“Roland Corbisier e a campanha civilista por JK – uma luta política”
Fabrício Augusto Souza Gomes1
Em 1954 o cenário político brasileiro encontrava-se num momento bastante conturbado. Em
agosto, o presidente Getúlio Vargas suicidara-se com um tiro no peito, e seu vice-presidente,
João Café Filho, assumira a Presidência com um discurso de conciliação, congregando em seu
governo, as principais forças de oposição a Vargas e ao trabalhismo. As eleições presidenciais
estavam marcadas para outubro do ano seguinte e caberia a Café Filho conduzir o processo
político, de transição, rumo ao pleito eleitoral que definiria o novo presidente da República.
Naquele malfadado mês, Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier, um professor de
filosofia, também formado em Direito pela Faculdade Nacional, no Largo de São Francisco, e
ligado nos anos 1930 à Ação Integralista Brasileira, trabalhava como secretário-geral e
coordenador da Assistência Técnica de Educação e Cultura (ATEC) – órgão ligado ao
Ministério da Educação e Cultura2. Em 1954, Corbisier deixara o cargo de diretor da Divisão
de Ação Social da Reitoria da Universidade de São Paulo, transferindo-se para o Rio de
Janeiro, onde acabara de fixar residência, rompendo não só laços profissionais, mas também
familiares.
Na ocasião, ele não desempenhava nenhum envolvimento político-partidário. Conhecera
Juscelino Kubitschek, político mineiro e governador de Minas Gerais pelo Partido Social
Democrático (PSD) através do poeta Augusto Frederico Schmidt, amigo em comum de
ambos, na casa do engenheiro Israel Klabin. O objetivo da reunião era apresentar Juscelino a
um grupo de intelectuais – paulistas e cariocas - que vinha se reunindo periodicamente na
cidade fluminense de Itatiaia para discutir as principais questões nacionais e que haviam
1 Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Doutorando em História, Política e Bens Culturais.
2 A ATEC era formada por um grupo de pensadores reunidos para analisar a situação da educação e cultura no
Brasil, sugerindo ações a serem implementadas nessas áreas, fiscalizar a atuação e os projetos do Ministério da Educação e Cultura, além de servir como órgão consultivo para o ministro titular da pasta e o Congresso.
fundado o Instituto Brasileiro de Sociologia e Política (IBESP), no Rio de Janeiro. Aquele
grupo de intelectuais deveria assessorar “JK” durante - e depois – de sua campanha eleitoral,
rumo à Presidência da República. Corbisier conhecia vagamente o candidato mineiro, mas
simpatizara com suas propostas.
Em dezembro daquele mesmo ano, Roland Corbisier comandaria um programa radiofônico
diário, na Rádio Mayrink Veiga, no Distrito Federal. O programa, que teve início em 20 de
dezembro de 1954, ficou no ar até o dia 02 de junho de 1955, e tinha como objetivo discutir o
cenário político brasileiro naquele momento, comentar o dia a dia dos (potenciais) candidatos
à Presidência da República, além de avaliar suas propostas e contradições no período que
antecedia as eleições presidenciais em 1955. Os programas assumiam uma posição
notadamente legalista e principalmente de defesa à candidatura de Juscelino Kubitschek –
candidato da legalidade e da ordem constitucional - nas eleições daquele ano. A série de
programas fora iniciada em meio a um clima carregado de ameaças, intimidações e boatos.
Corbisier vivenciara de perto os acontecimentos que antecederam a morte de Vargas. Estivera
na casa de Café Filho na madrugada de 24 de agosto de 1954, levado por seu amigo Mário
Pedrosa. Observara políticos e militares opositores ao governo. Seu engajamento na luta
sucessória se dera, portanto, diante do suicídio do presidente e à mudança no cenário político
do país. Para ele, a luta contra Vargas seria a mesma luta que se travaria contra JK. Em suas
memórias, décadas depois, seriam as mesmas forças que golpeariam a democracia em 1964.
Juscelino fora indicado, pelo diretório regional do PSD, à Convenção Nacional do partido.
Era, portanto, candidato a candidato. Mas essa simples indicação já mobilizava adversários
políticos – os mesmos, segundo Corbisier, que tramaram a renúncia e impeachment de
Vargas, naquele ano.
Em seu primeiro programa de rádio, apresentou aos ouvintes qual seria a linha de conduta dos
programas, defendendo o sentido da campanha de JK à Presidência da República. Discutiu o
lançamento de sua candidatura, que ia de encontro ao desejo de determinadas forças políticas,
que defendiam uma candidatura única, de conciliação, de união nacional – desejo
compartilhado também pelo presidente Café Filho.
“O candidato único, assim como o programa ou partido único, contrariam a
essência do regime democrático, que postula a variedade , a multiplicidade de
opiniões. A gravidade da situação nacional não justificaria a imposição ao
eleitorado, de um só candidato, pois semelhante imposição implicaria no confisco
de sua liberdade de escolha. O que assegura essa liberdade, e a possibilidade de
exercê-la concretamente, é a pluralidade das candidaturas. Os partidos políticos
existem para drenar e organizar a opinião pública, apresentando ao eleitorado os
nomes que consideram mais representativos e mais aptos para o exercício das
funções públicas.” (CORBISIER, 1976: 25-26)
Finalizava, com um aviso àqueles que desejassem tumultuar o ambiente político e eleitoral:
“Queremos deixar bem claro o seguinte: estamos dispostos a repelir com maior
energia qualquer tentativa de intimidação, qualquer ameaça, venha de onde vier.
Não suportamos mais essa atmosfera de terrorismo que vem se criando na capital
do país. Queremos a luta, que, normal em regime democrático, é salutar, porque
estimula e galvaniza. Evitaremos o debate no campo pessoal, procurando mantê-lo
no plano dos princípios, das idéias, dos programas. Mas não recusaremos a luta,
onde quer que ela se nos apresente. A sorte está lançada e, se não depende de nós
forçar a vitória, de nós depende lutar até o fim”. (CORBISIER, 1976: 26-27)
Ao longo dos programas, Roland Corbisier centrava comentários e análises em cima de
alguns nomes: Odilon Braga - deputado federal da União Democrática Nacional (UDN) no
Distrito Federal e presidente do partido entre 1950 e 1952, sendo um de seus fundadores3;
Etelvino Lins, que fora governador de Pernambuco e era ministro do Tribunal de Contas da
União, indicado pelo presidente Café Filho; Carlos Lacerda – jornalista, diretor do jornal
Tribuna da Imprensa, pertencente à UDN e fundador do Clube da Lanterna; e o general Juarez
Távora, que integrara a Coluna Prestes e apoiara a Revolução de 1930, sendo apelidado de
Vice-Rei do Norte, por causa da sua influência nas forças nordestinas que apoiaram Getúlio
Vargas naquela ocasião. Anos depois, o general romperia com Vargas, conspirando a favor da
queda do presidente, em 1954.
