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Angústias de um peixe-voador

ANGÚSTIAS DE UM

PEIXE-VOADOR

P.A. MARANGONI

2014

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P.A.Marangoni

© 2014 Pedro Alberto Marangoni

Capa sobre esboço de embriões de Leonardo da Vinci

[email protected]://ebookspamarangoni.blogspot.com.br/

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Marangoni, Pedro Alberto 1949 -

Angústias de um peixe-voador/ São Paulo 2014

1. Angústia 2. Nada (Filosofia) 3.Vida

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O mais patético dos animais, o Homem-peixe-voador,neste salto de um segundo de consciência transitóriacoleciona tudo o que pode amealhar, penas ao vento,grãos de poeira, alguma folha que porventura estejaa boiar na superfície. Esbarra no peixe que salta aolado, toma-lhe a frente. E depois se dissolve na águacom alguns respingos que rapidamente desaparecem.Se no micro momento antes de tocar a cabeça nooceano do Nada perguntássemos a cor do maravi-lhoso céu que acabara de percorrer, não saberia aresposta...

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Transitoriedade é a palavra que bem definiaArthur porque assim se sentia: um ser passandode uma forma para outra. Via-se como um peixe-voador que havia nascido quando principiava asair d'água para seu salto e que, momentosdepois cairia novamente na inconsciênciaquando voltasse a tocar na superfície límpida,calma, indiferente de um mar infinito chamadoUniverso. Sabia que nesta reentrada por maisque se agitasse apenas provocaria algunsrespingos que logo desapareceriam. Sabia queera nada e tudo ao mesmo tempo, pois era deArthurs, pedras, árvores, água e tudo mais queera formado o Todo, peças intercambiáveis cons-truindo ao acaso. E o acaso dotara Arthur deuma qualidade duvidosa, a de, neste salto mili-métrico e efêmero, fazer uso de uma consciênciatransitória, ver-se, sentir-se, observar. Era umpobre ser humano, a mais inútil das criaturasnuma realidade igualmente inútil.

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Mais que tudo, ele usava a capacidade deobservar em suas longas caminhadas sem rumo.Já se achara: peixe-voador. Também se via,refletido nas vitrines como um conjunto andantede sapatos, calças e camisa; procurava sentir-see muitas vezes, propositalmente, não sedesviava dos transeuntes em sentido contráriopara certificar-se que existia e era visto. O resul-tado aumentava suas dúvidas, pois terminavainvariavelmente em encontrões, como se fosseinvisível aos demais. Existiria ele apenas quandodo encontro? Ou o transeunte pertencia a outrasesferas e não o via? Das dúvidas, resultantes doimportuno cérebro carregado acima do conjuntode calça e camisa, a mais importante seria seera ele igual aos demais seres supostamentehumanos. Comportavam-se como imortais, nãoda espécie de peixe-voador momentâneo queeram, mas uma espécie de golfinho ou baleia,que saltam, respiram e cujo mergulho de voltanão parece definitivo, com a pretensão deaparecer outra e outra vez. Talvez por issoamealhassem tudo o que podiam, esbarravam-se, procuravam passar à frente uns dos outrosdurante a pequena aparição no indiferenteUniverso. Arthur até agora só tinha uma certeza:

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dos que mergulharam durante sua vida, nenhumvoltara à superfície... Saberiam eles que erampeixes voadores que só existiriam durante osalto ou realmente não eram como Arthur, quese perguntado saberia a cor do céu, o cheiro dasflores, o andar das formigas. Porque ele era umobservador de tudo que podia ser visto, de tudoque se encontrava à sua volta e que o prêmio-castigo da consciência transitória permitia ver esentir. Nada procurava mudar, quer pela inutili-dade quer pela perda de tempo, tão exíguo.Tentava apenas olhar para todos os lados quepudesse, ávido de conhecimento mas semdesejo de alterar. Um passageiro não deveaspirar mudar a cor ou a performance da naveonde viaja. Porque sabia ser apenas mais umtranseunte entre infinitos, viajando no acaso.

Aos cinquenta anos, nada amealhara e sobre-vivia graças a pequenos trabalhos de carpintaria,à casa e um pouco de renda deixada pelosprevidentes pais, que já não eram jovens quandonasceu, gravidez tardia de um casamento tardio,preocupados com o futuro do filho introvertido.-Oras Charlotte, sejamos sinceros –sorrindo,desabafava o pai- nosso Arthur é no mínimo

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estranho! Recém-saído da adolescência e órfão,logo abandonou a universidade onde tentoucursar Filosofia mas não encontrara utilidade emnenhuma matéria. Aluno brilhante na escola, foitido como contestador no curso superior, com osmestres pífios e restritos vingando-se nas notassempre baixas e as observações com que procu-ravam justificá-las: fugiu do assunto... E Arthurachava que eram os mestres e os filósofos estu-dados é que fugiam ao assunto, com pensa-mentos que não iam além da casca do serhumano, quando somos parte do Todo, doUniverso. Estudando apenas a unha do gigantenunca chegaremos a conhecê-lo! -protestavaArthur. Aliás, sua busca era também por algumasuposta utilidade em viver, que talvez houvessemas ninguém lhe ensinara. Tentou ainda traba-lhar em escritórios, balconista e finalmenteencontrara um pouco de paz em serviçosbraçais, pouca conversa e mais resultados; foipedreiro e depois carpinteiro onde se mostrouum hábil profissional. Mas cansado de serrepreendido por mudar as plantas originais porconta própria buscando mais praticidade,resolveu ficar em casa, sem horários e patrões,realizando pequenos consertos para a vizi-

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nhança. Mais e mais se desligava da desvairadasociedade.

Arthur meditava. Volta e meia deixava-se vagarjunto aos pensamentos, esquecido do corpofísico. Por isso muitas vezes permaneciaestático, até mesmo, quando ainda os pais eramvivos e procuravam tirá-lo do aparente torpor,ouvindo dos médicos, psicólogos, psiquiatras osmais diversos disparates sobre sua pessoa:autista, introvertido, ligeiro retardo mental. Arthursimplesmente pensava, cismava. E para issonão era necessário locomover-se, movimentarbraços e pernas, complementos inúteis quepouco durariam e nada construiriam que não sedissolvesse no tempo infinito do Universo.Cansou-se de ser detido:-identidade!-por quê?-recebemos uma denúncia de comportamentoestranho em via pública.-não estou fazendo nada.-por isso mesmo.-mas sou obrigado a fazer alguma coisa?-o senhor está parado na calçada olhando parauma árvore há mais de uma hora, segundo adenúncia.

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-é crime olhar para uma árvore?-erhh, ahh, não, mas é que... Identidade!-sem identidade não se pode olhar uma árvore?-lhe prendo por desacato!-perguntar a uma autoridade que deve servir aocidadão é desacato?-acompanhe-me, o senhor está preso!

E lá ia Arthur, sem demostrar a mínima preocu-pação ou constrangimento, acompanhando oconfuso policial até a presença da autoridade deplantão, onde esperava por horas, paciente-mente, olhar perdido, retomando os pensa-mentos interrompidos. Era um cérebro instaladoem um barco de carne e ossos ao sabor dasondas sociais, pronto a saborear as maisdiversas paisagens como pano de fundo ao seufilosofar. Questionamentos de terceiros eramapenas o murmúrio do mar, assovios dos ventos.Deixar-se levar preso era como ser rebocado,sem precisar remar...

Gostava de andar pelos parques, observando ospasseadores de cães. Para ele era um retratoperfeito da loucura vivida sem ser sentida, opasseador de cães transmitia uma imagem dupla

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face divertida e preocupante ante o absurdo dacoisa: de um lado uma dezena de animais devários portes, força, gostos, instintos, obrigadosa se espremerem contra a pelagem alheia sempoder marcar seu território e sem escolher orumo, por mais que puxassem de seu lado etentassem demostrar sua vontade; de outro ladoo suposto animal superior, apenas um, preso avárias guias que apesar de variantes de força,acabavam todas seguindo um mesmo caminho.Arthur invertia a dupla face e via um homemsendo conduzido por várias guias, seguras pelaCrença, pelos Dogmas, pelas Leis, pelas RegrasNão Escritas, pelo Medo, pelas Ilusões. A guiamais forte e que parecia determinar a trilha aseguir era a das Ilusões. Não chegava àconclusão quem puxava quem nesta guia, quemverdadeiramente estava na coleira. A Ilusãodominava ou o Homem a puxava? Embora emoutras coleiras como a Lei, o Homem tentassearrastar-se por outros caminhos, parecia satis-feito em enfiar a cabeçorra vazia na Ilusão,vontade própria... Não havia cães, eram homenslevando homens a passear num caminho semvolta e sem ponto de chegada. A caminhada erapara o grande Nada.

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Nos mesmos parques por horas observava asformigas e suas tomadas de decisões, sempreaparentemente fáceis e rapidamente transmi-tidas às demais para que não repetissem o erro.Por vezes as grossas gotas da chuva pesadaque se anunciava e espantava a todos osfrequentadores, trazia novidades à observaçãomicroscópica e lá ficava Arthur, aos poucos seencharcando, encantado com as medidas emer-genciais das formigas. Os humanos, rapida-mente desapareciam, salvo um ou outro solícitoou irreverente indagando:-o senhor está bem?-precisa de ajuda?-sai da chuva otário!-e aí tio, vai se molhar!Arthur não respondia, entretido, e não forampoucas as vezes que foi praticamente arrastadopara debaixo de alguma árvore ou quiosque. -o senhor pode adoecer!-por quê?-a água! A água!Mas nosso corpo é constituído de até 75% deágua, somos seres líquidos, respondia, ante-vendo o olhar de espanto de seu interlocutor,que geralmente ou sorria ou esbugalhava os

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olhos e discretamente ia embora, certo quefalava com um louco ou um drogado.

