Universidade do Estado do Pará
Centro de Ciências Sociais e Educação
Núcleo de Pesquisa e Pós-Graduação
Mestrado em Educação – Linha de Saberes Culturais e
Educação na Amazônia
Andréa Lima de Souza Cozzi
TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E
SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-
PARÁ
BELÉM/PA
2015
Andréa Lima de Souza Cozzi
TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E
SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-
PARÁ
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação –
Mestrado, Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na
Amazônia, do Centro de Ciências Sociais e Educação, da
Universidade do Estado do Pará, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares.
BELÉM/PA
2015
Dados Internacionais de Catalogação na publicação
Biblioteca do CCSE/UEPA
Cozzi, Andréa Lima de Souza
Tessituras poéticas: educação, memória em saberes e narrativas da Ilha grande/Belém-PA/
Andréa Lima de Souza Cozzi. Belém, 2015.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará, Belém, 2015.
1.Narrativas poéticas. 2. Práticas educativas – Ilha Grande (PA). I. Fares, Josebel Akel.
(orientador). II. Comunicação oral – Ilha Grande (Pará). III. Título.
CDD.21. Ed. 371.3
____________________________________________________________________________
Andréa Lima de Souza Cozzi
TESSITURAS POÉTICAS: EDUCAÇÃO, MEMÓRIA E
SABERES EM NARRATIVAS DA ILHA GRANDE/BELÉM-
PARÁ
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Educação –
Mestrado, Linha de Pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia,
do Centro de Ciências Sociais e Educação, da Universidade do Estado do
Pará, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em
Educação.
Orientadora: Prof.ª Drª. Josebel Akel Fares.
Data da defesa: 25/09/2015
Banca examinadora
__________________________________
Prof.ª Dr.ª Josebel Akel Fares – Orientadora
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________
Prof.ª Dr.ª Denise de Souza Simões Rodrigues – Examinadora Interna – UEPA
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
__________________________________
Prof.ª Dr.ª Maria Roseli Sousa Santos – Examinadora Interna – UEPA
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará
_________________________________
Prof.ª Dr.ª Regina Estela Barcelos Machado– Examinadora Externa – USP
Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
BELÉM/PA
2015
Aos Contadores de histórias que estão sempre comigo nas travessias...
Maria Francisca Medeiros de Lima (Vovó Mirica – em memória);
Delani Alves (Iara-lani – em memória)
Patyco Tembé (Tuerarup – em memória)
Aos Contadores de histórias que proporcionaram o mergulho no rio de minhas memórias...
Ana Cristina Ramos;
Grupo Tuerarup de Contadores infantis de histórias;
Daniel Munduruku;
Francisco Gregório;
Juraci Siqueira, Rodrigo Grillo e Sônia Santos (Cirandeiros da Palavra)
Simeão Monteiro (mestre na arte de narrar)
Bel Fares
Regina Machado
Aos Contadores de histórias que hoje seguem como o fluxo do rio...
Sofia Cozzi;
André Cozzi
A Eliana Pojo, que me trouxe para as travessias...
AGRADECIMENTOS
A todos os rios que atravessam meu ser... Encharcada de saberes.
VELHO SIMEÃO
(Douglas Richard, morador do Furo do Maracujá - Belém/PA)
Quem quiser ouvir histórias,
Histórias eu tenho pra contar,
Ouça e guarde na memória,
As lendas do meu lugar.
O velho Simeão contou...
Criançada parou para ouvir,
É visagem, é assombração,
Cobra grande que vem por aí!
Ele mora na beira do rio,
A boiuna ele viu surgir,
E a canoa passou por cima,
Carregada de açaí!
E se diz namorador...
Que até com a Matinta ele namorou,
Se é verdade ou mentira,
Ou se é pura ilusão,
São muitas histórias do velho Simeão!
Simeão é o contador,
Suas histórias fazem viajar,
Por um mundo cheio de magias,
Que fazem os meus olhos brilhar,
Por um mundo cheio de magia,
Que encanta quem o escutar...
A MARGEM OCULTA
... Eu sou. Tu és. Nós somos afluentes
desse rio – medula do universo
que nasce no infinito e desemboca
no âmago do Ser que somos parte.
Agora que já sabes que és rio
deves saber também que o teu destino
é fazer teu caminho caminhando:
tu és ao mesmo tempo oleiro e barro
tu és num só momento o boi e o carro!
E como rio deves morrer todas as noites
e renascer todos os dias sempre menino
e sempre outro – embora sendo o mesmo
que há milênios corre entre delírios
de lendas e contendas reveladas
nas pedras que circundam mil segredos!...
É preamar. Em plenilúnio a Lua desponta
e monta guarda enquanto o Sol descansa.
Indiferente o rio corre na Vida
e a Vida por sua vez corre no rio;
o rio fez do correr perene lida
e a vida do viver eterno cio...
Antônio Juraci Siqueira
RESUMO
COZZI, Andréa Lima de Souza. Tessituras poéticas: educação, memória e saberes em narrativas da
Ilha Grande/Belém-Pará. 2015. 156 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado
do Pará, Belém, 2015.
O trabalho aqui apresentado está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado)
da Universidade do Estado do Pará, na linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia.
Tem como problemática: Quais os saberes e práticas educativas expressos nas vozes dos intérpretes da
Ilha Grande? O objetivo central da pesquisa é cartografar processos educativos em narrativas orais
imersas nos saberes e práticas cotidianas de Simeão Monteiro, contador de histórias da Ilha Grande.
Como eixo metodológico, a abordagem será qualitativa, pautada na existência de uma relação
dinâmica e viva entre o sujeito e o objeto, além da aproximação, do contato direto com os sujeitos da
pesquisa. A história oral e a entrevista narrativa são as técnicas utilizadas para a coleta de dados. Os
referenciais teóricos apreciados foram: Barbero (2002) e a exortação na busca pelos buracos na
construção cartográfica; Deleuze e Guattari (1995) e Kastrup (2009), sobre as pistas do fazer
cartográfico; Fares (1997, 2008a, 2008b, 2010) com as cartografias da voz na Amazônia; Freitas
(2003) e os debates sobre história oral e o registro dos fatos na voz dos próprios protagonistas;
Zumthor (1993, 1994, 2005), com a definição de poéticas orais, performance, tradição e esquecimento,
categorias preciosas para o entendimento da Literatura caracterizada pela presença da voz; Bachelard
(1988, 1990), com a concepção de imaginação criadora; Bosi (1994), com a problematização da
história oficial ao estabelecer como fonte de pesquisa a memória de velhos; Durand (1997, 1998), com
as concepções de imaginário; Loureiro (1995), para compreensão do tempo da significação na
Amazônia, fluido como o rio; Freire ( 1987, 1992, 1995) que apresenta no conjunto de sua obra a
necessidade de envolvimento com a cultura e a história dos indivíduos presentes na experiência;
Brandão (2002) e o conceito de currículo a partir da complexidade das relações entre educação e
escola; Mclaren (1997), com o multiculturalismo crítico e a pedagogia de resistência. O desenho da
dissertação apresenta-se da seguinte forma: capitulo I, Fio da meada, traz inicialmente o mergulho nas
memórias de infância, encontros iniciais com as poéticas da voz, e a inserção do universo da oralidade
nas práticas educativas no meu lócus de atuação como professora. Em seguida, são traçados os
caminhos percorridos na pesquisa: motivações, objetivos, tema, objeto de estudo, questões
norteadoras, abordagem, tipo de pesquisa, técnicas, estado da arte e referenciais teóricos. O Capítulo
II, Belém e sua trama insular, contextualiza o ciclo das demarcações cartográficas na referida cidade a
partir do século XVII com a chegada dos conquistadores na Amazônia. O olhar presente é dos
cronistas de viagem e demais pesquisadores interessados na complexidade cartográfica amazônica. O
Capitulo III, Bastidor de histórias, discute os fios da memória presentes na voz do narrador. O
Capitulo IV, Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da Ilha traça o
mapa desenhado a partir da voz do narrador da comunidade. As Aproximações (in)conclusivas são os
registros dos resultados da pesquisa e as possíveis contribuições para os diálogos entre os saberes e as
práticas educativas.
Palavras-chave: Educação – Saberes – Poéticas orais.
ABSTRACT
COZZI, Andréa Lima de Souza. Poetic tessitura: education, memory and knowledges in Ilha Grande’s
storytellings/ Belém-Pará. 2015. 156 f. Disssertation (Master’s in Education) – State University of
Pará, Belém, 2015.
This paper is bounded by the State University of Pará’s Post-Graduation Program (Master’s in
Education), line of research Cultural Knowledges and Education in the Amazonia. Having as guiding
questions: what are the knowledges and educative practices expressed in Ilha Grande’s interpreters
voices? The central aim of this research is cartographing educative processes in oral narratives
immersed in the everyday life of Simeão Monteiro, storyteller of Ilha Grande. In a qualitative
approach, it focus on the existence of a dynamic and vivid relation between the subject and the object,
in addition to the closeness, direct contact with the subjects of the study. Oral History and the
narrative interview were the techniques used for the data collection. The theoretical references were:
Barbero (2002) and the exortação na busca pelos buracos na construção cartográfica. Deleuze and
Guattari (1995) Kastrup (2009) sobre as pistas do fazer cartográfico. Freitas (2003) e os debates sobre
história oral e o registro dos fatos na voz dos próprios protagonistas. Zumthor (2005) with the
definition of oral poetry, performance, tradition, and forgetfulness, precious categories for
understanding the Literature in which the presence of a voice is the main characteristic. Bachelard
(1990) With the notion of creative imagination. Bosi (1994) brings the problematisation of the original
history when establishes the elderly’s memories as the source of research. Loureiro (1995) for
comprehending the time of signification in the Amazonia, fluid like the river. Freire (1995) presents in
his studies the necessity of enrolling with culture and the history of the individuals, also enrolled with
the experince. Brandão (2002) and the notion of curriculum dealing with the complex relation between
education and school. Critic Multiculturalism and the Pedagogy of resistence from Mclaren (1997).
The dissertation is presented like the way that follows: Chapter I, Fio da meada, it brings a dive in
children’s memories, initial meetings with the voice poetry, and the inclusion of oral universe in the
educative practices at my locus of actuation as a professor. Then, the motivations, aims, theme, object
of study, guiding questions, approach, type of research, techniques, state of art, and theoretical
references are presented. Chapter II, Belém e sua trama insular, contextualizes the cycle of
cartographic demarcations in the city since XVII century with the explorers come to the Amazonia.
The present look belongs to the travel chroniclers and other researchers interested in the cartographic
complexity of Amazonia. Chapter III, Bastidor de histórias, discusses the threads of memory present
in the narrator’s voice. Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da
Ilha Grande. Finally, chapter IV draws the map designed by the community narrator’s voice. Ponto de
espinha: aproximações (in)conclusivas are recordings from the research results, and the possible
contributions dialogues between knowledges and the educative practices.
Keywords: Education – Knowledges – Oral poetries.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Roteiro de Orellana ao percorrer o rio Amazonas......................................... 32
Figura 2 – As Amazonas................................................................................................. 34
Figura 3 – Mapa de La Condamine................................................................................. 36
Figura 4 – Planta da Praça da cidade de Belém do Pará de 1751.................................... 37
Figura 5 – Planta Geométrica da cidade de Belém o Grão Pará de 1753........................ 38
Figura 6 – Planta da cidade de Belém em 1761.............................................................. 38
Figura 7 – Mapa da proposta de aprofundamento da área do alagado do Piri................ 39
Figura 8 – Imagem aérea da cidade de Belém................................................................ 43
Figura 9 – Rio Guamá entre Belém e a Ilha do Combu à direita.................................... 44
Figura 10 – Mapa dos bairros da Cidade de Belém........................................................ 47
Figura 11 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 01)..................................... 48
Figura 12 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 02).......................................... 48
Figura 13 – Caminhos do rio que levam a Ilha Grande.................................................. 49
Figura 14 – Caminhos na Ilha Grande............................................................................. 50
Figura 15 – Porto da escola............................................................................................. 50
Figura 16 – Localização da Unidade Pedagógica São José............................................ 53
Figura 17 – Boto - Pintura rupestre em Monte Alegre/PA.............................................. 60
Figura 18 – Logo do Movimento de Contadores de histórias da Amazônia................... 93
Figura 19 – Cartaz do I Encontro de Contadores de histórias da Amazônia................... 95
Figura 20 – Cartaz do II Festival Pororoca de Histórias................................................ 95
Figura 21 – Cartaz do II Encontro de Contadores de Histórias...................................... 98
Figura 22 – Rizoma......................................................................................................... 152
Figura 23 – Imagem do diário de bordo.......................................................................... 109
Figura 24 – Simeão Monteiro, no momento da performance.......................................... 110
Figura 25 – Mapa da Ilha Grande pelos professores....................................................... 116
Figura 26 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão.... 118
Figura 27 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão.... 119
SUMÁRIO
1. FIO DA MEADA........................................................................................................... 15
2. BELÉM E SUA TRAMA INSULAR....................................................................... 30
2.1. EU VI....................................................................................................................... 30
2.2. CICLO DAS DEMARCAÇÕES: CARTOGRAFIAS DE BELÉM........................ 33
2.3. BELÉM ADONARDA: GUIRLANDA DE ILHAS................................................ 40
2.4. ILHA GRANDE....................................................................................................... 46
2.5. MULTICULTURALISMO CRÍTICO E EDUCAÇÃO: TRAMA DE
SÍMBOLOS E SENTIDOS NA ILHA GRANDE..........................................................
49
3. BASTIDOR DE HISTÓRIAS................................................................................... 57
3.1. PONTO CASEADO – OS FIOS DA MEMÓRIA PRESENTES NA VOZ DO
CONTADOR DE HISTÓRIAS.......................................................................................
57
3.2. PONTO HASTE – MNEMOSYNE E LESMOSYNE: MEMÓRIA E
ESQUECIMENTO INSEPARÁVEIS NA GRÉCIA......................................................
59
3.2.1. PONTO HASTE ALTERNADO EM CORRENTE – ELOS DA MEMÓRIA.... 61
3.3. PONTO DE VANDYKE – MEMÓRIA VIVA, A PALAVRA ENTRELAÇADA
NA ÁFRICA....................................................................................................................
63
3.4. PONTO CHATO – O NÃO-LUGAR DA ORALIDADE PARA OS POVOS
ÁRABES.........................................................................................................................
67
3.5. PONTO ROCOCÓ – POVOS EUROPEUS NA IDADE MÉDIA – A
LITERATURA ORAL....................................................................................................
71
3.6. PONTO TEIA DE ARANHA – PARA CINCUNDAR A VIDA COM A VOZ..... 76
3.7. PONTO DE CADEIA – A ORALIDADE E O NARRADOR
CONTEMPORÂNEO.....................................................................................................
81
3.7.1. PONTO DE CADEIA – A ORALIDADE E O NARRADOR EM BELÉM........ 87
4. RISCOS DO BORDADO: ENSAIO CARTOGRÁFICO DOS SABERES E
PRÁTICAS EDDUCATIVAS DA ILHA GRANDE.....................................................
4.1. PESPONTO: OS DESENHOS DA CARTOGRAFIA............................................
94
4.2. CHULEAR: SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS ARREMATADAS.......... 101
4.3. PONTO A PONTO: FIOS EPISTEMOLÓGICOS DA CARTOGRAFIA.............. 107
4.4. CONTRAPONTO: SER E SABER NA AMAZÔNIA, TENSÕES E
COMPLEXIDADES NO DESENHO DO MAPA.........................................................
112
APROXIMAÇÕES (IN)CONCLUSIVAS................................................................... 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 139
ANEXOS........................................................................................................................ 144
15
1. FIO DA MEADA
E de noite em casa, enquanto cerzia meias, pregava botões, fazia
bainhas, sua voz contava as histórias que tinha ouvido de outros
fiapos de voz. Montes de histórias de mulheres e fiapos, fios e linhas
de todo tipo, ponto a ponto se tecendo e virando novas tramas.
Ana Maria Machado
“Eu tentei compreender a costura da vida, me enrolei, pois a linha era muito
comprida, e o que eu vou fazer para desenrolar?”1, quem borda sabe muito bem que a linha
colocada na agulha não deve ultrapassar o tamanho do antebraço, a medida é feita para que a
linha não enrole e o bordado possa ser feito aos poucos, serenamente.
