas afinal são como telas,
Onde, jorrando de meus olhos aos milhares,
Vejo a me olharem mortas faces familiares
(BAUDELAIRE, 2012, p. 289).
Um Ícaro de asas quebradas
Eu quis do espaço em toda parte
Achar em vão o fim e o meio;
Não sei sob que olho de ígneo veio
Minha asa eu sinto que se parte;
E porque o belo ardeu comigo,
Perdi a glória e o benefício
De dar meu nome ao precipício
Que há de servir-me de jazigo
(BAUDELAIRE, 2012, p. 455).
Em 31 de agosto, morria de sífilis, em Paris, Charles Baudelaire. Sua morte
prematura o impediu de realizar o projeto da edição final de As Flores do Mal. Ele foi
enterrado no Cemitério de Montparnasse no mausoléu reservado a sua família. Poder-
se-ia pensar em qual teria sido sua reação se soubesse que sua “morada final” seria ao
lado da pessoa que mais odiou, o general Jacques Aupick, seu padrasto.
Para Paul Valéry, “O que fica de um homem é o que o seu nome e as obras que
fazem desse nome um sinal de admiração, de raiva ou de indiferença provocam na
imaginação” (VALÉRY, 2007, p. 131). Baudelaire, sem nenhuma dúvida, se enquadra
em quase todos os pré-requisitos listados por Valéry. Ele foi, e ainda é, admirado e, com
certeza, despertou muita raiva em todos aqueles que, ao lerem seus poemas, não
souberam entendê-lo, rotulando-o de poeta vulgar e maldito. No entanto, Baudelaire
sempre esteve muito longe de provocar indiferença. Basta lembrar que, em 1857,
quando As Flores do Mal foram publicadas, seis dos seus poemas foram proibidos pela
seção de Segurança Pública do Ministério do Interior por serem considerados
obscenos2. Em 1861, quando acrescentou mais 35 poemas, Baudelaire, enfim, alcançou
certo grau de notoriedade, seu trabalho sendo elogiado por escritores famosos, como
Gustave Flaubert e Victor Hugo. Eles o viram como alguém que trazia uma nova força
ao sistema literário vigente, o Romantismo.
É claro que Flaubert e Victor Hugo não poderiam estar mais equivocados quanto
às intenções de Baudelaire. Afinal, seu objetivo nunca foi o de revitalizar o
Romantismo, mas sim o de romper com ele. Ele sabia que poderia tornar-se um grande
poeta, mesmo não sendo Lamartine, Hugo ou Musset (VALÉRY, 2007). Assim,
Baudelaire precisou se distinguir, desligar-se, desses grandes nomes para que sua poesia
pudesse ser reconhecida.
Esse esforço fez com que ele recorresse a estratégias que o tornariam não só
diferente dos românticos, mas principalmente único no seu gênero. No poema
Correspondências ele deixa claro seu projeto de uma poesia descolada do Romantismo.
Segundo Gomes, “verdadeira profissão de fé simbolista, o poema iria influenciar poetas
das mais diferentes latitudes, graças a seu idealismo e à proposta da união entre o
homem e a Natureza através das chamadas sinestesias” (GOMES, 1985, p. 33–34):
A Natureza é um templo vivo em que os pilares
2 Essa informação consta no livro As flores do mal, editado pela Nova Fronteira (Saraiva de Bolso, em
2012, no capítulo “Calendário baudeleriano”, na página 36).
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com seus olhos familiares.
Como ecos longos que à distância se matizam
Numa vertiginosa e lúgubre unidade,
Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade,
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.
Há aromas frescos como a carne dos infantes,
Doces como oboé, verdes como a campina,
E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes,
Com a fluidez daquilo que jamais termina,
Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente,
Que a glória exaltam dos sentidos e da mente.
Amo a recordação daqueles tempos nus
Quando Febo esculpia as estátuas na luz
(BAUDELAIRE, 2012, p. 139-141).
Sua poesia tendeu para a expressão das imagens do cotidiano, observando a
mudança radical provocada pelo surgimento das grandes metrópoles, com suas
multidões e tecnologias que restringiam o universo. E talvez tenha sido o temor de
perder o contato com a fantasia e o mistério que o fez querer aspirar não a cópia fácil do
real, mas a sua transformação. E nessa tarefa de transformar o real, a poesia de
Baudelaire rompeu com a pretensão de transmitir verdades ou “embriagar o coração”. O
poeta não via necessidade de comunicar absolutamente nada, considerando qualquer
tipo de subjetividade como algo exagerado.
Baudelaire tomou como modelo Edgar Allan Poe após traduzir a maioria das suas
obras. Segundo Valéry (2007), Baudelaire encontrou nas obras de Poe um novo mundo
intelectual. Eles trocaram valores: “Um dá ao outro o que tem; e recebe o que não tem”
(VALÉRY, 2007, p. 27). Assim, Poe entregou a Baudelaire um sistema completo de
pensamentos novos e profundos e em troca Baudelaire deu ao pensamento de Poe uma
extensão ilimitada.
De qualquer maneira, Baudelaire, diante da natureza exterior, viu não uma
realidade que existia por si mesma e para si mesma, porém um imenso reservatório de
analogias e também uma espécie de estimulante para a imaginação (RAYMOND,
1997). Ele passou praticamente toda a sua vida na busca do sonho de um éden, mesmo
que tais sonhos estivessem povoados de demônios, vampiros e megeras. As Flores do
Mal, assim como Poemas em Prosa – considerado por Berardinelli a obra prima da
literatura moderna – são uma pequena amostra de um trabalho, misto de observador e
alquimista, de um homem que se viu como um Ícaro que fraturou suas asas por ter ido
além do chão.
Referências
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Trad. Ivan Junqueira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012 (Saraiva de bolso).
BAUDELAIRE, Charles Pierre. Poemas em prosa. Trad. João Linhares. Coimbra:
Alma Azul, 2007.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad.
José Martins Barbosa e Hermerson Alves Batista São Paulo: Brasiliense, 1989 (Obras
Escolhidas III).
BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Trad. Maurício Santana Dias. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados
do século XX. Trad. do texto Marise M. Curioni. Trad. das poesias Dora F. da Silva.
São Paulo: Duas Cidades, 1978.
GOMES, Álvaro Cardoso. A estética simbolista. São Paulo: Cultrix, 1985.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao surrealismo. Trad. de Fúlvia Moretto e
Guacira Marcindes Machado São Paulo: EDUSP, 1997.
VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. Maria Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras,
2007.