O deputado estivera presente numa reunião do Clube da Lanterna, realizada na sede da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e fizera o discurso de encerramento, abordando o
problema da sucessão presidencial, desenvolvendo a tese de que as forças democráticas não
3 Odilon Braga havia concorrido, nas eleições presidenciais de 1950, na chapa do brigadeiro Eduardo Gomes,
como vice-presidente.
deveriam se deixar envolver pelos golpes políticos daqueles que mantiveram relações estreitas
com a oligarquia que deixara o poder em 24 de agosto.4 Naquela reunião, a Comissão Diretora
Nacional do Clube da Lanterna, representada por seu presidente, Amaral Neto, e seus
dirigentes Raimundo Padilha e Odilon Braga, aprovara um telegrama, que seria enviado a
Carlos Lacerda – fundador do Clube da Lanterna – que encontrava-se na Europa. A seguinte
nota foi distribuída para a imprensa e publicada no Diário de Notícias, em 28 de novembro de
1954:
“A Comissão Diretora Nacional do Clube da Lanterna, com a aprovação dos
diretórios de São Paulo, Pernambuco e Bahia, com o referendo do Conselho
Nacional, resolveu tornar pública a sua repulsa formal à candidatura do sr.
Juscelino Kubitschek para a Presidência da República. Essa deliberação foi tomada
tendo em vista as origens da tal candidatura. Considera o Clube da Lanterna como
um acinte e uma audácia dos que exploram e roubam este país há quase vinte e
cinco anos, a apresentação do nome do governador de Minas. A partir desta data, o
clube realizará em todo o país sistemática campanha contra a candidatura em
apreço.
(...) A candidatura Juscelino nasceu de um conluio de gregorios, viúvas,
dilapidadores dos dinheiros públicos e agentes da corrupção que arrasou este país,
forçando a derrota dos bravos, honestos e leais representantes do PSD de alguns
Estados que, por certo, não permanecerão por muito tempo ombro a ombro com
dirigentes inteiramente desqualificados para representar qualquer parcela, por
mínima que seja, da opinião pública.
A candidatura Juscelino Kubitschek é a suprema tentativa dos restos da oligarquia
Vargas para conseguirem com a eleição do governador de Minas, não só a
impunidade para os crimes que praticaram, como também um passe livre para o
retorno deste país ao regime de negociatas e favoritismos.
O lema do Clube da Lanterna nesta campanha será: “Basta de gregórios e
Juscelinos”.5
Roland Corbisier dedicara o programa do dia 21 de dezembro a comentar a entrevista de
Odilon Braga ao Diário de Notícias, quando o deputado afirmara categoricamente que a
4 Diário de Notícias. 25/11/1954.
5 Diário de Notícias. 28/11/1954. p.4.
eleição de Juscelino significaria a vitória das mesmas forças ocultas e dos mesmos homens e
processos que arruinaram o governo de Getúlio Vargas, e deixaram a nação no desespero, sem
moeda, sem câmbio, sem repouso e entregue aos círculos infernais da inflação.6 Odilon
terminava a entrevista com a seguinte declaração: “O problema não é propriamente o de
eleger um ótimo candidato e sim o de evitar, seja como for, a eleição de Juscelino e a volta da
turma do golpe e da corrupção. Recebemos de pé atrás a candidatura de Juscelino,
precisamente porque surgiu das maquinações do getulismo perigoso, isto é, dos getulistas que
muito depressa se esqueceram do chefe morto para alegremente se dedicarem a um novo
chefe.”7
Para Corbisier, Odilon Braga era dotado de falta de imaginação e de coerência, ao insistir no
impedimento da candidatura de Juscelino. O fato de pertencer ao Clube da Lanterna colocava
em dúvidas a sua credibilidade.
Em 27 de dezembro, Corbisier chamava a atenção para o clima de intranquilidade,
preocupação e alarme, e boatos sobre a sucessão e um possível golpe:
“Sabemos, de fonte segura afirma que certos grupos militares, representados pelos
coronéis, estariam propensos a interferir nos acontecimentos, impedindo a
realização das eleições e desfechando o golpe contra o regime. Somos da opinião
que o problema político deve ser posto em termos eleitorais e não em termos de
violência e de pronunciamento militar” (CORBISIER, 1976: 34)
No mesmo programa, questionava José Américo de Almeida, que fora ministro da Viação e
Obras Públicas de Vargas. José Américo compartilhava a idéia de que, se Juscelino
renunciasse à candidatura, haveria uma conciliação favorável a uma candidatura de união
nacional. Corbisier discordava dessa idéia, pois achava que a conciliação se daria em torno de
um candidato imposto pela UDN ou então oriundo da órbita militar. Afinal, o PSD era o
partido majoritário e quando seu diretório regional indicou o governador de Minas Gerais à
Convenção Nacional, a legenda exercera apenas seu direito, num regime democrático.
Portanto, qualquer proposta fora do “jogo jogado” da democracia, seria um diagnóstico de
desespero da UDN. 6 Diário de Notícias. 20/12/1954. p.4.
7 Idem.
Corbisier deixava transparecer, no programa de 29 de dezembro, que os boatos de golpe
militar eram cada vez mais frequentes na capital da República. Ele temia um novo 24 de
agosto:
“Se querem a ditadura, o salazarismo ou o naguibismo, deverão vencer
previamente a nossa resistência, a resistência de todos aqueles que não querem a
ditadura. Se querem a democracia, devem transferir a decisão para o povo e
resignar-se ao pronunciamento das urnas. Pois seria contraditório e absurdo
querer salvar a democracia instaurando uma ditadura” (CORBISIER, 1976:
37)
Em 29 de dezembro, o general Canrobert Pereira da Costa, chefe do Estado-Maior das Forças
Armadas (EMFA), dera uma declaração a O Jornal, afirmando que não haveria candidatura
militar à sucessão presidencial. “Sou um simples eleitor, interessado em que se chegue a uma
solução honesta, capaz de atender, pela polarização das forças vivas nacionais, à gravidade do
momento”8. Para Corbisier, o episódio era tranquilizador. Ele anteriormente já cobrara de
outras importantes lideranças militares, como o brigadeiro Eduardo Gomes, ministro da
Aeronáutica, e o general Juarez Távora, chefe do Gabinete Militar, a cooperação na solução
da profunda e grave crise econômica e financeira pela qual o país passava. Pela lógica de
Corbisier, se os dois militares ocupavam posições de destaque na alta hierarquia do poder,
ambos não precisariam se candidatar à Presidência para resolver os problemas nacionais. Se já
estavam no governo e frequentavam as reuniões no Palácio do Catete, seria mais fácil que
contribuíssem diretamente, no governo.
