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Museu MAXXI, Roma, 1998-2009. Escritrio Zaha Hadid.85
palavras-chave: arqui-tetura contempornea;
ps-modernismo;projeto digital;
canteiro de obras;renda monopolista
keywords: contempora-ry architecture;
post-modernism; digi-tal design;
building site;monopoly rent
Pedro Fiori Arantes
Forma, valor e renda na arquitetura contempornea*
A arquitetura contempornea vive hoje uma arriscada uso com a publicidade
e a indstria do entretenimento. Tal convergncia exige uma expanso da orma
arquitetnica at o limite de sua materialidade. Em busca da renda inormacional
mxima, caracterstica do universo das marcas mundiais, constatamos uma inverso
de seus antigos undamentos construtivos e produtivos, subvertidos por um jogo
de volumes e eeitos para alm de qualquer regra ou limitao. Aliado s tcnicasdigitais de projeto e reorganizao dos canteiros de obra, esse novo etichismo
da orma, anlogo autonomizao do poder e da riqueza abstrata no capitalismo
contemporneo, dene a nova condio da arquitetura de ponta.
Contemporary architecture is dangerously enmeshed with the entertainment
industry and the eld o advertising. This meshing has pushed architectural orm
to the limits o materiality. Architecture today searches or maximum inormational
rent, a process typical o global product branding; through this process, established
building and production principles are subverted by a play o volumes and eectsbeyond any rule or limitation. Relying on digital design technologies and the
reorganization o the building site, this new etishism o orm, analogous to the
autonomization o power and abstract wealth in contemporary capitalism, denes
the new condition o cutting-edge architecture.
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A arquitetura na era digital-nanceira ampliou enormemente o
repertrio de ormas, materiais e tcnicas sua disposio. O cubo moder-
nista oi desmontado e em seu lugar uma prouso de volumes irregulares e
de geometrias complexas ocupou a cena. As tecnologias digitais, de projeto
e produo, os novos materiais e encomendas sempre mais ousadas permi-
tiram a realizao de obras inimaginveis h poucas dcadas. Acelerando
esse processo, a injeo de capitais e undos pblicos perseguindo ganhosespeculativos decorrentes do eeito-atrao promovido por esses edicios
o que denominaremos renda da orma.
Temas como a produo massicada e o planejamento das cida-
des, que oram recorrentes na arquitetura moderna, a bem dizer saram
de pauta ou retornaram sob a orma de gesto empresarial do espao
urbano1. Numa sociedade dita ps-utpica em que o capital parece no
mais encontrar adversrios altura, a ideologia moderna do plano (que
pressupunha a coabitao entre capital e trabalho) deu lugar produo
de eeitos espetaculares em edicios isolados, que seriam capazes, por sis, de ativar economias ragilizadas, atrair turistas e investidores, desen-
cadear processos de valorizao imobiliria e redenir a identidade de
sociedades inteiras. Para tanto, os arquitetos renomados buscam a die-
rena a todo custo, em obras nicas de grande poder simblico, nas quais
se exprimem a um s tempo o novo poder da economia poltica da cultura
e a crise dos programas de bem-estar social.
Os novos edicios so desenhados para circular como se os-
sem logotectures na expresso de Frank Gehry2, uma das estrelas do
establishment da arquitetura atual, autor do celebrado Guggenheim deBilbao. o que reconhece tambm outro arquiteto de grie, Jacques
Herzog, um dos responsveis pelo projeto da New Tate e agora da Sala
de Dana de So Paulo: Se a arte e a arquitetura so agora mais do que
nunca instrumentos polticos, porque esto cada vez mais prximas do
universo das marcas3. A sosticao tcnica ostensiva, a dierenciao
das supercies e a exuberncia ormal passaram a ser requisitos para
constituir imagens arquitetnicas exclusivas, capazes de valorizar os in-
vestimentos e, consequentemente, as cidades que os disputam.
Com a passagem da hegemonia do capital industrial para a das -
nanas globalizadas, surgem nas novas paisagens urbanas guraes surpre-
endentes produzidas por essa arquitetura de ponta que explora os limites
da tcnica e dos materiais, quase sem restries, inclusive oramentrias ,
o exato contrrio da sobriedade tectnica e espacial, que via de regra se sub-
metia ao rigor da geometria euclidiana e dominava a arquitetura moderna.
Em sua liberdade inventiva, alimentam-se, nessa nova ase do capitalismo,
de um paradoxo tcnico-ormal: quanto mais inorme, retorcido, descons-
1. Ver ARANTES, Otlia.Urbanismo em m
de linha. So Paulo:Edusp, 1999; e Idem.
A cidade do pensa-mento nico. Petrpo-
lis: Vozes, 2001.
2. O termo emprega-do no documentrio de
Sydney Pollack,Esboos de Frank
Gehry, 2005 (84 min.).
3. HERZOG, JacquesHerzog apud GALIANO,Luis Fernndez. Dilogoy logo: Jacques Herzog
piensa en voz alta, Arqui-tectura Viva, Madri, n. 91,
ago. 2003, p. 26
*Este artigo umresumo da tese de
doutorado Arquiteturana era digital-fnanceira:
desenho, canteiro e
renda da orma, deen-dida na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismoda Universidade de So
Paulo, em abril de 2010,e disponvel na biblioteca
digital da USP: http://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/16/16132/tde-01062010-095029/.
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trudo ou liqueeito o objeto arquitetnico, maior seu sucesso de pblico
e, portanto, seu valor como imagem publicitria. Este, o grau zero a que
chegou a arquitetura, agora reduzida a um jogo meramente ormal, apa-
rentemente sem regras e limitaes de qualquer espcie, em busca do grau
mximo da renda enmeno de que nos ocuparemos aqui.
Arquiteturas da exceo
Do ponto de vista da acumulao capitalista essas obras so
excees e no a regra na produo social do espao. Excees em di-
versos sentidos. Embora respondam por menos de 0,1% da produo
arquitetnica mundial, ocupam a quase totalidade das revistas espe-
cializadas, das exposies e prmios, alm de se tornarem parmetros
na busca de sucesso prossional. O tipo de valorizao que promovem
de outra natureza que a do mercado imobilirio stricto sensu. Essas
obras, em geral, no esto diretamente venda, apesar de muitas vezesazerem parte de estratgias de cidades venda ou da valorizao das
marcas. Seu valor de uso a capacidade de ascinar e encantar o pbli-
co ao ostentar o poder simblico de quem a patrocinou. So excees
no tecido da cidade, construes que reivindicam para si o status de
novos monumentos de uma civilizao repem, assim, o que h de
mais arcaico na prosso, a arquitetura como a arte da representao,
em grande escala, do poder e do dinheiro.
O que h de novo o carter especulativo de tais operaes o
bolor da obra luxuosa monumental o ermento para o capital ctcio. Suavalorizao rentista similar porm dierente da promoo imobiliria tra-
dicional. Trata-se de uma renda monopolista4 intrnseca orma arquitet-
nica, nica e espetacular que origina uma espiral de atrao de pessoas,
riquezas e negcios. Por isso, essa arquitetura obtm mais dividendos na
circulao do que com sua produo, ou melhor, sua produo coman-
dada pelos ganhos advindos da sua divulgao miditica e da capacidade
de sugar a riqueza alheia, seja ela do turista embasbacado ou dos undos
pblicos. Trata-se de uma arquitetura que circula como imagem e, por isso,
j nasce como gurao de si mesma, num crculo tautolgico de reduo
da experincia arquitetnica pura visualidade, resultado da busca inces-
sante pelo ineditismo e pela renda da orma. Ao mesmo tempo, o ciclo da
arquitetura-imagem s se completa no retorno sua materialidade concreta.
A reprodutibilidade imaterial regressa condio sica de objeto constru-
do, que se torna o alvo das atenes e da perigrinao de turistas para o
reconhecimento do original. A renda da orma benecia-se assim de uma
4. A renda de monop-lio baseada na noreprodutibilidade dedeterminados bens e
mercadorias. Nessesentido, uma renda
cujos ganhos advm deatores opostos aos da
produo em massa debens padronizados pelo
sistema produtor de
mercadorias.
pera de Dubai(2007-projeto).
Escritrio Jean Nouvel
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relao simbitica entre cpia e original, entre imagem em circulao e o
edicio enquanto tal. So essas modalidades de consumo que geram um
sistema complexo de distribuio da renda promovida pela arquitetura este-
lar, que no pode ser conundida com democratizao da renda, pois um
mecanismo de concentrao, em determinados agentes bem posicionados,
da mais-valia socialmente produzida.
Nesses projetos, os sotwares mais avanados podem ser emprega-dos, alm de mquinas programveis e robs, mas o velho arteso e a ex-
plorao sem peias do trabalho precarizado e migrante continuam na base.
Essas obras mobilizam oras produtivas arcaicas e avanadas, tambm nes-
te sentido alternando recorrncias e excepcionalidades, como a aplicao
pioneira de novos materiais e tcnicas (ou a retomada de habilidades arte-
sanais e de outros campos produtivos) que no esto disposio da pro-
duo imobiliria corriqueira. So, desse modo, agentes de uma inovao
restrita, que no quer se democratizar, pois o segredo de sua rentabilidade
a manuteno do monoplio, isto , da exceo. Contudo, como veremos,a expanso de operaes similares em busca da renda mxima gera o para-
doxo da multiplicao da exceo, que acabar por comprometer seu ganho
monopolista e produzir uma saturao do pblico.