A indagação colocada na música ressoa e leva meus pensamentos a buscar a resposta,
e, então, o que é eu vou fazer para desenrolar meu fio de vida e deixá-lo livre para enredar-se
na teia da existência humana? Entre tantas idas e vindas do fio no novelo, encontro uma ponta
e tento puxá-la, eis que encontro o fio da meada, na verdade, o fio da memória... Agora é hora
de sentar no batente da porta dos fundos. Meus olhos fitam um grande e comprido quintal,
cheio de árvores e zelosamente ancinhado para retirada das folhas caídas, mas só depois das
15h, horário em que diariamente a vida se refaz despertada pelo cheiro do café coado no saco
de pano, tão bem remendado pelas habilidosas mãos da Dona Mirica. O olhar é atraído para o
pé de abiu, meu preferido, gostava de sentir meus lábios presos pela resina que sai da fruta, a
brincadeira era tentar descolar os lábios, ou então passar um tempo sem dizer uma palavra.
Ah, nesse momento de brincar de silêncio, eu ouvia tantos outros sons daquele quintal...
encontro finalmente o fio das minhas memórias... Pego o tecido, coloco no bastidor, desenho
o risco do bordado, ao meu redor coloco as meadas, separando-as por tons e matizes,
seleciono as linhas e faço a composição das cores, enfio a linha na agulha e dou o primeiro
ponto...
Cresci entre histórias de rio e rua, minha infância foi povoada com as narrativas
contadas por minha avó materna, o contar histórias iniciava após a Ave Maria e o lusco-fusco,
ou crepúsculo, como é comumente conhecido. Elementos que consentiam o início da
contação, era preciso reconhecer a chegada do lusco-fusco para ter a permissão das histórias.
Segundo dizia Vovó Mirica, o crepúsculo era o momento mágico da partida do dia e da
chegada da noite, no limiar entre o dia e a noite abre-se um portal, e as encantarias transitam
entre os mundos, e os que foram ensinados a ver com os olhos do poético conseguem perceber
1 Trecho da canção Costura da vida, de Sérgio Pererê Belo Horizonte/MG.
16
a transição: os passarinhos começam a se recolher com seus últimos gorjeios, as formigas
invertem sua marcha preparando-se para descansar, as cigarras cantam alto, o vento e as águas
dos rios acalmam seus movimentos, então o contador de histórias tem a permissão de chamar
para suas narrativas os seres encantados.
As temporalidades determinavam o repertório apresentado por ela nas suas contações.
Contar histórias de dia nasce rabo de macaco! Aos encantados eram reservadas as noites. Pela
manhã, as narrativas que chegavam aos nossos ouvidos eram sobre os acontecimentos
cotidianos e vinham junto com o cigarro desfrutado após o almoço, uma mão pitando e a outra
apoiada na porta dos fundos à espera das notícias da Rádio PRC-5. Ao som da música de
abertura do programa A Patrulha da Cidade2 – ... é uma tristeza, uma infelicidade, ouvir meu
nome na Patrulha da Cidade... –, o silêncio tomava conta para dar passagem às histórias do
jornalismo policial ou, como foi batizado pela Vovó, “as histórias de crime”. Entre as notícias
trazidas pelo radialista Adamor Filho, juntavam-se as da Vovó: “... lembra daquele caso que
aconteceu lá na... parece com esse...” – o fio condutor das histórias vespertinas começava a
ser tramado.
Ela era uma vó contadora de histórias, e eu vivia emaranhada pelas narrativas
contadas. Aquela casa cheirava a histórias e era habitada por tantos personagens, às vezes
ficava tão cheia que mal conseguíamos andar.
A porta dos fundos que dava para o quintal era lúdica para nós, dividia-se em duas,
uma parte em cima e outra em baixo, e assim permitia brincar de passar por cima ou por
baixo. Os tapetes eram feitos pela vovó com retalhos coloridos cortados e amarrados, numa
composição de cores que dava gosto de olhar. Quantas vezes acompanhei sentada no pé da
máquina de costura Singer o processo de tessitura destes retalhos de vida. Nas cômodas, ela
colocava panos de crochê, um conjunto para cada ocasião, tinha os do Círio, Natal,
aniversários.
No processo de rememoração para a escritura do texto, recuperei um tesouro que
pensei não mais encontrar, a história que mais gostava que a Vó Mirica contasse, A Senhora
Holle. Ao lê-la, senti a força dos versos de um poeta curitibano, Ricardo Corona, “sentir, eu
2 A Patrulha da Cidade estreou na Marajoara em 1965. Era produzido pelo então diretor da rádio, Advaldo
Castro. O nome e o formato do programa foram adotados da Rádio Tupy do Rio de Janeiro. Até então, não havia
no Rádio paraense um programa específico sobre os fatos policiais. As notícias eram veiculadas em outros
noticiários e durante a programação. Os primeiros repórteres policiais foram Adamor Filho, Osvaldo Rodrigues e
Aclésio Moura. O programa também trazia muita informação de utilidade pública, o que era a garantia da
participação popular. J. Miranda redigia o roteiro do programa, que era apresentado em duas sequências: A
Ronda da Cidade – mostrava em pequenas histórias os fatos investigados na Central de Polícia; e Os dramas da
Cidade – com bom humor, transformava os fatos trágicos do dia a dia em novela, cuja tônica era a comédia.
Fonte: http://www.oparanasondasdoradio.ufpa.br/60novafase.htm. Acesso: 05/09/2014
17
sentirei até o fim, nascem flores com o tempo, flores nos vasos é com vocês, eu vou regar um
jardim”, um contentamento profundo me invadiu, alguma coisa em mim foi recuperada. No
percorrer das linhas do texto, ouvi a voz da vovó utilizando a matriz dos irmãos Grimm para
“amazonear” seu conto ao dizer que a moça boa havia limpado o igarapé a mando da senhora.
Os contos que ouvira de seus parentes portugueses ganhavam a voz da floresta. A história
acima citada foi escrita e batizada por mim de O igarapé encantado, o registro foi feito no
livro Apanhadores de histórias3, volume II. O reconto nasceu das águas revoltas e turvas da
memória afetiva, com a morte de Vovó Mirica. A princípio, suas histórias ficaram quietas,
adormecidas, ou esquecidas, por um tempo o entendimento que tive da situação esquecimento
e memória parecia negativo. O profundo hiato instaurado na memória de uma criança que
cresceu sob a sombra generosa das narrativas parecia uma incapacidade de lembrar, e, mais
ainda, de honrar a voz de um antepassado tão importante!
Desconforto era o sentimento surgido após os momentos de reflexão sobre o
esquecimento das narrativas ou de trechos delas, até ter contato, através dos seminários
realizados pelo Núcleo de Pesquisas Culturais e Memórias Amazônicas/CUMA da
Universidade do Estado do Pará, com os estudos da pesquisadora Jerusa Pires Ferreira, sobre
memória e esquecimento, que atiçaram o desejo de compreender minhas próprias lacunas.
O entendimento foi instalando-se ao ler os ensaios de Jerusa no livro Armadilhas da
Memória. O primeiro reajustamento foi descobrir que a aparente incongruência entre memória
e esquecimento faz-se necessária para o processo criador da narrativa:
A dupla esquecimento/memória, portanto, é apenas uma aparente oposição. Numa
grande medida, estas oposições são instrumentos conjuntos e indispensáveis em
projetos narrativos que dão conta de eixos de conflito. Há também o caso de, no
corpo da própria narratividade, formarem-se núcleos em que lembrar é um fluxo, um
processo, uma razão de ser e então o ato de esquecer se faz pivô daquilo que se
desenvolverá, detonando uma série de transformações ou a transformação
(FERREIRA, 2003, p.92-93).
O esquecer remete à criação, morrer para ressuscitar, deixar as lembranças chegarem
novamente, com novo corpo, reencarnar. A premissa aqui apresentada assegura o processo
vivido desde o contato com as narrativas, A Senhora Holle, dos Irmãos Grimm, de As Fadas,
de Charles Perrault, até chegarem aos meus ouvidos pela voz de Vovó Mirica e agora renascer
na forma de O igarapé encantado. Recriação apontada por Ferreira (2003, p.94) através dos
“buracos” do esquecimento, “O lapso, hiato, fratura, ressurgimento têm a ver com a
3 Projeto de edições de livros com as narrativas preferidas recontadas por contadores de histórias da Amazônia.
18
interrupção de um projeto, tanto de vida e de ação como de narrar. Formam uma espécie de
morte momentânea, ritualizada, que daria lugar ao fluxo da vida”.
Sendo assim, as histórias influenciaram profundamente a forma de ver o mundo e as
pessoas, e se fortaleceram e nutriram minha trajetória de vida até hoje. Certa vez, ouvi de um
índio contador de histórias que também cresceu entre as histórias de seu avô que as narrativas
ouvidas ficam por algum tempo guardadas no rio de nossas memórias, como as areias do
fundo de um igarapé, quietas, tranquilas, e somente são agitadas quando alguém as revolve,
então elas se mostram.
Acredito que as histórias da Vó Mirica são as responsáveis pelo caminhar e pela
necessidade da troca singular que a educação oferece a mim. Que gostosura de infância!!
Posso até sentir o cheiro daquelas noites... Ah, se todos pudessem ter um encantador de
histórias. Mergulhei no rio das memórias e retornei encharcada com as lembranças da
infância, e assim me percebi educadora, emaranhada por fios de vida tecidos por muitas
vozes, com a crença na possibilidade de uma educação que privilegie o ser e sua diversidade,
em que o saber construído faça o caminho inverso do que está posto, emane de seu meio.
As experiências que tive com a literatura oral foram a matriz para o caminho
profissional que busco: o diálogo entre as vozes silenciadas, o saber local e a instituição
escolar.
Pautei minha vida acadêmica e profissional em narrativas. Assim como minha Avó
Mirica, contei diariamente histórias aos alunos que cruzaram meu caminho no exercício
docente. O desejo e a necessidade pelo entendimento sobre este trabalho com as narrativas
proporcionaram a busca por meus pares, pessoas que também comungam do amor pela
literatura oral, pelas poéticas orais.
O encontro com os pares aconteceu no ano de 2000, na Escola Municipal Professora
Terezinha Souza. Ana Cristina Cordeiro e eu, professoras do Ciclo II (correspondente a 3ª e 4º
série do ensino fundamental), após observações em pouco mais de um mês de aulas,
descobrimos que enfrentávamos problemas parecidos: a maioria dos alunos não conseguia ler
e interpretar textos, bem como expressar suas ideias através da escrita, e, consequentemente,
estas dificuldades refletiam nas outras áreas do conhecimento.
Nós duas havíamos crescido sob a sombra refrescante e generosa das narrativas, e após
reflexões feitas sobre nossas memórias de infância decidimos colocar em prática um projeto
que trouxesse as histórias para dentro do espaço escolar, já que a escola localiza-se no bairro
da Castanheira, comunidade que vive às margens do Utinga, local fértil de histórias.
19
Fizemos o primeiro ensaio cartográfico. Saímos com os alunos pela comunidade a
mapear os Contadores e suas histórias, que foram registradas pelas crianças num livro que
usamos como base para as aulas, além da formação de um grupo de Contadores Infantis de
histórias intitulado Tuerarup (significa “para sempre” na língua indígena Tembé).
Outra inserção na pesquisa cartográfica ocorreu na Ilha Grande, Belém, intitulada
“Apanhadores de histórias da Ilha Grande: saberes do rio e da mata pelas vozes dos seus
sujeitos”. Realizado em conjunto com a coordenadora das ilhas, professora Eliana Pojo,
coordenação pedagógica, professores e alunos da Unidade Pedagógica4 São José, vinculada à
Secretaria Municipal de Educação, teve como objetivo mapear os saberes presentes no
cotidiano da comunidade ribeirinha que vive às margens do Rio São Benedito.
O caminho da pesquisa na Ilha Grande segue agora na perspectiva do Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, na linha de
Saberes Culturais e Educação na Amazônia. Os primeiros passos trilhados vieram
acompanhados da necessidade da busca teórica para dar suporte à pesquisa. Inicialmente,
precisei compreender os processos educativos a partir das vozes dos sujeitos, revelados em
um fazer que envolvesse a transposição do olhar para o entendimento de outras realidades que
margeiam a escola, constituindo-se o fluxo constante das conexões entre tais saberes
expressos nas visões de mundo, na prática social cotidiana, nas histórias de vida de cada
grupo.
O ingresso no Mestrado desvelou possibilidades de aportes teórico-metodológicos. As
disciplinas cursadas vieram acompanhadas de discussões que qualificaram os passos da
pesquisa. A correlação dos pensamentos dos autores trabalhados e o caminho da pesquisa
pretendida foram determinantes para lançar as bases das tessituras poéticas.
Ao passar da proa e adentrar na embarcação rumo à Ilha Grande, deparo-me ainda
mais com a necessidade do aporte teórico para entender a construção cartográfica a partir das
vozes, da história de vida dos moradores, em especial do Sr. Simeão, o intérprete analisado
nesse percurso da travessia, e os processos que configuram as categorias de análise
pretendidas na pesquisa, que concebam a educação além da visão positivista carregada de
conceitos binários.
A escola, enquanto espaço plural, que congrega diferentes saberes, como tem
potencializado esses saberes e práticas educativas? Tem dado ouvido ou silenciado? De que
forma os intérpretes da comunidade dialogam com a escola?
4 Unidades Pedagógicas são anexos das escolas, não possuem um diretor, apenas um coordenador pedagógico, a
unidade é vinculada a uma escola sede (localizada na região continental de Belém).
20
Compreender o diálogo feito entre a escola e a cultura expressa na dinâmica de vida
dos moradores da ilha, através da oralidade, nos incita a percorrer os caminhos para os ensaios
do contorno do mapa da Ilha Grande, que nos mostrará os processos educativos através das
narrativas orais imersas nas práticas cotidianas dos amazônidas que ficam à margem da
escola. Apesar de não ser o cerne central da pesquisa, a recorrência do tema nos leva a
problematizá-lo. A temática proposta tem como foco as narrativas orais dos moradores da Ilha
Grande, em Belém do Pará, e os saberes expressos pela voz.
Paulo Freire (1996, p.25), em Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática
educativa, utiliza o exemplo do velejador para trazer o entendimento da aplicação dos
conceitos “saberes” e “práticas educativas”, ao dizer que, para alguém chegar à prática do
velejar, é importante conhecer os saberes envolvidos no ato, como conhecer o barco, o motor,
as marés, a posição das velas para receber os ventos etc. No entanto, na prática do velejar, os
saberes vão se organizando, sendo confirmados ou modificados. A partir de então, nesse
processo dialético, vão se legitimando, se constituindo, os saberes necessários às práticas
educativas. O conhecimento dos saberes alimenta a prática e nos coloca diante de um
posicionamento, “Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a
responsabilidade que ela exige de nós, tanto mais me convenço do dever nosso de lutar no
sentido de que ela seja realmente respeitada” (FREIRE, 1996, p.107).
Na escolha das linhas para tessitura poética na Ilha Grande, a abordagem foi
qualitativa, pautada na existência de uma relação dinâmica e viva entre o sujeito e o objeto,
além da aproximação, do contato direto com os sujeitos da pesquisa. Segundo André (1995,
p.17), uma característica importante desse tipo de abordagem é a fundamentação numa “visão
holística dos fenômenos, isto é, leva em conta todos os componentes de uma situação em suas
interações e influências recíprocas”.
A compreensão holística do fenômeno estudado na Ilha Grande leva-nos a percorrer os
caminhos etnográficos para ampliação do olhar além da visão dominante. O desafio reside no
afastamento da contemplação generalista ou panorâmica do objeto de estudo, a visão do
pesquisador precisa buscar os silenciamentos, as vozes periféricas reveladoras da densidade
das práticas que para outras abordagens podem ser comuns, ou naturalizadas. Beaud e Weber
(2014, p.10) testificam a premissa ao dizerem:
A etnografia não julga, não condena em nome de um ponto de vista “superior”. Ela
procura, antes de tudo, compreender, aproximando o que está distante, tornando
familiar o que é estranho. Agindo assim, torna as coisas, as pessoas e os eventos
mais complicados do que parecem. Pelo fato de o etnógrafo limitar-se a um longo
trabalho de descrição – interpretação – os dois andam em par – ele põe às claras a
21
complexidade das práticas sociais mais comuns dos pesquisados, aquelas que são de
tal forma espontâneas que acabam passando desapercebidas, que se acredita serem
“naturais” uma vez que foram naturalizadas pela ordem social como práticas
econômicas, alimentares, escolares, culturais, religiosas ou politicas, etc.