Em 05 de janeiro de 1955, o brigadeiro Eduardo Gomes recebera no Ministério da
Aeronáutica a visita da bancada da UDN na Câmara e no Senado, e também dos vereadores
eleitos no Distrito Federal, que foram até lá desejar um bom ano novo. O brigadeiro
aproveitou então para fazer um discurso de agradecimento, que seguiu a mesma linha do
general Canrobert:
“Árbitros várias vezes das crises profundas que têm afetado a existência nacional, os
militares jamais pretenderam para si as responsabilidades do governo, que deve ser
oriundo do voto popular legítimo. A nossa missão tem consistido em velar para que
8 O Jornal. 29/12/1954.
não desapareçam as liberdades do povo, e para que o nosso progresso democrático
não se revele somente na letra das leis e sim na prática efetiva da legalidade.
(...) É preciso que seja insuspeitada a base onde repousa o sistema representativo,
com inscrições eleitorais expurgadas de vícios e com formas ou métodos de escolha
indenes à violência, à corrupção ou à fraude. E, para que se cumpra o mandamento
de que todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido, faz-se necessário que
a eleição dos governantes tenha a consagrá-la a maioria absoluta dos cidadãos a cujo
critério se confiam os destinos da pátria.”9
A certa altura de seu pronunciamento, porém, o brigadeiro disse:
(...) Se o fim do Estado é promover o bem-estar dos indivíduos, através da justiça
social e da conciliação das classes, a política deve ter presente que a própria ética
reclama, no dizer de Bertrand Russell, se produzam instituições sob cuja égide os
interesses de indivíduos ou de grupos diferentes entrem o menos possível em
conflito”.10
O editorial do Correio da Manhã, na mesma edição em que o discurso do brigadeiro fora
publicado, não deixava dúvidas que este desarticulara de vez os boatos golpistas. Mas para
Corbisier, o brigadeiro não fora muito claro nas palavras. O trecho em que cita Bertrand
Russell, segundo Corbisier, seria o mais controverso, em que Eduardo Gomes parecia
desaconselhar a competição no jogo democrático. Para ele, o Exército não deveria ser uma
instituição amorfa, ausente, ou indiferente às questões nacionais. Era necessário, sim, chegar a
um entendimento com as Forças Armadas, estreitando contato com essa instituição. Não
combinaria com democracia excluir as Forças Armadas da vida política do país. Mas seria um
equívoco transferir para os quartéis a soberania nacional, já que esta não deveria ser
reivindicada com exclusividade por nenhuma classe ou grupo civil ou militar, em nome do
povo.
A possibilidade de haver um golpe era grande e continuava a ganhar as páginas dos jornais.
No dia 11 de janeiro, o jornal Última Hora publicou uma entrevista com Ernani do Amaral
Peixoto, presidente do diretório nacional do PSD, com a seguinte manchete em primeira
9 Correio da Manhã. 06/01/1955.
10 Correio da Manhã. 06/01/1955.
página: “Amaral Peixoto desmascara os pregoeiros da desordem e do golpe”. Amaral Peixoto
falou sobre a posição política do partido e da candidatura de Juscelino Kubitschek à
Presidência da República. Mas aproveitou também para questionar os métodos oposicionistas:
“Se aquilo que se quer chamar de união nacional é apenas um pretexto de
subversão das instituições em benefício de facções desesperadas pela própria falta
de ressonância no favor popular, nenhum nome mais apto a promovê-la do que
Juscelino Kubitschek.
(...) O grupo adversário, divorciado do povo, quer impor uma nova escravatura
pela injúria e difamação. Agora, na verdade, a nação está felizmente dividida: de
um lado o povo, aguardando oportunidade de dizer o que pensa e o que sente, sem
coações nem violências, ao lado dos partidos, no desempenho normal de suas
atividades, e do outro, o grupo – sempre esse grupo fatal – pondo a serviço de seus
complexos a inquietação, a maledicência, a agitação e o escândalo”.11
Corbisier concordava com Amaral Peixoto. Segundo ele, os udenistas “só defendem a
democracia quando têm a esperança de vencer, e passavam a sabotá-la quando se convencem
de que serão derrotados nas urnas”. (CORBISIER, 1976: 56)
A “união nacional” também foi tema do editorial do jornal O Globo, de 14 de janeiro de 1955:
“Desde o primeiro dia O Globo tem sido inflexível em bater-se por uma solução
nacional, sem exclusivismos personalistas, sem reabilitações dos “gregorios”, não
só os indivíduos que boiavam no “mar de lama”. 12
Um dos pontos principais que o editorial abordava era a entrevista concedida pelo marechal
Eurico Gaspar Dutra, ex-presidente da República, na véspera. O marechal desmentira boatos
de que fosse o responsável pela candidatura de Juscelino à Presidência, sendo favorável ao
exame e debate de vários nomes pela convenção pessedista:
11 Última Hora. 11/01/1955.
12 O Globo. 14/01/1944. p.1.
“Não me considero autor, nem responsável pela eventual candidatura do
governador Juscelino Kubitschek, nem no seu lançamento, nem na sua manutenção.
O PSD ainda não tem candidato”13
Corbisier mostrou-se surpreso com as declarações do ex-presidente. Disse concordar, pelo
menos nesse ponto, com o rival Carlos Lacerda: que os responsáveis pelo governo do país
fossem mais claros e explícitos em seus discursos e pronunciamentos. As declarações do
marechal foram inesperadas e desconcertantes. “Não podemos concordar com o Sr. Dutra
quando afirma que o PSD ainda não tem candidato, simplesmente porque essa afirmação não
é verdadeira”. (CORBISIER, 1976: 59)
O principal argumento de resistência à candidatura de JK, utilizado por seus adversários, era o
de que ele estaria associado ao governo Vargas, um de seus herdeiros políticos e restaurador
de um passado que eles desejavam esquecer. O alvo das críticas, porém, continuava sendo os
políticos da UDN. No programa do dia 12 de janeiro, Corbisier dizia que eles eram carentes
de senso histórico e de formação sociológica. Segundo ele, devia passar pela cabeça de um
udenista que as derrotas políticas seriam, no fundo, um atestado de sua idoneidade. Ou seja:
sua impopularidade seria diagnosticada como incapacidade do povo, não suficientemente
educado e esclarecido para reconhecer o real valor do partido. Para Corbisier, um grande
fosso separava a UDN do povo, pois este partido não teria identidade própria, exercendo um
comportamento imutável, incapaz de reconhecer e tirar lições de suas derrotas. A UDN
desconhecia o eleitorado, permanecendo longe da realidade, como marginais aristocráticos e
conservadores reacionários. Seus políticos seriam “fariseus da democracia”. Por não ter
personalidade própria, só restaria à UDN depender das Forças Armadas e, com isso, optar
pelo constante incitamento ao golpe.