As mudanas nas tcnicas de representao e produo indi-
cam, por sua vez, uma ruptura maior do que a crtica ao ps-modernismo
deu comumente a entender. Podemos estar entrando numa nova ase de
percepo, produo e consumo do ato arquitetnico que parece mo-
dicar alguns dos principais undamentos das ases anteriores. Alguns
deles que datam do Renascimento, e que permaneceram a bem dizerinalterados por sculos, esto agora sendo modicados e mesmo postos
de ponta-cabea. No improvvel que estejamos vivendo uma infexo
de propores similares revoluo promovida por Brunelleschi, decor-
rente agora da conjuno entre dominncia nanceira e novas tecnolo-
gias digitais. A ideologia do todo poderoso master-builder revivida, mas
sob o arbtrio da era digital e amparada pelos novos modelos multidimen-
sionais de gesto de inormaes de projeto, como ideao arquitetnica
tornada uma programao total.
A resposta a esse estgio terminal a que chegou a arquitetura
no necessariamente pr moral severa do construdo, embora um pouco
de honestidade construtiva no aa mal a ningum. Certamente esco-
las, hospitais, moradias populares e obras de saneamento e transportes
urbanos azem parte de uma agenda antiespetacular da arquitetura, um
programa de necessidades que ainda no oram plenamente atendidas
no centro, degradam-se progressivamente e, na perieria, mal oram
enrentadas. A desmontagem do Welare e sua compensao ilusria com
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polticas de animao cultural e, agora, de estmulo dos sentidos, az
parte de uma derrota poltica ampla das classes trabalhadoras desde o -
nal dos anos 1970. Uma resposta a isso, certamente, est ora das possi-
bilidades de interveno exclusiva da arquitetura, mas isso no signica
que ela no deva escolher o seu lado.
Anidades eletivas
No ser demais lembrar que o Movimento Moderno na arquitetu-
ra, desde seus primeiros maniestos na dcada de 1920, deniu um programa
que elegia como principal aliado e exemplo a ser seguido o capital industrial
mais adiante, o prprio Estado e, na perieria, as burguesias nacionais
e seus governos desenvolvimentistas. Da engenharia esttica industrial, a
inspirao maquinista e racionalista norteou suas experincias construtivas e
urbansticas. Mesmo em carter experimental, eram quase sempre projetos
para serem multiplicados em escala de massa. Da a anidade com a seriaoindustrial, mesmo que pouco realizada na prtica. Concreto, ao, vidro eram
os novos materiais empregados nas ormas prismticas, em geral ortogonais e
abstratas, despidas de ornamentos. Tornaram-se objeto de pesquisa e projeto
os edicios industriais, de escritrios, grandes inraestruturas e casas ope-
rrias (mquinas de morar) componentes do capital xo e do undo de
reproduo da ora de trabalho que integram o processo produtivo inerente
acumulao capitalista. A cidade, de seu lado, era pensada como um tecido
urbano relativamente uniorme, organizado de acordo com suas unes, um
modelo no qual a renda dierencial intraurbana tenderia a zero.O capital industrial e o trabalho assalariado representavam o
polo moderno, enquanto o proprietrio undirio e sua renda da terra
(heranas do Antigo Regime e promotores da irracionalidade urbana), o
arcaico. Na disputa pela partio da mais-valia, a arquitetura moderna
ez aliana com os setores produtivos, com o capital enquanto uno,
mais do que como propriedade. Tal simbiose, contudo, oi a rigor mais
estilizada do que eetiva com os ramos industriais mais avanados, so-
bretudo o setor automobilstico, porm ocorreu de ato com as grandes
construtoras e governos modernizadores, em cujos canteiros de obra
vigorava, ao mesmo tempo, a mais retrgrada explorao.
Na arquitetura contempornea, se a aliana novamente com os
setores dominantes, ou seja, com o polo mais dinmico e prspero da econo-
mia, ela se verica dessa vez com o prprio capital em sua orma nanceira,
e em particular com a indstria do entretenimento e a nova economia do
acesso, baseada na renda. Na verdade, a associao histrica da arquitetura
sempre oi com os donos do poder e do dinheiro, sobretudo com a proprie-
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dade privada. Existe uma tendncia da arquitetura em se apegar s rendas e
no aos lucros, dada sua xidez e seu custo elevado. quase uma atalidade
de sua natureza: ela reitera o undirio e o nanceiro, mesmo que no o aa
de modo voluntrio. Por ser um bem nico, sempre detm alguma renda de
monoplio. Na arquitetura moderna, havia uma contratendncia que pro-
curava minimizar o poder da renda e das nanas, associando-se aos setores
produtivos e governos nacionais modernizadores, mas na era da mundiali-zao nanceira no h mais nenhuma ora que contrarie esse poder. As
implicaes no plano das dimenses construtivas e sociais da arquitetura
sero proundas: a arquitetura rentista abdica de certos contedos em bene-
cio de usos improdutivos5, prprios esera da circulao e do consumo
(terminais de transporte, shopping centers, hotis, estdios, museus, salas de
concerto, parques temticos etc.). Seu desejo no mais de seriao e mas-
sicao, mas de dierenciao e exclusividade produzir objetos nicos e
marcantes que pousam nas cidades, potencializando a renda dierencial e o
capital simblico.
Arquitetura de marca
Na virada do sculo XXI, os arquitetos do star system passaram a
desenvolver imagens cada vez mais elaboradas do poder e do dinheiro. Com
a palavra, novamente, Herzog: [...] trabalhamos com a materialidade sica
da arquitetura porque s assim podemos transcend-la, ir mais longe e che-
gar inclusive ao imaterial6.
Alcanar o imaterial por meio da mais material e tectnica das artes,a arquitetura, num aparente contrassenso, produzir um valor intangvel so-
cialmente mensurvel, como o valor de representao de um poder corporativo
(de um governo, de uma empresa, de uma ordem religiosa ou de um pas). A
dierena que, agora, essa ora espetacular da arquitetura no mais requi-
sito nico de regimes absolutistas, autocrticos ou ascistas, mas de grandes
estratgias de negcio associadas ao turismo, a eventos culturais e esportivos,
ao marketing urbano e promoo de identidades empresariais. O ato que
nenhum arquiteto moderno, diante de suas (agora) prosaicas caixas de vidro,
ao e concreto, poderia ter antecipado o grau de sosticao tcnica e exube-
rncia ormal que a arquitetura atual est alcanando.
A ascenso das marcas, mesmo as de empresas produtoras de mer-
cadorias tangveis, est sobretudo associada nova hegemonia nanceira, se-
gundo a qual a imagem e o nome da marca se sobrepem ao valor-trabalho das
mercadorias que a empresa produz (ou terceiriza), acrescentando-lhes um va-
lor de novo tipo: uma espcie de renda de representao das prprias mercado-
5. Adoto o termo emreerncia noo detrabalho improduti-vo para Marx, isto ,
aquele que no gera di-retamente mais-valia e
que se apoia justamen-te em sua distribuio e
partio.
6. HERZOG, JacquesHerzog apud GALIANO,
Luis Fernndez.Op. cit., p. 29.
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rias. Cumprem, como imagem que se destaca do corpo prosaico do objeto, um
papel similar ao da abstrao do dinheiro. O dierencial da marca justamente
ser uma orma de propriedade que no pode ser acilmente generalizada. O
monoplio sobre seu uso uma orma de renda, por isso patenteada e, de
orma correlata terra, protegida por cercas jurdicas (e por vezes reais) para
controle do acesso. Essa autonomizao das ormas de propriedade produz, ao
mesmo tempo, uma autonomizao da orma como pura propriedade. A ormatorna-se capital por meio de um enmeno imagtico, no qual remunerada
como capital simblico, pela renda da orma.
Essa relao entre o objeto sico e os valores imateriais no ocorre
apenas no plano da ideologia, evidentemente. Ela tem undamentos pro-
dutivos e az parte de um processo de valorizao do capital de novo tipo.
Atualmente, todas as grandes empresas sabem azer produtos similares com
a mesma competncia tcnica, a dierena est nos valores imateriais que
cada produto capaz de incorporar por meio de estratgias de marketing,
branding e design. A busca pela transcendncia corporativa um enme-no relativamente recente, quando um grupo seleto de empresas percebeu
que construir e ortalecer suas imagens de marca, numa corrida pela ausn-
cia de peso, era a estratgia para alcanar um novo tipo de lucratividade7. As
empresas que investiam na capitalizao de suas marcas passaram a infar
como bales e a valer no mercado vrias vezes mais do que no papel numa
impressionante capitalizao ctcia. Mesmo que seguissem produzindo
mercadorias palpveis (cada vez menos diretamente), seus lucros se eleva-
vam muito acima da mdia porque haviam se tornado verdadeiros agentes
produtores de signicados, como se zessem parte da indstria cultural
8
.Parece que estamos presenciando uma espcie de deslocamento
ou mudana de estatuto da orma mercadoria9. Alm de gerar mais-valia
por meio do trabalho, ela auere rendas de modo crescente, assumindo a
condio de mercadoria cultural por natureza, distinta da mercadoria pro-
saica e, por isso, portadora de uma renda adicional, de tipo monopolista10.
