António Garcia.Desenho deum quotidianoaqui tão perto
MARIA RAMOS SILVA (TEXTO)[email protected] VICENTE (FOTOS)[email protected]
Do mobiliário às capasde livros, dos maços detabaco ao projecto defábricas ou hotéis. 89anos de vida e 75 dosquais dedicados aoofício do design, umtrajecto digno das
insígnias de DoutorHonoris Causa,atribuídas hoje naFaculdade de BelasArtes pelaUniversidade de LisboaComeçou a puxar do cigarro muito antesde deixar o seu cunho no ritual do fumo.
Sosseguem os antitabagistas, que o vício
que aqui nos traz é o do desenho, e esseestá longe de provocar dano em pulmões.
Maços como os do SG (1964) e do Ritz(1970) transportam a assinatura visual deAntónio Garcia, aquele a quem chamam"o designer global", um nome tão discre-to quanto incontornável na evocação do
quotidiano do século XX português, ago-ra com direito ajusta homenagem.
Sob proposta da Faculdade de Belas Artes,
a Universidade de Lisboa atribui hoje,numa cerimónia que arranca às IOhOO,
as insígnias de Doutor Honoris Causa aAntónio Garcia, agraciando pela primei-ra vez o design com esta distinção, sendo
também uma estreia para a faculdade a
recepção de uma comemoração desta
natureza, que apela a memórias gráficascomo as que se espalham pelas gavetasde casa do autor.
Aos 89 anos, continua a puxar da ideiae a vertê-la para o papel com o auxílioda mão. Que o digam os posters acaba-dos de fazer onde reinventa a palavraPortugal, qual postal turístico de um paísonde a sua rotina sempre foi encontrarsoluções alternativas e funcionais paraderrotar dilemas, muitas vezes em con-
tra-relógio. "Este é um trabalho de resol-ver problemas", sintetiza, explorando oassento de um dos seus projectos paraa fotografia Em bom tempo um dos filhos
trouxe para casa a histórica cadeira"Osaka", que até há pouco não moravaem sua casa. Foi concebida para o pavi-lhão português na Expo que teve lugarnaquela cidade nipónica em 1970 e, maisuma vez, a resposta ao desafio surgiucom velocidade redobrada. O encargochegava em vésperas da inauguração doevento e a corrida contra o tempo difi-cultava o envio das peças por barco. A
criação "de tipo Bauhaus", de materialnobre, leve e desmontável, obedeceuassim ao transporte de emergência: o
avião, onde embarcou a caixa com umadúzia de exemplares para japonês ver, e
português se orgulhar. Em territórionacional, a "Osaka", bem como as mesas"Cubox4", outro dos seus produtos, foram
apresentadas ao público em 1971, noâmbito da primeira Exposição de DesignPortuguês, realizada na FIL.
Quinze anos antes, já a sua cadeira"Gazela" corria, dentro do espírito dos
anos 50, quando os designers lusos impri-miram identidade e investiram na pro-dução em série das cadeiras, como "a
excepcional cadeira em madeira de car-valho, (...) modelo inovador de espaldarlosangular de sugestão italiana preen-chido por singulares tirantes filiformes
(...)", como descreveu Rui Afonso Santos.Nem só de cúmplices do descanso se fazo acervo de António Garcia. Candeeiros,mesas e sofás completam o sector da
decoração, na sua maioria na qualidadede protótipos e em série de pouca expres-são, um dos lamentos do criador.
"Tenho pena da indústria nunca meter batido à porta", desabafa o designer,que agora revisita cerca de 75 dedicadosao "ofício", palavra que melhor se ajus-ta a uma trajectória diversificada, ence-tada a milhas da adopção do estrangei-rismo "designer". "O designer era o quedesenhava, mas na verdade não há umcorrespondente directo em português.Talvez lhe possamos chamar 'o risco',como se estivéssemos na 'sala do risco'."