No programa do dia 19 de janeiro, Corbisier associava a imprensa golpista à figura de Carlos
Lacerda, diretor do jornal Tribuna da Imprensa. Tratava-se, para ele, de uma corrente que
espalhava boatos, segundo os quais,
1) A situação no país é absolutamente anormal e, devido à sua excepcional
gravidade, seria arriscado submeter a Nação a uma luta eleitoral em grande
escala, como será a luta pela sucessão presidencial da República;
13 Idem
2) A candidatura de Juscelino Kubitschek significa uma ameaça de retorno ao
passado, à situação anterior ao golpe de 24 de agosto;
3) Levando-se em conta a gravidade da situação nacional e a ameaça representada
pela candidatura mineira, os militares deveriam interferir, a fim de vetar essa
candidatura e impor um nome em torno do qual se pudesse realizar a chamada
união nacional. Ou então dar o golpe no regime e instaurar uma ditadura militar.
(CORBISIER, 1976: 60-61)
Corbisier concordava que a situação no país era grave, mas a anormalidade absoluta era
fantasiosa, principalmente do ponto de vista eleitoral, já que apenas dois meses após a morte
de Vargas já eram realizadas eleições, em quase todo o Brasil, inclusive no Distrito Federal.14
O tom dos adversários seria de provocação, a fim de justificar a tese de que a situação seria
anormal e não comportaria eleições.
Ele falava de um comício promovido pelo Clube da Lanterna em Juiz de Fora (MG), em 15 de
janeiro – um sábado. No dia 18 de janeiro, o jornal Última Hora estampava a seguinte
manchete: “Lacerda queria que a Polícia espancasse o povo que o vaiou”. O deputado federal
Hildebrando Bisaglia, do PTB, nascido na própria cidade, deu seu depoimento à equipe de
reportagem da Última Hora:
“Cheguei a Juiz de Fora no sábado e tive conhecimento, pelos jornais locais, que o
sr. Carlos Lacerda e comitiva estavam sendo esperados para realizar um comício da
sacada do Palace Hotel, instalando a sucursal do Clube da Lanterna. Com sua
chegada pude ouvir perfeitamente vaias ensurdecedoras que me atraíram às
proximidades do local. Assisti, então, o povo em massa compacta, diante dos
oradores visitantes, manifestando-se em vaias e assobios, cada vez que os oradores
iniciavam em linguagem violenta os seus discursos. O espetáculo era realmente
impressionante. Milhares de pessoas gritavam, impedindo que os oradores, mesmo
auxiliados por possantes microfones e alto-falantes da emissora local, prosseguissem
insultando o governo e o povo mineiro. Como o sr. Lacerda tentasse continuar o seu
discurso, a reação do povo se fez ainda mais forte. Houve então uma chuva de
tomates e ovos sobre o palanque onde se encontravam os oradores udenistas.
14
Em 3 de outubro de 1954 foram realizadas eleições gerais no Brasil. Foram renovados onze governos estaduais, dois terços do Senado Federal e toda a Câmara dos Deputados e as Assembléias Legislativas.
Impossibilitados de continuar a onda de impropérios que lançava contra, para
achincalhar a honra do governo mineiro, tornaram os membros da comitiva ao
interior do Palace Hotel, onde permaneceram até uma hora da madrugada de
domingo, quando se retiraram cercados por tropas do Exército e da Polícia, fato que
impediu que novas vaias e assobios atingissem os visitantes.”15
O deputado, testemunha ocular dos fatos, finalizava assim seu relato ao jornal:
“Ausente completamente o governador mineiro da participação das ocorrências,
frisamos, entretanto, que a violência de linguagem dos membros do Clube da
Lanterna criará no Brasil um clima de hostilidade e desagregação social e política,
capaz de perturbar a marcha normal de nossa evolução moral e política. A violência
gera violência. Os membros do Clube da Lanterna receberam o que procuraram.”16
Juiz de Fora era justamente um dos redutos políticos de Juscelino Kubitschek, que no mesmo
dia e horário do comício do Clube da Lanterna estava em Manaus, cumprindo sua agenda de
candidato. Era uma cidade industrial, um centro fabril e com grande contingente operário. O
PSD era o partido majoritário na cidade.17 Para Corbisier, diante das declarações do deputado
mineiro, os “udeno-lacerdistas” não tinham como objetivo promover um comício com fins
propositivos ou de alavancar uma plataforma política. Lacerda e seu Clube da Lanterna foram,
sim, fazer um comício contrário à candidatura de JK.
“Imaginem o que aconteceria se nós promovêssemos, na rua Toneleros, um comício contra o
sr. Carlos Lacerda e o Major Vaz, ou no Galeão, um comício contra os brigadeiros?”
(CORBISIER, 1976: 62)
Corbisier não poupava adjetivos para Lacerda:
“Os rádio-ouvintes conhecem bem o sr. Carlos Lacerda, e sabem que se trata de um
homem sem nenhum senso de humor, um temperamento melodramático, quem sabe
uma vocação teatral extraviada na política e no jornalismo. Acontece que o Sr.
Lacerda, cuja suposta inteligência sofre às vezes curiosos eclipses, foi agredir o
candidato mineiro numa cidade mineira, pessedista e petebista. Que esperava o 15 Última Hora. 18/01/1955
16 Idem.
17 Composição da Cãmara Municipal de Juiz de Fora: o PSD tinha cinco vereadores; o PTB quatro vereadores e
a UDN apenas um vereador. (Fonte: TRE-MG)
führer dos lanterneiros, que o carregassem em triunfo e o cobrissem de flores?”
(CORBISIER, 1976: 63-64)
Para Corbisier, Carlos Lacerda, o “agitador da rua do Lavradio”, o “ditador dos lanterneiros”,
o “diretor da Tribuna das Empresas”18, “era um homem possuído pela fúria do anátema, da
denúncia e da provocação”.19. “O Sr. Lacerda começa a apresentar sintomas de desgaste, de
descontrole, de desequilíbrio e, em pleno desespero, agita-se freneticamente e faz movimentos
espasmódicos, desconexos, como as rãs eletrizadas”. (CORBISIER, 1976: 69) Ele achava que
com a morte de Vargas, Lacerda ficou sem ter o que dizer, ficando no vazio.
