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Areia em rolimãRafael Aquino
Ilustrações
Azul Araújo e Moreno Baêta
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Sumário
Mistério sensível e impronunciável 05
Natureza morta 07
Bosque 09
Membracidae 11
Infância 13
Tempo 14
Caminhos 15
Palavras 17
Só 18
Pixo 19
Andes 20
Siamês 21
Mar e restinga 25O lodo e o jarro 27
Rio 28
Velho 29
Guardar 30
Facheio e sorriso 31
Navalha 34
Um poema 35Tolo 36
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Pequenos versos para retina 39
Cinema 41
Escuro fundo 42
Respiração 43
Árvore 44
Festa 45
Pendente 46Sonhos 47
Horizonte 48
Órgão 50
Carne crescida 53
Porfiria 57
Erre 58
Poema de agosto 61Cirurgia 64
Marianjicas (um verso à lavoura arcaica) 66
Delírio 68
Tigres de papel 69
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Mistério sensível e impronunciável
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Natureza morta
O livro se dobra à luz do sol.
As folhas da amendoeira
enrubescem ao seu calor.
A pele acastanhae descasca.
As grades de ferro,
à intempérie,
perdem seu verniz,
sua tinta;
se abrem em flor
e sangram sua ferrugem.
O plástico contorce,
amarela,
esfarela.
A pedra fica tão dura
que trinca.
A lágrima seca.
O suor mina.
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O livro se dobra
à luz do sol.
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Bosque
Potro xucro ao descampado,
quem domina teu cabresto
na cortina de tua crina.
Ave solta entre os galhos,das pedras em tua garganta
quais talham a lâmina do teu canto.
De que te serve, negro escaravelho,
o brilho de cera do teu casco
ante a solidão do interior da armadura.
Quantas das escamas sobre a pele escura,
lagarto, cresceram em teu papo
a partir do ato de rastejar.
Andam para se entregar as lesmas,
devagar, desenhando seu rastro, mas
com que tinta escura a noite aquarela sua fuga.
A árvore hercúlea, os fungos ornando as raízes,
formigas vermelhas em seu caule e,
no chão, as pretas em sua vida submersa.
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Em meu quintal havia um mundo
de águas passadas que ainda correm.
Nas folhas das árvores pousei meus sonhos,
quebra-cabeças nos tempos de muda.
Entre os seixos na terra escondi meu pulso
que se afoga nas poças dos dias de chuva.
Quem se separa do bosque da infância?
A minha criança usa o verde de seus musgos,
o roxo das saúvas, os marrons dos barreiros.
Árvores, fungos, cupins.
Quem se separa do bosque da infância?
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Membracidae
Fustigar finos galhos com as patas
como afagando cobertas
antes de ter as estações à cama;
depor neles seus ovos.
Cobri-los em renda branca,guardar as ninfas crescendo
neste berço de viscos.
Perder asas por crostas,
entregá-las à áspera
língua do tempo,
sorver dela sua forma
aprendendo a geometria
na casca do visgueiro.
Debulhar os grãos de seu casco,
neles tingir vermelhos,
amarelos de flores.
Despistar com aquarelas
os olhos da morte
pousados sobre o curvo
bico da rapina.
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Pescar a beleza
no adverso rio da existência.
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Infância
A minha infância se perdeu em mim
Não há fotografias
Não há imagens
Talvez uma mancha borrada em meus lábios
Quando rio ou choroDecerto
Diluiu-se no charco lodoso
Que se assenta no oco de meus pés
E
Se o tempo é fugidio
E atrás dele eu corro
Invariavelmente
Levanta-se em pó
Numa nuvem
E dana-se a ciscar-me os olhos
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Tempo
Tudo transcorre em seu ritmo
grave e denso.
Uma pena flutua
no leite da atmosfera,um mangangá
nada no ar.
O rio do tempo carrega seus sedimentos
a seu próprio tempo.
Sobre minha cabeça desce a mão das horas
num afago que começa macio
seguindo progressivamente opressivo
até que me acostume.
As ampulhetas escorrem seu fino concreto
sobre minhas espáduas e,
conduzindo seu curso no eixo de minha coluna,
repousam a meus pés as suas certezas.