Mais que isso, o ato de cada empresa produzir mercadorias supostamente
exclusivas limita as possibilidades de comparao entre produtos e trabalhos
equivalentes. A prpria medida de trabalho socialmente necessrio estaria as-
sim deixando de expressar o valor, que passaria a sorer uma desmedida11.
A articulao entre renda e lucro no interior das mercadorias
introduz na lgica produtiva uma dinmica nova, um trao rentista
que no deve ser subestimado. Segundo Franois Chesnais, na contabi-
lidade das empresas-rede passou a ocorrer uma conuso das ronteiras
entre o lucro e a renda12. No por acaso, a gesto de marcas tornou-
se a especialidade ocupada justamente em denir o ponto timo dessa
combinao lucro-renda.
7. bom lembrar, no entan-to, que essa estratgia no
decorre exclusivamente daatual dominncia inancei-
ra no regime de acumu-lao. A possibilidade de
desviar lucros dierenciaisda taxa mdia remonta, no
undo, prpria rbita pro-dutiva: as ormas rentistasde hoje esto, na verdade,exponenciando mecanis-
mos de concorrncia entrecapitais, sobretudo quando
abricam dierenas ima-ginrias para abocanhar
uma poro maior dolucro total.
8. Ver KLEIN, Naomi. SemLogo. So Paulo:
Record, 2004
9. FONTENELLE, Isleide.O nome da marca. So
Paulo: Boitempo, 2002..
10. HARVEY, David. A arteda renda: globalizao e
transormao da culturaem commodities. In:
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Na arquitetura no dierente guardadas suas especicidades.
Os arquitetos da era nanceira, ao contrrio dos modernos, no procuram
solues universalizveis para serem reproduzidas em grande escala o
que anularia o potencial de renda monopolista da mercadoria. O objetivo
a produo da exclusividade, de sries restritas e mesmo obras nicas,
associada s gries dos projetistas e de seus patrocinadores.
Talvez a principal coalizo entre o mundo das marcas e a alta arqui-tetura seja o casamento das gries Prada e Koolhaas. O arquiteto holands oi
contratado para envolver-se com o branding da marca e projetar novas lojas
em Nova Iorque, Londres e outras cidades globais. Sua abordagem, por isso,
vai muito alm da orma do edicio e passa a assemelhar-se a de um gestor
de marcas. assim que ele estabelece novos conceitos-chave para orientar os
projetos das lojas: azer compras no pode ser um ato idntico; deve-se procu-
rar a variedade de espaos numa loja; promover a sensao de exclusividade;
transormar a loja da marca numa antri da cidade; saber combinar a manu-
teno da identidade da marca com sua transormao permanente no tempo;manter a intimidade de uma companhia pequena e, sobretudo, introduzir tipo-
logias no comerciais no interior da loja, como espaos para eventos culturais
e atividades no ligadas venda13. Segundo Koolhaas, se museus, livrarias,
aeroportos, hospitais e at escolas esto se tornando indistintos do ato de azer
compras e tratam as pessoas como consumidores, uma marca de atitude deve
propor uma equao reversa, isto , enriquecer a experincia das compras, a
ponto de abarcar atividades distintas e nicas que voltariam a trazer autenti-
cidade vida14. Desse modo, passam a azer parte do programa arquitetnico
das lojas elementos como arquibancadas, palcos para pocket shows, debates eprojees de vdeo, cas, pequenas livrarias, grandes murais, aparelhos para
interao digital, supercies rugosas e gelatinosas para experincias tteis, pa-
redes-espelhos que deormam e projetam imagens etc.
13. OMA/KOOLHAAS,Rem. Projects or
Prada part 1. Milo:Fondazione Prada
Edizioni, 2001.
14. Ibidem.
A produo capitalistado espao. So Paulo:
AnnaBlume, 2005.
11. PRADO, Eleutrioda Silva. Desmedida
do valor: crtica daps-grande indstria.
So Paulo: Xam, 2005;
e GRESPAN, Jorge. Onegativo do capital. So
Paulo: Hucitec, 1998.
12. CHESNAIS, Fran-ois. A emergncia deum regime de acumu-
lao nanceira, Praga,So Paulo,
n. 3, 1997, p. 37.
Lojas Prada projetadaspor Rem Koolhaas em
Nova York e Seul.
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Evidentemente que as lojas de Koolhaas no acenam para a des-
mercantilizao da vida, ao contrrio. Ao pretender abarcar diversas ativi-
dades sociais em um ambiente comercial, sob a chancela de uma marca,
a mercantilizao pretende preencher todos os poros da existncia. O ato
de compra deixa de ser uma experincia mecnica e uncional para exigir
do consumidor uma entrega total, da mente e do corpo. Sua contrapar-
tida a riqueza da nova experincia cultural de ir s compras, planejadaminuciosamente pelo arquiteto, em oposio pobreza e vulgaridade dos
shopping centers. E, mais que isso, segundo o arquiteto as lojas seriam os
ltimos espaos de vida pblica15. A apologia cnica de Koolhaas traves-
tido em manager na verdade reedita os termos degradados da animao
cultural, a antasia compensatria do mercado para a crise dos sistemas
de proteo social e do trabalho, e da prpria vida pblica.
O sucesso estrondoso de algumas obras e seus arquitetos, contudo,
acaba estimulando a repetio das mesmas rmulas projetuais, reduzindo a
cada duplicao de volumetrias similares sua competncia para gerar rendasde exclusividade. A arquitetura de marca tem assim um limite comercial
que a obriga a adotar solues inusitadas e sempre mais chamativas: se di-
versas cidades almejarem uma obra do mesmo arquiteto-estrela perdero
progressivamente a capacidade de capturar riquezas por meio de projetos
desse tipo. E mesmo que haja uma constelao de arquitetos disposio,
o conjunto das excees se reproduzindo incessantemente, com operaes
tcnicas, ormais e nanceiras similares, promove inevitavelmente um eeito
de saturao. A multiplicao da exceo redunda, assim, no seu contrrio,
ou seja, na perda do carter de exclusividade e da capacidade de render porseu ineditismo. Anal, no mundo antigo, as maravilhas arquitetnicas eram
sete, e hoje talvez j sejam mais de mil as obras concebidas para sugar ren-
das e atrair as atenes internacionais16.
O mercado dos bens de luxo vive um paradoxo similar, o da multi-
plicao industrial do objeto raro, que deixa assim de ser exclusivo, sinal de
distino17. Contudo, dierentemente da moda, a arquitetura que estamos
analisando reratria sua reprodutibilidade tcnica e, mesmo mobilizan-
do novas tecnologias digitais, seu intuito promover uma enorme concen-
trao de trabalho e materiais em um nico e imenso objeto. A arquitetura
uma mercadoria cara por natureza e as obras signicativas dos projetistas
estrelados quase nunca custam menos do que uma centena de milhes de
dlares da que so poucas cidades, corporaes e milionrios que podem
encomendar tesouros como esses.
Um mestre da instabilidade
15. Ver KOOLHAAS,Rem et alii. Harvard
Design Guide toShopping. Colnia:
Taschen, 2002.
16. Esse eeito igual-mente discutido por
HARVEY, David. Op. cit.
17. Ver, por exemplo,LIPOVETSKY, Gilles. O
luxo eterno. So Paulo:Cia. das Letras, 2003.
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Frank Gehry oi a melhor expresso dessa arquitetura na ps-
modernidade nanceira. Como Midas, ele teve a capacidade de trans-
ormar seus prdios, amontoados irregulares de ao, titnio e vidro,
em verdadeiras minas de ouro hoje, nem tanto. Atualmente descrito
como um personagem decadente e anedtico, na dcada de 1990 ele oi
premiado pelas instituies do campo da arquitetura como um gnioda prosso e declarado maior artista vivo do planeta. O auge de sua
arquitetura coincidiu com a queda do Muro de Berlim, a globalizao
nanceira e a ideologia neoliberal. No por acaso, seus megaedicios
pareciam dar orma exuberncia da economia e do triuno capitalista
naquela dcada, com repercusses no decnio seguinte, no qual as es-
trelas passaram (ou voltaram) a ser europeus mais sosticados como
Koolhaas, Nouvel, Foster, Piano, Herzog & de Meuron, Siza e Libeskind
at o crash mundial de 2007-2009, que surpreendeu a espiral rentista
da alta arquitetura, como veremos ao nal desse artigo.A primeira grande tentativa de Frank Gehry de realizar uma uso
entre arquitetura, entretenimento e marketing deu-se no projeto do Walt Dis-
ney Concert Hall, no centro de Los Angeles. O projeto de Gehry, datado de
1988, pretendia destacar-se radicalmente de seu entorno, cercado por imensas
torres de escritrio. Era uma dobradura irregular, em placas reluzentes de ao,
como uma caixa encouraada que osse explodida pelo impacto de um blido.