Em 20 de janeiro se dera finalmente o aguardado encontro entre o presidente Café Filho e o
candidato Juscelino Kubitschek. O presidente expôs a JK a situação geral do país,
principalmente os aspectos econômicos e financeiros. Café Filho desejava que a disputa
eleitoral acontecesse num ambiente de paz e tranquilidade, e por isso defendia a união
nacional em torno de uma candidatura única, com entendimento entre os partidos. O encontro
fora a pauta central do programa de Roland Corbisier na Rádio Mayrink Veiga. Ele,
entretanto, questionava o presidente quanto a um suposto “memorial dos generais”, assinado
pelos chefes das Forças Armada, em que aconselhavam o presidente da República a união
nacional, assumindo em troca o compromisso de não candidatarem-se. O memorial seria uma
advertência a Juscelino, para que este retirasse a sua candidatura. Entre os signatários do
documento – que ainda permanecia inédito - estariam os generais Juarez Távora, Henrique
Lott, Canrobert Pereira, Cordeiro de Farias e o brigadeiro Eduardo Gomes:
“(...) continua-se a falar no documento secreto de cujo conteúdo o presidente Café
Filho só teria dado conhecimento a alguns de seus amigos mais íntimos. Parece-nos
estranho que, dada a sua importância, permaneça inédito, sonegado pelo presidente
ao conhecimento e à justa curiosidade do público. O destino da Nação, o futuro do
país, não podem estar sendo decididos em conciliábulos secretos, em
confabulações, em conversas a portas fechadas, de que o povo não participa e nas
quais não interfere.” (CORBISIER, 1976: 67)
18
Programa. 16/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
19 Programa. 25/11/1954. Rádio Mayrink Veiga.
Em 27 de janeiro, o presidente Café Filho dera um pronunciamento ao programa A Voz do
Brasil. Seu discurso fora compreendido por Roland Corbisier como sendo panfletário pela
causa a favor do golpe e da ditadura militar20. O jornal Última Hora trazia a seguinte
manchete: “Violenta reação na Câmara contra o discurso de Café Filho”. Segundo o jornal,
“Durante todo o dia de ontem, através de três sessões consecutivas, repercutiram no
plenário da Câmara dos Deputados os últimos acontecimentos políticos que estão
emocionando a Nação, provocados pelo discurso do presidente da República
pregando a união nacional sob a ameaça de um golpe contra o regime e a revelação
do anunciado memorial firmado pelos chefes militares no Catete”.21
Em seu pronunciamento à Voz do Brasil, o presidente finalmente falava sobre o documento
recebido dos chefes das Forças Armadas:
“(...) Recebi recentemente um apelo dos chefes das Forças Armadas responsáveis pelos altos
setores de comando militar do país. Simultaneamente com um nobre e exemplar gesto de
renúncia em que demonstram a unânime disposição de evitar que seus nomes sirvam de
obstáculo à solução do problema político do momento, eles me fizeram sentir juntamente,
com o firme e sincero desejo de um desenlace harmonioso, tranquilo, a sua viva preocupação
com a defesa do regime, ora sob a ação de poderosas forças dissociadoras no campo interno e
externo.”22
E seguida, o presidente narraria, na íntegra, o manifesto, que a certa altura do texto, assim
dizia:
“Profundamente preocupados com os perigos que certamente advirão, em meio à
grave crise econômica e social que atravessa o país, de uma campanha eleitoral
violenta, os Chefes militares das três Forças Armadas sentem-se no dever moral de
encarecer, junto a Vossa Excelência a necessidade de um apelo do governo da
República a todas as forças políticas nacionais em favor de um movimento
altruístico de recomposição patriótica que permita a solução do problema da
sucessão presidencial em nível de compreensão e espírito de colaboração
20
Última Hora. 29/01/1955.
21 Idem.
22 Discurso do presidente Café Filho. A Voz do Brasil. 27/01/1955.
interpartidária, sem o acirramento de ódios e dissenções que vêm de abalar
seriamente a vida nacional.”23
O documento era assinado pelos seguintes Chefes das Forças Armadas: Almirante Edmundo
Jordão Amorim do Vale, Ministro da Marinha; General Teixeira Lott, Ministro da Guerra;
Brigadeiro Eduardo Gomes, Ministro da Aeronáutica; Marechal Mascarenhas de Morais;
General Canrobert Pereira da Costa, Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; General
Álvaro Fiúza de Castro, Chefe do Estado-Maior do Exército; Almirante Saialino Coelho,
Chefe do Estado-Maior da Armada; Brigadeiro Gervásio Duncan de Lima Rodrigues, Chefe
do Estado-Maior da Aeronáutica; e General Juarez Távora, Chefe da Casa Militar da
Presidência da República.
Após terminar de ler, na íntegra, o manifesto dos militares, o presidente Café Filho destacou a
honradez dos signatários, desprovidos de quaisquer ambições políticas, mas preocupados com
os rumos da nação. E completava, com sua interpretação sobre o documento que acabara de
ler:
“Os prenúncios de uma sucessão convulsionada surgiram desde que foi indicada
uma candidatura, sem maiores entendimentos com as outras políticas.
Simultaneamente irromperam sintomas em cujo mérito não me cabe entrar, mas a
que muitos atribuem um propósito de restaurar a ordem das coisas encerradas
tragicamente a 24 de agosto de 1954. São assim evidentes os sinais de uma perigosa
fermentação, diante da qual o governo tem mantido uma linha de rigorosa
serenidade, abstendo-se de revolver o passado e empenha-se em abrir margem a um
período de paz e recuperação.”24
Para Corbisier, o presidente fora bem claro: com o propósito de defender a tranquilidade
nacional e o regime democrático, ele aceitava a declaração (memorial) confiado a ele pelas
Forças Armadas. O discurso de Café Filho, notadamente defendia o golpe e a ditadura em
nome da democracia. E isso era inaceitável. As palavras do presidente eram uma tentativa de
intimidação a Juscelino Kubitschek.25
23
Discurso do presidente Café Filho. A Voz do Brasil. 27/01/1955.
24 Idem.
25 Programa. 31.01.1955. Rádio Mayrink Veiga.
A candidatura do governador de Minas enfrentava dificuldades não apenas junto ao Palácio
do Catete e nos meios militares, mas também no seio do próprio PSD. Juscelino não era
unanimidade. Os diretórios regionais pessedistas do Rio Grande do Sul, Pernambuco e Santa
Catarina eram contrários ao lançamento de sua candidatura. Até mesmo havia uma dissidência
no PSD mineiro, sob a liderança de Carlos Luz. Nereu Ramos chegara a ser cogitado para a
Presidência. E surgiram outras candidaturas de “união nacional”, como Milton Campos (pela
UDN), Juarez Távora (com o Partido Democrata Cristão) e Etelvino Lins – dissidência do
partido em Pernambuco.26 Entretanto, na Convenção Nacional do partido, em 10 de fevereiro
de 1955, 84% do PSD era favorável à homologação de sua candidatura à Presidência.
Conquistara também apoio da maioria na Câmara Federal e no Senado. Dispunha, portanto,
de base eleitoral e apoio parlamentar.