Na loucura da metrópole, seu meditar volta emeia era interrompido pelo estardalhaço doshelicópteros, no seu vai e vem levando pessoasocupadas, que numa posição privilegiada deáguias em voo, não tiravam os olhos de papéis aserem assinados ou estudados. Eram homensse complicando cada vez mais. Voar... O tigrealmeja voar? Convencia-se mais e mais da insa-tisfação humana, o homem era o único animaldescontente consigo mesmo. Lera em algumlugar que o helicóptero era uma máquina quevoava graças a forças contraditórias e bastavaalgum pequeno problema e tudo se destruíarapidamente sem aviso. E o comparava com asmulheres, com quem tivera pequenas experiên-cias todas elas desastrosas, forças conflitantes aquem bastava uma pequena falha para tudo virabaixo. Isto em tempos idos quando aindatentava interagir com os demais para descobriraté que ponto ia sua normalidade oficial, noestranho padrão exigido pela sociedade. Desis-tira delas –não sem pesar- após a última, aquem -prometera a si mesmo- tratou com apli-

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cação, sem cometer os erros anteriores apon-tados por iradas companheiras em queda vertigi-nosa e rodopiante. Tudo fora impecável poralgum tempo até que, do nada, os mesmosproblemas surgiram, como se repetido tivessetodos os erros, todas as falhas anteriormentelançadas em sua cara e que o deixava total-mente perplexo. Do nada o nada distorcidoestava contra ele e ela era a vítima... Sentiu quefinalmente estava entendendo as mulheres, umcomportamento cíclico no qual pouco ou nadaimportava o que ele fizesse ou deixasse defazer. Nenhum curso ou esforço bastaria paraaprender a pilotá-las...

Arthur, um homem-trator, máquina mais gros-seira e direta, desistiu por completo daquelesseres estranhos, helicópteros de hormôniosconflitantes que se desmantelavam no ar se umparafusinho afrouxasse. Descobriu que nãobastava sentir a delícia do calor dos corpos, oenrodilhar-se em silêncio, a companhia contínua,as mãos dadas, o envelhecer juntos:-Você tem que ter mais ambição, Arthur! -Não se vive de amor, Arthur!-Precisamos ter um carro!-Quero vencer sozinha!

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E ele concluíra que o desenvolvimento docérebro afastara os machos e as fêmeas, quecada vez mais se transformavam em espécimesdiferentes, incompatíveis. Só se lembrava delasquando o bater das pás das máquinas voadoraso tirava do quase transe observador. O mundotornou-se assexuado para ele e ficou mais fácilde suportar, ciente que no curto voo de peixesobre o oceano, qualquer tentativa de interaçãocom humanos apenas tumultuaria seu efêmeroplanar...

Cada vez mais se afastava de sua espécie e seacercava dos ditos animais irracionais. Destes,as que mais lhe ensinavam eram as formigas etambém se encantava com o cão, que sabia seequilibrar entre o natural e a plena loucura doshomens, algo difícil para Arthur, que sem seruma formiga que pode ignorar o ser humano,também não era um sábio cão. Passou a estudaros cães, conversar com eles que quase semprelhe ouviam com atenção e as formigas, que oignoravam solenemente.

Certo dia, sentado no banco de um parque,

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curvado observava uma linha de formigas.Seguiam céleres pelo chão, forçando-o a desviaro pé, numa atitude condescendente de "sersuperior", pensamento que logo corrigiu comuma série de questionamentos. Olhou para seusapato: couro, borracha, cola sintética, fibras,plástico. Meias, algodão industrializado, calçasidem, cinto de couro, metal, e assim foi, desdeos pés tentando resgatar toda a complicadacadeia de eventos que foram necessários paraque ele estivesse simplesmente vestido. E asformigas nuas, cuidando da vida...

Voltou para casa -veículos, asfalto, semáforos,postes, sinalizações- cérebro fervilhando: tijolos,cimento, telhas de barro, vidros, fios elétricos.Pensou nos relógios, celulares, óculos. E asformigas nuas indo e vindo. Passou pelo aindaimprescindível supermercado -troca de papel-moeda por serviços, comida industrializada.Pegou a chave, desligou o alarme, abriu a portade sua casa e entrou. E as formigas, todasiguais, se recolhendo ao formigueiro. Um sufici-ente furo na terra. Todas devidamente alimen-tadas, alojadas, com papel social definido emprol do bando. Olhou pela janela da sala, huma-

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noides apressados ao fim de um dia de trabalho,disputa para um acúmulo individual inútil, já quesão tão mortais como as formigas.

Fechou as cortinas e abriu outra para o mundoatravés de um controle remoto. A televisão seiluminou e começou a falar apressadamente: asautoridades comunicam o encontro de índiosisolados no distante Brasil. Distante de onde?-Arthur perguntou-se. Para os brasileiros, nós éque moramos distante, pensou com um sorriso...Fotos de satélite, sobrevoo de aeronaves. E osíndios com suas malocas e plantações à volta,descansando nas redes. Todos iguais, alimen-tados e alojados como as formigas, sem estudo,sem salário, sem roupa, sem problemas, a nãoser os "seres superiores" já pensando em“ajudá-los” lá de cima com seus rádios, computa-dores... Na selva, quantas espigas de milho valeum não comestível computador? -meditavaArthur. Quantas raízes de mandioca vale uminútil avião? Com os olhos fechados aprovei-tando o calor do sol, o mesmo sol e calor dojardim de sua casa, o que importa um satélite?Há apenas algumas décadas atrás, não existia oimprescindível computador, o absolutamente

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necessário telefone celular. E os índios estavamlá, nas redes, como agora. Afinal, quem precisacada vez mais de tantos complementos, ferra-mentas e assessórios para existir é um ser infe-rior, incompleto e que se torna mais e maisdependente, regredindo. Muito aquém dasformigas e dos índios, estáveis num patamar,seres já completos... Arthur exultava com a clari-dade que penetrava em sua mente, como conse-guia repentinamente ver-se de fora para dentro,como muitas de suas insistentes perguntas eramrespondidas, e respondidas pelas formigas epelos ditos selvagens! Assim iluminado, feliz,Arthur decidiu se despir de tudo que é caro aoshumanos, quase envergonhado de sua espécie.Queria experimentar, dentro do possível e semconfrontos, um comportamento animal do qualpoderia experimentar no meio humano circun-dante, o canino: comer, beber, passear, dormir,sempre no presente, absolutamente sem futuroprevisível; ser formiga, cuidar da toca, limpa eprotegida, sem supérfluos; ser uma águia,olhando de cima, visão privilegiada, a desorde-nada correria dos homens... Fugir das ameaças,não guardar rancor dos ataques gratuitos, enro-dilhar-se e descansar imediatamente quando

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vier a vontade ou o cansaço, não processar osalimentos, libertar-se dos complementos inúteis.

No primeiro sábado seguinte, manhã se anunci-ando cheia de luz, céu azul sem nuvens a borrá-lo, a rua tranquila de classe média experimen-taria uma agitação passageira mas incomum. Natípica casa de dois pavimentos, ombro a ombrocom as vizinhas, jardim bem cuidado na frente, aporta abriu-se com decisão puxada por Arthur,olhar brilhante, meio sorriso, formigas e índiosna cabeça. Respirou fundo. Colocou as mãos nacintura, ar de quem vai iniciar uma grande obra.Sumiu por uns instantes e voltou carregando atelevisão e a depositou com cuidado, no limiteentre o gramado e a calçada, no lugar destinadonormalmente ao lixo reciclável. Retornou para ointerior da residência e voltou com um eletrodo-méstico. E outro, mais outro. Todos colocadosem absoluta ordem, lado a lado, como numafeira de garagem. Um vizinho de frente apareceuà janela e logo a seguir sua esposa que comoum cuco de relógio esticou a cabeça para fora,curiosa. Um ciclista parou e quando Arthurvoltava com uma cadeira, perguntou se era umavenda.

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- Não - foi a resposta sucinta de Arthur, quebalançou negativamente o focinho e continuouem seu vai e vem.O ciclista farejando algo no ar insistiu:-Está mudando?-Não - foi a resposta sucinta de Arthur, que nova-mente balançou negativamente o focinho e conti-nuou em seu vai e vem.O ciclista, aborrecido com a aparente falta deeducação de seu interlocutor, endireitou o corpoe ia pressionar o pedal para ir embora quandopensou na terceira opção, pela qual valia a penase aborrecer mais um pouquinho. Era umsábado morno mesmo, qualquer novidadeserviria para distração em seu habitual passeio.Esperou que um pesado sofá fosse largadosobre o gramado e disparou:- Está jogando fora?!- Sim - foi a resposta sucinta de Arthur, que apósum leve abano mental da cauda, continuou emseu vai e vem. Enquanto a casa era calma e metodicamenteesvaziada -mesas, sofás, todos os relógios, deparede, mesa, pulso –ausências indispensáveispara a nova vida- e até mesmo talheres, o atéentão tranquilo ciclista se transformou, agitado.