O exercício da pesquisa etnográfica aproxima-se da cartografia por envolver a
transposição do olhar para o entendimento de outras realidades que margeiam a escola,
constituindo-se o fluxo constante dos fios que ligam a rede de saberes expressa nas visões de
mundo, na prática social cotidiana, nas histórias de vida de cada grupo.
As técnicas utilizadas foram a história oral e a entrevista narrativa. Para Freitas (2002),
a história oral oportuniza a recuperação dos testemunhos abafados pela História oficial, o
registro das memórias margeadas traz para o centro do debate pontos de vista diferentes sobre
os fatos e quase sempre desprezados pela dominação. Será apreciado no trabalho com história
oral, o olhar de Thompson sobre a derrubada de barreiras na construção do conhecimento:
A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso depende do
espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral pode certamente ser um
meio de transformar tanto o conteúdo quanto a finalidade da história. Pode ser
utilizada para alterar o enfoque da própria história e revelar novos campos de
investigação; pode derrubar barreiras que existam entre professores e alunos, entre
gerações, entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da
história – seja em livros, museus, rádios ou cinema – pode devolver às pessoas que
fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias
palavras (THOMPSON, 1992, p.22).
A história oral dialoga com a entrevista narrativa no sentido de estimular os sujeitos a
dizerem de si e suas experiências:
As entrevistas narrativas são infinitas em sua variedade, e nós as encontramos em
todo lugar. Parece existir em todas as formas de vida humana uma necessidade de
contar; contar histórias é uma forma elementar de comunicação humana e,
independentemente do desempenho da linguagem estratificada, é uma capacidade
universal (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002, p.91).
A entrevista narrativa, de acordo com Jovchelovitch e Bauer (2002), é uma técnica que
privilegia o ouvir, a escuta dos relatos e opiniões no momento da coleta de dados. As
perguntas são abertas, objetivando a expressão dos pensamentos com o mínimo de
interferência do pesquisador, as perguntas feitas levam à condução de uma conversa pautada
na decisão do entrevistado sobre o que é importante ser dito.
O pesquisador, ao propor-se utilizar a técnica da entrevista narrativa, necessita estar
ciente de que o tempo da entrevista é ditado pelo sujeito, deixando-o livre para elaborar e
reelaborar suas ideias, respeitar os silêncios, as lágrimas roladas, a pausa para passar o café...
22
As travessias realizadas têm como foco cartografar os saberes partilhados a partir da
história de vida e memória de Simeão Monteiro, morador da ilha apontado pelos alunos da
Unidade Pedagógica São José como referência na prática de narrar histórias. A pesquisa foi
norteada pelos seguintes passos: (1) Levantamento bibliográfico para fundamentar conceitos
sobre educação e cultura, cartografia, memória, história oral, imaginário, performance, entre
outros; (2) Levantamento documental dos registros sobre a Ilha Grande; (3) Sensibilização da
escola para referendar os contadores de histórias; (4) Elaboração do roteiro de entrevista; (5)
Recolha das narrativas; (6) Transcrição das falas; (7) Construção do mapa; (8) Geração de um
registro dos saberes e práticas educativas cartografadas.
Segundo as reflexões apresentadas, o objeto de estudo construído apresenta-se através
da seguinte pergunta:
Quais os saberes e práticas educativas expressos na voz do intérprete da
Ilha Grande?
Norteando a pesquisa, surgiram as seguintes questões:
Como se estabelece a relação entre indivíduos e culturas mediada pela
oralidade?
Ocorre o diálogo entre os saberes presentes no repertório das narrativas do
intérprete da Ilha Grande e os demais pontos de saberes da comunidade, como
a escola, por exemplo?
A partir do objeto identificado e das questões norteadoras, o objetivo geral da pesquisa
é:
Cartografar os saberes e práticas educativas expressas em narrativas orais do
intérprete da Ilha Grande.
Os objetivos específicos são:
Inventariar no repertório de narrativas dados sobre: 1. Saberes do lugar; 2.
Saberes ambientais; 3. Saberes escolares; 4. Saberes mitopoéticos;
Analisar o diálogo entre os saberes presentes no repertório das narrativas do
intérprete da Ilha Grande e os demais pontos de saberes da comunidade; e
Gerar um registro dos saberes cartografados para ser utilizado pela escola e
pela comunidade em geral.
As ponderações aqui expostas revelam um anseio em problematizar as situações
vivenciadas no lócus de atuação enquanto educadora que transita entre o continente e a região
insular, fazendo formações para os professores, já que pertenço ao do quadro de profissionais
23
da Rede Municipal de Educação de Belém destinado a assessorar e acompanhar as Escolas,
Unidades Pedagógicas e Unidades de Educação Infantil5.
Nos diálogos com os professores lotados nas ilhas de Belém, crescia a necessidade de
apreciação dos saberes locais no cotidiano escolar, suscitando o aprofundamento
epistemológico para fornecer suporte para tais apontamentos.
Ao aportarmos na instituição escolar, necessitamos haurir as discussões acerca das
relações estabelecidas entre os saberes locais e as práticas educativas, compreendendo que
não podemos desvincular os processos educativos e culturais, pois ambos são fios que
compõem a mesma teia, a da vida. Galeano chama a atenção para a necessidade da visão
crítica ao depararmos com as relações de poder instituídas entre os povos latinos e os centros
de poder, ao esclarecer que:
É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias,
tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e
como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder.
Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua
capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O
modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente
determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do
capitalismo (GALEANO, 2010, p.8).
A afirmação acima revela a profundidade dos debates que precisam ser travados por
educadores e educadoras, alunos e alunas e comunidade em geral em meio à crise
educacional, e não se reduz ao que a escola acredita ser seu campo de atuação: metodologias,
ensino/aprendizagem, avaliação, tecnologias etc. Envolve a percepção de que fazemos parte
de um todo conectado com a vida cotidiana fora dos muros das escolas, com sujeitos
históricos possuidores de anseios, sonhos, valores, histórias, quase sempre silenciadas,
negadas, excluídas do cânone histórico. Ao dizer que somos sujeitos e não apenas objetos da
história Freire propõe a intervenção humana no mundo:
O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,
interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no
mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém
como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito
igualmente (FREIRE, 1996, p.85).
Partindo de tais considerações, estabelecer as relações dos saberes e práticas
educativas da comunidade visa tornar possível a interlocução dos diversos sujeitos, o ir e vir
constante de saberes através das vozes, cartografar os movimentos do cotidiano a partir de
5 Compreendem os espaços escolares destinados ao atendimento das crianças da Educação Infantil, com a faixa
etária de 0 a 5 anos.
24
mapas que tragam em seus traçados a problematização da realidade vivida, como na
encontrada pelo cartógrafo Barbero (2004, p.18), ao apresentar o mapa noturno:
Mapa noturno: um mapa para indagar a dominação, a produção e o trabalho, mas a
partir do outro lado: o das brechas, o do prazer. Um mapa não para fuga, mas para o
reconhecimento da situação desde as mediações e os sujeitos, para mudar o lugar a
partir do qual se formulam as perguntas, para assumir as margens não como tema,
mas como enzima. Porque os tempos não estão para síntese, e são muitas as zonas
da realidade cotidiana que estão ainda por explorar, zonas cuja exploração não
podemos avançar se não apalpando, ou só com o mapa noturno.
Em Zumthor (1994, p.304), aportamos a referência de cartografia percorrida pela
humanidade:
Se há mantenido, no sin rázon, que la cartografia precedió a la escritura entre los
inventos del hombre. Alguns croquis pré-históricos,trazos sobre huesos o corteza de
los indígenas de la América precolombina, alineamentos de piedras o dibujos em la
arena entre los aborígenes australianos. Se trata de indícios de una voluntad
universal de representar el espacio em que vivimos y nos despalzamos; de um deseo
de ordernar el mundo estableciendo uma correlación entre los
lugares,funcionalizando la distancia. Se trata de calmar uma necesidad vital com este
esfuerzo de representación: definir y apropiarse um sector del espacio.
Conforme observado em Barbero e Zumthor, cabe alargarmos a compreensão de
cartografia, termo antes utilizado na área da geografia e associado a mapas físicos, traz em sua
essência forma e conteúdos o desejo de representar o tempo e espaço vivido. Em distintos
momentos históricos, os mapas assumiram as configurações necessárias para as finalidades as
quais foram propostas pelos cartógrafos em seus anseios de testemunhar. Ao adentrarmos na
história dos mapas, perceberemos nuances nos feitios de representação, como, por exemplo,
as formas geométricas em que são desenhados (ovais, circulares, retangulares, quadrados), a
introdução de imagens e as possibilidades de leitura da cartografia, como as imagens de
animais, barcos, habitações etc., encontrados nos mapas medievais, ícones que dão suportes
ao diálogo entre cartógrafo e leitor.6
Outros mapas surgem, desenhados pela multiplicidade de sentidos e significados que
os homens atribuem aos movimentos da vida cotidiana. Os desenhos são diversos, aqui serão
apreciados os contornos feitos através da memória e da voz para compor a cartografia. A
proposição do mapeamento de saberes e práticas educativas dos grupos possibilita o diálogo
entre universidade – escola – comunidade, para além da observação do cotidiano ou da coleta
de dados, mas na tentativa da escuta sensível dos protagonistas da cartografia indicando-nos o
itinerário do mapa, os caminhos a serem percorridos pelas memórias coletivas. “O cartógrafo
6 Para obter informações detalhadas sobre as formas utilizadas pelo homem para representar a terra desde os
primórdios até as formas atuais de cartografias, ver o artigo “Por uma cartografia da cidade: hologramas
teóricos”, de Josebel Akel Fares, que compõe o livro Abordagens teóricas e metodológicas na pesquisa em
educação (2011).
25
deve pautar-se numa atenção sensível, para que possa, enfim, encontrar o que não conhecia,
embora já estivesse ali como virtualidade” (KASTRUP, 2009, p.49).
No Sonho do cartógrafo, obra de James Cowan (1999), encontramos a senha para o
espaço do indizível no caminho da pesquisa, os suspiros, os silêncios, olhares perdidos no
horizonte, o riso, o choro, e demais sensações e sentimentos tantas vezes desconsiderados
durante a coleta de dados:
A ideia de que o conhecimento pode abrigar sentimentos, tanto quanto observações,
certamente me deixou perplexo. Sempre que abria missivas que me eram enviadas
de longe, ou ouvia as reflexões pessoais dos mercadores e aventureiros que me
visitavam em San Michele, ficava preso ao perceber que suas observações não eram,
absolutamente, isentas. Elas eram afetadas por sentimentos que cada um julgava
serem expressões de si próprio. Ou seja, o mundo que eles me ofereciam era um
reflexo deles mesmos (COWAN, 1999, p.78-79).
Mapear os saberes que perpassam as experiências educativas exige o que Freire (1996,
p.98) chamou de exercício da curiosidade:
O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a
capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização, do objeto ou do
achado de sua razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha
curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido.
Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o
espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino
algumas até que chego a sua explicação.
O pesquisar, nesta perspectiva, assume o compromisso com as histórias de homens,
mulheres e crianças, que refletem também as vozes dos rios, florestas, com seu contingente de
vida pulsante. Aprender na convivência com os sujeitos, seu meio e suas experiências é a
proposição do campo de atuação do pesquisador da cartografia, em consonância com as
palavras de Paulo Freire, levando-nos à reflexão dos ligamentos entre os saberes, “abrir-se à
alma da cultura e deixar-se, „molhar-se‟, „ensopar-se‟ das águas culturais e históricas dos
indivíduos envolvidos na experiência” (FREIRE, 1995, p.110).
Ou ainda, segundo Brandão, essa investigação deve considerar a rede de saberes que
nos acompanha desde o nascimento, como expressão da diferença, da diversidade, da
heterogeneidade, das vozes silenciadas pela História, abafando a polifonia dos sujeitos que
engendra o repertório simbólico de cada grupo, e que não encontra ressonância na escola,
quase sempre de ouvidos fechados e ocupada em estabelecer hegemonias padronizadoras da
diversidade cultural. Encontrarmo-nos enredados pressupõe o entendimento da complexidade
dos fios da teia da vida:
26
Todo complexo de tecidos e teias, de redes e de sistemas de símbolos, de
significados e de saberes em/com que estamos envolvidos e “enredados” desde o
momento de nosso nascimento, constitui o mundo da cultura. A cultura é “isto” e
fora dela não existe a possibilidade de uma existência humana. Somos seres da
natureza vivida como alguma experiência de cultura (BRANDÃO, 2002, p.400).
Vivenciar novos modos de existência na construção dos traçados imagéticos do mapa
de saberes requer, como observamos nas reflexões aqui expostas, a indissociabilidade entre
pesquisa e intervenção, em oposição aos pressupostos científicos positivistas, rigorosos,
objetivos e neutros. O pesquisador cartográfico preocupar-se-á não apenas com os registros do
objeto de pesquisa, mas também com o processo e com os desdobramentos dele. A
preocupação acompanha os estudiosos que se debruçam sobre o fazer cartográfico por se
tratar não de um aglomerado de regras a serem seguidas, e sim do refinamento na experiência
da pesquisa ao buscar compreender a multiplicidade de saberes que compõem o rizoma com
seus fios interconectados.
Em educação, a pesquisa cartográfica encontra solo fértil por tratar de interligar os fios
que compõem o rizoma, uma vez que a escola não é o centro, e, sim, uma parte do sistema, o
mapeamento dos saberes que estão nas comunidades nos mostrará os processos educativos
expressos nas práticas cotidianas que necessitam ser problematizados e potencializados no
espaço escolar. Brandão (2002b, p.156-157) apresenta pertinente proposição ao dizer:
O que estou propondo é uma espécie de passagem do cotidiano da escola para a
educação do cotidiano. Isto significaria, em primeiro lugar, o abrir as portas da
escola e sair a buscar compreender os mundos circunvizinhos, antagônicos,
próximos e remotos onde estão, onde vivem e convivem com suas culturas do
cotidiano os próprios personagens da vida escolar. Significaria, em seguida, o trazer
para o campo da educação todas as interligações possíveis com todos os outros eixos
internos e exteriores das experiências sociais e simbólicas da vida da pessoa, da
sociedade e da cultura. Significaria, portanto um re-centrar da educação. Isto poderia
parecer uma enorme perda “de seu lugar próprio”, para quem está acostumado a
preservar a educação em um terreno cercado de muros e com raras portas abertas a
tudo o mais.
Os referenciais teóricos trazidos para fundamentar o texto são os seguintes: Deleuze e
Guattari (2003), com a proposição do sistema rizomático; Kastrup (2009) e as orientações do
fazer cartográfico; Freitas (2003) e a introdução da história oral para os debates e pesquisas no
âmbito da academia; Zumthor (1993, 1994, 2010), ; Martin-Barbero (2004) e a construção
cartográfica; Bachelard (1988,1990) e a poética do devaneio; Durand (1997, 1998), trazendo a
teoria do imaginário; Loureiro (1995), com o imaginário amazônico; Bosi (1994), com as
discussões sobre a memória de velhos enquanto fonte de pesquisa; Freire (1987, 1992, 1995),
e suas contribuições acerca da educação; Fares (1997, 2008a, 2008b, 2010), com as
27
cartografias poéticas; Brandão (2002) e as pesquisas sobre o enredamento dos sujeitos com a
cultura; McLaren (1997), com as vertentes do multiculturalismo; dentre outros presentes na
intenção da pesquisa cartográfica da Ilha Grande, os quais são referenciados nos momentos
oportunos.
A revisão da literatura (estado da arte) foi feita inicialmente no banco de dissertações
do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Pará e no Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, no site de ambos os programas,
PPGED/UEPA7 e PPGED/UFPA
8.