Em 4 de fevereiro, Roland Corbisier comentava a derrota de Ranieri Mazzilli na luta pela
Presidência da Câmara Federal – Carlos Luz, deputado federal pelo PSD. Corbisier
denunciava a “imprensa golpista”27, que associava essa derrota a um revés também de
Juscelino, já que este teria negociado a indicação de Mazzili à Presidência da Câmara, em
troca do apoio do PSD paulista à sua indicação na Convenção Nacional.
Mazzilli, para Corbisier, era um candidato comprometido e envolvido em inquéritos no Banco
do Brasil, sem ressonância na Câmara Federal e alçado pelo diretório regional do PSD
paulista como um candidato da conciliação, após o empate entre Horácio Lafer e Ulysses
Guimarães. Portanto, para ele, a derrota de Mazzilli acabara sendo positiva para o PSD, pois
mostrava que o partido encarava de forma saudável a derrota eleitoral. Seria, portanto, uma
derrota tática.
Em 18 de fevereiro, Roland Corbisier destacaria o surgimento de uma força – um partido
político que, pela composição e alcance eleitoral, seria o fiel da balança decisório para o pleito
26
Depoimento de Juscelino Kubitschek a Maria Victoria Benevides em 1974. Entrevista realizada no contexto da pesquisa “Trajetória e desempenho das elites políticas brasileiras”. Programa de História Oral do CPDOC.
27 Programa. 04/02/1955. Rádio Mayrink Veiga.
que se aproximava: o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB. O partido – terceira força no
quadro eleitoral -, ao apoiar o PSD, estaria credenciado a indicar o vice-presidente.28
Alguns dias depois, Cândido Motta Filho, ministro da Educação e Cultura, fizera uma
conferência na Escola Superior de Guerra (ESG), sobre o papel das Forças Armadas na vida
nacional. Roland Corbisier abrira um debate sobre a função dos militares na vida interna do
país. Segundo ele, a conferência do ministro contribuía para o esclarecimento dessa questão:
“A conferência do ilustre titular da Pasta da Educação constitui uma apreciável
contribuição, ao lembrar que, nas democracias, as classes armadas são, em tese, o
povo em armas, o próprio povo que se arma para garantir as instituições e o
regime. Nessa perspectiva, a educação se apresenta como o meio insubstituível de
incorporar o grupo militar à comunhão dos interesses e das aspirações nacionais”.
(CORBISIER, 1976: 85)
Em 3 de maio, a Convenção Nacional da UDN merecera comentários no programa de rádio.
Segundo palavras de Corbisier, “um deprimente e melancólico espetáculo”29. A UDN era, na
sua opinião, “o partido da eterna vigilância”.
Os jornais noticiavam que Etelvino Lins, candidato à Presidência da República pela UDN,
estaria disposto a propor a Juscelino a retirada da candidatura de ambos, visando o
lançamento de uma candidatura alternativa, de conciliação e união nacional. O slogan de
Etelvino era “Pão e vergonha”. Para Corbisier, os udenistas não tinham, “nem inteligência,
nem imaginação”. O partido estaria divorciado do eleitorado brasileiro30. A UDN não
conseguira entender as necessidades e tendências deste eleitorado:
“Não entendem, os homens da UDN, que a política é uma coisa e a moral é outra, embora,
para fazer política não seja indispensável contrariar as regras morais”. (CORBISIER, 1976:
94)
28
Programa. 18/02/1955. Rádio Mayrink Veiga.
29 Programa. 03/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
30 Programa. 05/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
Corbisier achava que, ao escolher o slogan “Pão e vergonha”, Etelvino traía suas origens de
“pequeno-burguês, reacionário, moralista e farisaico”.31
O candidato da UDN contrastava com Juscelino Kubitschek, que seria “um homem comum,
feito da mesma argila que o povo”32. Para ele, era bastante oportuna a apresentação que o
governador de Minas Gerais vinha fazendo em suas entrevistas e declarações aos jornais, pois
“o Brasil era composto de vários sertões: o das regiões agrestes do nordeste, e o
sertão psicológico, nas cidades e grandes centros industriais, correspondendo ao
hiato entre o grau de inteligência e cultura das pessoas e as posições e cargos que
conseguiam alcançar. O parque industrial, construído pela ciência e pela técnica,
continua a ser, psicologicamente, um sertão, onde as massas são tangidas não por
líderes revolucionários autênticos, mas pelos taumaturgos, pelos profetas de
subúrbio, pelos messias de quarteirão.” (CORBISIER, 1976: 96)
Portanto, para Corbisier, o slogan de Etelvino Lins era vazio, demagógico.33
Já Carlos Lacerda ironizava o binômio “Energia e transporte” de Juscelino. Para o diretor da
Tribuna da Imprensa, o binômio não seria um programa de governo, mas o nome de uma
autarquia. Corbisier discordava, pois “Energia e transporte” eram as mais urgentes
necessidades de desenvolvimento da economia brasileira. Surgiram, por parte de alguns
adversários políticos, críticas de que Juscelino se esquecera de colocar o ensino como
prioridade para seu governo. Para Roland Corbisier, não seria possível um governo enfrentar e
resolver todos os problemas em apenas quatro anos. A solução dos demais problemas
dependeria da solução do binômio apresentado. As prioridades do candidato seriam
apresentadas com base no critério de urgência. O problema da produção, por exemplo, estava
vinculado ao do transporte, que se achava na dependência do problema da energia. O binômio
seria então uma ordem de urgência, uma tomada de consciência de importantes questões de
base.34
31
Programa. 05/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
32 Programa. 06/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
33 Programa. 09/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
34 Idem.
A defesa do binômio “Energia e transporte”, lema da candidatura de Juscelino Kubitschek,
tomou parte de alguns programas de Corbisier na Rádio Mayrink Veiga. E buscava
argumentos para ressaltar a importância do binômio. Tomou como referência, por exemplo, o
livro “Os dois Brasis”, do sociólogo francês Jacques Lambert.35 No livro, o Brasil é estudado
do ponto de vista demográfico, econômico e político. O autor já prenunciava que o Brasil
deveria superar os obstáculos que provém da dificuldade dos transportes, da insuficiência dos
recursos energéticos, da baixa produtividade agrícola e também da excessiva fecundidade da
população. Portanto, para o francês, os problemas brasileiros de maior urgência seriam:
transporte, energia, alimentação e saúde, além de educação e cultura.
O Brasil dispunha de quatro fontes de energia: madeira, carvão, petróleo e hidrelétrica.
Segundo Lambert, naquele momento, mais de 80% da energia consumida no Brasil vinha da
madeira da floresta amazônica. Seriam beneficiadas as indústrias metalúrgicas, as estradas de
ferro e as centrais térmicas das pequenas cidades do interior, entre outras. As florestas, no
entanto, se esgotam, e o Brasil não poderia depender disso. Era necessário substituir a
madeira, a lenha e o carvão como principais combustíveis, explorando outras fontes de
energia, como o petróleo e a hidrelétrica.36
O país também apresentava um quadro desfavorável para o carvão, dispondo apenas de duas
bacias carboníferas importantes, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Faltava mão-de-
obra especializada em maior número e de boa qualidade. Oo carvão representava menos de
10% do consumo total.