O paradoxo visual residia na fuidez completa das ormas recobertas por uma
supercie dura, tpica de blindagem militar. As junes complexas entre volu-
mes e suas curvaturas dissimuladas eram, entretanto, um desao construtivoque punha prova o conhecimento da engenharia. O projeto de Frank Gehry
colocou um novo problema para a arquitetura e a indstria da construo em
pleno centro do capitalismo avanado: o edicio-emblema, vencedor de con-
curso pblico, se mostrou inexequvel. Aquele cone da nova identidade urbana
era irrepresentvel em desenho, impossvel de ser corretamente calculado e
orado. Acabou recusado por escritrios de projeto e empresas de construo
e, assim, a Disney suspendeu sua execuo.
Gehry, entretanto, no desistiu da empreitada e oi descobrir nas
indstrias aeroespacial e automotiva um programa de modelagem digital
que pudesse transormar sua ousadia escultrica em um edicio exequ-
vel. O Catia, da rancesa Dessault Systmes, permitiu que as maquetes
de criao de Gehry, eitas de papelo, massinhas de modelar e olhas de
alumnio, pudessem ser esquadrinhadas e lidas a laser. O programa trans-
ormava as maquetes em grids tridimensionais, denindo coordenadas que
possibilitavam detalhar a estrutura, peas e supercies, e testar seu com-
portamento esttico. O Catia permitia o desenho paramtrico de ormas
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irregulares com membranas contnuas e suaves, como queria Gehry, cons-
trudas a partir de curvas de Bzier e de supercies algortmicas.
Ainda assim, a Disney no estava completamente certa de seu in-
vestimento. Foi graas parceria com o mais agressivo homem de negcios
da cultura, Thomas Krens, diretor do Museu Guggenheim, que Gehry pde
construir de ato suas gigantescas edicaes metlicas de geometrias com-
plexas. Em 1997, Gehry inaugurou o projeto que se tornou um verdadeiroemblema arquitetnico da globalizao: o Museu Guggenheim de Bilbao. O
museu uma espcie de navio de guerra cubista, ancorado no rio Nervin,
recoberto de chapas de titnio que reluzem ao sol, depois da chuva, como
ouro. Gehry decomps o campo perspctico em mltiplos pontos de uga,
dando a sensao de movimento e instabilidade.
O Guggenheim Bilbao bem-sucedido no apenas como surpre-
endente aparato tcnico/esttico, como tambm, ou sobretudo, enquanto
estratgia rentista. Ao ser divulgado pelos canais miditicos como o pice da
produo arquitetnica recente, gerou abulosas rendas de monoplio para
os diversos agentes envolvidos. Como j constatara David Harvey, as inter-
venes urbanas tm se especializado em construir lugares exclusivos, ca-
pazes de exercer um poder de atrao signicativo sobre os fuxos de capital18.
Nesse caso, a obra teria sido capaz de transormar a decadente e escura
capital basca, que vinha sorendo os eeitos da desindustrializao e da crise
em seus estaleiros, numa das atraes do turismo mundial. Hal Foster chega
a dizer que, depois dessa obra, a arquitetura no oi mais a mesma e vivemos
a cada novo projeto do gnero uma espcie de eeito Bilbao19, no qual cada
cidade procura construir um espetculo de magnitude similar com o objetivo
de atrair novos fuxos de capital. O museu o resultado mais bem-sucedido
de co-branding urbano at o momento, associando as marcas Guggenheim,
Bilbao, Gehry, Dessault numa alavancagem miditica conjunta. A iniciativa
18. HARVEY, David.Op. cit.
19. FOSTER, Hal. Designand crime. Londres,
Verso, 2002, p. 42.
Desenho e a obra
acabada do MuseuGuggenheim de Bilbao(Gehry)
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pioneira oi capaz de capturar a super-renda imagtica da operao, enquanto
outras cidades e corporaes corriam atrs da mesma estratgia.
A megacorporao de entretenimentos norte-americana, dessa vez,
havia cado para trs. Aps o sucesso estrondoso de Bilbao, a Disney autori-
zou nalmente a construo de sua sala de concertos em Los Angeles, inau-
gurada apenas em 2003, quinze anos aps a elaborao do projeto. Gehry
passava a ser requisitado para realizar grandes obras icnicas, pois seu toquede Midas ainda premiava os contratantes com rendas adicionais derivados
do ineditismo exuberante de cada nova obra do mestre caliorniano.
Em Rioja, por exemplo, a 125 quilmetros de Bilbao, o arqui-
teto oi convidado para construir a Cidade do Vinho, um templo dedicado
ao nctar dos deuses, pela casa Marqus de Riscal, em 2001. O espao
dionisaco tem como programa: um museu da vinicultura, uma loja de vi-
nhos (que no vende s as garraas da casa), 43 sutes cinco estrelas, um
restaurante de primeira linha e um spa dirigido pela cadeia Les Sources de
Caudalie. O acesso a essa experincia custa de 400 a 1400 dlares a diria.A parceria com o cada vez mais nanceirizado mondo vino no oi ca-
sual20, pois a iniciativa associa dois tipos de rentismo, o do vinho21 e o
da arquitetura. David Harvey, atualizando o exemplo de Marx, comenta
que, na atual indstria globalizada do vinho, no mais a tradio que
garante as maiores rendas aos melhores terroirs, mas a prtica discur-
siva do mercado de experts, que constri critrios de avaliao de gosto
cujos maiores avorecidos so os produtores que modernizam seus m-
todos e adotam estratgias de marketing. O novo edicio de Gehry d
status inovador casa Marques de Riscal e regio, colaborando para oortalecimento global da marca e, ao mesmo tempo, atraindo turistas,
enlogos e enlos para o reerido templo.
A obra de Gehry brota do meio da cidade medieval de sobrados
de pedras de arenito como um jorro de vinho espalhando ondulaes e
refexos metalizados prpuras gurao rentista, tal como um borbo-
to de riqueza (como a do petrleo) emergindo da terra. O arquiteto az
uma mnima concesso ao arenito local em alguns dos volumes do edi-
cio, mas que so soterrados pelas cachoeiras de metal. As ondas, em
tom violceo e baunilha, compem uma alegoria s cores e aos buqus
dos vinhos. H, de ato, um choque total entre o edicio e seu entorno,
sem nenhuma preocupao contextual (contrariando a vertente regio-
nalista/vernacular to em voga na Espanha).
Esse um enmeno recorrente nos projetos contemporneos, no
qual os edicios se apresentam como totalidades em si, desgarrando-se da
cidade, de qualquer contexto ou territrio. Cumprem unes para alm do
lugar e do local, so edicios e inraestruturas transnacionais de circulao
20. Ver, por exemplo, adescrio da moderniza-
o da economia do vinhono documentrio Mondovi-
no, de Jonathan Nossiter ,2004 (134 min.).
21. Marx, para explicara teoria da renda
dierencial da terra, emO capital, utilizou como
um de seus exemplos aproduo de vinhos.
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Pedro Fiori Arantes Forma, valor e renda na arquitetura contempornea97
do capital. Essa arquitetura se torna, por isso, autorreerente, tal como as
nanas. Da a irrelevncia do contexto no h mais por que se preocu-
par em ormar a cidade, um mundo coeso, eventualmente homogneo. As-
sim, pode-se chegar a um verdadeiro espao delirante, sem restries de
estrutura, materiais, recursos e mesmo de qualquer uso. Como arma Hal
Foster, sem os constrangimentos clssicos da arquitetura (resistncia dos
materiais, estrutura, contexto), sua arquitetura rapidamente se torna algoarbitrrio e autoindulgente (porque essas curvas e no outras?) os s de
Gehry tendem a conundir essa arbitrariedade com liberdade22.
Em seu projeto para o DG Bank, em Berlim, Gehry produz nova-
mente um choque contrastante, dessa vez entre a sobriedade externa do edi-
cio e seu interior surpreendente. No ptio central do prdio, ele pousa umacobertura irregular reluzente, que poderia tambm ser interpretada como
uma ironia norte-americana do arquiteto, como se uma derradeira bomba
dos aliados tivesse ali sido lanada. Abrigada sob essa resplandecente massa
inorme, espcie de corao do sistema, est a mesa do board, conectada
mundialmente por meio de teles de videoconerncia. Quem olha da rua o
edicio no chega a notar a interveno de Gehry, a menos que entre e veja,
por entre a colunata, os refexos metalizados que vm de seu corao. Aqui, a
alegoria do capital nanceiro um choque de visualidade que cega mais
sosticada que as cascatas de vinho em Rioja. Na verdade, a cobertura de
supercie irregular uma estilizada cabea de cavalo, que Gehry havia estu-
dado para outro projeto e que reaparece no banco alemo como reerncia
mimtica aos cavalos do porto de Brandenburgo, logo ao lado.