Tenho com as setas dos relógios a cada esquina,
e então sei que sou apenas um homem,
nu, contra a rocha crua dos dias.
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Caminhos
A contingência intransponível dos corpos.
De tanto que expande, vaza,
encontrando atalho nos poros.
Volúvel,escapa por uma lágrima.
Disforme,
se espreme num grito.
Volátil,
transborda no suor da febre.
Quem dera eu fosse poeta,
seduzir o metabolismo das coisas,
enganar a censura da física,
um achador de caminhos.
Mas eu te digo amor
com tanta sede
que não digo nada,
te cuspo a cara
com tanto ódio
que soo ridículo.
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O barro tem mais palavras que eu,
murmurando seu rico capim
entre os paralelepípedos do calçamento.
As formigas furam caminho pra seu verbo
num canto de minha parede.
E eu,cruzando a cidade em um coletivo,
estou só
em minha linguagem dura.
Só
com minha língua escassa
armada em farrapos.
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Palavras
As palavras são apartamentos pré-moldados
pequenos demais para abarcar o peito e seu entorno.
Peito é palavra
que tropeça sem ar.
A ponte que leva o peito à fala
é um resistor que tudo talha.
Palavras são beijos
de peitos não correspondidos.
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Só
O homem está só,
ilhado nos limites de sua pele,
mudo no interior rígido
de seus ossos que expõem apenas unhas e dentes.
O músculo em sua ação se contrai;mesmo quando estoura e sangra,
coagula seu silêncio indecifrável.
O homem abraça,
penetra,
morde e arranha.
Insinua um sentido e,
num gesto vago,
acredita ser compreendido.
Mas sempre batem aos dentes,
pele e coágulo,
derramando sua sombra
sobre o leito da palavra inútil.
E o homem está só,
preso a sua dor comum
mas impronunciável.
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Pixo
Meu peito é um pixo numa parede suja,
estampando o rosto de uma metrópole-máquina.
Ideograma violento rasgando a boca da paisagem.
Língua impronunciável
grafada em alturas impossíveis. Verbete guardado por bandos perdidos
na indecifrável sujeira da noite.
Meu peito é pixo.
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Andes
Andes, coluna da América,
onde realmente inicia teu cérebro?,
onde finalmente termina teu cóccix?
Em que ponto crucial
se invertem tuas massas:cinzentos por brancos?
Andes,
vértebra por vértebra,
que peso tens segurado
séculos a fio,
coluna de Atlas
a segurar horizontes.
E apesar de tudo
te manténs aqui
de pé,
erguido,
rijo qual uma cordilheira.
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Siamês
às lagoas Mundaú e Manguaba;
ao povo que a rodeia
Duas irmãs siamesas
quase velhas,
mãos dadas,
passeiam junto ao mar,
desaguadouro de seus reclames.
Senhora dama:
uma cabeça,
dois corpos,
uma mesma chama,
uma mesma lama.
De tua boca verte-se água
e mágoa com cheiro de enxofre,
vertem-se peixes
e homens em suas canoas,
derramam-se sonhos e ventos
e por ela bebe o sal – minério do tempo –
que vai a beber toda lagoa.
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Sobre teu leito se vergam todas as coisas:
as árvores,
os barcos,
barracos,
os braços,
as fomes,
seu nome e meu nome;
verga-se o tempo em seu longo plano,
nas rochas
se convencendo de tua água
e por ela se deixando sorver.
Tudo em tua órbita entorta,
e quem fugiria de tua visceral gravidade?
Das flechas que em ti nadam,
das veias que em ti falam,
brecha-te o homem,
os pés nas tuas margens;
e na saga de sua vida,
na sua busca te abre feridas
que, antes de ti, habitando nele,
já minguavam sangue.
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Cada veia tua
que se expõe e sangra
é também uma chaga aberta
na margem do margeante,
e não sabendo o que lhe atinge,
o que fazer,resta-lhe só o grito
disforme,
homem, terceiro siamês errante.
É por falta de mãos que te bate,
é por falta de bocas que te come,
é por falta de rumos,
por falta de escolhas,
que te escolhe como te escolhe.
É por falta de versos que me envergo,
senhora dama,
uma cabeça,
dois corpos,
uma mesma chama,
e corro-te à mão
uma prece moldada na lama.