Na Universidade do Estado do Pará, sete dissertações trabalharam com a construção
cartográfica, práticas educativas e saberes locais, são elas:
1. Cartografia de saberes nas práticas educativas cotidianas do movimento dos
trabalhadores rurais sem terra – MST na Amazônia paraense (LIMA, 2007);
2. Entre o rio e a rua. Cartografia de saberes artístico-culturais emergentes das práticas
educativas na ilha de Caratateua, Belém do Pará (SANTOS, 2007);
3. Vozes e olhares que Mur[u]Mur[u]am na Amazônia: cartografia de saberes
quilombolas (VALENTIM, 2008);
4. Narrativas orais na comunidade remanescente de quilombo Menino Jesus:
processos de educação e memória (PADINHA, 2009);
5. Casas de farinha: espaço de (con)vivência, saberes e práticas educativas (SILVA,
2011);
6. Fronteiras entre campo e cidade: saberes e práticas educativas no cotidiano de
uma escola nucleada em Rio Maria/PA (CAVALCANTE, 2011);
7. Relações entre práticas educativas, saber ambiental-territorial ribeirinho e o
desenvolvimento local (PERPÉTUO, 2012); e
7 Disponível em: www.page.uepa.br/mestradoeducacao - Acesso em: 05 de Jan de 2014.
8 Disponível em: http://www.ppged.belemvirtual.com.br – Acesso em: 07 de Jan de 2014.
28
8. Cartografias poéticas em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades,
Escrituras e Saberes em diálogo (PIMENTEL, 2012).
No banco de dissertações e teses Universidade Federal do Pará, foram mapeadas
quatro dissertações defendidas com as temáticas cartografia, educação ribeirinha e currículo
escolar:
1. Cartografias da educação na Amazônia rural ribeirinha: estudo do currículo,
imagens, saberes e identidade em uma escola do Município de Breves/Pará (CRISTO, 2007);
2. Currículo e seus significados para os sujeitos de uma escola ribeirinha
multisseriada do Município de Cametá (PINHEIRO, 2009);
3. Saberes culturais e modos de vida de ribeirinhos e sua relação com o currículo
escolar: um estudo no município de Breves/PA (LIMA, 2011); e
4. Saberes ribeirinhos quilombolas e sua relação com a educação de jovens e adultos
da comunidade de São João do Médio Itacuruçá, Abaetetuba/PA (CARDOSO, 2012).
As observações das produções acadêmicas nas duas instituições revelam a
preocupação em compreender a complexidade da educação na Amazônia, envolvendo a
reorientação curricular tão necessária para o ingresso da contextualização do real, das
problemáticas percebidas e vividas pelos sujeitos, da reorganização do tempo escolar de
acordo com as vivencias de cada grupo, outro modo de avaliar. Enfim, a busca de referenciais
epistemológicos além da seleção dos conteúdos escolares estéreis da vida que os cercam, de
historicidade, da indissociável relação entre escola e vida, cada uma com suas temporalidades
e territorialidades.
Não obstante, apenas uma das dissertações traz Belém sob o signo insular, através do
mapeamento de saberes artístico-culturais emergentes das práticas educativas na ilha de
Caratateua (SOUSA, 2007). Partindo de tais considerações, confirmo a relevância da intenção
da pesquisa em ouvir as vozes dos sujeitos da Ilha Grande, visando tornar possível a
interlocução, o ir e vir constante de saberes através das narrativas. Na travessia pelas águas, a
proposição aporta-se nas vivências a experiências metodológicas de feitura da cartografia de
saberes locais e práticas educativas na Ilha Grande, município de Belém, como forma de
demonstrar que a escolha dos caminhos estéticos, éticos e demais aspectos que margeiam a
29
ação pedagógica dialoga com os diversos olhares da comunidade e, de alguma forma,
ressignifica a escola, em especial a escola que fica às margens dos rios, banhada pelas culturas
que compõem a identidade amazônica.
O desenho da dissertação aqui proposta apresenta-se da seguinte forma: Capítulo I, o
presente, Fio da meada, traz inicialmente o mergulho nas memórias de infância, encontros
iniciais com as poéticas da voz e a inserção do universo da oralidade nas práticas educativas
no meu lócus de atuação como professora (os primeiros ensaios cartográficos com Contadores
de histórias). Em seguida, traço os caminhos percorridos na pesquisa: motivações, objetivos,
tema, objeto de estudo, questões norteadoras, abordagem, tipo de pesquisa, técnicas, estado da
arte e referenciais teóricos.
O Capítulo II, Belém e sua trama insular, contextualiza o ciclo das demarcações
cartográficas na referida cidade a partir do século XVII, com a chegada dos conquistadores na
Amazônia. O olhar presente é dos cronistas de viagem e demais pesquisadores interessados na
complexidade cartográfica amazônica. Até chegarmos ao complexo desenho da Belém atual, e
finalmente aportarmos na Ilha Grande, lócus da pesquisa.
O Capítulo III, Bastidor de histórias, discute os fios da memória presentes na voz do
narrador através dos conceitos: memória, oralidade, performance, repertório, narrativas.
IV Capítulo, com o título de Risco do bordado: cartografia de saberes e práticas
educativas da Ilha Grande, traça o mapa desenhado a partir da voz do intérprete da
comunidade.
Ponto de espinha: aproximações (in) conclusivas são os registros dos resultados da
pesquisa, e as possíveis contribuições para os diálogos entre os saberes e as práticas
educativas através da cartografia.
Agora, por favor, sente-se ao meu lado, o batente da porta é largo, convido a
experimentar colocar a linha na agulha e dar um ponto no têxtil e outro no texto bordado pelas
poéticas orais...
Agora era ponto de honra. Juntaria um fio a outros, somaria sua voz, faria um canto,
um tanto... que chegasse a todos nós...Venham, filhas, venham cá. Venham ouvir
novos contos: nunca mais entrego os pontos. Um mundo vamos bordar. Minha linha
agora eu traço, num bordado que eu invento. Ponto a ponto, passo a passo, por um
caminho que eu faço, modelo que eu mesma tento.
Foi-se o tecido cobrindo, de cor em cor enfeitado.
Foi-se a história construindo, mãos em risco do bordado.
Mães e filhos, ponto a ponto, fazem um mundo em contraponto.
(Ana Maria Machado)
30
2. BELÉM E SUA TRAMA INSULAR
2.1- “Eu vi”1
Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado,
graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que
se levanta no céu da história.
Walter Benjamin
A ocupação da região Amazônica pelos povos indígenas remonta ao período de 12 mil
anos. A população estimada era de 05 a 06 milhões, antes da dizimação sofrida a partir da
chegada dos europeus.
Os indígenas tinham sua forma de mapeamento para determinar os ciclos de plantio e
colheita, de pesca, de caça, segundo os períodos do ano. Traçavam cartas celestes2 que os
ajudavam na realização de atividades do seu cotidiano. Interessante notar os desenhos feitos
no céu de elementos do dia a dia, como: a anta, a ema, o beija-flor, o jabuti, a canoa. Cada
desenho indica um tempo certo para cada atividade realizada na comunidade. Os
mapeamentos, as cartografias já eram traçadas pelos habitantes amazônicos, no entanto, neste
capítulo, iremos nos ater às cartografias feitas pelos viajantes.
A Amazônia começa a ser ocupada pelos “brancos” no período que compreende os
séculos XV até a primeira metade do século XIX. Pizarro (2012, p.38) categoriza os
navegantes que por aqui passaram como: os ocupantes, os missionários e os cientistas
viajantes. A inserção no território é feita paulatinamente, seguem inicialmente a margear os
rios, adentrar profundamente nas florestas, um processo lento que requer coragem e
reconhecimento da área, e as histórias fantasiosas construídas em torno do grande rio e seus
afluentes e das florestas causavam estranhamento e cautela.
Sentimentos diversos a povoar o imaginário dos primeiros navegadores foram a
princípio o refreador do avante dos grupos de viajantes. Os primeiros relatos encontravam-se
envoltos numa áurea de mistérios e fantasias, cidades recobertas em puro ouro, mulheres
guerreiras, criaturas inimagináveis e tantas outras coisas produzidas no imaginário e que
ganharam corpo no registro dos cronistas.
1 Segundo Pizarro (2012, p.42, apud CARVAJAL, 2007, p.2), a expressão usada no tópico, refere-se à utilização
do termo por parte do Frei Gaspar de Carvajal para afirmar a veracidade dos seus relatos. “Mas o que daqui em
diante disser será como testemunha de vista e homem a quem Deus quis dar parte em um tão novo e nunca visto
descobrimento, como é este que adiante direi”. 2 Para maiores informações, consultar o livro O céu dos índios Tembé (2000).
31
Um exemplo são os relatos do Frei Gaspar de Carvajal, membro da expedição de
Gonzalo Pizarro, que teve início em 1541 em Quito, no Peru, com o objetivo de encontrar o
País da Canela. Após navegarem pelos Andes, a especiaria foi encontrada, mas pouco
lembrava em qualidade a canela trazida do Oriente, e, assim, após a frustrante tentativa, o
grupo dividiu-se em dois, um capitaneado por Francisco de Orellana, que segue o rio em
busca de suprimentos, e outro que permanece no local com Pizarro. Após quase um ano de
espera, o último grupo decide retornar a Quito, e o que estava sob a responsabilidade de
Orellana continua navegar em busca do El Dourado3, o mito amplamente divulgado no
período, a busca por Manoa, a cidade, o lugar das riquezas.
A expedição de Francisco de Orellana realiza um feito até então nunca conseguido por
nenhum viajante, percorrer toda a extensão do rio Amazonas, desde os Andes até o oceano
Atlântico. Um empreendimento ousado para o período, com muitas adversidades, as quais
foram relatadas nas crônicas de Frei Gaspar de Carvajal.
Figura 1 – Roteiro de Orellana ao percorrer o rio Amazonas
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/francisco-orellana-conquistador-amazonas-
735039.shtml
O pequeno panorama serviu para mostrar as circunstâncias em que surgiram os relatos
Carvajal, partícipe da expedição que desceu o Amazonas com Orellana, conforme observado
anteriormente através de seu relato. Carvajal é o primeiro e um dos principais disseminadores
3 O mito, segundo Pizarro (2012, p.80-81), fala da existência de um cacique que se banha numa lagoa e recebe
um banho de ouro em pó. A tríade composta pelo mito: o cacique Dourado, a lagoa e o ouro em pó trazem os
elementos fortes e presentes no imaginário.
32
do olhar inicial do europeu para a região amazônica, e que muitas vezes perdura até a
atualidade!
Recorremos novamente às pesquisas de Pizarro (2012, p.44-45), para trazermos alguns
dos relatos de Carvajal sobre o imaginário fantasioso apontado nas suas crônicas de viagem:
1. A aparência dos indígenas; 2. Riquezas; 3. Alimentação; 4 e 5. Contato com as índias
guerreiras:
1. “Cada um era mais alto um palmo do que o mais alto cristão”;
2. “Nos disseram os índios que tudo o que nesta casa tinha de barro tinha também terra
adentro de ouro e prata, e que eles nos levariam lá, que era perto”;
3. “a terra é mui alegre e vistosa e mui abundante de todas as comidas e frutas”;
4. “E, na verdade, que houve destas mulheres que meteram um palmo de flechas em
um dos nossos bergantins4, e outras que menos, que nossos bergantins ficaram
parecendo um porco espinho”;
5. “Estas mulheres são muito brancas e altas, tem o cabelo muito longo, trançado e
solto na cabeça, são de membros grandes e andam totalmente nuas tapadas suas
vergonhas, com seus arcos e flechas nas mãos armando tanta guerra como dez índios”.
O relato de Carvajal traz o olhar da realidade por ele conhecida. Se observarmos o
relato número cinco, a percepção tida é de ler a descrição de uma mulher do período
renascentista europeu. O cronista revela em seus escritos o misto de ficção e realidade a partir
do pensamento europeu. O lugar penetrado pela expedição de Orellana era o paraíso na terra,
abundância de riquezas naturais e materiais.
Como vemos, no relato de Gaspar de Carvajal realidade e ficção possuem o mesmo
status, na medida em que as imagens que ele aporta são as que modelam a realidade
por ele percebida. O discurso que inaugura a descrição do mundo amazônico tem
inicio com a projeção do imaginário europeu sobre uma realidade natural e humana
que nada tem a ver com ela, mas que o discurso trata de modelar: a sociedade
medieval, o imaginário greco-latino, a descrição paradisíaca do clima da zona tórrida
(PIZARRO, 2012, p.73-74).
4 Escuna com velas quadrangulares em dois mastros. Fonte: Dicionário Online de Português.
33
Figura 2 – As Amazonas
É inegável o poder das crônicas do Frei Carvajal, suas palavras fundantes sobre o que
viu e viveu ao navegar por toda a extensão do grande rio, determinou, por exemplo, o nome
recebido pelas águas percorridas na expedição – rio Amazonas. Como negar a presença do
mito no lugar em que a geografia vista é a do imaginário?
2.2. Ciclo das demarcações: Cartografias de Belém
No século XVII, com a chegada dos conquistadores na Amazônia, uma das
preocupações centrais abrangia a obtenção de informações sobre o espaço geográfico, os
territórios explorados eram cartografados. A geração de dados envolvia um projeto maior, o
da dominação lusitana. De acordo com Silva (2004), a Amazônia portuguesa nascia sob a
égide de problemas políticos, culturais, econômicos, medidas de fortificações e defesa contra
outros domínios configuraram-se entre outras estratégias na elaboração de Projetos
cartográficos visando à defesa das fortificações, o discurso do período era conhecer para
defender.
Fares (2008, p.31) faz referência ao vasto material registrado pelos viajantes que
navegaram o Amazonas:
Nos documentos de viagem sobre Amazônia, encontra-se a construção de um espaço
edificada através de leituras subjetivas e imaginárias, mesmo considerando-se o
momento do “racionalismo das luzes”, de negação dessa prática. As expedições
movem-se pelo desejo de conquistas de bens materiais, da vontade de redimir almas
e de exploração científica. As imagens de uma geografia exótica são fundadas na
descoberta da América, com as promessas de encontro do paraíso terrestre, do
Eldorado e do reino misterioso das Amazonas, composto por tesouros e por fábulas.
Alguns destes relatos organizam-se cronologicamente, outros não. De forma geral,
todos registram desde os tipos de embarcações, instalações, formas de
sobrevivências, até o contato com as pessoas. E estabelecem, em síntese, as relações
entre cultura e natureza. Mapas, gravuras e outros desenhos também fazem parte do
34
acervo anexo aos relatórios, daí que as equipes de trabalho das viagens científicas
são formadas não só de especialistas nas ciências naturais, mas também cartógrafos,
pintores, desenhistas e outros técnicos.
Conforme observamos na sessão anterior deste trabalho – quando tratamos do olhar do
cronista Frei Gaspar de Carvajal –, a vinda das expedições encontrou impulsos nos relatos das
riquezas aqui existentes. Agora pelo olhar de outro cronista, temos a visão do ciclo das
demarcações cartográficas na Amazônia.
Padre João Daniel, da Companhia de Jesus, viveu na região entre 1741 e 1757, até ser
preso a mando do Marquês de Pombal. Nos dezoito anos passados na prisão, local do qual não
sairia com vida, ele registrou sua passagem pela região Amazônica.
Nas suas crônicas, encontramos também o relato pela busca das riquezas guardadas ao
longo do rio, especialmente a procura pelo ouro. Várias eram as narrativas sobre a riqueza
abundante a ser encontrado no grande rio, histórias de lagos dourados ou de uma cidade feita
de puro ouro, com todas as edificações de seus moradores encobertas do metal precioso. As
narrações sobre a imensa riqueza submersa causaram o frenesi entre os dispostos a navegar ao
encontro da prosperidade. João Daniel (2004, p.45) nos relata:
Sempre a cobiça do ouro, e o amor às riquezas foram no mundo o maior incitamento
dos homens para as maiores empresas e mais árduas navegações... Esta mesma
cobiça do ouro foi a causa do primeiro descobrimento, e navegação do Amazonas...