Portanto, para emancipar-se economicamente e industrializar-se, Corbisier defendia em seus
programas a idéia de que o Brasil deveria explorar o petróleo e a energia hidrelétrica.37
Roland Corbisier dedicou três programas para comentar o lançamento da candidatura do
general Juarez Távora, pelo PDC, à sucessão presidencial. A questão que desafiava Corbisier
era a de que a candidatura do militar se dera sob pressão, de camadas da opinião pública
35
LAMBERT, Jacques. Os dois Brasis, Col. Brasiliana n° 335, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 5a. ed., 1969. Em seus programas, Corbisier comentava sobre a versão do livro em francês, publicada antes.
36 Idem.
37 Programa. 10/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
insatisfeitas com a candidatura de Etelvino Lins pela UDN. Para ele, era incoerente a posição
das forças que desejavam impedir a candidatura, sob alegação de imporem uma candidatura
única e que naquele momento, as mesmas forças não chegavam a uma conclusão sobre o
candidato a ser lançado e que os representassem.38
Corbisier dizia não ter nada contra Juarez Távora. Achava que ele era um militar respeitável,
sendo até saudável a multiplicidade de candidaturas. A candidatura única, com partido único e
ideologia única, como defendia o presidente Café Filho e os militares signatários do
documento lido pelo presidente no programa A Voz do Brasil, esta sim, estaria de acordo com
os regimes totalitários. Para ele, partidos políticos existiam para drenar e organizar a opinião
pública, com disciplina e educação, através da participação no debate político.39 Entretanto, a
candidatura do general não fazia sentido, já que as forças que o apoiavam eram as mesmas
que se propunham a impugnar a candidatura de Juscelino, “sob a alegação de que o candidato
mineiro não conseguiria base eleitoral que lhe assegurasse a eleição e o apoio parlamentar
suficiente para permitir a realização das reformas de base, indispensáveis à recuperação do
país.” (CORBISIER, 1976: 107)
O jornal O Globo, no editorial de sua edição vespertina de 16 de maio de 1955 também
comentava sobre o lançamento da candidatura do general à Presidência:
“Se o general acreditou que, com a sua decisão, o povo saísse para a rua dando vivas e
batendo palmas, que se cantasse o Te-Deum nas igrejas e se acendessem luminárias nas
janelas, deve estar profundamente apreensivo acerca da sua popularidade.”40
A candidatura de Juarez Távora, para ele, era incoerente, pois só poderia contar com o apoio
de partidos eleitoralmente inexistentes, como o PDC, o PL e o PST. Além disso, o general
entraria na disputa eleitoral para dividir, não os eleitores de Juscelino, mas aqueles que
estivessem inclinados a votar em Etelvino Lins.41 Corbisier não tinha dúvidas quanto à
38
Programa. 13/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
39 Programa. 14/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
40 O Globo. 16/05/1955. p.1.
41 Idem.
honradez e patriotismo do general. Mas quando o assunto era a capacidade administrativa do
militar para funções executivas de maior relevância – como exercer a Presidência da
República – realmente seria um problema.
Etelvino Lins, candidato da UDN, discursara em 16 de maio, na inauguração do escritório
central de sua campanha. Seu pronunciamento merecera elogios de Corbisier. Etelvino
dissera, entre outras palavras, que uma democracia sem partidos seria inadmissível. O
candidato udenista reconhecia que existia no Brasil um movimento no sentido de provocar no
povo o desprezo pelos partidos políticos, o que corresponderia a uma forma de totalitarismo.
Para ele, o descrédito nos partidos levaria à elevação de personalidades carismáticas. Seu
discurso deixava transparecer, portanto, a preocupação com a estrutura partidária brasileira,
contra a demagogia. Mas Corbisier não era só elogios a Etelvino, principalmente por causa
desse trecho de seu discurso:
“Sou popular porque sou do povo. Sinto como o povo, vivo como o povo, penso
como o povo, reajo como o povo, tenho dignidade de povo, firmeza de povo,
esperança de povo. Senti que não podia nem silenciar, nem me poupar, nem evitar
de fazer inimigos quando vi o povo triste, o povo desesperançado, o povo
cabisbaixo, o povo enganado, o povo empobrecido, o povo a ver que a sua pátria
afundava em águas tão rasas”42
Segundo o periódico, a inauguração do candidato fora bastante concorrida, contando inclusive
com a presença de vários trabalhadores, como João Batista Leitão, que tinha 17 filhos e 27
netos, que cumprimentara o candidato e lhe dissera que este poderia contar com os 64 votos
de sua numerosa família.43
Como então, Etelvino Lins seria contra a demagogia se, suas palavras no discurso soavam
como pura demagogia? O candidato seria tudo, menos povo, já que vivia como um pequeno-
burguês, pertencendo à elite econômica do país. Corbisier terminava o programa lançando um
desafio a Etelvino:
42
O Globo. 17/05/1955. p.8.
43 Idem.
“Apenas perguntaremos ao Sr. Lins, que tantas vezes insistiu com Juscelino para que retirasse
sua candidatura a fim de tornar possível a união nacional, por que razão não aproveita a
ocasião que agora se apresenta e, num gesto de desprendimento e patriotismo, renuncia à
própria candidatura para tornar possível, não a união nacional, mas essa união mais modesta e
viável, dos anti-juscelinistas, com eles mesmos?”44
Etelvino Lins, teria “honestidade, obstinação, capacidade de luta e a dureza pernambucana”.
Mas era um candidato medíocre, dotado de discursos insignificantes, segundo Corbisier.45
No dia 18 de maio fora a vez do general Juarez Távora, candidato pelo PDC, falar à imprensa.
Na coletiva, realizada na sede da Associação Brasileira de Imprensa, o candidato justificara
sua candidatura pelo fato de que não sentira força política de Etelvino Lins em São Paulo. Sua
candidatura iria captar eleitores independentes e insatisfeitos. 46
Para Corbisier, a entrevista do general fora “abaixo da crítica”, incoerente e sem brilho. Ele
questionava o fato do candidato ter declarado que sua candidatura fora lançada pelo PDC
numa atitude contra tudo e contra todos, consultando apenas a sua consciência. Se era
candidato de um partido considerado pequeno e de centenas de grupos e núcleos – como
afirmara -, como poderia ser, então, “contra tudo e contra todos”?47
A campanha eleitoral fervia. Dois dias depois, era a vez de Juscelino Kubitschek fazer seu
pronunciamento. A comparação da entrevista do governador de Minas com o a do general
Juarez Távora era inevitável, segundo Corbisier. O discurso de Juscelino mereceu elogios:
“Uma pessoa normal, equilibrada, lúcida, com excelente memória e experiência
administrativa, e amplo e profundo conhecimento”48. Já o general, “falara com violência, dera
murros na mesa enquanto falava, numa atmosfera de exaltação.”