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Mar e restinga
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O lodo e o jarro
Sou quem mexe com o lodo do fundo do teu jarro,
sou teus pés entre os dedos melados de barro,
sou tua febre terçã,
tua sede pela manhã
e a preguiça que se aninha nos teus braços.
Sou os traços que não conténs quando gozas,
o suspiro que não prendes se te tocas,
sou das frutas a maçã,
sou o canto da acauã
que congela tua espinha
e que gostas.
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Velho
Eu estou ficando velho,
velho e besta.
Vendo beleza nas coisas mais tolas,
nos riscos dos botões da sua roupaou numa planta que insiste em crescer
na fresta de um muro antigo.
Desenhando as curvas da sua orelha,
o vão do seu ouvido.
Não sei por que
estou ficando velho e bobo.
Vendo amor na cópula
feroz dos bichos,
ouvindo canções
no zum do besouro.
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Guardar
Há que se vigiar o amor
a cada instante que soa;
o dia, a noite, a rotina
a tudo atordoa.
Há que se vigiar quem se quer
qual planta frágil na tempestade;
antever cada insegurança,
bem dosar a saudade.
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Facheio e sorriso
I
É percutindo pulsos no casco da jangada
que o pescador lança o peixe
aos dedos trançados de sua redee assim o leva para casa.
Para mim não há outros laços
que não os teus braços
e é o surdo do teu peito junto ao meu
que me põe rendido.
Se a noite é sem lua
qualquer luz é um encanto
que traz o peixe à flor d´água
e ao encontro da faca.
Para mim não há facho
que não os teus olhos,
nem lâmina que me atravesse
que não o riso dos teus lábios.
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II
É teu largo sorriso
que ocupa a sala,
que penetra a cozinha
e deixa teu gosto nos potes de temperos,
entra nos corredores,
se espalha nos quartos
impregnando colchas,
travesseiros e cobertores
– dirão que é teu cheiro,
mas sei que foi a curva de tua boca
que tomou minhas narinas
quando cheguei em casa e tirei
nosso lençol conjunto da mala – ;
é teu sorriso que me flecha o peito
numa dor que procuro
entre as folhas dos livros,
os quadros das paredes.
Nos filmes da televisão:
minha dor e teus olhos;>
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nas canções do rádio:
minha dor
e a saudade.
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Navalha
Eu só tenho a oferecer
a minha carne que falha,
essa minha mão que cai,
esse meu olho que pisca
vez em quando.
Vez em quando eu sou dragão
e meu fogo em ti se espalha,
vez em quando eu sou navalha
correndo na tua mão.
Vez em quando eu sou vulcão
e meu corpo em ti se espalha,
vez em quando eu sou navalha
correndo da tua mão.
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Um poema
Nunca o verão pareceu tão frio
e o azul do seu céu tão atonal.
As arvores só respiram,
não cantam,
e reconheço o lagartoque pula no muro sem uma de suas patas
– ainda vive.
O sol, esse astro
que ao amanhecer
nasce em cada coisa que brilha,
neste dia de desvelamentos
parece ter composto
uma luz de velas tristes
– o mundo se compadece.
Sento na calçada,
escrevo um poema
e aguardo que um novo dia nasça
em outra estação,
em outros tons,
em outras patas.
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Tolo
Sou um tolo.
Como a flor
que veste suas pétalas
esperando a abelhaé uma tola.
Como o sanhaço
no galho da mangueira
bicando sua polpa amarela
é um tolo.
Como a pedra
esperando que o tempo
lentamente a dispa
de si
é uma tola.
Sou tolo quando te espero,
sou tolo quando te beijo,
sou tolo, sobretudo,
quando me entrego além do toque.
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A gente sempre aposta
nesse jogo perdido,
blefando com o destino
e seu baralho de cartas mal traçadas.
Sou tolo como o tempo desfolhando calendários,
como o vento bagunçando os teus cabelos,como o mar lambendo a areia da praia,
tentando manter longe
a teia de braços da restinga.
Sou tolo como os carros
que se movem com motores a explosão,
ansiosos com o destino.
Sou tolo e só o tempo
pode afirmar com precisão.