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Primeiro tomou posse do bem desejado, a tele-visão, das grandes, que aparentava estar quasenova. Não sabia o que fazer, largou a bicicleta,colocou a TV na calçada, olhou para a bicicleta,olhou para os lados, mudou o aparelho para omeio fio e encostando-se em seus dois bens,sacou um aparelho celular da cintura e discoufreneticamente.Os vizinhos da frente que aparentemente conti-nuavam a vigiar os movimentos de Arthur, logodecodificaram a euforia do ciclista e saíram portaafora, diretos para o butim que se anunciavafarto. Como o atarefado peixe-voador-caninorespondera seus entusiastas cumprimentos comum abanar de cauda mental, atiraram-se aociclista:-Ele está jogando fora?!-Está, mas a TV -e fez uma pausa olhando paraos lados- e o toca CDs são meus!Os dois ignoraram de imediato o ciclista eatacaram o sofá de dois lugares, Chesterfieldlegítimo de couro e já atravessando a ruagritaram ao novo dono da TV:-As poltronas são nossas, é um conjunto!Em momentos chegou uma pequena camionete,chamada pelo ciclista, o que causou desespero

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ao casal que transportava já a primeira poltrona.Enquanto o marido arrastou sozinho a poltrona,a mulher cuco voltou apressada e aboletou-seno sofá restante, abraçada a um processador devegetais, mantendo um olhar feroz para os doisque já carregavam o veículo. Em pouco tempocerca de uma dúzia de respeitáveis cidadãos sedigladiavam, com os olhos açambarcando maisdo que seus braços podiam segurar, enquantoArthur, já com a tarefa de limpar seu canil-toca-ninho concluída, deitou-se de bruços na soleirada porta, braços cruzados sob o queixo, orelhasem pé, olhos atentos e passou a observar diver-tidíssimo, os estranhos humanos amealhandotudo para o nada. Ali, rés ao chão deitado, tinhaum novo ângulo de visão nem um pouco desfa-vorável como se poderia pensar. Sapatos,sandálias, pernas como máquinas de vai e vêmescravas comandadas por cérebros apressadosaboletados lá em cima do corpo, que sem umplano de ação preciso transformavam umasimples reta –o caminho mais curto- numa sériede idas e vindas, rodopios, marchas à récômicas, numa dança que assim vista confir-mava ao –canino- Arthur, suas dúvidas sobre asuperioridade humana. Pensou: -minhas amigas

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formigas fariam de maneira mais organizada eprovavelmente a limpeza já estaria terminada.Em verdade quase nada levariam pois só oessencial lhes interessa...

Pouco se preocuparam com Arthur ou o cumpri-mentaram. Até mesmo -notou ele- procuravamnão olhar em sua direção, aliás, não se olhavamcomo se avestruzes com a cabeça metida numburaco fossem, tentando crer que se não vissemtambém não eram vistos naquele saque apres-sado e socialmente considerado um ato desegunda classe reservado aos mais necessi-tados. Alguns falavam alto, sem dirigir-se aalguém específico explicando que doariam parapobres, para um asilo, ou que a empregadaestava precisando daquele item ferozmenteabocanhado. Mentalmente Arthur corria emcírculos, pulava nas pessoas, saia em disparadae depois voltava repentinamente, língua de fora,ofegante. Livre, feliz, cheio de energia paragastar consigo mesmo, sem nenhum sofá socialnas costas, sem ter que carregar uma camionetecom pedaços de vida para remendar a sua.Estava leve como nunca experimentara antes,cada vez menos identificado com aqueles incon-

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gruentes seres cobertos de desejos, empáfia,preconceitos, avaros colecionadores de inutili-dades.

Depois, os respingos da agitação desapare-ceram e os pequenos círculos formados nasuperfície do Oceano Universo se dissolveramrapidamente. Apenas uma jarra de louça comformato de pera amarelada e cujo cabo imitavauma folha verde restou na calçada. Desprezada,a jarra teimava em permanecer ali como umaprostituta velha que, sem inspirar desejos,oferecia-se esperançosa em liquidação. Arthurcolocou-a na cesta de materiais recicláveis como pensamento que ali ou no centro de umamesa, o objeto tinha a mesma falta de funçãocomo um homem na posição de rei ou mendigo.Quimeras, nuvens que podem, por minutos,esconder o sol mas que depois se dissolvem oupassam, empurradas até por uma fraca brisa.

Arthur entrou em sua toca, fechou atrás de si abarreira que mantinha os predadores do lado defora. Percorreu com uma suavidade de felino osaposentos vazios, contemplou as paredes nuas

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e tudo parecia maior, mais silencioso, mais seu,mais aconchegante como se a casa o abra-çasse. O sentimento era que o vazio revelava-semais cheio, sem marcas de posse que indu-zissem e conduzissem o pensar. Agora era suaimaginação ilimitada que preenchia o espaço e acasa nunca pareceu tão completa, tão sua. Numcanto ficara a caixa com tudo o que era pessoalde seus pais, papéis, documentos, fotos, não seachou no direito de descartá-los. Centenas delivros de política, religião, filosofia, psicologia eaté psiquiatria, onde procurara, como nummanual de usuário, conhecer sua espécie,embora com poucos resultados. Ferramentas decarpinteiro, algumas panelas e uns poucostalheres, pois não tinha garras suficientementefortes para descartá-los por completo comogostaria e o velho aquecedor elétrico, uma vezque, homo sapiens, já não tinha a pelagemespessa para protegê-lo dos rigorosos invernos.Arthur não sonhava de forma inconsequente, eraprático, simplificava com o objetivo de poupar-se, não de se colocar em uma situação ridícula,insustentável ou de pouca duração. Por isso nãoaceitara os teóricos mestres e filósofos, irreais.Num saco plástico dependurado na parede, tudo

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o que ainda era necessário para viver semproblemas e confrontos com o mundo doshomens: o cartão de crédito, as contas de águae energia elétrica, os impostos urbanos, suaidentidade, coleiras com que era identificadoentre os cidadãos. Arthur sabia perfeitamenteque deveria reservar esses 10% de homem prisi-oneiro de sua sociedade se quisesse viver comoos ainda naturais animais sem ser consideradoum louco ou -mais perigoso ainda- alguém quequeira fugir das guias do Grande Passeador deCães. Cairia irreversivelmente nas garras doLeviatã, dado como incapaz e colocado prisio-neiro nas jaulas hospitalares como um objetosem mente, sem jamais voltar a sentir o vento norosto, respirar o ar frio das manhãs no campo,deitar-se na grama, sujar-se no barro frio, enfiar-se debaixo de uma cachoeira, pensar contem-plando o azul do céu, recolher-se ao entardecerà sua toca com seu cheiro e segurança. Não sepermitiria passar por demente ou inconsequentehippie, no máximo por alguém exótico quando desuas forçadas incursões ao mundo dito civili-zado.

Deixara um colchão de casal no centro do quarto

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e na sala maior uma mesinha, uma cadeira,canetas e cadernos, muitos cadernos vaziospara serem preenchidos de vida. Sem que suaexperiência fosse aproveitada por seus angusti-ados iguais, ele seria apenas mais um seregoísta que amealha avaramente. Lamentavanão ter tido habilidade suficiente para pilotaraquelas máquinas complicadas, as mulheres-helicóptero, que poderiam ter contribuído comsua visão certamente diferenciada dos homens-trator, máquinas mais rudes e diretas. Mas eramuito difícil e improdutivo manter na mesmaoficina de mentes, máquinas de engrenagensnão intercambiáveis que a seu ver dava preju-ízos à Espécie na busca de encontrar-se e oembate macho-fêmea os distanciava das solu-ções. A solução, se não era exequível o inter-câmbio, que, pelo menos, se somasse os resul-tados de ambos para o bem comum. Talvez seuma mulher um dia lesse suas anotações,sonhava Arthur...

Se conseguisse passar adiante mesmo que parauma única pessoa suas descobertas, sensações,deduções e se esta pessoa em posse de taisinformações pudesse pular etapas e pensar mais

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à frente, adquirindo mais profundidade queArthur e, seguindo seus passos, deixar acumu-lado para os que se seguissem, aos poucosteriam num tempo infinito e sem pressa, umalegião de peixes-voadores conscientes de seucurto voo e da necessidade de não desperdiçá-locom acrobacias aéreas inúteis.

Queria que seus escritos fossem lidos ecompreendidos, mas não queria criar umageração de tolinhos radicais como os que têm apretensão de julgar que o homem pode destruiro planeta, este bloco bruto que nem toma conhe-cimento dos arranhões humanos e climáticos emsua superfície:

- Tudo o que fizermos fisicamente de bom ou deruim não passará de um pequeno bolor sobreuma pedra, a Terra, que por sua vez não passade uma manchinha insignificante na pele doUniverso. A empáfia humana preza realizaçõesperecíveis em detrimento da única evolução queé a mental...

Talvez num tempo tão longo que ainda inimagi-

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nável para nós, o animal homem mais consci-ente deixaria de se reproduzir e se dissolveriapara sempre, mantendo apenas suas ondaspensantes a vagar pelo espaço, sem a cargapesada, vulnerável e desgastante do tolamentevaidoso corpo humano e seus complementos.