Espalhou-se em Quito a fama de que no Amazonas havia um grande lago dourado,
cujo ouro era mais que as areias das suas praias, ou que suas margens e fundo eram
tudo ouro. Aumentou-se a fama, e cresceu mais a cobiça, porque além do lago já
afirmavam que nele estava fundada uma cidade chamada Manoa toda fabricada de
ouro, porque de ouro eram as suas casas e tetos, e de ouro tosa a serventia dos seus
moradores. Esta fama e a cobiça de tanto ouro incitou os ânimos de muitos
aventureiros espanhóis a descobrirem tão rica cidade e o tesouro do logo Dourado,
em que prometiam riquezas a montes.
Em 1735, La Condamine, jovem cientista francês membro da Academia de Ciências,
chega a Quito em companhia de outros pesquisadores, e eles instalam-se na fronteira entre o
Peru e o Brasil como participantes de uma missão geodésica5. Em 1743, ele separa-se dos
companheiros com o intuito de retornar à Europa descendo o rio Amazonas passando pelo
Pará até chegar a Caiena, e finalmente em 1744 segue para a França.
Na bagagem, La Condamine levava um valioso tesouro, informações sobre sua viagem
pelo Amazonas. Fruto da persistente pesquisa, os estudos versam sobre: física, botânica,
astronomia, hidrografia e finalmente cartografia, aspecto importante para o texto aqui
5 O termo geodésia foi utilizado pela primeira vez na Grécia Antiga, por Aristóteles, e significa divisões
geográficas da terra, ou ato de dividir a terra. A geodésia é a ciência que analisa a determinação da forma, das
dimensões e do campo de gravidade da Terra. As atividades geodésicas proporcionaram uma revolução na
cartografia com a implantação do Sistema de Posicionamento Global (GPS).
Fonte: http://www.mundoeducacao.com/geografia/geodesia.htm. Acessado em: 23/02/2015.
35
apresentado por se tratar de ser o primeiro mapa baseado cientificamente em medidas do
curso do rio. Neste mapeamento, ele apresenta provas cabais da comunicação entre o rio
Amazonas e o Orinoco através do rio Negro, versão desprezada até então pelos outros mapas:
Passando pelo forte do rio Negro, soubemos noticias mais especificas sobre a
comunicação desse rio com o Orinoco, e, por conseguinte, do Orinoco com o
Amazonas. Não farei a enumeração das diferentes provas dessa comunicação, que
recolhi cuidadosamente no meu trajeto a mais decisiva foi o testemunho não
suspeito de uma índia das missões espanholas das bordas do Orinoco, com quem
falei, e que viera de bote, de sua terra até o Pará. Todas essas provas se tornam
doravante inúteis e cedem lugar a uma ultima. Acabo de saber por carta escrita do
Pará pelo reverendo padre João Ferreyra, reitor do colégio dos jesuítas, que os
portugueses do acampamento volante do rio Negro (no ano passado, 1744), tendo
subindo rio por rio, encontraram o superior dos jesuítas das missões espanholas das
margens do Orinoco, com quem os mesmos portugueses retornaram pelo mesmo
caminho, sem desembarcar, até seu acampamento do rio Negro, quem faz a
comunicação do Orinoco com o Amazonas. Esse fato, portanto, não pode mais ser
posto em duvida (LA CONDAMINE, 1992, p.83-84).
Figura 3
Eidorfe Moreira (1989), em suas Obras Reunidas, dedica quase um volume inteiro a
Belém e sua geopolítica. Apresenta em ordem cronológica o Ciclo das demarcações
cartográficas. Segundo o pesquisador, durante todo o século XVII, o da fundação da cidade,
não são encontrados registros cartográficos específicos da Belém, apenas no século XVIII, era
Pombalina, é o período áureo na cartografia da cidade.
1749 - Carte des routes de Mr de La Condamine tant par mer
que par terre dans le cours du voyage à l'Equateur.
Fonte: [Illustrations de Journal du voyage fait par ordre du roi à
l'Equateur servant d'introduction historique à la mesure des trois
36
Em 1751, na administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, meio irmão do
Marquês de Pombal, se tem notícia da primeira cartografia de Belém, intitulada “Planta da
Praça da Cidade de Belém do Pará em 1751”6. O primeiro ensaio de mapeamento abrangeu as
áreas não edificadas, as terras pertencentes aos padres da Companhia de Jesus e as áreas
atingidas pelas grandes marés.
Figura 4
6 É um dos registros urbanísticos mais antigos da cidade de Belém (1751) e nos mostra, à direita e à frente, a
igreja e o Colégio jesuítico de Santo Alexandre, ainda hoje existentes. Mais ao fundo, na mesma direção,
indicado pela letra A, está o Palácio do Governador. No centro do desenho, aparece a vala que permitia a
drenagem do alagado do Piri, que se formava nos meses de março a setembro. Essa área foi aos poucos
conquistada com aterros, sendo ocupada no início do século XIX. Mas, na época da elaboração dessa imagem, o
governo português tinha em vista uma reutilização dos terrenos próximos ao Colégio dos Jesuítas, com os quais
já se estabelecia uma situação de conflito. Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-periodo-colonial-para/679/. Acessado em 12/07/2014.
1751 - Planta da Praça da Cidade de Belém do Pará
Fonte: Original manuscrito da Mapoteca do Itamarati
(Ministério das Relações Exteriores), Rio de Janeiro.
37
1753 - Planta Geométrica da Cidade de Belém do Grão Pará. Tirada por
Ordem De S. Ex.Ca O S.R Don Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
Capitão General e Governador do mesmo Estado.
Fonte: Original manuscrito da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
Figura 5
Figura 6
“Planta da Cidade de Belém, Capital do Estado do Grão Pará, e do que se tem
projetado para se fortificar a sua Marinha” por Governador Manoel Bernardo
de Mello de Castro. Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico do Exército, Rio de
Janeiro.
38
Figura 7
Em 1753, o engenheiro militar alemão João André Schwebel traça, em companhia da
Comissão Demarcadora, o segundo mapa de Belém, intitulado “Planta Geométrica”7,
abrangeu toda a região metropolitana, o que, para Moreira (1989), mereceria ganhar o status
de primeira planta oficial da cidade.
O próximo mapa de Belém, datado em 1761, não possui autoria, provavelmente de um
dos companheiros de trabalho de Schwebel. Tem-se conhecimento que foi solicitado pelo
Governador Manoel Bernardo de Melo e Castro, o mapeamento tinha como objetivo a defesa
da cidade frente às ameaças constantes, sobretudo da Guiana Francesa, surgindo assim a
necessidade de mapear os pontos estratégicos para a criação de uma política de defesa da
região. O anseio em defender o território é expresso até mesmo na denominação do mapa,
“Planta da Cidade de Belém, Capital do Estado do Grão Pará e do que se tem projetado para
se fortificar sua marinha”8.
7 Nessa planta de Belém, já podemos ver os dois bairros da cidade, sendo à direita o mais antigo, conhecido
como 'Cidade', com área inundável ao fundo e a vala de drenagem do alagado do Piri, na faixa ao seu lado. À
esquerda, vemos o bairro da 'Campina'. Este exemplar é parte do acervo da Biblioteca Nacional no Rio de
Janeiro, mas existe uma planta idêntica em Lisboa. Fonte: http://www.sudoestesp.com.br/file/colecao-imagens-
periodo-colonial-para/679/. Acessado em 12/07/2014. 8 Executada durante o governo de Manoel Bernardo de Melo e Castro, essa planta data provavelmente de 1761.
Podemos notar que repete os elementos contidos naquela, que provavelmente serviram de base para sua
elaboração. Apresentam algumas diferenças, correspondentes a ampliações e aperfeiçoamentos executados
Proposta de aprofundamento da área do alagado do Piri, para transformá-lo em um
lago permanente, contornando e protegendo a área fortificada pelo lado leste.
Autor: Gaspar João Geraldo de Gronsfeld.
Fonte: Original manuscrito do Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa.
39
Sendo assim, o mapa de 1761 veio acompanhado da preocupação em preparar uma
série de projetos cartográficos visando, conforme observado anteriormente, a defesa do
território. Os projetos foram organizados pelo também engenheiro militar alemão João
Geraldo de Gronfeld, o mesmo que, tempos depois, apresentou ao Governador Francisco da
Costa de Ataíde Teive o projeto de transformar Belém numa Veneza, utilizando o Piri e
outros cursos de águas que a ele seriam interligados.
Após os mapeamentos de Gronfeld, encontramos, em 1784, a cartografia feita pela
expedição científica naturalista batizada de “Viagem Filosófica”, de Alexandre Rodrigues
Ferreira, que tinha como objetivo pesquisar os recursos naturais da região. Por seus objetivos
distintos dos outros mapeamentos até aqui citados, a sua marca reside no legado científico
deixado.
O encerramento do Ciclo das demarcações cartográficas de Belém ocorre em 1791,
com o “Plano Geral da Cidade do Pará” feito pelo engenheiro militar Teodósio Constantino
de Chermont. É considerado o mapa mais minucioso do século XVIII. Fecha-se um momento
da história cartográfica de Belém produzida especialmente por profissionais que tiveram parte
na delimitação das fronteiras.
O período compreendido entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do
século XIX apresenta escassez de cartografias. Para Moreira (1989), o fato talvez possa ser
explicado pelos extravios ou omissões das fontes de dados. Ainda segundo o pesquisador,
apenas na segunda metade do século XIX, com o crescimento e a modernização da cidade de
Belém, surgem novamente os impulsos para as produções cartográficas.
A relevância das cartografias organizadas no decorrer dos tempos está diretamente
ligada ao desejo presente e universal de referendar o espaço e organizar o ambiente vivido,
pois, ao mapear os grupos, delimitam, demarcam suas territorialidades. Desta forma, ocorre a
apropriação. Representações do espaço advindas de olhares parciais, conforme admoestado
por Fares (2008, p.25): “O mapa iconiza o espaço, mas a imagem construída não é igual ao
que representa, e com frequência só representa parte de um elemento determinado. Implica,
pois, num sistema semiótico complexo”. A compreensão da premissa aqui apresentada ajuda-
nos a ampliar o entendimento dos contextos em que se erguem as cartografias no decorrer da
história humana.
durante os oito anos de diferença entre ambas. Facilmente observáveis são as mudanças junto às margens do rio,
sendo de se destacar um recorte junto ao canal de drenagem do alagado do Piri, um trapiche para desembarque
de mercadorias, pouco à esquerda. Na mesma direção e mais adiante, após o forte das Mercês (indicado com a
letra C no desenho de 1753), há uma série de construções instaladas em aterros, sobre o rio, inclusive uma ponta
fortificada, na extremidade, que avança sobre o rio. Pequenas diferenças, do mesmo porte, podem ser observadas
nas outras extremidades da cidade.
40
O breve percurso histórico do ciclo das demarcações na cidade aqui exposto revela as
transformações, os avanços e os recuos no espaço geográfico. Sendo assim, é a própria
história da cidade contada através dos mapas. Cabe a nós questionarmos: Qual o olhar que os
traçados cartográficos aqui expostos trazem? Que interesses, tensões e complexidades vêm
acompanhadas de seus nascimentos? É possível traçar na atualidade um mapa a partir do olhar
dos sujeitos amazônicos, das histórias narradas pelos habitantes e do seu entorno?
2.3. Belém adornada: guirlanda de ilhas
Pizarro (2012) inaugura seu livro Amazônia: as vozes do rio com o relato do século
XVI de José de Acosta trazendo o rio como presença forte:
Mas, tratando-se de rios, com razão se fala daquele rio sobre todos os demais, que
uns chamam das amazonas, outros Marañón, outros o rio de Orellana, o qual
acharam e navegaram nossos espanhóis, e tenho minhas duvidas se devo chama-lo
rio ou mar. Corre este rio a partir das serras do Peru, das quais recebe grande
imensidão de águas, das chuvas e dos rios, que vai guardando em seu leito, e
passando os grandes campos e planícies do Paytiti, do Dorado, das Amazonas, chega
por fim ao oceano, onde entra quase na fronteira das ilhas Margarita e Trinidad. Mas
vão tão alargadas suas ribeiras, especialmente na ultima parte onde se formam
muitas e grandes ilhas, o que parece incrível, que quem vai pelo meio do rio só
consegue ver céu e rio, e dizem que mesmo os montes mais altos próximos a suas
margens são encobertos pela grandeza do rio (ACOSTA apud, PIZARRO, 2012,
p.18).
Ao esclarecer a escolha pelo relato de Acosta, Pizarro usa o termo “geografia das
águas” para mostrar a imensidão de furos, igarapés, lagos, afluentes por onde passaram os
primeiros navegantes e que foram impulsionadores da construção de seus olhares sobre a
região. No olhar estrangeiro, a riqueza de recursos hídricos representou uma das grandes
marcas deste espaço em “... que quem vai pelo meio do rio só consegue ver céu e rio...”
(reiterando Acosta, anteriormente citado). A imensidão da bacia hidrográfica amazônica faz
parte do modo de ser e estar dos habitantes. Ao longo dos séculos, os caminhos das águas
foram constituintes na relação do homem com seu meio, são um dos elementos balizadores da
construção das identidades e culturas aqui encontradas.
La Condamine, ao chegar a Belém (refere-se em seus escritos como a cidade do Pará),
depara-se com uma cidade posicionada na confluência de muitos rios, segundo reza o relato
de viagem:
É na borda oriental de Moju que está situada a cidade do Pará, imediatamente abaixo
da foz do rio Capim, que acaba de receber outro, chamado Guamá. Só a visão de um
mapa pode dar uma ideia precisa da posição dessa cidade, na confluência de tantos
rios, e mostrar que não é sem motivo que seus habitantes estão muito longe de
41
imaginar na margem do Amazonas, do qual nem uma só gota, aparentemente, banha
o sopé das muralhas de sua cidade; mais ou menos como se pode dizer que as águas
do Loire se comunicam com o Sena pelo canal de Briare. Com efeitos, há motivos
para crer que a grande quantidade de águas correntes que separam a terra firme do
Pará e a ilha de Joanes não ficaria sensivelmente diminuída se a comunicação dessas
aguas com o Amazonas fosse interceptada pela obstrução ou o desvio do pequeno
braço desse rio, que vem tomar posse, por assim dizer, de todos esses rios, fazendo-
os perder seus nomes. Admite-se que tudo isto não passe de uma questão de nome; e
não deixarei de dizer, para me adaptar à linguagem aceita, que o Pará está na foz
oriental do rio Amazonas: basta ter explicado como isso deve ser entendido (LA
CONDAMINE, 1992, p.97).
Portanto, Belém, enquanto cidade do estuário amazônico, tem seu cotidiano
influenciado direta ou indiretamente pelo curso das águas. Vejamos a seguir a presença do rio
na cidade.
Belém, capital do Estado do Pará, atualmente com sua população de quase dois
milhões de habitantes (IBGE), está localizada a 01º 27’20” de latitude Sul e 48º30’15” de
longitude W-Gr, situa-se no delta9 do rio Amazonas, na junção entre os rios Pará e Guamá. A
localização geográfica de Belém abriga em sua dimensão, aproximadamente, 43 ilhas, apenas
34,36% compreende a área continental, as outras 65,64%10 fazem parte da área insular, os rios
margeiam a cidade que vive sob o signo das águas. Diariamente, um significativo número de
habitantes das ilhas faz a travessia rumo à cidade para abastecê-la com os produtos que se
entrecruzam entre as duas realidades. Um complexo contorno cartográfico quase sempre
despercebido pelos habitantes da Belém urbana. Segundo Eidorfe Moreira (1989, p.157),
É digno também de nota que as ilhas que defrontam com Belém não se acham
isoladas, mas dispostas à semelhança de uma guirlanda envolvendo parte da cidade,
o que lhes reforça os efeitos cênicos em termos geográficos. Das mais próxima para
as mais distante, rumo ao Norte as mais importantes desse grupo são as seguintes:
Ilha das Onças, Arapiranga, Longa, dos Patos, Urubuoca, Jararaca, Paquetá-mirim,
Paquetá-açú, Jutuba, Cutijuba e Tatuoca. Algumas dessas ilhas sofreram
modificações toponímicas, umas leves, outras radicais, razão por que nem sempre
concordam os mapas e compêndios corográficos a respeito dessa toponímia.