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Pequenos versos para retina
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Cinema
Sempre que tenho
saudades do arrebol
fecho os olhos
e então o sol
pinta minhas pálpebras de vermelho.
Eis meu cinema em segredo.
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Respiração
Todo o mar
é um imenso pulmão:
gasta o dia inteiro num sopro
e corre a noite num fôlego.
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Árvore
Granada verde
escapa do chão.
Se espreguiça,
grita,explode,
tomando todo o ar.
Desata,
desenovela,
lento,
para que seu fogo
brilhante,
desatento,
outras granadas
venha espalhar no vento.
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Festa
Linda como um parque de diversões
aportando numa cidade de interior,
enchendo de sorrisos minha boca de criança,
enredando meus olhos pela magia da dança.
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Pendente
Verso pendente
chega na garganta,
acena e não sai.
Balança na cordabamba,
é no fundo da gente
que cai.
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Sonhos
Nuvens são tufos de sonho
– em São Paulo tufos cinzas de sonho e fumaça – ;
não à toa
tolos aviões pisam em falsoao adentrar seus sítios.
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Horizonte
Em frente à longa
linha que nos rodeia,
ao grande círculo
que à nossa vistatange,
à grande língua
que lambe, do mundo,
a beira,
subiram coqueiros,
sobem concretos
e hão de subir cordilheiras.
Mas lá nos campos nus,
lá de fronte ao mar,
é lá
que nos ocorre lembrar:
algo te esconde
mas nada te apaga
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borda do céu,
lábio da abóbada.
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Órgão
Sempre vi a América Latina
na forma de um órgão:
um fígado
ou um pâncreas dilatado,um estômago
afastado dos intestinos,
um coração que enraíza.
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Carne crescida
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"(...) os lábios quais dois calos, e as ilhargas
como as asas dos pássaros convulsos,
patas ungueadas, breves mas amargas,
agarradas a si, de si expulsas (...)"
Jorge de Lima
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Porfiria
O norte da alma é um deserto
vago e sombrio.
Terreno de desassossego e arrepio.
Vaga onde cruzam
desejos
e seus cabrestos,
campo de pastar bestas.
Porão de se esconder
o cancro
e outras porfirias.
A porção de pele
que foge à luz do dia.
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Erre
Me nasceu um erre entre os dentes
que tem me rasgado língua e gengiva,
uma rasga-mortalha rompendo o céu da boca.
Um erre que tem me dado um ruído ranzinza no juízoe me riscado rugas no rosto.
Um erre qualquer,
hora maiúsculo, hora cansado, diminuto,
tem me aporrinhado a alma
e me roído o corpo
como remoendo a ideia que sou um rato,
um rei sem roupas,
um resto de rumo,
uma rinha de ranços,
um farrapo retinto.
Algo como um rangido que nasce na polpa da língua.
Uma íngua presente
no oco dum vaso,
um erre no aso.
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Um erre que roça como um calo
entre os pés de um varo.
Um erro,
um raro que arranha.
Como a rua
rangendo restos em bueiros.
Um arroto que nasce
esbarrando na rota.
O estalo de um trote
se o trote fosse só o estalo,
sem a graça,
só o ruído.
O cupido dos vícios,
os indícios do crime,
o rastro que não se apaga.
A paga de estar vivo,
de ter que estar vivo,
de matar o já dito
e ditar o resto.
Um erre.
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O gê é um salto,
o ele é um deslize macio,
mas foi um erre,
areia em rolimã,
que nasceu entre meus dentes.
Como eu não tivesse culpa alguma
das letras que faço.
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Poema de agosto
O mês de agosto pousa no calendário
e os cães não ladram a sua passagem.
Observam cabisbaixo o cortejo do tempo
com a resignação de quem não espera
nada além de desagravo vindo da mão das horas.
Dentro do quarto mal ventilado
reina o calor de estufa
de um fevereiro mal aguado.
A falsa ilusão de chuva que traz o mormaço
só alimenta os dentes da ansiedade,
esse cão sempre presente
roendo os pés da cama,
desfolhando travesseiros
e bebendo a insônia em largos tragos.