Seja pela comparao com o conjunto do edicio do banco,
estruturado segundo a orma trptica convencional (dois pilares e uma
viga), ou mesmo pela prpria intuio esttica que a ora da gravidade
nos d, a surpresa ormal da interveno de Gehry impede a compreen-
22. FOSTER, Hal.Op. cit., p. 40.
Disney Concert Hall,Cidade do Vinho (det.)
e DG Bank (Gehry)
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so de como oi eita. A massa irregular da cobertura-cabea em chapas
de cobre parece eeito de uma mgica, contrariando as regras da sica
e da engenharia. A cobertura superior do ptio central, toda em vidro,
eleva-se acima do gabarito do prdio, como se tivesse sido estuada pela
exploso interior do volume em cobre. A orma curvilnea e aerodinmi-
ca dada por uma espetacular trelia metlica tensionada por cabos de
ao. Mais uma vez, a imagem se destaca da tectnica do corpo do objetocomo algo que paira acima de sua banal materialidade.
Na verdade, h aqui alguns truques. A estrutura do volume
central toda composta por prticos ondulados em ao. recober-
ta por painis de cobre (externamente) e de madeira (internamente),
constituindo supercies fuidas, que escondem as estruturas e todas
suas artimanhas para permanecer de p. Uma soluo aparentemente
ousada, mas que se vale da tcnica corriqueira da armao oculta,
normalmente utilizada em esculturas grandes e ocas, como a Esttua da
Liberdade, em Nova Iorque, erguida no sculo XIX23
.
Renda da orma e produo do valor
O undamento econmico dessas metamoroses no campo da
alta arquitetura , sobretudo, a busca do que estou denominando renda da
orma. Isto , a habilidade treinada dos arquitetos-estrela, amparados pelo
novo instrumental digital, em denir geometrias inesperadas e resultados
impactantes para obter ganhos monopolistas derivados da orma singular.
Nessas obras, o eeito visual, ruidoso em Gehry ou mais silencioso em Zu-mthor, monoltico em Siza ou leve em Herzog, cool em Koolhaas ou high-
tech em Foster, deve ser capaz de proporcionar o chamado ator uau!. Isto
, a capacidade de impressionar, atrair o observador extasiado e reter na sua
memria aquele objeto arquitetnico excepcional. A identicao da obra
com determinados atributos intangveis lhe garante a capacidade alqumica
de transmitir, por meio de grandes objetos inertes e presos ao solo, valores
imateriais a cidades, governos e corporaes. assim que a alta arquitetura
colabora para elevar o capital simblico e econmico de seus empreendedo-
res e benecirios, e aumentar suas vantagens competitivas.
Trata-se de uma modalidade da renda de monoplio que similar
do mercado das artes, do turismo dos lugares nicos e da valorizao das
marcas, como vimos. O que est venda no o produto, mas o conceito e
a experincia que ele proporciona. Pode-se pagar por ela diretamente (seja o
visitante que compra o acesso, sejam os undos pblicos e privados que pagam
pela promessa de renda utura advinda da obra), ou indiretamente, na medida
em que as ormas circulam e atraem negcios em torno dos cones que repre-
23. A lembrana deBENEVOLO, Leonardo.
Arquitetura do novomilnio. So Paulo: Es-tao Liberdade, 2007,
p. 205.
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Pedro Fiori Arantes Forma, valor e renda na arquitetura contempornea99
sentam. Elas movimentam o mercado editorial, a indstria do turismo, atraem
investidores, valorizam imveis, aumentam a arrecadao de impostos, cola-
boram para orjar identidades e at para ampliar a capacidade de gerar capital
ctcio de empresas e pases nas vendas de suas aes e ttulos.
Para a operao ser bem-sucedida, no caso de obras pblicas, mas
no s, o edicio no apenas deve ser projetado segundo os requisitos da
boa orma da renda, como deve corresponder a uma estratgia que articulainteresses locais e internacionais. Desse modo, as obras icnicas partici-
pam muitas vezes de planejamentos estratgicos urbanos, que denem as
polticas pblicas segundo critrios de governana e gesto empresarial das
cidades como negcio. Os governos passam a apostar em obras e investi-
mentos que apresentam taxas de retorno no mnimo equivalentes aos custos
do capital a juros, numa concepo da ao pblica cada vez mais nancei-
rizada24.
A renda da orma, nesse contexto, aparece como mais uma auto-
nomizao da propriedade e de sua representao. Como no etichismodo capital, aquela miragem do dinheiro reproduzindo-se por si s, como
explicou Marx, a sua imagem parece gerar mais dinheiro a despeito da pro-
duo e do trabalho, como se o valor nascesse da prpria circulao. Os
edicios querem desgarrar-se do solo e do trabalho que lhes origina, como
bales da a constante disposio dos arquitetos mais premiados em levar
a arquitetura ao seu grau zero de existncia, a pura orma. Contudo, essa
desmaterializao plena no possvel, como em outros ramos da indstria
cultural e da economia do conhecimento. Da que uma interpretao da
economia poltica da arquitetura restitui seus undamentos materiais e deixaver que a produo dessa renda ainda est assentada, direta ou indiretamen-
te, na produo do espao pelo valor-trabalho.
Numa comparao com os arquitetos modernos que desenhavam
artesanalmente a nanquim e normgrao em papel vegetal, mas propunham
a padronizao e a seriao de componentes pr-abricados para montagem
rpida em canteiro pode-se dizer que houve uma estranha inverso entre
esses polos. Por um lado, Gehry alcanou um patamar industrial de prtica
projetual, amparado por novas tecnologias de modelagem virtual que per-
mitem desenhos irrealizveis por instrumentos manuais e clculos comple-
xos de engenharia. De outro, seu projetos acabam por exigir uma produo
ultrafexvel (pr-industrial, mas hoje tambm ps-industrial). O resultado
que seus canteiros de obra se tornam verdadeiras ocinas de joalheria.
No h repetio de peas, cada parte do produto dierente da outra. Em
Bilbao, por exemplo, uma parcela das placas de titnio oi cortada e aplicada
manualmente em canteiro por operrios navais25.
A preciso milimtrica de peas complexas produz um jogo de
24. A nanceirizaodas polticas pblicas oitema de meu mestrado,
O ajuste urbano: as po-lticas do Banco Mundiale do BID para as cidades
latino-americanas, de-endido na Faculdade deArquitetura e Urbanismo
da USP, em 2004.
25. FOSTER, Hal. Op. cit.,p. 36. Mesmo arquitetoshigh-tech e herdeiros
do racionalismo, comoNorman Foster e Renzo
Piano, no adotam com-pletamente a perspectiva
da produo seriada,aceitando uma prouso
de peas especiais emsuas obras.
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montagem demencial, contam os construtores trata-se de uma exati-
do irracional para a arquitetura, que no d espao para as adaptaes e
pequenas correes necessrias em obra. O saber e a habilidade do traba-
lhador da construo, bases de seu poder, so mais uma vez depreciados
pela inovao capitalista. Se, num extremo, o arquiteto-estrela pesquisa
novos limites da criao livre ou da autonomia , o trabalhador no
canteiro reduzido a um autmato heteronomia mxima. Operriosque trabalham em obras de Gehry armam que no podem conar na
sua experincia e intuio para acertarem, pois devem obedecer apenas
ao comando da mquina. Cada pea encaixa em um espao reticulado
imaginrio, ditado pelas coordenadas do sotware. Nenhum nico erro
permitido, sob pena das demais peas no encaixarem ao nal. Dada a
preciso dos cortes em mquinas de controle numrico, a menor imper-
eio pode comprometer todo o conjunto. Em uma estrutura convencio-
nal, um erro de centmetros pode ser corrigido pela equipe que executar
a alvenaria, mas em um edicio de Gehry, com curvas em espiral, essescentmetros em um determinado ponto podem se multiplicar em outro
ponto. Como arma um engenheiro de obra, o velho ditado, voc mede
duas vezes e executa uma, no vale para uma obra como essa, pois voc
tem que medir cada ponto uma dzia de vezes. A consequncia que o
tempo despendido e o custo se elevam. Um jovem operrio encarregado
da montagem arma: um pesadelo! Dois milmetros ora numa primei-
ra junta e voc ter vinte ora na outra ponta. Um pesadelo!26.
Ou seja, a entrada do projeto na era digital-miditica, no caso
de Gehry (mas no s), no levou a uma produo igualmente meca-nizada, mas a canteiros cujas montagens so ainda artesanais, em que
os operrios no tm, entretanto, qualquer liberdade prpria ao arteso
so mquinas reproduzindo e encaixando a cada milmetro as curvas
projetadas pelo arquiteto. So peas especiais, nicas, de supercies
no pensadas originalmente para garantir uma cil execuo na pr-
tica, um desrespeito pela produo, to ao gosto do capital nanceiro.