Ainda com Eidorfe Moreira (apud, MARANHÃO, 2000, p.44-45), encontramos a
presença do rio na cidade de Belém:
Num sentido mais restrito e particular, “rio” designará também a Baía de Guajará e o
Rio Guamá, pelas suas relações mais diretas e imediatas com a cidade. Desses dois
acidentes hidrográficos a baía é o que mais tem influído na vida da cidade. Do seu
9 Em geografia, designa-se por delta a foz de um rio formada por vários canais ou braços do leito do rio. Esse
tipo de foz é comum em rios de planícies, devido à pequena declividade e, consequentemente, à pequena
capacidade de descarga de água, o que favorece o acúmulo de areia e aluviões na foz do rio.
Fonte: Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Delta. Acessado em
Fevereiro de 2015. 10
Fonte: Companhia Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém - CODEM
42
lado estão a zona comercial e fabril, o porto e a base naval. O próprio crescimento
da urbe se faz sentir mais ativamente desse lado do que do lado do Guamá.
(...) complexa e variada é a moldura hídrica de Belém. Nessa moldura coexistem rio,
baía e estuário, compondo um soberbo e grandioso estendal de aguas. Sem exagero,
pode-se dizer que nenhuma cidade do Brasil se mostra tão portentosa e interessante
sob o ponto de vista hidrográfico. A água figura aí como peça fisiográfica e como
elemento cênico, como moldura e como agente modelador.
Tanto geográfica como historicamente, a cidade floresceu em função da agua. “Flor
das águas” – eis uma antonomásia que se ajustaria muito bem à capital paraense, tal
significação do elemento hídrico na sua vida.
Figura 8 – Imagem aérea da cidade de Belém
Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1432600
Figura 9 – Rio Guamá, entre Belém e a Ilha do Combu, à direita.
Fonte: Fonte: http://www.skyscrapercity.com/showthread.php?t=1432600
43
A “Flor das águas”, “moldura hídrica” e “cidade-chave”, “cidade-síntese”, “cidade-
símbolo”, “a capital da fluviocracia”, as nomenclaturas atribuídas à cidade por Moreira são
frutos de sua localização geográfica, um importante traço característico da cidade de Belém:
Belém não é somente a capital de um Estado brasileiro, mas também a capital
natural da maior região ou unidade fisiográfica do continente e como tal a “cidade-
chave”, a “cidade-síntese” e a “cidade-símbolo” da Amazônia.
Embora repartida entre vários países, a bacia do Rio Amazonas tem seu ponto de
convergência e de gravitação em Belém, que por isso mesmo se tornou o centro de
captação politica e econômica de toda essa imensa bacia. Quando não efetiva,
virtualmente pelo menos, as “Amazônias”, da Bolívia, do Peru, do Equador e da
Colômbia se acham por força disso sob a influência da capital paraense.
Na qualidade de capital dessa fluviocracia, a sua área de influência e de captação
suplanta, em termos hidrográficos, a de qualquer outra cidade do país e do
continente, o que importa em dizer que Belém é a capital natural da maior parte do
Brasil e da América do Sul (MOREIRA apud MARANHÃO, 2000, p.122-123).
A cidade possui uma singular caracterização de seu território, com o corpo hídrico
superior às terras continentais. Conforme observado, a riqueza de sua localização é notada nos
aspectos, geográfico, econômico, no clima, na vegetação. Esta última possui uma distinção
interessante, as florestas encontradas em Belém são ombrófilas, termo grego que significa
gosta de água ou amigo das chuvas, certamente a influência das águas na capital do Pará
possui presença marcante.
Edna Castro (2006) apresenta-nos o desenho da Belém urbana demarcado pelo curso
das águas, uma cidade fluvial margeada pelos rios que compõem o estuário amazônico,
peculiar traço encontrado nos lugares em que o rio marca sua presença, determinantes para a
(re)criação tanto dos bens materiais quanto dos simbólicos. Os portos assumem nesta
perspectiva o espaço do encontro da integralização entre as pessoas, fios de saberes que
compõem as teias culturais amazônicas. Não é somente o lugar da comercialização, da troca
das mercadorias, por lá circulam a diversidade humana:
Uma extensa rede de rios e igarapés drena a cidade, compondo um fluxo de
travessia e de escoamento das águas provenientes das chuvas. Ao norte, ela
está voltada para a baía do Guajará e ao sul para o rio Guamá, tendo assim
uma extensa orla densamente ocupada, onde encontramos diferentes usos:
portos, trapiches, indústrias, comércios, turismo, instalações militares e
administrativas. Dezena de pequenas e médias serrarias alinham-se lado a
lado na Estrada Nova, misturando-se a fábricas de castanha, de palmito, de
tecelagem e metalúrgicas que recebem a matéria-prima dessa região do
estuário.[...] Nos diversos portos localizados na orla de Belém, Ver-o-Peso,
Porto da Palha, Porto do Sal, Genipapo, Vila da Barca, Mata-fome, Icoaraci e
Maguari, entre outros –, as atividades industriais e de comércio são intensas.
Esses portos ainda tem, como tiveram no passado, significado na relação
entre Belém e as vilas e cidades ao seu redor (CASTRO, 2006, p.14-15).
44
A dinâmica da cidade de Belém e dos demais municípios que se localizam às
proximidades é pautada na relação com os rios, e assim criam uma conexão entre eles através
dos portos, comunicação cotidiana que se insere na sustentabilidade da economia, nas
atividades sociais e culturais.
O modo de vida das populações das cidades amazônicas possui como característica a
diversidade, as trocas econômicas, culturais, sociais etc., que são efetivadas diariamente
através dos caminhos do rio, o ir e vir das embarcações provoca a tessitura da rede complexa
de vida da Amazônia.
Por estar estrategicamente posicionada entre portos e trapiches, a cidade se vê como
ponto de circulação de bens materiais e simbólicos, como a metrópole da Amazônia. Belém
acaba sendo o lugar dos encontros, das confluências. Dessa forma, a história da cidade nasce e
tem continuidade a partir de grupos heterogêneos:
A cidade é o retrato em movimento de diferentes atores – é um lugar de sujeitos que
reconstroem suas trajetórias, mas na relação com os lugares de origem que pode ser
uma outra cidade, as ilhas, ou as áreas rurais.[...] De certa forma tem sua história
escrita também por esses personagens que transitam, que se movem entre os portos
localizados, de uma margem a outra, dos rios que trafegam dos rios que trafegam, e
que religam o mundo paradoxalmente de fora e de dentro, das áreas rurais e da
cidade, confundindo-os na diversidade desses espaços. O transito através desse
mundo das aguas, dá uma particularidade às relações e à experiência social. Os
pequenos portos de Belém, espalhados e contornando essa quase península que
desenha sua orla abrigam um sem numero de trabalhadores chegados das ilhas ou de
lugares entre rios e furos, em suas proximidades. Ou ainda viajantes de lugares mais
distantes, descendo o rio Amazonas e seus afluentes ou pela sua embocadura
(CASTRO, 2006, p.32).
Em Belém, atualmente, encontra-se a maior concentração demográfica de toda a
região amazônica, migração intensificada a partir de 1960, com a implantação de políticas de
desenvolvimento que atraíram os olhares para a cidade. O aumento populacional intensificado
ocasionou vários problemas, e o crescimento desordenado da cidade trouxe suas mazelas
percebidas nas cidades com grandes índices demográficos. No entanto, na capital do Pará
ainda há recantos pouco ocupados, os que compreendem a região insular, mesmo as ilhas
mais próximas à parte continental, onde a travessia é feita em média de 15 a 20 minutos, e a
população é deveras menor em comparação aos números urbanos. Muitos dos moradores da
Belém urbana desconhecem a existência e especialmente o cotidiano das ilhas que compõem
sua geografia.
Moreira (1989) já havia anunciado a falta de conhecimento e interesse por parte dos
pesquisadores em trazer para seus objetos de estudo as ilhas que compõem a cidade de Belém.
Para desconstruir tal imagem, Moreira acrescenta o aspecto histórico. Duas ilhas, Tatuoca e
45
Arapiranga, foram, no período da Cabanagem, sede política da Província e quartel-general da
ofensiva aos cabanos. O estudioso enumera alguns pontos relevantes, tais como: produção
agrícola, caça e pesca, atividades oleiras, fins recreativos e a construção de educandários.
O rio dita um ritmo próprio, cadenciado pelo fluxo das marés, na partida e chegada das
embarcações, o diálogo com as águas se faz presente além das relações econômicas. Loureiro
(1995, p.121) traz a presença do rio como elemento rítmico ao cotidiano das populações
ribeirinhas, pois
dele dependem a vida e a morte, a fertilidade e a carência, a formação e a destruição
de terras, a inundação e a seca, a circulação humana e os bens simbólicos, a política
e a economia, o comercio e a sociabilidade: o rio está em tudo.
A rede de símbolos e significados tecidos pela relação do homem com o fluxo das
águas revela-nos o modo de vida das comunidades através das práticas educativas e dos
saberes do cotidiano, tão necessárias para a compreensão dos aspectos culturais das
populações amazônicas.
Figura 10 – Mapa dos bairros da cidade de Belém
46
2.4. Ilha Grande
No percurso dos rios que banham Belém, aportamos na comunidade ribeirinha da ilha
Paulo da Cunha Grande, mais conhecida como Ilha Grande, às margens do rio São Benedito.
Ela ocupa 929,16 ha., está situada a 12,2 km ao sul de Belém11
, à margem esquerda do rio
Guamá. Sua população é estimada em cerca de 400 habitantes divididos aproximadamente em
70 famílias. O acesso a Ilha Grande é feito por barcos dos moradores da própria ilha quando
vão comercializar seus produtos no Porto da Palha, no bairro da Condor. A travessia entre o
Porto da Palha e a Ilha Grande dura cerca de 40 minutos.
Figura 11 – Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 01)
Figura 12- Localização geográfica da Ilha Grande (mapa 02)
11
Fonte: Companhia Desenvolvimento e Administração da Área Metropolitana de Belém – CODEM.
47
Segundo informações obtidas no Projeto Politico-Pedagógico de uma das escolas da
ilha, em que, mais adiante no texto, iremos aportar, encontramos o relato da situação da Ilha
Grande mediante os órgãos públicos como o IBGE e o INCRA:
A ilha foi considerada propriedade particular, até 1998. Atualmente, segundo
informações do (IBGE, 2006), continua registrada com o nome de Ilha Paulo da
Cunha.
Esse nome, segundo moradores, não tem relação com o antigo “proprietário” da
ilha, pois o mesmo se chamava Salomão Nonato de Araújo e que segundo alguns
relatos este senhor Salomão comprou a ilha de um estrangeiro e talvez esse nome
tenha alguma relação com esse estrangeiro. Embora esta área seja de propriedade da
União.
Atualmente o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em
parceria com a Gerência do Patrimônio da União (GRPU), estão realizando reuniões
na ilha para cadastrá-los e, consequentemente, distribuir títulos de permissão de
moradia para cada família, residente na ilha. As reuniões também tinham como
objetivo, conscientizar os moradores da comunidade ribeirinha sobre a
responsabilidade quanto ao uso, cuidado e zelo na preservação do meio ambiente
colaborando assim com a dimensão cultural do país com as vidas das pessoas. Cada
morador será responsável por um pedaço de terra na ilha (Projeto Politico-
Pedagógico da Unidade Pedagógica São José, 2009-2011).
Os habitantes da Ilha Grande vivem basicamente da produção do açaí, da pesca e da
extração de outros produtos frutíferos como o cupuaçu, a pupunha e o cacau. Diariamente, os
moradores fazem a travessia para abastecer a cidade.
Figura 13 – Caminhos do rio que levam à Ilha Grande
48
Figura 14 – Caminhos na Ilha Grande
Figura 15 – Porto da escola
49
Conhecimentos sobre o cotidiano amazônico fazem parte do modo de vida da
comunidade. As marés lançantes12, a safra do açaí, o tempo das fortes chuvas, o período de
proliferação de carapanãs13 refletem na relação do homem com o meio, alteram e influenciam
o movimento diário. Tais práticas fundamentam as representações sociais nas quais os
indivíduos lançam o sentido de suas existências, criando e recriando temporalidades, espaços,
culturas.
Esses saberes são quase sempre expressos na oralidade. A trama de símbolos e
sentidos que representam as histórias é experiência de comunicação entre grupos. Sendo
assim, é experiência de cultura mediada pela voz. Segundo Zumthor (1997, p.139), “A voz
poética assume a função coesiva e estabilizante sem a qual o grupo social não poderia
sobreviver”. Cada grupo possui um acervo de narrativas que são repassadas de boca em boca,
como registro, testemunho, da maneira de se colocar no mundo. Ouvir tal acervo envolve a
percepção da complexidade, das tensões em se ver a história a partir de outra ótica, um
movimento das margens para o centro, aprender com a escuta dos sujeitos. “Com a palavra, o
homem se faz homem. Ao dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua
essencial condição” (FREIRE, 1987, p.13).
2.5. Multiculturalismo crítico e educação: trama de símbolos e sentidos na Ilha
Grande
A embarcação que nos conduz nas travessias rumo à Ilha Grande aporta na instituição
escolar. A necessidade sentida para o desembarque no trapiche da escola deve-se à vivência
da pesquisadora com a instituição escolar, enquanto servidora da Secretaria Municipal de
Educação de Belém.
O cerne da pesquisa não reside nas discussões de cunho pedagógico, no sentindo de
buscar as vozes dos teóricos da educação. Mas, ao afirmar “A educação como cultura”, como
fez Brandão (2002), e conceber o conhecimento enquanto possibilidade rizomática, conforme
Deleuze e Guattari (1995), estamos nos colocando abertos e dispostos ao enredamento na teia
de saberes e práticas educativas da Ilha Grande com todos os seus pontos de nutrição. E a
escola é um dos pontos do fluxo de retroalimentação!
Aportamos na instituição escolar. A Ilha Grande possui duas escolas sob a
responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém. As escolas são
12
Marés grandes de intenso movimento, dificultando a navegação de pequenas embarcações. 13
Ocorre no período de agosto a dezembro.
50
denominadas de Unidades Pedagógicas São José e Nazaré, administrativamente vinculadas à
escola-sede Sílvio Nascimento, localizada no bairro da Condor, parte continental da cidade. A
proposta curricular é demandada pela Secretaria de Educação, o corpo docente, em sua
maioria, é composto de moradores da ilha, exceto a coordenadora pedagógica, as professoras
de arte e educação física. O atendimento escolar compreende os níveis da Educação Infantil e
Ensino Fundamental do 1º ao 5º ano.
Os prédios das duas unidades pedagógicas são da comunidade, necessitam de reforma,
implantação de equipamentos e adaptações para abrigar os espaços da biblioteca, refeitório,
sala dos professores, sala da coordenação pedagógica, depósito etc.
O deslocamento de alunos e professores é feito através de cinco barcos que
diariamente fazem o percurso da Praça Princesa Izabel até a ilha, parando em determinados
pontos para receber e conduzir os alunos que muitas vezes são moradores dos Furos14
do
Bijogó e Guarapiranga15
e precisam viajar de canoa até o trapiche para então embarcar no
transporte escolar disponibilizado pela Secretaria de Municipal de Educação.
Segundo o Caderno de Educação 01, da Secretaria Municipal de Educação de Belém
(2011, p.50),
A história da educação na ilha começa com a professora Maria José desde quando
ela ministrava aula em sua casa e recebia seus proventos do seu Salomão, dono da
ilha. Nesse meio tempo foi construído um barracão que servia tanto de escola como
de centro comunitário, sob o domínio da prefeitura do município do Acará. Em
2002, após reinvindicação da comunidade, foi construída a UP [São José] e a ilha
passou para a jurisdição do município de Belém.
Inicialmente, a escola da professora Maria José atendeu os chamados do então dono da
ilha, Sr. Salomão, após um tempo passou a ser parte do domínio do município de Acará, e
quando, por fim, passou para ser coordenada pela SEMEC/Belém, algumas reorganizações
administrativas e pedagógicas trouxeram significativas mudanças.