Um trajecto assinalado pela resolu-ção de problemas, como já sabemos, e
a diferentes escalas, a novidade intro-duzida neste parágrafo. Não estranhe
portanto cruzar-se com um selo da suaautoria ou com a maqueta da fábricada Canada Dry, edificada em 1956 emVila Franca de Xira, já desactivada, masà época senhora dos louros da terceiramarca internacional americana commaior cota de mercado, logo a seguiràs gigantes Coca-Cola e à Pepsi. No total,os seus produtos serviram cerca de umacentena de empresas e instituições nacio-
nais, nas áreas do Design de Comuni-
cação, Design de Equipamento, Designde Interiores e Design de Arquitectura,muitos deles ainda em contacto com o
público. Projectou edifícios, moradias,um complexo turístico e planeou os inte-riores de hotéis, salas de administraçãoe casas particulares. Em 2010, o Museude Design e de Moda (Mude), em Lis-boa, guardião do espólio do designer,recebeu a retrospectiva "António Gar-cia - designer - Zoom in/Zoom out". Nemde propósito, António, que ensaiou inú-meras empreitadas no capítulo da arqui-
tectura - "e não sendo arquitecto, o tra-balho era reconhecido" - deixou tam-bém a sua impressão digital em espaçoscomo os bancos Totta (1971) e BancoNacional Ultramarino (1990).D'o MOSQUITO AO ATELIÊ. Nascido emLisboa a 3 de Fevereiro de 1925, perde-se no tempo a raiz involuntária da car-reira. "Fazia aqueles brinquedos parabrincar na rua, como os outros miúdos",conta António, que apesar de partilharo hábito com outros rapazes da sua ida-de, teria talvez mais queda para afinaros motivos de entretenimento que os
pares. "Sempre tive jeito para coisasmanuais". A mãe, "esperta", cedo des-cortinou a vocação do filho, encaminhan-do-o para a vertente artística e apoian-do os estudos na António Arroio, no finalda década de 40. Aos 13 anos já desenha-
va as separatas com construções de armar
para o jornal "O Mosquito", e três anosmais tarde tornava-se desenhador assa-
lariado do Ministério da Economia, empe-nhando-se em construções rurais paraa campanha de produção agrícola e dos
silos. Por esta época, firma com António
Sena da Silva uma parceria de trabalho
e amizade. No começo da década de 50leva a melhor no concurso promovidopela Editora Ulisseia com o desenho das
capas dos livros "O Adeus às Armas", de
Hemingway e "A Casa de Jalna", de Mazode Ia Roche. Encetava-se assim uma cola-
boração com a chancela composta porcerca de 60 títulos da colecção reserva-da aos autores modernos.
Na viragem para os anos 60, instala o
seu ateliê num quarto andar da Aveni-da da Liberdade, e muito, muito maishistória haveria para ler. Um caso quese converteu em objecto de culto, e deestudo. "ZEITGEIST - o espírito do tem-
po, António Garcia, Depois da obra, o
futuro, Design e Arquitectura, 1950-1970",é o título da tese de mestrado que Sofiada Costa Pessoa desenvolveu sobre o
designer. A consultar assim que possí-vel, de preferência confortavelmente ins-
talado numa cadeira com rubrica deautor.
01 Projectou stands de expo-sições, desenhou cartazes
para o SNI, interiores,mobiliário, espaços comofábricas ou hotéis. Aos 89
anos, ainda se aplica no
papel
02 Para a Tabaqueira, asis-
nou, em 1 964, o novo
design do SG Ventil.
Seguiram-se Sintra (65),
High Life, Monserrate e
Kayak (67), SG Gigante eSG Filtro (68). Nos anos
70, o Plaza e o Ritz
03 O começo da colaboraçãocom a Ulisseia, quandocriava capas de livros
04 A famosa cadeira"Osaka", exibida no Japãoem 1970
"Este é um trabalho deresolver problemas",
sintetiza. Aos 13 anos jádesenhava encartes para
um jornal infantil
A cadeira "Gazela"(1955)oua"Osaka"
(1970) são algumas dassuas peças de mobiliário
mais emblemáticas
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HOJE
Facß. Artes, Lisboa
Designer AntónioGarcia recebe Hono-ris Causa: IOhOO.