O ltimo projeto de Gehry para o Guggenheim ser a nova lial do
museu em Abu Dabi, capital dos Emirados rabes, enclave paradigmtico
da nova economia rentista, como bem descreveu Mike Davis27. Nessa obra,
Gehry teria trabalhado sem restrio oramentria, com o objetivo cones-
so de superar Bilbao, por solicitao de Thomas Krens e dos magnatas do
petrleo. O projeto, numa pennsula do Golo Prsico (o mesmo que tem
abrigado diversas outras intervenes do poder americano), uma repeti-
o das rmulas desconstrucionistas anteriores, mas em escala muito supe-
rior no deixando de lembrar Bagd bombardeada. O projeto participa da
transio da renda petroleira (naquele momento em alta28, mas algum dia
27. DAVIS, Mike. Sand,ear and money in Dubai.
In: Evil paradises. NovaIorque: The New Press,2007. Segundo Davis,
os Emirados rabes,comandados por um
xeique que ao mesmotempo emir e CEO dos
grandes empreendimen-tos, unicaram poder
poltico e econmico sobum s comando, numa
verdadeira apoteosedos valores neolibe-
rais do capitalismocontemporneo: uma
sociedade que poderiater sido desenhada por
economistas da Uni-versidade de Chicago.
E alcanaram o quepara os conservadoresamericanos era apenas
um sonho: construir umosis de livre iniciativa
sem impostos de renda,sindicatos e partidos de
oposio (no h elei-es), abastecido pelo
fuxo da renda petroleiraem alta (p. 60.).
26. C. How to make aFrank Gehry Building,New York Times, Nova
Iorque, 08 abr. 2001.
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28. Uma alta especula-tiva, pois se trata de um
preo que presenticaum uturo de escasseze az uma comparaocom outras aplicaes
nanceiras, pouco tendoa ver com o custo de
produo.
29. DAVIS, Mike.Op.cit., p. 65.
30. C. O capital. SoPaulo: Abril Cultural,
1988, t. 1, liv. I,p. 184-203. No caso, ani-quilamento em sentidoestrito; segundo Javier
Montes, s em 2004,Paquisto, ndia e Ban-
gladesh repatriaram 880
cadveres de trabalha-dores da construo civil.Ver Arquitectura Viva,
n. 111, Madri, 2006, p. 36.
31. DAVIS, Mike.Op.cit., p. 65.
32. Uma comisso deempresrios brasileiros
da construo civil este-ve nos Emirados rabesem busca de novidades
para a organizao de
seus canteiros, e encon-trou l um verdadeiro
paraso da exploraodo trabalho. Carlos Leal,do Sinduscon, voltandoda viagem armou que
l no existe pater-nalismo, o que torna
a relao empregadorempregado mais trans-
parente e correta. Aeuoria dos empresriosoi descrita em Dubai e
os megaprojetos, Revis-
ta Construo Mercado,n. 60, jul. 2006.
33. Tomo aqui empres-tada a expresso de
Roberto Schwarz para sereerir ao Brasil em Fimde sculo (Sequnciasbrasileiras. So Paulo:Cia. das Letras, 1999).
em extino) para as novas ormas de rentismo como parques temticos,
hotis espetaculares, novos museus de grie, ilhas da antasia, centros nan-
ceiros de lavagem de dinheiro etc.
A outra ace de obras como essa a extrao bruta de mais-valia: os
canteiros de obras nos Emirados (e o novo Guggenheim no dever ser exce-
o) so verdadeiros campos de trabalho semiescravo, povoados por imigran-
tes desprovidos de direitos e qualquer proteo trabalhista ou sindical. ContaMike Davis que o boom na construo (que emprega um quarto da ora de
trabalho) transportado nas costas de um exrcito de paquistaneses e indianos
mal pagos, trabalhando em viradas de 24 horas, seis dias e meio por semana,
num calor de derreter o asalto29. Sem limites legais e morais que o rereiem,
o capital tem como impulso natural a suco desmesurada da ora de traba-
lho, at o limite de sua exausto prematura e aniquilamento30.
Sua reproduo social tambm oi planejada de modo que
os operrios se tornem invisveis aos visitantes. Ainda segundo Davis,
alojamentos sombrios nas perierias, nos quais seis, oito ou at dozetrabalhadores so amontoados num nico quarto, em geral sem ar-con-
dicionado ou banheiros uncionando, so necessrios para garantir aos
turistas a imagem ocial da cidade suntuosa, sem pobreza ou avelas31.
Nada muito dierente do que se passou com os candangos na cons-
truo de Braslia, cinquenta anos antes com a dierena de que aqui
havia a promessa de um dia eles se tornarem cidados32.
A imaterialidade das novas ormas, assim, est longe de pairar no
ar. Com a crise do Welare, a nova riqueza pode se assentar livremente na ve-
lha mquina de extrao sem peias de mais-valia absoluta, uncionando semdescanso para ampliar a acumulao e contrabalanar a tendncia de queda
da taxa de lucros nos setores que dispensam trabalho vivo. Os Emirados
rabes evidenciam de orma extremada um enmeno que ocorre em escala
global de orma quase generalizada. Mesmo nos pases centrais, os cantei-
ros de obra representam uma espcie de vanguarda da desintegrao33 do
mundo do trabalho: concentram trabalhadores imigrantes e de origem tni-
ca, precarizados do ponto de vista dos direitos, com baixos salrios e jorna-
das extensas, submetidos a riscos permanentes de acidentes e intoxicaes,
alm do alto grau de inormalidade decorrente das cadeias de subcontrata-
o, o que tambm representa baixo grau de sindicalizao34.
E quanto mais as diversas ormas de rentismo levam a uma re-
distribuio perversa do lucro social, apropriando-se de atias considerveis
dele sem levar em conta as reais propores da produo, mais se exige dos
setores produtivos que ampliem a explorao. Na mundializao nanceira,
ormas modernas e arcaicas seguem se articulando, mas com o sinal inverti-
do: o rentismo passa a polo moderno e o setor produtivo, a arcaico.
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Associada a todos esses eitos, e por isso mesmo, a marca Frank
Gehry atualmente explora a venda de sotwares de projeto mais uma orma
de renda, a renda do saber, devidamente protegida pela cerca das patentes.
Suas obras servem de publicidade das possibilidades do sotware que seu es-
critrio desenvolveu, o Digital Project (uma adaptao do Catia para a cons-
truo civil, associada a programas de planejamento e gesto de obra), em
parceria com a Dessault e a IBM. A empresa Gehry Techonologies prometeaos usurios a chance de criar com a mesma liberdade que tornou Gehry um
mito, o que os outros programas no permitem. Mas se no or esse o caso,
a erramenta promete ser eciente para melhorar a produtividade em obras
convencionais. Gehry j equipou os 3 mil prossionais do maior escritrio
de arquitetura do mundo, o SOM (Skidmore, Owings and Merrill), e vende
pacotes para a China o maior canteiro de obras de que j se teve notcia35.
Rumo desmaterializao
Para que nosso argumento no que restrito ao mais espetacular e
polmico dos arquitetos contemporneos, seria necessrio pelo menos indi-
car que ele vlido igualmente para diversas obras dos demais arquitetos-
estrela de hoje entre eles, Rem Koolhaas (no Centro de Convenes em
Lille, na torre da CCTV em Pequim ou no complexo turstico de Jebel al
Jais), Jean Nouvel (tanto na torre Agbar, em Barcelona, e sua similar, em
Doha, quanto na pera de Dubai), Zaha Hadid (s nos Emirados rabes, o
Museu de Artes Cnicas de Abu Dabi e as torres Signature de Dubai, coas-
sinadas por Schumacher), Daniel Libeskind (com seu projeto para o museujudaico de Berlim ou o marco zero do World Trade Center) e tantos outros,
como o mais high-tech dos arquitetos contemporneos, Norman Foster (que
deixou sua marca denitiva na City de Londres, alterando totalmente seu
skyline ou projetando o maior aeroporto do mundo, em Pequim, na orma
de um drago competindo com as estaes, aeroportos e pontes do no
menos requisitado por suas estruturas orgnicas e high-techs, a multiplicar
asas de pssaros mundo aora, o espanhol Santiago Calatrava). Quase to-
dos agraciados pelo Nobel da arquitetura, o prmio Pritzker.
Para eeito demonstrativo, detenho-me apenas nos arquitetos su-
os tambm vencedores do Pritzker, em 2001, Jacques Herzog e Pierre de
Meuron, deensores conessos da arquitetura de marca, como se viu na
abertura deste texto, e que se tornaram amosos graas reorma, nos anos
1990, da usina que passou a abrigar a New Tate, em Londres.
A dupla adota uma proposta esttica em seus projetos em certo
sentido oposta de Gehry, utilizando ormas geomtricas relativamente sim-
ples, como, por exemplo, no projeto da Bodega Dominus, um retngulo de
34. Ver, por exemplo, aanlise comparativa da
pioneira desconstru-o dos direitos sociais
na construo civil nacoletnea organizadapor BOSCH, Gerhard;
PHILIPS, Peter. Building
chaos: an internationalcomparison o deregu-
lation in the construc-tion industry. Londres:
Routledge, 2003.
35. Inormaes dispo-nveis em: http://www.
gehrytechnologies.com.
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espessas paredes de pedras justapostas, como gabies, e na planta triangular
do Frum das Culturas, em Barcelona. Suas estruturas so, em geral, mais
racionais, moduladas h, por assim dizer, uma promessa de produtividade,
de pr-abricao de componentes. Mas o que nos interessa aqui o ato
dos arquitetos suos, mesmo nos projetos aparentemente mais contidos,
explorarem progressivamente o tratamento das peles at seu limite.