14
Furo, na região amazônica, é o nome dado á um espaço navegável que corre entre as árvores e serve
de comunicação entre dois rios. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/furo/. Acesso: 17/08/2015. 15
Para localização dos Furos do Bijogó e Guarapiranga, ver figura 10.
51
Figura 16 – Localização da Unidade Pedagógica São José
Fonte: Caderno de Educação da Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém.
Ao acessar o Projeto Politico-Pedagógico/PPP da Unidade Pedagógica São José,
construído com a participação da escola e da comunidade, encontramos palavras reveladoras
do desejo em conectar os fios que compõem o rizoma da Ilha Grande:
A UP não pode ser uma instituição isolada em si mesma, mas integrada e em
interação com a vida social de sua comunidade e do meio que a cerca.
Educadores e educados precisam engajar-se social e politicamente, percebendo as
possibilidades da ação social e cultural na luta pela transformação das estruturas
sociais. Para isso, antes de tudo necessitam conhecer a sociedade em que atuam, e o
nível social, econômico e cultural de seus alunos e alunas.
É preciso considerar finalmente a prática pedagógica, mais especificamente a UP na
qual trabalhamos. Para isso precisamos fazer uma reflexão sobre o exercício da
prática docente, revendo a realidade, buscando alternativas para alcançar a escola
ideal, pois a real ainda tem muito a ser feita. Expectativas, curiosidades, vontade de
crescer e mudar, são sentimentos que afloram nesse momento quando pensamos em
uma educação de qualidade para nossos educandos e para que isso acorra
precisamos entrelaçar a UP e a comunidade uma vez que sem a comunidade não há
UP.
O PPP da Unidade Pedagógica preocupa-se em legitimar o diálogo entre escola e
comunidade. Em vários trechos do documento, como anteriormente citado, encontramos
textos que expõem o desejo de religação. A escola está atenta ao movimento de sair de seus
“muros” e ouvir as vozes da comunidade a fim de obter subsídios para compreender o
52
contexto em que a UP encontra-se inserida ao perceber as relações estabelecidas entre os
saberes locais e as práticas educativas sem desvincular do fazer cotidiano da escola.
A construção curricular de uma escola que tem seus fios enredados com a comunidade
alimenta-se com os saberes que margeiam a instituição escolar e, por tantas vezes, são
invisibilizados ou silenciados quando passam pela porta da frente da escola. O autor apresenta
o espaço escolar enquanto possibilidades de trocas simbólicas ao dizer que:
a escola é um território de luta e que a pedagogia é uma forma de política cultural.
Em ambos os casos, querendo defender o argumento de que as escolas são formas
sociais que ampliam as capacidades humanas, a fim de habilitar as pessoas a intervir
na formação de suas próprias subjetividades e a serem capazes de exercer poder com
vistas a transformar as condições ideológicas e materiais de dominação em praticas
que promovam o fortalecimento do poder social e demostrem as possibilidades da
democracia. Queremos argumentar a favor de uma pedagogia critica que leve em
conta como as transações simbólicas e materiais do cotidiano fornecem a base para
repensar a forma como as pessoas dão sentido e substancia ética às suas experiências
e vozes. Não se trata de um apelo a uma ideologia unificadora que sirva de
instrumento para a formulação de uma pedagogia critica; trata-se, sim, de um apelo a
uma política da diferença e do fortalecimento do poder, que sirva de base para o
desenvolvimento de uma pedagogia critica através das vozes e para as vozes
daqueles que são quase sempre silenciados. Trata-se de um apelo para que se
reconheça que, nas escolas, os significados são produzidos pela construção de
formas de poder, experiências e identidades que precisam ser analisadas em seu
sentido politico-cultural mais amplo (GIROUX e SIMON, 2013, p.109-110).
Essas vozes relegadas ao ostracismo encontram ressonância nos debates do
multiculturalismo crítico que tem seus pés plantados nos movimentos sociais dos anos de
1960 e 70, nas lutas dos grupos excluídos, particularmente nos movimentos étnicos dos
Estados Unidos, pela garantia da igualdade de direitos e da justiça social. Eis o diferencial do
multiculturalismo crítico, seu nascimento nas bases sociais e não nas instituições acadêmicas,
sua entrada na universidade vem se dando gradualmente.
O multiculturalismo crítico será estudado a partir das reflexões apresentadas por Peter
McLaren, pesquisador canadense, radicado nos Estados Unidos, docente da Universidade da
Califórnia. O autor tem como cerne de seu trabalho o multiculturalismo crítico e a pedagogia
de resistência, a ele cabe o mérito de ajudar na divulgação das ideias de Paulo Freire no
exterior.
Seu estudo por e com a educação de resistência tem início ainda no Canadá, ao
trabalhar nas escolas periféricas da cidade de Toronto com alunos filhos de imigrantes de
diversas nacionalidades. Tal contato marcou profundamente sua práxis, as heterogêneas
experiências vivenciadas ajudaram-no nas reflexões acerca de uma pedagogia de resistência e
transformação.
53
McLaren (1997) traz para reflexão as ramificações do multiculturalismo. Embora
procure analisar e colocar no campo do debate as formas de poder, seus representantes
acabam afirmando a dominação ao deixarem escapar, em meio aos intermináveis debates
estéreis e distantes da vida, que pulsa fora dos muros das instituições a práxis de libertação.
Tal olhar é consonante com a proposição de Freire ao dizer que:
Se antes a transformação social era entendida de forma simplista, fazendo-se a
mudança, primeiro das consciências, como se fosse a consciência, de fato, a
transformadora do real, agora a transformação social é percebida como processo
histórico em que subjetividade e objetividade se prendem dialeticamente (FREIRE,
1992, p.30).
Como educar sem problematizar o papel da escola frente ao escamoteamento e à
banalização feita pelo capitalismo neoliberal amplamente utilizado e aceito na atualidade,
como o significado de democracia, o culto heroico do modernismo ao homem branco detentor
de amplos poderes e privilégios, na passividade dos intelectuais livre-flutuantes, que falham
ao negarem a necessidade de trazer para os debates as relações materiais e as experiências
vividas pelos grupos excluídos e silenciados? Cabe aqui mais um questionamento: De que
lugar falamos enquanto educadores? Embora muitos analisem, problematizem as formas de
poder, opressão, o capitalismo ocidental, a cultura de massa, falha-se ao ancorar na
superficialidade, no que McLaren (1997, p.67) denomina de pós-modernismo lúdico, ou “a
um relativismo epistemológico que demanda uma tolerância por uma gama de significados
sem defender nenhum deles”. Sendo assim, as ideologias, a essencialização da diferença, o
pensamento ocidental binário (branco-preto, bom-ruim, razão-emoção, teoria-prática etc.)
continuam sendo perpetuados.
Como forma de crítica e superação ao pós-modernismo lúdico, o pós-modernismo de
resistência avança ao ver a diferença permeada de embates históricos e sociais, na luta de
classes, e para tal necessita de estratégias que possibilitem a resistência e a reversibilidade dos
grupos excluídos. Para McLaren, não basta discutir, problematizar, as questões de inclusão e
exclusão social, há de se criar estratégias para uma relação crítica a respeito de dominação:
O pós-modernismo de resistência traz a crítica lúdica uma forma de intervenção
materialista uma vez que não está somente embasado em uma teoria textual da
diferença, mas em vez disso, em uma teoria que é social e histórica. Desta maneira a
crítica pós-moderna pode servir como uma crítica intervencionista e transformadora
da cultura (MCLAREN, 1997, p.67-68).
A escola confronta-se urgentemente com a necessidade de superar o modelo
multicultural liberalista, que trata de forma homogênea e harmoniosa as diferenças, e assume
54
uma abordagem multiculturalista crítica, que não negue as contradições, que questione os
interesses ideológicos construídos a partir das metanarrativas, dos grandes discursos, que
sugerem uma única verdade ou concepção, como, por exemplo, a metanarrativa trazida pelo
iluminismo de que a razão, o progresso científico e tecnológico conduziriam a humanidade à
emancipação e à felicidade. Cabe à escola problematizar os discursos que chegam sob a égide
dos consensos universais, propondo a reescrita das narrativas dominantes.
Hall (1991, apud MCLAREN, 1997) diz que, para nos posicionarmos, é necessária a
descoberta do que ele chama de “etinicidades emergentes”, que estão proporcionalmente
atreladas ao reconhecimento das nossas próprias histórias, contar e ouvi-las envolve a
complexidade de relações construídas a partir das tradições e heranças, que expressam as
culturas:
– as etinicidades emergentes – têm uma relação com o passado, mas é uma relação
que se dá parcialmente através da memória, parcialmente através das narrativas, é
uma relação que tem que ser recuperada. É um ato de recuperação cultural (HALL,
1991, apud MCLAREN, 1997, p.18-19).
Desconstruir as metanarrativas através da partilha das histórias marginalizadas e
deixar que as narrativas que circundam a escola sejam ouvidas e contadas pelos estudantes
são tarefas de um currículo multiculturalista, oriundo da Pedagogia de resistência
comprometida com a luta contra a opressão, partindo da prática pedagógica que permita a
problematização das relações cotidianas com os processos ferozes de globalização, a ligação
dos fios que compõem a teia de saberes locais com o currículo escolar.
O currículo tradicional e seletivo, na maioria das vezes, ancora-se no livro didático
como norteador da organização dos conteúdos, com a percepção e a contextualização
distantes da realidade local e mais apropriados ao eixo sul-sudeste, no caso específico do
Brasil, imagens e textos que não contemplam a diversidade brasileira, carregados de
ideologias, centrismos e relativismo epistemológico.
Um currículo multicultural crítico envolve mais do que textos, imagens, cálculos,
datas, medidas, vocabulários etc. É embasado em referenciais ontológicos, filosóficos e
epistemológicos que vão além dos conteúdos escolares. Este currículo traz para o círculo de
debate as situações problemas vividas e percebidas pela comunidade local e pela totalidade, e,
através das constantes problematizações feitas, favorece o questionamento das posições
dominantes e a prática da transformação das relações sociais.
Vivenciar novos modos de existência na construção do currículo escolar requer, como
observamos nas reflexões aqui expostas, a indissociabilidade entre intervenção e libertação,
55
em oposição aos pressupostos científicos positivistas, rigorosos, objetivos e neutros. O
educador crítico preocupar-se-á não apenas com os o repasse de conteúdos, mas também com
o processo e com os desdobramentos dele, preocupação pertinente apresentada por McLaren
ao chamar atenção de educadoras e educadores a estarem porosos ao mundo que os cerca,
rejeitando toda e qualquer forma de homogeneização tão apreciada nas práticas neoliberais.
Essas chegam até nós com a capa de multiculturalismo, mas precisam ser alvo de atenção por
nossa parte, caso não queiramos continuar legitimando o modelo opressor de concentração de
riqueza, “centrismos” e desintegração moral tão comum na atualidade.
Um enfoque sobre as relações materiais e globais de opressão pode nos ajudar a
evitar a redução do “problema” do multiculturalismo a simplesmente uma questão,
atitude ou estado de espírito, ou como no caso da academia, a um caso de
discordância textual, ou guerra de discursos. Também ajuda a enfatizar o fato de
que, aos EUA, a poção mágica chamada “multiculturalismo” que tem resultado em
uma busca retórica pela igualdade e pela mistura política do caldeirão, que há muito
vem cozinhando, tem produzido uma aversão, em vez de respeito com a diferença
(MCLAREN, 1997, p.59).
Embarcar nas águas do multiculturalismo crítico envolve a predisposição ao fazer, ao
engajar-se nas lutas pela transformação, pela cidadania híbrida e pela solidariedade tão
necessária aos que ousam fazer a travessia sem medo das intempéries, sabendo que elas são
indispensáveis para compreendermos os espaços de tensões e negociações entre as culturas.
A convocação da Pedagogia de resistência aos educadores e educadoras é a de orientar
para a busca de um mundo mais justo, onde a opressão, os grilhões ideológicos, a negação da
diferença sejam problematizadas no espaço escolar.
A escolha pelos caminhos do multiculturalismo crítico envolve a crença na
legitimação dos conhecimentos que margeiam as instituições, em especial, a escolar,
contornos desenhados sob o signo da multiplicidade. A escola não é o centro, e os saberes que
estão ao seu redor se retroalimentam através das linhas que formam as redes que compõem os
conhecimentos contidos na comunidade.
Pensar a escola não apenas a partir do conhecimento institucionalizado, padronizado,
com moldes definidos de homem para atender a demanda de uma sociedade favorável à
formação de sujeitos subordinados. Ao contrário, a escola, enquanto espaço de convergência
de múltiplos saberes, precisa que as discussões de classe, gênero e raça encontrem-se
presentes no cotidiano escolar.
Compreender a complexidade da educação, na Amazônia, envolve a reorientação
curricular de demandas da contextualização do real, das problemáticas percebidas e vividas
pelos sujeitos, a reorganização do tempo escolar de acordo com as demandas de cada grupo,
56
outros tempos e espaços, modos de ensinar e de avaliar, enfim, a busca de referenciais
epistemológicos além da seleção dos conteúdos escolares estéreis da vida que os cercam, de
historicidade, da indissociável relação entre escola e vida.
57
3. Bastidor de histórias
3.1. Ponto caseado1 – Os fios da memória na voz do Contador de histórias
Antes de mais nada viver uma cultura é conviver com e dentro de um
tecido de que somos e criamos, ao mesmo tempo, os fios, o pano, as
cores o desenho do bordado e o tecelão.
Carlos Rodrigues Brandão
As narrativas surgem nesta pesquisa como parte essencial da teia simbólica tecida por
sentidos e significados da capacidade humana de entender e explicar o mundo em que o
homem habita.
O fio da meada surgiu com a própria humanidade. A história diz mais ou menos assim:
no tempo de dantes, tempo muito, muito distante, os habitantes das cavernas relatavam suas
histórias imprimindo nas paredes a capacidade de fabular. Encontramos vestígios da relação
do homem com as narrativas desde os primórdios. Há registros de desenhos feitos mostrando
o cotidiano dos povos, e datam mais de 30 mil anos a.C. em pinturas e gravuras rupestres. A
distinção feita entre as duas palavras grifadas serve para o esclarecimento das especificidades
de cada uma, as pinturas fazem parte do acervo de imagens trabalhadas a partir dos
pigmentos, já as gravuras envolvem imagens gravadas em talhos na própria rocha.
Para não cortar o fio da proposta desta pesquisa, podemos dizer que essas pinturas e
gravuras representam um outro tipo de bordado. Para bordar nas paredes, nas pedras e nas
rochas, era necessário usar outro tipo de linha, e foi assim que a tinta cumpriu esse papel.
Todas essas imagens pintadas, talhadas, bordadas pelos homens revelam-nos as narrativas
sobre as caças, as crenças, as celebrações. Tais inscrições testemunham as culturas dos povos
antigos em várias partes do mundo.
Na Amazônia, certamente, encontramos os vestígios das narrativas impressas nas
pedras, rochas e grutas. Muitas informações, que chegam até nós, são frutos do olhar dos
viajantes e naturalistas, que aqui passaram desde o século XVII até a primeira metade do
século XX. Sejamos, então, mais um viajante que, ao entrar na gruta 15 de março, em Monte
Alegre/PA, poderá ver duas pinturas rupestres que chamam a atenção por se tratarem da
imagem de animais que abrigam a mitopoética dos povos amazônicos, o boto e a cobra,
criaturas que sempre aguçaram o imaginário dos habitantes da região.
1 O ponto caseado é aquele que arremata o tecido deixando-o firme e protegido.
58
Figura 17 – Boto - Pintura rupestre em Monte Alegre/PA
Fonte: Arquivo pessoal Antônio Juraci Siqueira
Antes da descoberta da capacidade de fabular através das gravuras rupestres, o mundo
poderia parecer sem forma. A humanidade precisava descobrir as formas de linguagem. E foi
assim que a agulha atravessou o bastidor e no ponto caseado saiu da linguagem visual, para a
linguagem oral.
Muitos povos ao redor do mundo encontram suas bases na oralidade, na voz ancoram
o desejo de atravessar os tempos narrando os acontecimentos, os saberes e as ciências de suas
culturas. Não raramente nas pesquisas dos historiadores, apenas para citar uma área do
conhecimento que tem como objeto de pesquisa o passado, observamos a citação da presença
e da relevância da oralidade.