44
Programa. 17/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
45 Programa. 24/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
46 O Globo. 18/05/1955. p.6.
47 Programa. 19/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
48 Programa. 20/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
A adesão do PTB à candidatura de Juscelino à Presidência, com João Goulart, ex-ministro do
Trabalho de Vargas, lançando-se à vice-presidente na chapa, levou o jornal O Correio da
Manhã a romper com o candidato do PSD. O jornal havia lutado contra a interferência das
Forças Armadas na vida política do país, contra o golpe. Tal atitude era questionada por
Corbisier: “Mas então, se não poderiam as Forças Armadas interferir na vida política, por que
poderia fazer isso a imprensa, vetando a candidatura?”49
A candidatura de Juarez Távora ganhara a antipatia de Carlos Lacerda. Corbisier continuava
tentando decifrar o motivo do general não ter se candidatado à Presidência pela UDN, e sim
pelo PDC. Pensara na hipótese de que, possivelmente, o general chegara a conclusão de que a
candidatura pela UDN representaria uma “condenação à morte”50, podendo se tornar “um
segundo Eduardo Gomes”.51
Num programa, Corbisier comentava que o lançamento da candidatura de João Goulart à
vice-presidente, na mesma chapa de Juscelino, causara repulsa em alguns setores do PSD.52 E
que o mesmo acontecera no próprio PTB, sendo a composição PSD-PTB bastante contestada.
Havia boatos de dissidências: Alberto Pasqualini poderia ser o vice de Juarez Távora e até
mesmo Oswaldo Aranha poderia surgir como candidato de conciliação.53 Para Corbisier, essas
insatisfações seriam atos de indisciplina e traição, que deveriam ser repelidos e punidos pela
direção do PTB. Afinal, descontentes deveriam sair do partido.54
Antonio de Novais Filho, senador do PSD pelo estado de Pernambuco – e um dos fundadores
do partido -, fizera uma emenda propondo a reforma eleitoral: a eleição pelo Congresso, do
presidente da República, caso nenhum candidato alcançasse maioria absoluta dos votos.
Corbisier dedicara três programas de rádio para analisar a proposta do senador. Para ele55, o
49
Programa. 21/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
50 Programa. 23/05/1955.
51 Idem.
52 Programa. 25/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
53 Idem.
54 Idem.
55 Programa. 28/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
político pernambucano, ao adotar essa proposta, mostrava inclinações udenistas. Tratava-se,
para ele, de um “golpe legal”, uma clara amostra de desespero político de pessoas que
desejavam permanecer no poder.56
A candidatura do general Juarez Távora refletia nele a idéia de que a possibilidade de golpe
militar estava afastada. Sinalizava-se o desejo dos militares em participar do jogo
democrático. Entretanto ele suspeitava das movimentações, nos bastidores, de grupos
políticos claramente conspiradores, ligados à UDN e ao Clube da Lanterna. As regras do jogo
não podiam ser alteradas faltando apenas quatro meses para as eleições, com os três maiores
partidos nacionais – PSD, PTB e UDN -, já com seus candidatos lançados e com
compromissos assumidos.57
A emenda do senador Novais Filho, do ponto de vista jurídico, invocaria a Constituição de
1891. Ao exigir a maioria absoluta, garantiria ao candidato eleito a base parlamentar
necessária para que o presidente governasse de fato. Para Corbisier, não havia sentido resgatar
naquele momento a Constituição de 1891, identificada com um “velho Brasil”, agrícola e
patriarcal, anterior à industrialização e urbanização do país. O aspecto político seria o ponto
mais grave da proposta. Ele achava que por trás do argumento reformista das leis eleitorais,
tramava-se uma agressão às instituições, proibindo os eleitores do direito de voto. Era uma
proposta claramente com objetivos contrários à candidatura de Juscelino.58
Adauto Lúcio Cardoso fora outro personagem citado no programa de rádio de Corbisier. O
deputado federal da UDN estava à frente da proposta de se criar uma Comissão Parlamentar
de Inquérito (CPI) para investigar os bens dos candidatos à Presidência. Para Corbisier,
Adauto, assim como Carlos Lacerda, deveriam ser investigadores de Polícia, já que tinham a
mania de denunciar, acusar, julgar e condenar, sendo nocivos à formação política e moral do
país, criando uma atmosfera de terror e sobressalto. Afinal, escândalos não atingiriam apenas
as pessoas. Mais do que isso: atingiriam as instituições, abalando a confiança do povo.
Corbisier rechaçava a proposta de CPI. Os candidatos não deveriam se submeter a esse tipo de
56
Idem.
57 Programa. 28/05/1955. Rádio Mayrink Veiga.
58 Idem.
manobra. E caso a proposta fosse realmente levada adiante, a CPI funcionaria como um
tribunal, não para fazer justiça, para desmoralizar candidaturas.
No último programa de rádio59, Corbisier comentava a entrevista concedida por Juscelino
Kubitschek ao jornal Última Hora, ressaltando o entusiasmo, a capacidade de crer, o gosto
pela realização e o empreendimento, além de sua esperança nas eleições daquele ano. Na
entrevista, Juscelino dissera que
“Não há abismo algum capaz de conter o Brasil. O país é maior do que o abismo em
que há tanto tempo o pretendem lançar. Um país jovem e com vitalidade do Brasil
só precisa que lhe deem os instrumentos para a sua construção. A conclusão que
trago dessa peregrinação extensa é de que os governos precisam andar depressa para
não serem superados pelas forças espontâneas da terra e da gente do interior”.60
Roland Corbisier fechava, assim, um ciclo iniciado em 20 de dezembro do ano anterior. Os
programas de rádio, mais do que constituírem uma plataforma que ecoasse sua voz, em defesa
da legalidade do processo eleitoral, deixam transparecer a participação de um intelectual na
política. Decerto que Corbisier tivera contato anteriormente com a política, quando
brevemente pertencera às hostes integralistas, mas a vivência com a política partidária, que os
programas de rádio proporcionaram, era até então fato inédito em sua vida. Nos anos 1950,
germinava uma consciência nacionalista em Roland Corbisier, que o acompanharia nos
próximos anos, à frente do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e depois como
parlamentar do PTB.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
CORBISIER, Roland. JK e a luta pela presidência. São Paulo, Duas Cidades: 1976.
59
Programa. 02/06/1955. Rádio Mayrink Veiga.
60 Última Hora. 01/06/1955.