Com a tarefa ambiciosa ganhando forma, tomouum dos cadernos e com capricho, lentamente,desenhou um peixe-voador e abaixo escreveu otítulo: Angústias, seguido do número 1... A partirdesse dia até seu mergulho final, não deixou de,quase diariamente, lançar suas observaçõescoletadas durante o curto voo. Estava leve, maisperto de sua verdadeira natureza animal, sentiuvontade de correr, vento no rosto, gosto de terra,cheiro de mato. Saiu em direção ao parquepróximo seguindo a mesma trilha urbana quesempre fazia, mudando de calçada nos mesmostrechos, curvando a mesma esquina, se aproxi-mando do mesmo banco como qualquer animalque segue seu cheiro e marca seu território. Masdesta feita não sentou no banco, contemplativo.Apressou o passo, acelerou e começou a correr,sem se ater à pista, atravessando gramados ecanteiros, saltando as pequenas cercas e pedras

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até lançar-se ao solo, ofegante e feliz, olhandopara o céu que sabia não estar abaixo ou acimadele, conceito inexistente num espaço infinito esaboreava a sensação de ser precariamenteseguro pela gravidade da terra para não cair... Alificou estendido por cerca de uma hora sem serincomodado até que uma dupla de policiais emronda se aproximou para verificar se estava tudobem. Gentilmente aconselharam-no que sevestisse adequadamente da próxima vez, comtrajes desportivos, pois poderia passar a imagemde alguém embriagado ou adoentado se perma-necesse ali no solo com roupas convencionais.

Voltando lentamente para casa, Arthur meditava:

-Vestimenta adequada? Qual a vestimentaadequada para um animal? Eu sou um animal.Minha vestimenta adequada é nenhuma, tenhocabelos para aplacar o calor do sol, pelos prote-tores em todos os orifícios do corpo, e se passara andar descalço rapidamente a sola dos pésengrossará e endurecerá. O pensamento devoltar nu para correr no parque embora lógico enatural foi de imediato deixado de lado, nãoqueria confrontar a sociedade em que vivia e já

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estava numa idade em que uma desejávelmudança para a selva de algum país tropical nãoseria exequível. Lembrou-se com certa invejaboa dos índios brasileiros... Mas mal chegou àcasa despiu-se e a partir de então, enquanto oclima permitisse, não mais colocou uma peça deroupa sobre o corpo dentro de seus domínios, asjanelas frontais estavam sempre fechadas e nopequeno quintal havia uma parte onde poderiase locomover sem constranger os vizinhos.Sentou-se à mesinha e caneta em punho, apóspassar suas observações e resoluções do dia,desenhou novas roupas para levar ao alfaiate:cor única, caqui, sem golas, botões ou bolsos,cintura elástica, tecido de algodão natural, umtipo de pijama oriental, folgado e leve. Enco-mendou meia dúzia, idênticas e sentiu-se recom-pensado pela naturalidade com que o profissi-onal recebeu o pedido:-Fiz outras parecidas, é para artes marciaistambém?-Não, mas é praticamente para o mesmo fim, aliberdade de movimentos...-Essa seria a roupa ideal se não fossem osmodismos que só pretendem vender mais aosingênuos – lamentou o alfaiate, que sabia do que

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falava.

Arthur já notara as vestimentas dos transeuntese que nem todos pareciam à vontade, a maiorparte carregando uma série de complementostotalmente inúteis. A gravata, universal, era oadereço mais sem função e ninguém se davaconta disso, simplesmente aceitavam seguir oestabelecido -leis não escritas da sociedade-com uma docilidade que ultrapassava a razão,submetiam-se ao desconforto para seremaceitos, leopardos de salto alto claudicando nasestepes de concreto e asfalto, domesticados.

Logo que recebeu sua nova pelagem descartouseus trajes antigos e convencionais cominegável prazer como se retirasse de suascostas uma sela, de sua cintura um laço. O trajecaiu-lhe pelo corpo sem exercer pressão, sentia-se confortavelmente nu e foi com um largosorriso rasgando o rosto que passou a mão portodo o corpo mesmo vestido, cão coçando-sesem obstáculos. Para calçado encontrou sandá-lias de couro forte, resistentes e confortáveis,que usaria até chegar ao parque, onde cami-nharia sempre descalço. Não pretendia ir além

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do parque, ali era seu território marcado como setivesse urinado em cada canto. Para pensar nãoprecisava de espaço e sim do tempo que lhefugia, mesmo porque preso ao corpo físico comoestão os humanos, por mais que se distanciasseda toca em busca de conhecimento, jamaisconseguiria cobrir sequer um milionésimo de ummundo infinito. Tinha que usar a fugaz cons-ciência transitória para tentar encontrarrespostas e soluções, sem maiores distrações eai então poderia talvez até ganhar o espaço infi-nito.

Ainda teria alguns pequenos problemas comfrequentadores e policiais em seus passeiosvestido com sua nova pelagem, até que, jáconhecido como um tipo exótico mas inofensivo,fora deixado de lado. Notara ele que não eraaceitável pela sociedade que um humano secomportasse naturalmente como animal: podercorrer, saltar, rolar pelo chão quando sentissevontade. Mas se acompanhado de um colegatido como irracional –o cão- não despertavamedo ou estranheza. Já amigo antigo dos cãesque viviam no imenso parque, cerca de umadúzia de rebeldes sem dono que escaparam de

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todas as armadilhas para capturá-los até que,defendidos pelos frequentadores, foram tole-rados pelas autoridades, e com eles mais identi-ficado pois também fugira da coleira social eseus dogmas, Arthur passou a andar em matilhae assim podia expandir toda sua energia natural-mente selvagem, visto pelos demais senhoresda raça inteligente como apenas alguém queestava a brincar com seus cães... Esses por suavez, mais puros de sentimentos, adoraram anova companhia para suas brincadeiras e assimque o amigo de duas pernas chegava ao parque,depois das efusivas demonstrações de contenta-mento passavam a desafiá-lo, ameaçando correre parando subitamente, enquanto vigiavam suasreações. Logo estavam todos disparando porentre as árvores, rolando pelo gramado entrefalsas mordidas até que se aninhavam a escutaras palestras que Arthur lhes concedia, com seri-edade. Até mesmo os agentes de vigilância sani-tária pediram sua ajuda quando da campanha devacinação antirrábica e ele se sentiu oficializadocomo líder da matilha, um avanço em seuforçado relacionamento com a sociedade.

-Estranho, absurdo –pensava Arthur- não se

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concedem os homens a liberdade que admitemaos animais! A farsa do permanecer ereto evestido é uma imposição a que todos sesubmetem sem rebelar embora se sintam atra-ídos pelo solo, pela grama, pelo sol tocando apele nua... Quis o acaso que eu, infelizmente,fosse construído como humano, mas terei queme afastar deles se quiser estudá-los sem queseja apenas outro mascarado no teatro da vida,eterna farsa cujos atos, a cada baixar de cortinasse complicam mais e mais...

Toca limpa, pelagem minimamente adequada, aalimentação passou a ser a próxima etapa desimplificação. Era verão e a escolha foi fácil:frutas, verduras e legumes. Crus, comidos aqualquer hora quando a fome chegasse e emqualquer lugar. Habituou-se a fazer as frugaisrefeições sentado na soleira da porta dosfundos, nu, pernas esticadas, mastigando lenta-mente enquanto ruminava suas ideias sobre acomplicada manutenção do corpo humano, umveículo cujo custo benefício era deplorável comoum carro que consumisse combustível demais,pouco corria e não se prestava para grandescargas...

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Tomava o cuidado de lavar bem os vegetaiscomprados, mas numa evolução normal resolveuplantar parte de seus alimentos, produzir seupetróleo. Munido de uma enxada revolveu a terrado pequeno quintal, incorporando todo o matoralo que lá havia além de escavar um pequenoburaco onde passou a jogar os restos de vege-tais para produzir um adubo orgânico. Mas nadade radicalismos penosos, sabia-se onívoro eassim procedia, embora procurasse peixesfrescos para comê-los crus ou cozidos a frio, nosumo de limão como os mexicanos; quanto àcarne vermelha, nas raras ocasiões que delasentia necessidade, comprava pequenas caixasde finas fatias para carpaccio, pois eramadequadas para serem comidas sem cozimento.Apenas sal, o restante de temperos procurouplantar, tentando descobrir a utilidade de papilasgustativas tão sensíveis, tão exigentes decombustível especial. Buscou sementes variadasde todos os vegetais de pequeno porte, apropri-adas para horticultura e as jogou aleatoriamentepor todo o espaço preparado, sem se importarcom datas recomendadas. As mais fortesnascerão –pensou, a menos que a própria natu-reza também fraqueje e torne-se cada vez mais

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indolente como o homem. Felizmente logocomeçaram a brotar novas vidas e em poucomais de um mês já retirava do quintal algumacoisa para roer no local, no momento da fome,tentando descobrir os prazeres que os animaissentiam ou não.