No custa insistir: a prevalncia das supercies em relao s es-truturas o que permite a mgica de sua desmaterializao e transormao
em imagem miditica. Elas possibilitam quebrar a massa, a densidade e o
peso aparentes de prdios gigantescos, como armou Charles Jencks36. A
arquitetura ps-moderna quer diminuir a massa e o peso enquanto enatiza
o volume e o contorno a dierena entre o tijolo e o balo, na expresso
de Jameson, ou entre modernidade pesada e modernidade leve ou lquida,
nos termos de Bauman. So princpios que j esto presentes em parcela
da arquitetura moderna, mas agora so projetados em um mundo espacial
inteiramente discrepante, pois j no operam de acordo com as oposiesbinrias modernas, explica Jameson.
Wolgang Fritz Haug, ao analisar a abstrao e o etiche na
esttica das mercadorias, aponta justamente o elemento de supercie, a
embalagem envoltria da mercadoria, como componente undamental.
Segundo ele, existe uma dierenciao estrutural que permite libertar a
supercie de qualquer uncionalidade que no a de aderir mercadoria
como uma pele, lindamente preparada, no apenas como proteo
envoltria, mas como verdadeiro rosto a ser visto antes do prprio cor-
po da mercadoria. A supercie torna-se, uma nova mercadoria, explicaHaug, incomparavelmente mais pereita que a primeira, e desprende-
se desta descorporicando-se e correndo pelo mundo inteiro como um
esprito colorido da mercadoria, circulando sem amarras37.
Herzog e De Meuron demonstram ousadia na experimentao
de epidermes arquitetnicas cada vez mais inusitadas e imateriais. Pas-
saram de uma experincia de arquitetura mais monoltica, com texturas
em pedra, cobre e chapas enerrujadas, para invlucros sempre mais
leves e high-tech. Sejam vidros serigraados e suportados por aranhas
metlicas, como na biblioteca de Brandenburgo; placas polimricas que
reratam a luz de orma multicolorida, no centro de dana Laban, em
Londres; losangos de vidros cncavos e convexos na Loja Prada de T-
quio; ou as membranas infveis do Allianz Arena, o estdio de Munique
que sediou a abertura da Copa de 2006.
Este ltimo um dos grandes eitos da dupla sua. Jacques Herzog
arma que o estdio se tornou um modelo de projeto-logo [marca] para um
pas ou um clube, uma erramenta para entrar em um mercado38. O estdio
36. Apud JAMESON,Fredric. O tijolo e o
balo. In: A cultura dodinheiro. Petrpolis:Vozes, 2001, p. 202.
37. HAUG, Wolgang Fritz.Crtica da esttica da
mercadoria. So Paulo:Unesp, 1996, p. 75.
38. Apud GALIANO, LuisFernndez Galiano.
Op. cit., p. 26.
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uma das edicaes esportivas mais miditicas j construdas para um grande
evento, com sua imagem surpreendente, como um enorme pneumtico ilu-
minado (de azul, vermelho ou branco), divulgada pela mdia incessantemente
para os quatro cantos do globo. As imagens da arena em construo revelam
a tcnica de abstrao do projeto39 anal, como tornar um pesadssimo est-
dio em algo leve como um balo? A estrutura interna relativamente conven-
cional: arquibancadas em concreto aramado, coroadas por uma cobertura detrelia metlica. Nada muito dierente da gerao de estdios construdos na
Europa nas ltimas dcadas. Para quem acompanhou as etapas da construo,
a surpresa cou por conta do momento em que a supercie infvel e ilumina-
da comeou a ser aplicada sobre o corpo do edicio, at o momento em que a
cobertura membranosa passa a envolver toda a estrutura de concreto e o eeito
mgico se completa. A iluminao, que nos demais estdios concentra-se em
seu interior, dirigida tambm para o exterior: dentro, o espetculo esportivo,
ora, o espetculo arquitetnico, capitalizando a cidade de Munique, a alta
tecnologia alem e os prprios arquitetos.
Graas ao sucesso desse projeto, a dupla H&dM oi imediatamente
contratada para o projeto do estdio olmpico de Pequim-2008, um emara-
nhado de ormas lineares e vazadas, desenhado em computador, conorman-
do elementos estruturais e ornamentais em ao. Nesse caso, estrutura, pele e
ornamento se undem em um nico sistema. A trama estrutural orma uma
textura similar a um ninho de pssaro ou a um cesto de palha. O edicio
todo vazado, embora o seu interior no seja visvel de ora, apenas a cobertura
envolvida por uma membrana, que tem a mera uno de proteger as arqui-
bancadas das intempries. No Ninho, o que conta a estrutura tornada ela
mesma um grande ornamento, alm de permitir a irradiao para o exterior de
luzes amarelas e vermelhas, tal qual uma grande exploso de ogos de articio,
como se viu na abertura dos Jogos Olmpicos.
39. O canteiro do Allianz
Arena apresentado nodocumentrio Construin-do o superestdio, de Su
Turhan e Silvia Beutl,2005 (45 min.), Disco-
very Channel. A obra oiexecutada por 1,5 mil
operrios de 20 pasesdierentes, em regime detrs turnos, para cumpriro prazo de inaugurao
exigido pela Fia.
Centro de So Paulo. In:Polticas Pblicas para o
Centro: Contexto Atual eParticipao Social. SoPaulo: Polis/Care, 2008.
Aplicao damembrana infvel
e iluminada sobre aestrutura do estdio
Allianz Arena (H&dM)
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Pedro Fiori Arantes Forma, valor e renda na arquitetura contempornea105
Em So Paulo, a dupla Herzog & de Meuron oi contratada em
2008 para executar um edicio cultural que congrega salas de dana, pera
e escolas de msica e bailado, que ir complementar o cluster cultural da
cidade na regio da Luz (do qual j azem parte a Sala So Paulo, a Pinaco-
teca do Estado, um Centro Cultural no antigo Dops e o Museu da Lngua
Portuguesa) e para onde se pretende transerir a sede do governo do Estado
e algumas de suas secretarias. O empreendimento lindeiro chamadacracolndia, regio que est sendo renovada com o nome de marketing de
Nova Luz, com o objetivo de atrair empresas de Tecnologia da Inormao
e Universidades, por meio de incentivos scais40. Apesar do edicio de
H&dM ser projetado como uma praa pblica em nveis, dispostas como
lminas de um doce mil-olhas, entre as quais esto acomodados os volumes
echados dos equipamentos culturais, seu trreo ser controlado por catra-
cas e o acesso principal aos espaos de espetculo ocorrer por uma rampa
monumental, intimidadora, ou por dentro dos estacionamentos pagos, para
quem chegar de carro. O resultado , a despeito dos propsitos mais gene-rosos dos arquitetos, uma arquitetura que segrega e escolhe o pblico que
pretende atrair. Como armou o Secretrio da Cultura poca, Joo Sayad,
estamos receosos em azer um edicio aberto cidade, la europeia, esta-
mos com medo dos drogaditos da regio tomarem aquele espao l, talvez
seja melhor azer um castelo41. Nesse caso, a arquitetura sot de peles e
transparncias parece no resistir segregao social hard de pases desi-
guais e violentos como o nosso.
Evidncia da crise
A arquitetura de ormas liqueeitas, de contorcionismos polimoros
e malabarismos cenogrcos um dos sinais mais inequvocos do atual cur-
so do mundo. Sua deormidade e instabilidade visual evidenciam plstica e
tecnicamente a desmedida prpria acumulao capitalista, agravada pela
dominncia nanceira. Formas complexas e diceis de executar no apenas
expressam visualmente o capital que se pretende sujeito de uma autovaloriza-
o, como tambm so, elas prprias, mercadorias no acilmente calculveis
do ponto de vista do trabalho socialmente necessrio. So obras em que valor
e preo se descolam e nas quais a dominncia da circulao dene seu carter
rentista e especulativo. Nelas se maniesta a seu modo a dinmica de valoriza-
o enlouquecida do capital no momento em que este procura desenreada-
mente dissociar-se de seu undamento, o valor-trabalho.
No casual que a procura pela renda mxima assuma o comando
do processo, condenando as oras produtivas realizao de objetos ar-
quitetnicos exclusivos, ao invs da produo em massa, como pretendiam
40. ARANTES, Pedro.Interesse pblico, pode-
res privados e prticasdiscursivas na poltica de
renovao do
41. Entrevista ao autor.
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os modernos. A prouso de obras que assumem a orma-tesouro tanto
uma exigncia da renda monopolista quanto refexo do excedente absoluto
de capital sobreacumulado que no encontra condies objetivas para sua
valorizao por meio do trabalho vivo. Esse capital se desvia para outras
aplicaes menos tradicionais e, na observao de Jorge Grespan, o setor
privilegiado desse redirecionamento oi o imobilirio, que assim se conver-
tia cada vez mais em lastro real para as operaes de crdito42.A arquitetura na era digital-nanceira, que procura contradito-ria-
mente negar seu peso e o peso do trabalho, e alcanar o mundo mgico da
valorizao imaterial a antecipao, na orma tectnica, da prpria crise
enquanto potncia, na expresso de Marx uma arquitetura infada como
um balo, seja em sua plstica quanto em sua remunerao por meio da ren-
da. Seguindo a lgica do capital nanceiro, possvel perceber na procura
compulsiva da autovalorizao, caracterstica dessa arquitetura autocentra-
da como uma mnada especulativa, o uncionamento de uma mquina de
azer dinheiro s custas das cidades em que pousou. Nela, a produo emexcesso aparece como a prpria produo do excesso.