Ronda na rua um vigia
que nada guarda com seu sibilo estéril;
o mal já não tem mais ouvidos
pras minhas palavras>
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– já não me concede a trégua fugaz
com que gozavam os poetas
no breve resguardo de seu parto – ,
que espera conseguir esse homem ingênuo
com sua música simplória?
Do rastro de minha canetabrota a letra morta
dos versos que nunca serão ditos,
que nunca serão lidos.
Não moverão exércitos sobre planícies,
não quebrantarão o coração da musa idealizada,
não molharão sequer a face
do solitário que se esconde no quarto.
O poema é carne morta sobre as folhas.
A mesa posta,
o desejo pingando sobre o piso.
Escorre de uma xícara
tombada entre os pratos.
O peso de uma história de erros ecoa na sala
e não serve
sequer para a arte.
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Que espera esse homem ingênuo
que lhe diga a vida
de sua língua implacável?
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Cirurgia
O que me impressiona numa cirurgia
não é a possibilidade do corte,
ação tão comum nos cruzamentos,
no passo do metal e das pedras,
ou no tecido que cansou da tensãoe como última decisão possível
escolhe relaxar suas tranças.
Nem é tampouco a junção das bordas.
Tantos sobrevivem ao trauma
e, no final, para esses
esconder as vísceras
é ato inevitável do tempo.
Se fechar às cicatrizes.
O que me impressiona em tudo
é a hemostasia.
Se abrir e se conter,
segurar o sangue
tendo já a pele aberta,
não vazar-se fluido
estando com tudo exposto,>
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Marianjicas (um verso à lavoura arcaica)
Passam os anos e ainda sou quem aos cinco de idade no quintal de
casa, nas minhas brincadeiras de provocar o mundo, espetava um
fino graveto em um dos inúmeros buracos que eu encontrava no
solo e ali o repousava, aguardando o tempo que cada mistério
requer para ser revelado, e ao vê-lo finalmente mexer –
o talgraveto – em seu movimento de quem pede "me puxa agora, vai, é
chegada a hora" – foi surpresa o que senti na primeira vez que o
fiz orientado por meu pai, ele já experiente no trato com as
marianjicas; mas não posso dizer o mesmo das outras vezes em
que o espanto tinha natureza mais de reflexo ou ato histriônico
que propriamente daquele susto de se ver nu no novo que se
desvela – descobria ali agarrado à extremidade da haste um
pequeno verme bizarro de corpo amarelo pus e na cabeça uma
grotesca coroa como quem guardasse um reinado e em sua boca
duas lâminas, uma repousando ameaçadoramente sobre a outra, e
ele ficava se debatendo em fúria lançado ao solo, longe de sua
cova, tão bravo e naquele ambiente estrangeiro tão frágil e eu o
cutucava sem saber que cutucava a mim em meus brinquedos, sem
perceber que era o meu quintal, a minha terra que eram habitados
por vermes. Depois de cansar de olhá-lo eu o devolvia a seu
buraco onde ele com seu peristaltismo particular novamente se
escondia. Eram vermes. Estavam sempre ali e eu nunca tive
coragem de matar um sequer. Não sei se a palavra a se usar deveria
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Delírio
Me interessam os poros escritos nas estátuas de bronze
ao seu brilho incandescente.
As rugas nos rostos,
as marcas da varíola,os calos nas mãos,
a pele solta das frieiras
nos pés enclausurados por botas.
Me atrai o gosto no sal do suor
e o cheiro acre de maracujá
das cuecas esquecidas
urinadas no fundo do cesto.
Me impregna a vista
o delírio dos loucos,
sua raiva e furor
contra o incontestável desconhecido.
É sob esse filtro que reflito com paciência
o destempero das faces,
o amargor no timbre da fala,
e as sobras das equações matemáticas.
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8/19/2019 Areia Em Rolimã
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Tigres de papel
Desmontar castelos de areia
na ponta de um cigarro,
o beijo espremido
do suco de limão,
touceiras de fomes
brotando na penumbra do quarto.
As fileiras de medíocres
e os altares das virtudes,
tigres de papel
enchendo o panorama.
Sob nossos pés
o grotão dos desajustados
é a única coisa palpável
na instabilidade dos passos.
E ainda temos
tantos anos pela frente.
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8/19/2019 Areia Em Rolimã
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