Em verdade –pensava- todos os prazeres sãoapenas o suprir de uma falta, orgânica ou psico-lógica e não um prazer puro em si mesmo. Osalimentos, as drogas, bebidas, música, filmes,teatro são maneiras de aplacar algo ou esquecero todo -a angustiante vida real- por algunsmomentos. Aqueles que vivem indiferentes àtransitoriedade implacável da existência humanaestão mergulhados na mais ingênua das fanta-sias, vivem seu filme, seu romance que nãopode tornar a ser lido... Continuava a lançarmensalmente as sementes e deixava a naturezaescolher o que teria para colher. Com a chegadado inverno passou a cozer na água e sal,legumes e peixes, recebendo o calor extra deque necessitava. Deu-se conta, com o frio, quese esquecera dos chás, e logo também plantoumudas dos mais variados tipos. Nunca mais ocheiro de óleo das frituras que impregnavam a

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pele ou preparações demoradas e em horáriospredeterminados. Deixara de lado os combustí-veis especiais, agora era uma máquina que aospoucos melhorava o custo-benefício, a perfor-mance. O resultado foram noites bem dormidase um corpo enxuto e saudável que às vezesfazia com que sua matilha se lançasse ao solo,estafada, surpresos com o vigor crescente docompanheiro de duas pernas. Matilha que sealimentava de todo o tipo de alimentos trazidospor amigos dos cães ao parque e cujo vícioArthur não teve como controlar, preferiam osapetitosos restos de um hot-dog que o naturalpeixe cru... A simplicidade causava evidenteenergia –sentia Arthur- enquanto que a elabo-ração dos alimentos nada acrescentava desaudável. Era o homem sempre se distanciandoda vida animal em detrimento de si próprio, semse dar conta ou fingindo não notar, glutõescertos de que outra vida de prazeres eternos osesperava... Simplificando ao máximo plausível,roupas, alimentação, atividades, Arthur se sentiamais perto das origens e portanto mais perto dese desvendar.

E os cadernos se sucediam, repletos de desco-

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bertas e indagações, o que o fez meditar sobreos jejuns que sábios orientais praticavam parase purificar. Até tentou, curioso, jejuar, depois deler a biografia de Gandhi mas o que conseguiuforam duas noites péssimas e uma dor de estô-mago. Riu de si mesmo, o corpo era apenas umveículo para o cérebro e o melhor que essecorpo poderia fazer para ajudá-lo era não inco-modar, não interferir com dores, problemas,fome. Era só fazer uma boa manutenção desseveículo, que a mente, de carona, podia trabalharsossegada... Elaborados, trabalhados, não deve-riam ser as refeições ou o viver e sim o pensar.Tudo era engolfado pelo tempo, insaciável,apenas as atividades mentais se somavam eprogrediam, embora até um ponto do qual, naiminência de perder o transportador físico, eranecessário repassar o conseguido para umsucessor que ainda fosse permanecer vivo. Porisso a escrita, contínua, dedicada, que sobrevi-vesse ao seu criador.

Um trabalho longo e penoso através de gera-ções de pensadores que resultaria em um diatalvez, na separação total do desprezível e insa-ciável transportador e a auto alimentação da

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mente, num circuito fechado que ganhasse liber-dade, desprezasse o tempo e vencesse oespaço. Ai então as respostas chegariam rapida-mente ao abraçar o Universo.

-Oras –exultava Arthur- não somos corpo físico,somos pensamento, mente, ondas ou emissões,quando cessamos de transmitir o corpo perma-nece vivendo como uma massa mole semvontade própria, inferior aos outros animaisconhecidos, inferior a uma ameba que se loco-move e se reproduz. Estamos de carona,alojados na massa cinzenta de um veículo quenos retarda, temos que ganhar nossa liberdadese quisermos obter conhecimento e descobrirnossa utilidade ou não; se há eletricidade soltano espaço, emissões de vários tipos e durações,porque não a nossa mente, em um emissor maisapropriado, menos pesado, não tão vulnerável?Mas por outro lado, se a simplicidade é aperfeição, não temos utilidade, o mais perfeito éo Nada que não precisa ser, não precisa estar! E corria para seus cadernos. Neste diaescreveu:O Nada pode alegrar-se?O Nada pode ser triste?Nem bom nem ruim não nascer,

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o Nada, simplesmente não existe!

Satisfeito, enrodilhava-se como um novelo noinverno ou com os braços e pernas abertos emtoda sua extensão sobre o colchão e dormiaalguns minutos ou horas seguidas, como apren-dera com os cães: nada de horários para dormir,deitar quando a vontade chegar e não de formaobrigatória somente porque o tempo cronológicodos homens assim o exigia. E também deitarpelo simples prazer de se estender, esticar osmúsculos, rolar, independente se no meio deuma tarefa ou conversa. Mas deixava essesprazeres para seu quintal ou no meio dosbosques com a matilha pois os humanos fingemnão entender os apelos de seus pobres corpos,presos por tecidos, couros, plásticos, ferragens enão gostam que lhes recordem de sua patéticacasca artificial...

Sem horários para nada, comer ou dormir nãosignificavam etapas cumpridas que delimitassemos dias e as horas, o dia e a noite, e Arthursentia que eliminava a ditadura do tempo, quedeixava de existir com seus dias da semana,meses; o tempo desaparecia se fosse ignorado.

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Seu corpo seco e ágil como um leopardo nãotomava conhecimento dos anos que passavamcéleres e não incomodava o cérebro lá em cima,no quartinho emprestado onde a mente sealojava contra vontade mas que por sua veztambém retribuía, cuidando da manutençãogeral, fácil, pois não transportava peso extra,não sofria com posições forçadas ou cascasincômodas. O espaço fora também aos poucossendo entendido; Arthur consciente de que qual-quer imensidão é nada diante do grande todo,marcara seu território e nele, sem ter que distraira mente com explorações físicas, vagava peloilimitado território do pensamento expandindo-semais e mais, livre de transpor cercas, invadirterritórios, ater-se ao rumo determinado pelostrilhos da sociedade. Espaço e tempo, o conjuntoangustiante podia ser compreendido e até manu-seado se visto com olhos menos humanos.Sentindo mudanças importantes na profundidadede suas conclusões, meditava sobre eles –espaço e tempo- e sobre os mistérios carre-gados de crendices e má interpretação, porqueestudados sobre falsas plataformas, bases religi-osas, superficiais, como premonições, destino ea sempre confortável e desejada vida após a

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morte, com sua alma imortal, a muleta espiritualque mantém os pobres homens em pé. Nãoconfundia ele ondas mentais com “alma”, essaficção contraditória sem qualquer base lógica. Jáem criança descartara a existência de algumacoisa etérea que acompanhasse o corpo, inde-pendente dele. Eternamente distraído, fora atro-pelado por um ônibus e permanecera desacor-dado por vários minutos. Acordara e ficara mara-vilhado com sua pequena morte, seu exíguoperíodo de não existência. O desmaio fora dife-rente do sono pesado, sempre entrecortado desonhos e sensações, o desfalecimento fora total,sem lembranças e, assim – pensava Arthur- nãoseria possível se tivéssemos uma cópia nossaem forma de “alma imortal”, invulnerável, poisela manteria a consciência sempre viva edesperta quer durante o sono, quer durante osdesmaios e quando da morte do corpo físico.

-Ou a alma também fica com sono, a almatambém desmaia? – ria-se ele, constrangendoseus pais que não tinham respostas convin-centes que não passassem por dogmas ecrenças.

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E dezenas de anos mais tarde, continuava comsuas elucubrações, cada vez mais elaboradas:

-“Alma” nada mais seria que a projeção de nossamente, nossas ondas emitidas que podem simprojetar-se fora do corpo, mas como qualqueronda, qualquer emissão, tende a se dissolvercom o tempo e amplitude. O segredo seriaaumentar sua potência para primeiro sobrepujar-se aos desfalecimentos físicos de qualquerespécie mantendo-se a consciência e depois àprópria morte do corpo humano, auto alimen-tando-se, independente de um emissor orgânicocomo o cérebro. O corpo humano é um pesoextra que pode e deve ser descartado! E entravaem bifurcações fantásticas, inteiramente origi-nais:

-Vivemos o presente ou estamos no passado,perseguindo nossas ações físicas, mais rápidasque o processamento de nosso cérebro?Podemos ter avançado no espaço e o tempo decomputação de nossos atos realizados, ou seja–da vida- ser mais lento e até mesmo processar-se somente após ter se liberado do corpo físico,

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ou seja –da morte! Podemos estar mortos, lenta-mente somando os dados em ondas mentais,soltas no universo e só agora tendo noção doque fizemos. Uma premonição, por exemplo,seria apenas uma onda que se adiantou dentreas demais. Temos que descobrir como manteressas ondas fortes sem se dissolverem lenta-mente quando do fim das lembranças, dos atosfísicos, para ganhar mais tempo para pesquisar,descobrir, aprender.

Mais uma corrida para a mesinha com seuscadernos manuscritos, com os números abaixodos peixes-voadores nas capas crescendo, 60,70, 80... Ali não estavam observações, ali estavauma vida em versão escrita para ser absorvidapor um igual que, assim acrescido em conheci-mentos, poderia alçar voo de um patamar maisalto. Formar um cardume de peixes-voadoresconscientes de sua inevitável dissolução, embusca de agitar o espaço, criar ondulaçõesmaiores, manter as ondas vivas e auto alimen-tadas para, ao expandir-se pelo espaço infinito,ganhar as esperadas respostas rumo à grandeverdade.