Se o crescimento desproporcional do capital ctcio em relao aos
ativos reais era o prenncio de uma crise de grandes propores, a arqui-
tetura das dcadas neoliberais no deixou de ser igualmente um sintoma
do excesso especulativo e da concentrao de capitais. As cidades e corpo-
raes, ao investir em obras-chamariz, imaginavam sustentar parte de seu
crescimento por meio dessa peculiar capacidade de atrair capitais exceden-
tes de todo o planeta. Tais investimentos, como j dissemos, no s sinali-
zavam a crise do Welare como eram parte de um confito distributivo dariqueza social, no qual os trabalhadores perdiam. No mesmo momento em
que o pleno emprego rua e os programas de assistncia social eram des-
montados e parcialmente privatizados, prolieravam polticas do espetculo
e de animao cultural.
Com os recursos pblicos sendo drenados na crise econmica de
2007-2009 para socorrer o sistema nanceiro, as obras suprfuas ou especula-
tivas tambm comearam a ser canceladas. Os investidores realizam posies e
retiram suas chas do setor imobilirio em queda. Para preeituras e governos,
multiplicar complexos edicios em torno da cultura do excesso passa a ser algo
considerado um tanto descabido (mesmo se do ponto de vista keynesiano repre-
sente um aumento da demanda agregada). Dezenas de grandes obras j con-
tratadas pelos arquitetos-estrela oram canceladas desde o m de 2008. Frank
Gehry e Norman Foster, por exemplo, demitiram, respectivamente, 50% e 30%
de seus uncionrios. O paraso rentista dos Emirados rabes, para onde os ar-
quitetos-estrela acorrem em busca de encomendas aranicas, aps reduo de
50% do valor de seus imveis, pediu moratria, como oi amplamente noticiado.
42. GRESPAN, Jorge. Acrise de sobreacumu-lao, Crtica marxista,
Campinas (SP), n. 29,2009.
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Mesmo assim, inaugurou em janeiro de 2010 o maior arranha-cu (vazio)43 do
mundo, construdo pela euoria rentista da ltima dcada. O Burj Dubai um
emblema de uma era de abundncia de capitais a procura de ormas espetacu-
lares que parece suspensa ao menos por um tempo.
Como armou Frank Gehry em entrevista recente: os tempos do
excesso acabaram. Acabou-se o desperdcio e preciso enrentar esse desao.
No sei se isso bom ou ruim, mas o que h. preciso poupar energiae dinheiro44. Nicolai Ourousso, crtico de arquitetura do New York Times,
declara que se trata do m melanclico de uma poca. E vaticina: o mo-
vimento de exploso de novos museus de arte, salas de concertos e centros
de dramaturgia que, nas ltimas dcadas, transormaram as cidades de todo
o pas est ocialmente encerrado. O dinheiro acabou e sabe-se l quando
estar de volta45. Do outro lado do Atlntico, o colunista do The Guardian,
Jonathan Glancey, az a mesma indagao: A era da ostentao chegou ao
m?, e arma que a dcada esteve repleta de especulao nanceira e con-
sumismo urioso; inevitavelmente, a arquitetura seguiu esse rumo46
.A crise global de 2007-2009, portanto, permite rever sob novo pris-
ma histrico o conjunto de enmenos que estamos analisando, uma vez que
a derrocada nanceira aeta essa arquitetura pelos dois lados: o do dinheiro e
o do simbolismo que ela carrega. Excesso e desperdcio no so as qualidades
mais recomendadas para uma produo abalada pela nova onda de escassez.
Sobriedade e moderao podem voltar a ser requisitadas, e mesmo premiadas,
como j oi o caso de Zumthor, com o Pritzker em 2009.
Novas agendas emergentes disputam a sucesso do ciclo que
aparenta se encerrar ou, ao menos, car provisoriamente suspenso. Almda crtica meramente moralista e simplicadora arquitetura do exces-
so e ao consumo de luxo, a agenda que parece decididamente avanar
triunalmente e ocupar cada vez mais espao a da chamada arquitetura
sustentvel ou verde. Isso porque, apesar da crise e do aumento do de-
semprego e das desigualdades, uma agenda social parece no despertar
o menor interesse de arquitetos do jet set que se declaram abertamente
ps-utpicos e contra qualquer ideologia, ainda que reormista. De
outro lado, mesmo que polticas sociais de habitao possam retornar
a ordem do dia como o caso, por exemplo, do programa ederal de
construo de casas populares no Brasil os arquitetos parecem j no
ter mais nada a dizer ou a azer, enquanto os negcios imobilirios e da
indstria da construo tomam conta do terreno47.
Com o impacto da crise, a agenda da arquitetura sustentvel,
que j despontou com ora na dcada passada, parece agora ser capaz de
tornar-se hegemnica, inclusive entre os arquitetos-estrela. Como arma
(ou lamenta) Gehry, na mesma entrevista, o caminho inevitvel parece
43. Esta literalmenteuma super Empty Tower,
como previra o grupoTablado de Arruar em sua
pea A rua um rio (2007),inspirada na pesquisa
de Mariana Fix sobre astorres vacantes em So
Paulo. Alis, o enmeno
parece multiplicar-semundo aora.
44. Entrevista a MiguelMora, do El Pas, reprodu-zida na Folha de S.Paulo,
So Paulo, 31 jan. 2010.
45. Artigo reprodu-zido em O Estado de
S.Paulo, So Paulo,8 nov. 2009.
46. Artigo reproduzido emO Estado de S.Paulo,
So Paulo, 26 dez. 2009.
47. Sobre o MinhaCasa, Minha Vida,
ver o meu texto comMariana Fix, Como o
governo Lula pretenderesolver o problemada habitao, 2009.
Disponvel em: http://www.correiocidadania.
com.br/content/
48. Entrevista a Miguel
Mora. Op. cit.
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ser azer arquitetura verde, agora tudo precisa ser verde48. Essa arquite-
tura tambm pode ser mobilizada para avorecer a marca, a distino e a
inovao ostensiva que atraem esses prossionais.
Como os arquitetos que dominaram o campo prossional at o
momento vo se reposicionar em uno dessa prxima ronteira a ser
desbravada, o ciclo verde, ainda uma incgnita. Nessa redenio das
agendas e dos valores dominantes, as estrelas da exceo aro de tudopara preservar sua posio, enquanto uma nova gerao dever aprovei-
tar o momento para tentar ascender. Enquanto isso, a crise aumenta a
pobreza e a precariedade de centenas de milhes de indivduos atolados
em catstroes ambientais e sociais em um planeta avela, como Mike
Davis denominou a urbanizao acelerada e sem salvao na perieria, e
no s, do capitalismo. Um planeta sombrio que nenhuma estrela pre-
tende iluminar.
Mas talvez no seja de estrelas que esse planeta precisa, muito
menos do marketing verde, mas de prossionais de outro tipo. No caso doarquiteto e urbanista, um prossional que entenda de mosquito, de rato,
de conteno de encostas, de reagenciamento de espaos, de enchentes
e tambm de comunicao visual para uma populao avelada, como
deniu certa vez o proessor Jorge Oseki49.Um prossional ormado em
universidades que deveriam ensinar um saber-atuar que integre os vrios
saberes parcelares, como meio para transormar o cotidiano vivido pelas
maiorias. Mas no se trata de uma ormao meramente prtica, muito
menos de um surto voluntarista da inteligncia tcnica, apesar de indis-
pensvel, como acabamos de lembrar. Ainda se trata de um prossionalormado segundo a melhor tradio crtica, capaz de atuar no apenas
como agente reparador, mas tambm como sujeito mobilizador da vonta-
de e da imaginao das populaes que a espoliao urbana oi deixando
pelo caminho. Para isso, s uma teoria radical permitiria conceber a ao
prtica no sentido orte de prxis. Dimenso ultimamente negligenciada,
mesmo nos crculos em princpio mais exigentes, sob pretexto de que,
estando a via transormadora bloqueada, toda prxis estaria condenada a
reproduzir o estado de coisas also que justamente procura superar.
49. Entrevista revistaCaramelo, n. 10, FAU-
USP, 1998. Jorge Osekioi meu orientador de
doutorado e aleceu emdezembro de 2008. Termi-no de escrever este artigo
no momento em quequase mil pessoas orammortas por deslizamen-
tos de casas em encostasda regio serrana do Rio
de Janeiro.
Pedro Fiori Arantes arquiteto e urbanista, doutor pela FAU-USP e proessor de arte earquitetura contemporneas no curso de Histria da Arte da Universidade Federal de SoPaulo. autor do livro Arquitetura Nova (So Paulo, Editora 34, 2002). coordenador daentidade civil sem ns lucrativos USINA, que assessora movimentos populares na luta porreorma urbana e na construo de moradias.
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