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Arthur passara a ser quase invisível para os vizi-nhos, um objeto com pernas que servia parafazer pequenos trabalhos de carpintaria e marce-naria, que praticamente não falava mas tambémnão incomodava, em sua silenciosa casa dejanelas fechadas. Somente quando algumasdonas de casa apoiadas em suas vassourasjogavam conversa fora e o viam sair ou chegarcomentavam sem muito interesse:-Meio maluco, mas boa gente. Perdeu os paismuito cedo...-Parece que deixaram uma renda para ele...-É hippie, dos antigos! Sem ninguém...

E numa vida sem dias, meses ou anos, certo diasurpreendeu-se ao dar-se conta do significadodaquele número 120 que anotava em mais umcaderno. 120... Ele sabia que seu salto já hámuito se transformara em mergulho, se aproxi-mava da superfície do mar da inconsciência, datransformação, ou melhor, do retorno. Talvez játivesse voltado, era apenas uma questão de sercomputado em seu cérebro, agora provavel-mente apenas ondas soltas no espaço, sedissolvendo lentamente. Chegara sem perceberaos 75 anos, a média aritmética da idade crono-

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lógica com que seus pais tocaram a superfíciedo mar universo. Agora era sua hora de partir domundo dos angustiados conscientes, não eracomo os demais que acreditam firmementeserem imortais até o último momento. Comouma máquina com tempo de validade predeter-minada, começou a declinar rapidamente. Jánão aguentava ir até o parque que tanto lheaprazia e nos últimos meses os cães, sábios,não pediam corridas, apenas esperavam-no coma alegria de sempre demonstrada nas caudas erodeando-o lambiam sua face com amizade.Acompanhavam seus vagarosos passos compaciência e cuidado, não deixando que estra-nhos dele se aproximassem, cientes de suafragilidade. Faltavam-lhe as forças, as mãostremiam ligeiramente e quando de uma repentinavertigem e quase queda, recordou-se da mortedos pais que acompanhara, morte natural eapesar da pouca idade e do amor a eles não seamedrontara e deu-lhes a assistência e carinhoem sua partida. Recordando os momentos finaisdos pais, reconhecia em si os mesmos sinais defim de voo...

Arthur, com um crescente curiosidade meditava:

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-Posso me preparar, posso tentar escolher odestino de algumas de minhas partículas! Riu desi mesmo ao pensar que aparentemente comotodo ridículo humano procurava fórmulas deviver para sempre, mas sabia não se tratardisso, dessa esperança patética de manter apersonalidade, os pensamentos, a forma da vidaque se apagava. Entendia perfeitamente a trans-formação que se anunciava, continuaria a viversim, mas como outros componentes indestrutí-veis do Universo. E quem poderia afirmar queum grão de areia não tem algum tipo de cons-ciência ou traga em si alguma informação? Aágua? Uma árvore? Por que desprezar a inteli-gência tão evidente nos animais, num cão, numpássaro? Arthur simplesmente queria intervir noprocesso para participar o mais intensamentequando dividido em partículas menores:

-Posso conseguir, não retardarei minha transfor-mação, não desperdiçarei debaixo de umahermética laje de cemitério minha matéria orgâ-nica! Minha parte de gases viajará pelo universomas eu também quero ser os frutos que alimen-tarão meus iguais em seu salto transitório deconsciência, ser as flores que os alegrarão e

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provocarão seu filosofar, talvez possa ajudá-los,sem que passem por toda a angústia de ter quese achar! Se os alimentar de uma forma ou deoutra, passo a ser parte integrante de seuscorpos, minhas partículas podem conter dadosrecolhidos durante minha busca! Com sofre-guidão, a envelhecida mente repentinamenterejuvenescida pelo entusiasmo começou a agir,calcular, procurar soluções. Lúcido, não come-teria o suicídio egoísta, nem o suicídio bene-mérito como os velhos esquimós, nem seria umaeutanásia. Apenas chegaria adiantado algunsminutos antes a um encontro programado einadiável... Não serei simplesmente desmontado,serei plantado! –exultava Arthur, em seus últimosrespingos à superfície. Serei perfume a entrarpelas narinas, serei um jardim de flores!

Sentado à velha mesinha, começou a detalharum plano de auto semeadura... Seria a coroaçãode seus esforços em busca de evolução,evolução que valorizasse e desse sentido àconsciência tão efêmera que a natureza odotara, que para tantas perguntas seria precisoprolongar de alguma forma, independente seconservasse a personalidade ou não; era preciso

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pensar como o Todo de que fazia parte e não nohomem, o animal egoísta e descontente. Suavida estava nos cadernos que explicariam suasdecisões e alguém depois dele poderia certificar-se se ele vencera ou fora derrotado.

O inverno, rigoroso como sempre, se aproxi-mava e certamente marcaria seu fim como acon-tecera com seus pais. Saiu à porta da cozinha emãos na cintura, respirou fundo: repetia o gestode quando resolvera despir-se de tudo que eracaro aos humanos começando uma nova vida,decisão acertada que produzira um imensocaudal de informações, filosofia, questiona-mentos, domínio do corpo e da mente, umaconstrução de degraus rigorosamente transcritosno papel. Agora eram outras vidas que começa-riam com o desmontar do ser humano, carne eossos e sua incorporação em milhares de outraspeças, orgânicas ou não. Seu desafio era tentardirigir, orientar, interferir e escolher alguns rumose novas utilidades que servissem ao próximoque buscasse o evoluir para a Verdade. Noquintal, mediu com alguns passos o terrenopróximo à casa, logo abaixo da linha do telhado.A tarefa não seria fácil para o corpo que se

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despedia. Riscou no solo um retângulo de 1,50m por 0,60 m afastado um metro da projeção dotelhado e sem demonstrar qualquer hesitaçãobuscou um enxadão e começou a cavar. Maldestacara a camada superficial do buraco e jásuava copiosamente, a gasta carcaça de 75anos protestando. Sentado nos degraus quedavam para o quintal, respiração de cão depoisde uma corrida, calculou que levaria uns dezdias para atingir a profundidade de 1,50 m quedesejava, cavando apenas 15 centímetros pordia, sem maiores sacrifícios. Com a cova demar-cada, colocou uma velha porta de madeiradeitada ao comprido, rente ao lado maior doburaco e depois de muito medir e serrarpreparou estacas com cerca de uns 60 centíme-tros cada, com as quais escorou e pregou o ladoda porta oposta à cova, fazendo uma rampaíngreme. Depois, fatigado, deitou-se canina-mente ao solo, enrodilhou-se e dormiu por meiahora com a tranquilidade de uma criança...

Na manhã seguinte reiniciou a tarefa, já minunci-osamente detalhada: cobriu a porta inclinadacom uma lâmina de plástico resistente e muitoliso, dobrou suas bordas e as pregou na parteinferior. Depois com a pá, lançou a terra esca-

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vada anteriormente sobre a rampa plastificada.Um curto descanso e cavou os quinze centíme-tros diários a que se propusera. E voltou aoscadernos, roendo uma cenoura... À tarde foi aomundo dos humanos em busca de sementes deflores:-Quero um de cada.-Qual delas, senhor?-Um de cada.-Mas de qual tipo?-De todas, um-envelope-de-cada, repetiu sílabapor sílaba ao balconista mal humorado edesconfiado dos longos cabelos, barba e a roupaexótica.-É que são de estações diferentes para oplantio...-Um-envelope-de-cada, repetiu pausadamente.

O balconista, com maus modos colocou asdezenas de envelopes de sementes sobre obalcão. Mas sorriu amarelo ao ver o douradocartão de crédito que Arthur lhe entregava, juntocom a identidade que certamente seria pedidapara averiguação. A cor do cartão indicavaperemptoriamente que o humano por detrás deleera simpático, nobre, confiável e deveria ser bem

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tratado...

Depois respirou fundo para ganhar forças epaciência no último contato com a sociedade doshomens e munido de seu saquinho com os docu-mentos foi ultimar os preparativos de sua seme-adura. Dirigiu-se à companhia estatal de água edepois de ser detalhadamente identificado comocidadão pode programar o corte do serviço paradentro de dois meses, alegando mudança dedomicílio. Para a manutenção de seu minuciosoplano necessitaria de algum tempo de forneci-mento, mas depois era imprescindível que aágua deixasse de correr para não encharcar assementes.

De volta à casa, lançou, não sem certo prazer,seus documentos e cartões que não voltaria ausar na caixa que continha os pertences de seuspais e depois, sentado no chão, Arthur misturoutodas as sementes, futuras transmissoras queteoricamente –por que não?- poderiam conterpartículas com seu conhecimento extraídas daspeças de sua desmontagem que se elevariamaté a superfície ou às raízes, em forma de gás

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ou partes orgânicas.

A partir de então, diariamente, a cada camadade terra retirada e lançada sobre a rampa, assementes eram espalhadas sobre ela. Quando omecanismo funcionasse, independente de comotranscorresse o preenchimento da cova, umaparte sempre conteria os grãozinhos, futurasflores, em profundidade ideal para quebrotassem. Assim transcorreram os 10 diasprevistos, até a profundidade desejada, semcausar maiores transtornos que uma ligeira dormuscular que já no quinto dia desaparecera. Aparte principal de seu plano, a que requeriamaior esforço fora conseguida. Sobre a portainclinada a terra retirada da cova estava amon-toada, entremeada com as sementes, parecendofirme com seu peso sobre a lâmina plástica.Cuidadosamente Arthur cobriu o monte comoutra lona plástica para que não sofresse altera-ções com o sol e a chuva e não deslizasse parao buraco antes da hora. Depois olhou para o céuclaro. Quanto tempo mais teria não sabia, otempo perdera para ele qualquer significado,poderia ser agora ou dentro de uma eternidade eambos eram iguais. Seriam os sintomas da

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partida que bem conhecia e não relógios, dias ounoites a lhe dizerem. E passou para a etapaseguinte.

Consultou o caderno que continha os desenhosdetalhando cada passo e sorriu satisfeito. Namanhã enevoada, gelada, saiu ao jardim, abriuuma pequena portinhola gradeada onde estava ocontador de consumo de água e fechou oregistro. Depois abriu todas as torneiras da casa,até que a pequena caixa d'água de 300 litros seesvaziasse. Isso acusado, torneiras secas, asfechou novamente e voltou a abrir o registro,mas apenas parcialmente, o suficiente para queum filete do líquido passasse. Não foi sem difi-culdade que subiu pela escada caseira até oforro, onde retirou o pino de latão que seguravaa boia. Horas depois ficou atento para o ruído daágua a escorrer quando a caixa se enchessenovamente e sem boia, continuasse até vazarpelo cano de escoamento que se projetava parao quintal exatamente na vertical do início darampa onde se amontoava a terra... A caixa sóficou cheia à tarde, fornecendo a Arthur os dadosque necessitava e ele fechou rapidamente oregistro para interromper a água que já caia

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sobre o plástico que protegia o monte de terra.Só voltaria a abrir de tempos em tempos paramanter um mínimo de água que precisasse edepois definitivamente quando seu derradeiromomento estivesse próximo.

Leve, tranquilo, retomou seus pensamentos eescritos, mas nas noites que se sucederampassou a estender-se de costas no quintal, apre-ciando a profundidade do céu e suas estrelas esentindo-se atraído, puxado, como se a um leveempurrão se desprendesse do planeta e caísseno espaço. Dividia-se entre certa nostalgia, numclima de despedida da consciência transitória, docurto voo de peixe-voador e a curiosidade cres-cente de se desmontar, dividir, se integrar nova-mente ao Universo como peças disponíveis paranovas formas. Até que o inverno foi chegandolentamente e se instalou, e o já alquebradoancião recolheu-se ao ninho, à espera dachamada final.

Os cálculos foram precisos assim como aintuição, a premonição ou a experiência, o nomenão importava. Passaram-se pouco mais de 20

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Angústias de um peixe-voador

dias e o frio acelerava o fim de seu corpo queenviava sinais inequívocos e pedia pressa sequisesse se antecipar. Até que numa noite tevecerteza que o momento estava chegando.Aguardou o dia seguinte com ansiedade emuitas saídas ao quintal, apesar do frio, para sedespedir das estrelas.

Preparou-se. Abriu todas as torneiras para que acaixa esvaziasse por completo e depois asfechou para que no momento certo não atrapa-lhassem o lento reencher anteriormente calcu-lado. Sentou-se à mesinha, sua companheiradas fantásticas horas de descobertas e numpedaço de cartão escreveu com uma canetahidrográfica: "Novo endereço" Abaixo escreveuum nome de rua vulgar, repetido em muitascidades e o nome de uma localidade de médioporte, onde fosse difícil achar alguém. Tambémcolocou um número de telefone e depoisaspergiu água sobre o cartaz, tendo cuidadopara não molhar apenas o título "novo ende-reço". Assim feito, ficou com um aspecto de algovelho, já borrado pela chuva, ilegível. Divididoentre deitar-se no chão, roer alguma maçã oucenoura, chás quentes e escrever, calmamente

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esperou que a noite chegasse. Então abriu aporta e cuidadosamente colou o aviso na parteexterna. Queria que acreditassem em suamudança para evitar que alguém comunicasseseu desaparecimento e numa eventual buscaatrapalharem seu plantio.

Depois escreveu no derradeiro caderno, o denúmero 122. Terminara sua obra, ali estava suavida, tudo o que pensara, deduzira, experimen-tara, descobrira. Teria que cair em boas mãos ese estivesse certo, ele, com suas partículas deconhecimento espalhadas por perto e nãodebaixo da laje de um cemitério poderia dealguma forma ajudar. Não se sentia no ocaso, nodesaparecer e sim no repartir, desmontar para atransformação. Era um homem, deixaria de oser, mas continuaria a fazer parte do Todo.

Retirou com cuidado a lona plástica que cobria aterra amontoada sobre a rampa. Assim que anoite caiu saiu pela última vez para seu jardimexterno, passou o olhar pela rua, recordou-se decada vizinho, suas encomendas, seus modos deviver alheios ao grande universo, e depois abriu

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o registro da água, procurando o colocar namesma medida anteriormente testada, apenasum mínimo de escoamento. Entrou, olhou rapi-damente o cartaz na porta e a fechou atrás de si.Vida social encerrada. Retirou a chave e aguardou no bolso. Passou pelos cômodos dacasa vagarosamente, arrastando os pés.Ajoelhou-se diante da caixa que continha ospapéis de seus pais, olhou suas fotos comcarinho. Examinou com emoção a caixa ao lado,com seus 122 cadernos, arrumou-os e fechou asabas de papelão sobre eles. Fraco, já quasesem sentir sua velha carcaça, não sabendodiscernir o real do sonho, abriu a porta dacozinha e saiu. Girou a chave na fechadura e acolocou no bolso junto com a outra. Vida parti-cular também encerrada. Sentou-se nosdegraus, encostou-se no batente e ficou acontemplar as estrelas e a sonhar, a vagar,quase fora do corpo...

...e despertou confuso; algumas horas haviam sepassado, dormira profundamente entorpecidopelo frio. Era provavelmente cerca das 22 horase Arthur, quase como um sonâmbulo, enca-minhou-se para a cova, cambaleante mas apres-

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sado para o encontro. Sentou na borda e deixouo corpo deslizar para dentro, os joelhos nãoaguentaram e dobraram. Ele nem se preocupouem levantar-se, deitou em posição fetal nopequeno espaço e o achou aconchegante, maisquente que lá fora. Sorriu, pensando que poderiaacordar gripado e ainda teria que fechar nova-mente o registro e cobrir a terra na rampa acimadele. Amanhã ainda serei Arthur ou serei umconjunto de novas peças para montagem? – foiseu derradeiro pensamento. O corpo e a mente,cansados, caíram em letargia, envolvidos pelanévoa fria que se despejava na cova de tempe-ratura superior à externa. Arthur tinha um levesorriso no rosto, dormia como um recém-nascido, pronto para saborear as delícias edescobertas de uma nova etapa.

Entre 03:00 e 03:30 horas algumas gotas deágua começaram a cair na base do monte deterra e logo um filete brilhante se lançou do canode escoamento, a caixa d'água estava cheia evazando, um pouco mais rápido que o previstopor Arthur provavelmente devido ao fato de sernoite, com um consumo menor na cidade econsequentemente uma pressão maior. Com

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precisão, a água caia na junção superior terra-lâmina de plástico, no topo da rampa e infiltrava-se por toda a base inclinada como previra seuengenhoso construtor; a auto semeadura estavaem marcha...

Seria por volta das 04:00 h da fria madrugadaquando o motor daquela máquina de carne eossos começou a falhar lentamente, até cessarpor completo. A morte natural e a hipotermiaprovavelmente chegaram juntas à linha final,seria difícil descobrir quem se antecipara à outra,por alguns minutos. Arthur partira finalmente domundo dos homens, terminara seu voo, mergu-lhara no Grande Oceano.

O sol já aparecera no céu sem nuvens, límpido,claro, quando o amontoado de terra moveu-sesubitamente, apenas alguns milímetros e parou.Depois de alguns segundos, a grande massa, jácom sua base transformada em barro deslizousilenciosamente sobre o escorregadio plásticomolhado e com um ruído surdo precipitou-se noburaco e o encheu completamente, restandoainda certa quantidade de terra para fora, encos-

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tada na rampa, que o escoar contínuo de águanos próximos dias se encarregaria de acomodare aplanar. Arthur fora semeado.

Naquela noite no bairro, apenas um fato, logoesquecido no retorno ao sono pesado dos mora-dores, havia perturbado a rotina das madru-gadas tranquilas: os cães do parque próximo,por volta das 04:00 horas, começaram um uivartriste, um lamento tocante, um grito de dor quedurou alguns minutos. Depois tudo voltou aosilêncio. Na manhã seguinte alguns madruga-dores que corriam no parque notaram que amatilha estava reunida com os focinhos mergu-lhados na relva, olhar triste, distante. Mas com achegada do sol um dentre eles se levantou, latiucom vigor e a vida recomeçou entre corridas elutas.

A casa, normalmente sempre fechada nãochamou a atenção dos vizinhos e um ou outroapenas se aproximou para ler o papel colado naporta que avisava da mudança, já quase ilegível"pelo tempo e pela chuva". A água foi cortadacomo solicitada. Depois de dois ou três meses

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sem que os avisos de dívida fossem quitados, acompanhia de energia também apareceu paraefetuar o corte e anotaram na planilha apóstentarem ler o aviso quase apagado afixado naporta: usuário não encontrado, mudou-se, casavazia, novo endereço desconhecido. Os mora-dores ao lado acabaram por se revezarem emaparar o gramado para que as ervas daninhasnão tomassem conta e passassem para seusjardins e a vida continuou sem novidades natranquila rua. Anos depois apareceram osagentes municipais que entraram na residência,onde claramente não morava ninguém há muitotempo e tudo indicava a mudança de seumorador, salas vazias, duas caixas de papéisnum canto, geladeira desligada, vazia e aberta,enferrujadas ferramentas de carpintaria e jardi-nagem. No quintal o mato crescera, mas predo-minavam flores, legumes e verduras que suces-sivamente cresciam e se multiplicavam numinterminável ciclo que ninguém aproveitava.

Por débitos de impostos urbanos e após osproclamas para o proprietário em local incerto enão sabido pronunciar-se, o imóvel iria a leilão.O interior da casa foi varrido e dedetizado e as

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caixas e poucos utensílios, sem valor, lá perma-neceram. O mato do quintal foi superficialmenteroçado e algumas tábuas apodrecidas mistu-radas com restos de plástico foram retiradas.Uma imobiliária voraz venceu o leilão, casas emruas tradicionais de bairros de classe médiaeram raros, pois passavam de geração emgeração e aquela era uma oportunidade única,aparentemente pertencera a um tipo esquisito,sem família, que depois de velho mudou-se paraoutra cidade e provavelmente por lá morreu semdeixar herdeiros. Mas a revenda, com preçosambiciosos, não estava sendo fácil e o corretorjá tinha uma ideia boa para torná-la atrativa, umapequena área de lazer no quintal em continui-dade com a parede posterior, cujo piso seria odeck de uma pequena piscina. Bastava cavaralguns metros cúbicos de terra exatamente ondeo terreno parecia um pouco rebaixado. Foiquando o casal de meia idade e a jovem apare-ceram na imobiliária...

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Transitoriedade é a palavra que bem definiaElizabeth aos 21 anos porque assim se sentia:um ser transitório, de passagem de uma formapara outra. Volta e meia deixava-se vagar juntoaos pensamentos, esquecida do corpo físico.Por isso muitas vezes permanecia estática, atémesmo quando ouvia dos médicos, psicólogos,psiquiatras os mais diversos disparates sobresua pessoa: autista, introvertida, ligeiro retardomental. Elizabeth simplesmente pensava,cismava. E para isso não era necessário loco-mover-se, movimentar braços e pernas, comple-mentos inúteis que pouco durariam e nada cons-truiriam que não se dissolvesse no tempo infinitodo Universo. Antes de recolher-se a si mesma,ainda tentara interagir com os jovens, conside-rava primordial para se achar, ter um compa-nheiro do sexo oposto, seu complementonatural. Mas logo se desgostara, pareciam tãoinfantis, tão grosseiros, máquinas rudes quepretendiam trilhar caminhos já abertos rumo a

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mesmices, futilidades, mentes ocas que aparen-temente se julgavam imortais. O que elabuscava era experiência, conhecimento que nãodos restritos filósofos demasiadamente humanosque apareceram até agora; se não o encon-trasse, teria que iniciar do zero, sem alicerces edeixar registrado para que seus iguais que asucedessem partissem de um ponto mais alto epudessem avançar mais e mais, tentando sair dociclo contínuo de começar do nada, ao nível dolodaçal em que a espécie se meteu voluntaria-mente, nas coleiras da ilusão...

Recebera com o desinteresse de sempre anotícia que procurariam uma casa em algumbairro tranquilo para libertarem-se do aparta-mento, que seus pais julgavam que contribuíapara o isolamento da filha. O corretor com seufalso entusiasmo mostrava as redondezas, oparque, a vizinhança. A mãe de Elizabeth notouque esta acompanhara a entrada do parque comos olhos, até virara o pescoço enquanto o carrose afastava. Bom sinal, pensou. Chegaram àcasa e o casal encantou-se com o pequenojardim, acharam o imóvel simpático, acolhedor.Entraram, Elizabeth atrás de todos, apática,passando de sala em sala.

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Se ficarem com a casa posso mandar retiraraquelas caixas e as ferramentas velhas, foramdeixadas não sei o porquê, disse o corretor, indi-cando o canto do quarto. -O que tem nelas? - indagou a mãe, curiosa;-Um monte de cadernos manuscritos, já dei umaolhada, deve ser de algum aluno de filosofia, nãoentendi nada, respondeu sorrindo o vendedor.As palavras "manuscritos" e "filosofia" atraíram aaté então desatenta jovem. Acercou-se da caixae surpreendeu os pais ao sair do habitualmutismo com estranhos e indicando os cadernosque se mostravam através da tampa entrea-berta, perguntou:-Posso?-Claro, claro! O vendedor pressentiu que o inte-resse da jovem podia ser decisivo para influen-ciar os pais e abriu-se num largo sorriso:-Fique à vontade, acredito que são mais de 100!Elizabeth já não o ouvia, o peixe-voador dese-nhado e a palavra "angústias" lhe hipnotizaram.Contemplou os cadernos encimados pelo denúmero 122. Teve uma chamada premoniçãocom aquele caderno na mão, ela que, apesar dapouca idade desconfiava que essas visões espo-rádicas, pressentimentos, ou o nome que

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dessem, eram devidos a que seus atos –e detodos os humanos- precediam o computar nasondas cerebrais e todos caminhavam atrás de simesmos, já no passado. Era preciso descobrircomo manter essas emissões no espaço,aumentar sua intensidade em busca derespostas. Viu-se uma espécie de vanguarda deuma doutrina que mudaria para sempre osdestinos dos homens, não como aquela que omesmo pretendera e falhara com seus 10mandamentos, ordens, trilhos, mas com 122cadernos que libertariam os humanos de suascoleiras cujas guias eram seguras por elesmesmos.Foi desperta pelo toque da mãe que, entusias-mada, lhe chamava:- Venha ver que coisa mais linda!Elizabeth, sem largar o caderno foi praticamentearrastada por sua mãe até o pequeno quintal,onde uma maravilhosa concentração de floresdos mais variados tipos brilhavam ao sol deinverno. O corretor coçava a cabeça com ar surpreso ecomentou com seu cliente:-Seria capaz de jurar que elas não estavam aiontem! Devo estar a confundir com outro imóvel.

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Bem, ver esse tipo de flores no inverno real-mente é algo raro –retrucou seu interlocutor quecompletou:-Isso está parecendo truque de vendedor deimóveis! Devem ter trazido da floricultura e trans-plantado aqui para nossa visita! –brincou. Eapontando mãe e filha, que embevecidasestavam acariciando as mais belas pétalas quejá haviam visto:-E parece que deu certo! E ambos riram, ocorretor mais ainda sentindo a comissão quaseganha e entusiasmado, arriscou:-Podem fazer ai uma bela área de lazer, era meuplano, com o deck colado na casa e a piscinacomeçando onde estão as flores...-Não, não! Eu quero as flores, replicou deimediato Elizabeth, deixando os pais boquia-bertos com a inusitada comunicabilidade da filha.Entreolharam-se emocionados e sabiam que nãoprecisavam pensar mais, se a filha estavademonstrando um raro entusiasmo, a escolhaestava feita. -Vamos dar uma olhada nos documentos? –propôs o pai.-Posso ficar aqui? Disparou uma nova Elizabeth,de olhos brilhando.

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-Podemos? –perguntou a mãe para o corretor, eolhou para o marido que aprovou com a cabeça.-Sem dúvida, olhem à vontade, sintam a casa. Éuma ótima escolha, estou certo que fecharemosessa compra. Em uma hora estaremos de volta. Já ignorando os presentes, a jovem dirigiu-se àgrande caixa de papelão, colocou o caderno 122que tinha nas mãos ao lado e com cuidado,começou a retirá-los até chegar ao que buscava,o número 1. Abriu o caderno nas folhas que denunciavamalgo entre elas e deparou-se com uma carta quesegurou com um quase religioso respeito.Após a data, leu:“Neste caderno número 1, no mais fundo dacaixa, deixo este testemunho para que na even-tual descoberta de minhas partículas mais resis-tentes, não vá a primária Justiça dos homenscriar algum crime, buscar algum inocente comoresponsável. Se você chegou a este caderno éporque foi atraído e procurou o início de meuspensamentos; espero ardentemente que delesfaça bom uso e assim, toda minha vida sejasomada à sua e a partir deste pequeno alicercechegue mais alto do que alcancei e depoistambém procure transmitir aos seus iguais.

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Descrevo então, como me plantei.”Seguia-se um detalhado desenho e os procedi-mentos adotados para o auto sepultamento eseu porquê, indicando que tudo ficaria mais claroquando da leitura dos últimos cadernos. E umpedido:“Por favor peço que, caso pretenda avisar asautoridades, leia antes todos os cadernos e sigasua consciência.”

Elizabeth dobrou novamente a carta, não aretornou à caixa, a guardou consigo. Leria simcom devoção todos os cadernos, os estudariacom afinco, mas não precisava disso para suadecisão já definitivamente tomada. E sabia queele vencera, ele conseguira. Voltou ao quintalmunida de um regador e as velhas ferramentasde seu Par, seu Degrau.Aspirou longamente o perfume das flores queArthur abrira só para ela em pleno invernosentindo que inalava sabedoria, e com carinhocomeçou a cuidar de seu jardim de segredos...

fim

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