O historiador e paleógrafo francês Serge Gruzinski, em suas pesquisas sobre a
colonização do imaginário nas sociedades indígenas e a ocidentalização no México espanhol
no período que compreende os séculos XVI a XVIII, apresenta, como característica destes
povos, a oralidade e as subdivisões organizadas pelos próprios grupos, traço peculiar de
outros povos, conforme veremos no decorrer deste capítulo:
As culturas do México central são, antes de tudo, orais. Dedicavam-se com afinco ao
cultivo das tradições orais, a sua codificação, controle e transmissão. As fontes
nauas da época colonial guardavam as marcas dessa criatividade em suas mais
diversas expressões. [...] Os nauas distinguiam pelo menos dois grandes conjuntos,
que reuniam gêneros numerosos e variados: cuicalt e tlahtolli. Os cuicalt eram os
cantos guerreiros, os cantos de “amizades, amor e morte”, hinos dirigidos aos
deuses, poemas que aliavam especulação intelectual e metafisica. Os tlahtolli, por
outro lado, remetiam ao âmbito do relato da narração, do discurso e da arenga;
incluíam-se aí tanto as “palavras divinas” (teotlahtolli), que falavam da gesta dos
deuses, as origens, a cosmogonia, os cultos e os rituais, como os “relatos sobre as
coisas antigas”, de tom histórico, as fábulas, as zazanilli e os famosos
huehuehtlahtolli, “palavras antigas”, discursos elegantes sobre os mais diversos
assuntos: o poder, o circulo doméstico, a educação ou os deuses (GRUZINSKI,
2003, p.26).
59
Os diversos olhares históricos nos mostram tantos fios tramados que escolheremos
apenas alguns para dar o arremate! O alinhavo para casear o percurso aqui apresentado passa
pela Grécia, puxa um pedaço de linha para a África, aumenta um ponto com os povos árabes e
os povos europeus, para finalmente chegarmos ao Brasil.
3.2. Ponto haste2 – Mnemosyne e Lesmosyne: memória e esquecimento inseparáveis na
Grécia
Desde a antiguidade, encontramos relatos de povos que utilizavam a voz como forma
de transmissão de conhecimentos. Na Grécia arcaica, o patrimônio cultural era transmitido e
preservado através das narrativas míticas, fossem elas cosmológicas, fossem de origem ou
escatológicas, de fim, morte. Neste período, não havia se desenvolvido a escrita, os
responsáveis pela transmissão eram os Aedos, guardiões da memória em sua comunidade, que
se reuniam em praças públicas para narrar. O Aedo tinha a inspiração de Mnemosyne, mãe
das musas, Zeus havia dado a ela a função de conservar e transmitir a memória dos deuses.
Segundo Vernant (1990, p.137), possuído pelas musas, o poeta é intérprete de
Mnemosyne, a poesia é um estado de delírio, possessão, revelação, que muitas vezes escapa
da percepção humana. Neste sentido, Vernant tece, no seu bastidor, aproximações e distâncias
entre o poeta e o adivinho, sujeitos que trazem em si a vinculação com as divindades ao
transmitirem palavras inspiradas. O primeiro, já revelado anteriormente, tem sua função
poética adquirida através de Mnemosyne, o adivinho, por meio de Apolo, o patrono do
oráculo de Delfos, o deus símbolo da inspiração profética. Outra diferenciação reside no
conteúdo de suas revelações: para o adivinho, os presságios são a matéria de suas evocações,
o futuro e seus mistérios chegam a sua boca como preocupação recorrente do porvir; o poeta,
ao contrário, volta-se quase exclusivamente ao passado. Vejamos a linha na agulha de
Vernant (1990, p.138):
O poeta tem uma experiência imediata dessas épocas passadas. Ele conhece o
passado porque tem o poder de estar presente no passado. Lembrar-se, saber, ver,
tantos termos que se equivalem. É um lugar-comum da tradição poética por o tipo de
conhecimento próprio ao homem simples – um saber por ouvir dizer, baseando-se
no testemunho de outrem, em propósitos transmitidos – ao aedo entregue à
inspiração e que é, como o dos deuses, uma visão pessoal direta. A memória
transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em seu tempo. A
organização temporal da sua narrativa não faz senão reproduzir a serie dos
acontecimentos, aos quais ele assiste de certo modo, na mesma ordem em que se
sucedem a partir de sua origem.
2 Ponto de bordado que trabalhamos com a agulha da esquerda para a direita, fazendo pontos levemente
inclinados, regulares e, principalmente, entrelaçados, ao longo da linha do desenho.
60
O poeta, mesmo com a onisciência dada por Mnemosyne, tem em seu caminho a
necessidade de assegurar passos firmes ao garantir uma árdua preparação! O aprimoramento
da arte poética é um requisito aos que recitam, narram e até improvisam. Havia a preocupação
com as temáticas ou repertórios, com o bom uso da voz, através do trabalho com a dicção e,
em especial, com a memória, com treinamentos e exercícios mnemotécnicos diversos, como a
recitação de longos trechos. Ainda trazendo o bastidor de Vernant (1990), ele nos apresenta
trechos da Ilíada de Homero com listas enormes de nomes de homens, regiões, povos, os
melhores guerreiros, os melhores cavalos, os nomes dos deuses, árvores genealógicas etc.,
treinamentos da memória determinantes para a conservação e a transmissão dos
conhecimentos gregos.
A memória divinizada para os gregos nos diz sobre sua complexidade e importância
aos povos da oralidade, lembrar e esquecer, faces da mesma moeda que lhes é tão cara para
sobrevivência. Esquecer para lembrar, memória e esquecimento, pares a explicar a
circularidade de vida e morte.
Descer ao Hades pressupõe beber das fontes de Lethe e Mnemosyne. Ao tomar da
primeira água, esquecemo-nos do percurso de vida humana, como se entrássemos no domínio
da noite, as lembranças, a consciência é perdida. Há que se esquecer para ter a entrada no
mundo dos mortos. Entretanto, beber da segunda fonte era necessário, significava guardar as
recordações, guardar na memória o que se havia vivenciado no outro mundo:
Não se admirará, pois, de encontrar, no oraculo de Lebadéia, onde se mimava no
antro de Trofônio uma descida ao Hades, Lethe, esquecimento, associada a
Mnemosyne e formando com ela um par de forças religiosas complementares. Antes
de penetrar na boca do inferno, o consultante, já submetido aos ritos purificatórios,
era conduzido para perto das duas fontes chamadas Lethe e Mnemosyne. Ao beber
na primeira, ele esquecia tudo na vida humana, e, semelhante a um morto, entrava
no domínio da noite. Pela água da segunda, ele devia guardar a memória de tudo o
que havia visto e ouvido no outro mundo. À sua volta, ele não se limitava mais do
conhecimento do momento presente; o contato com o além lhe havia trazido a
revelação do passado e do futuro (VERNANT, 1991, p.144).
Em Platão, o conceito de reencarnação traz a presença da memória e do esquecimento
como partes constituintes da vida e da morte. Aqui, Mnemosyne transforma-se, a ordem
cosmológica dá passagem à escatologia. No ciclo das reencarnações humanas, esquecer o
presente é a passagem para o retorno à vida terrena, as reminiscências são trazidas através do
esquecimento, as águas do Lethe não são mais a passagem para o Hades, sim o retorno para a
vida, as almas agora esquecem sua estada pelo mundo celestial para então terem permissão a
reencarnar:
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A transposição de Mnemosyne do plano da cosmologia ao da escatologia modifica
todo o equilíbrio dos mitos de memórias; se conservam os temas e os símbolos
antigos, transformam profundamente seu sentido. As imagens que eram, na
descrição tradicional, ligadas ao Hades – região desolada, morada gélida, reino das
sombras, mundo do esquecimento – aplicam-se agora à vida terrestre concebida
como um lugar de provação e de castigo. O exilio da alma não é mais quando ela
esvoaça sob a terra, ao deixar o homem sem vida, como fantasma sem força e sem
consciência; mas, ao contrário, quando ela volta à terra para se juntar a um corpo. A
alma é tanto mais “lúcida”, tanto menos “esquecida” quanto mais pôde se liberar
dessa união. As águas da Lethe não acolhem mais, à entrada do Hades, os que ao
passarem da vida para a morte vão esquecer no mundo infernal a luz do sol. Ela
apaga, naqueles em sentido inverso, voltam à terra para uma nova encarnação, a
lembrança do mundo e das realidades celestes às quais a alma se aparenta. A água
do esquecimento não é mais símbolo de morte, mas de retorno à vida, à existência
no tempo (VERNANT, 1991, p.146-147).
Nos intermináveis ciclos de vida e de morte apresentados por Platão, o esquecimento é
a ignorância, ter bebido da fonte de Lethe significa esquecer as verdades fundamentais
adquiridas nos domínios celestes. A purificação da alma, a expiação pelos erros, encontra-se
no esforço de evitar beber as águas de Lethe e ter tomado o caminho salutar, ou seja, beber
das águas de Mnemosyne, a fonte da imortalidade. O lago da memória é um esforço de
purificação, lembrar como genuíno esforço espiritual, e assim alcançar a pureza ao pagar o
preço da expiação, deixando a condição humana para trás, elevando-se à condição divina.
3.2.1. Ponto haste alternado em corrente3 – Elos da memória
A memória passa a ser a forma de enredamento da comunidade, laços atados ou fios
interligados quando se requisita a voz presentificada da memória através do narrador. O ponto
haste alternado em corrente vai e volta entrelaçando a linha no risco do bordado. Para chegar
a ser corrente, ora precisa se juntar, ora se afastar, assim como nos estudos sobre memória
encontramos pontos de referência que remontam uma trajetória de entendimento sobre o
fenômeno atribuído à lembrança e ao esquecimento.
Nos estudos de Bergson, a memória é individual, está ligada à subjetividade, a
evocações que trazemos e que se encontram armazenadas desde a infância como totalização
das experiências do passado, vividas e conservadas, evocações que trazem a imagem de um
lugar ou pessoa, um odor, um som:
a memória nessas duas formas, quando recobre com uma camada de lembranças um
fundo de percepção imediata e também quando contrai uma multiplicidade de
momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual para a
percepção, o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas (BERGSON, 2006,
p.87).
3 Consiste em duas carreiras alternadas de ponto haste, de modo que dois pontos se juntem no centro e os
outros dois se afastem, assemelhando-se aos elos de uma corrente.
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Os estados psíquicos vivenciados são conservados para selecionar e trazer à tona os
comportamentos bem sucedidos. Dessa forma, a percepção humana está repleta de
lembranças, perceber não seria apenas uma relação entre ambiente e sistema nervoso, como
estímulo-resposta, entra em cena um outro elemento: a lembrança, como sobrevivência dos
tempos idos, armazenado e conservado no interior de cada ser humano individualmente. Com
Bergson, inicia uma atribuição à memória de “função decisiva na existência, já que ela
permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no curso
atual das representações” (BOSI, 2003, p.36).
Em Maurice Halbwachs (2004), a abordagem para as pesquisas em memória apoia-se
no conceito de memória enquanto fenômeno social e coletivo, isto é, depende das
experiências vividas e experienciadas no grupo em que se encontra inserido, reconstruir o
tempo presente a partir das lembranças do passado.
A premissa de Halbwachs direciona para a ampliação de olhar sobre indivíduos e
memória ao esclarecer que nossas memórias do passado, da infância, não poderiam ser as
mesmas por sermos seres em constante movimento e transformações, o olhar de ontem sobre
as coisas não é o mesmo de hoje, é impossível nos banharmos no mesmo rio duas vezes. As
águas que correm são infinitamente outras, parafraseando o pensamento do filósofo pré-
socrático Heráclito de Éfeso. Percepções são alteradas pelo constante fluxo das águas sociais
em que nos banhamos. A memória de uma pessoa é encharcada pela do grupo, por sua vez
embebida pela memória coletiva de cada sociedade e se assim é:
Não é suficiente reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento do
passado para se obter lembrança. É necessário que esta reconstrução se opere a partir
de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso espirito como no
dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele e
reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma
mesma sociedade, Somente assim podemos compreender que uma lembrança possa
ser ao mesmo tempo reconhecida e reconstruída (HALBWACHS, 2004, p.39).
A memória, por evidenciar-se num campo coletivo, conforme anunciado
anteriormente, assume o risco de enquadrar e uniformizar em uma única vertente a memória
coletiva oficial, traço característico do fazer historiográfico que permeou a mentalidade de
estudiosos até o século XIX, a história nacional e dominante era concebida a partir dos relatos
centrados na politica, na narrativa dos acontecimentos, nos grandes vultos, documentos
oficiais, em modelos de explicações parciais e na objetivação dos fatos.
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Com a proposição de reagir ao paradigma tradicional vigente, surge um movimento de
resistência denominado Nova História4, na qual toda atividade humana encontra ressonância
nas pesquisas, as fontes utilizadas são diversas, incluindo a oralidade e não somente as fontes
documentais. As vozes silenciadas e esquecidas encontram ouvidos e travam o que Pollack
(1989), pesquisador da tríade memória, esquecimento e silenciamento, chama de “verdadeiras
batalhas da memória” ao serem colocadas nos campos de disputas, conflitos e tensões:
Aplicada à memória coletiva, essa abordagem irá se interessar portanto pelos
processos e atores que intervém no trabalho de constituição e de formalização das
memórias. Ao privilegiar a analise dos excluídos, dos marginalizados e das
minorias, a história oral ressaltou a importância de memorias subterrâneas que,
como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “Memória
oficial”, no caso a memória nacional (POLLACK, 1992, p.4).
Instauram-se novos olhares, outras abordagens com as pesquisas sobre memória. A
compreensão necessária é o encontro do lugar de destaque da memória e sua importância para
a continuidade das culturas e identidades. A luta pela resistência e pela reversibilidade dos
povos silenciados e seus saberes tem a função de desestabilizar e até desmoronar as falácias
da história oficial e seus modos perversos e desumanos de estorvar os canais e furos das
lembranças, para que não desaguem no grande rio das memórias humanas.
3.3. Ponto de Vandyke5 – Memória viva, a palavra entrelaçada na África
A memória, para os povos africanos, é a espinha dorsal, o eixo de equilíbrio enredado
pelas narrativas, ela é tecida com o ponto de Vandyke, porque a memória, para esse povo, é a
trança central. Palavra geradora e traz em si o sagrado, o hálito vital das sociedades orais.
Bordar neste tecido a história da África significa referendar a oralidade. Hampaté Bá, mestre
da tradição oral africana e escritor malinês, será nosso interlocutor. Em alguns momentos,
tomará parte da conversa pela grandeza da obra deixada sobre oralidade africana e,
principalmente, por ter vivenciado desde a infância a força da palavra contada.
O elo entre o homem e a palavra encontra-se tão entrelaçado na África subsaariana,
por exemplo, o homem é a própria palavra que profere e legitima, o respeito e o
4 “A expressão “a nova história” é mais conhecida na França. La nouvelle histoire é o titulo de uma coleção de
ensaios editada pelo renomado medievalista francês Jacques Le Goff. [...] mais exatamente, é a história
associada à chamada École des Annales, agrupada em torno da revista Annales: économies, societés,
civilisations” (BURKE, 1992, p.9). 5 Ponto enlaçado em torno de um eixo, uma trança central.
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reconhecimento pelo que sai da boca envolve a teia de transmissão pela qual a voz encontra-
se enredada.
A sacralidade da palavra, sua origem divina, é trazida por Hampaté Bá. A palavra
Kuma é a própria força vinda do Ser Supremo, criador de todas as coisas, chamado de Maa
Ngala. Para esse povo, no mito de criação do mundo e dos seres humanos, o Deus supremo
sentiu necessidade de um interlocutor, então criou Maa, o primeiro humano, o que receberia a
herança, uma parcela do dom divino, a memória e a palavra, a serem transmitidas aos seus
descendentes, iniciando dessa forma a tessitura divina da tradição oral. A força e o ritmo
contidos na fala humana geram o ir e o vir, cadenciados pelo movimento, pelo poder e pela
força emanada pela ligação do homem com a divindade:
Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três potencialidades do poder, do
querer e do saber, contidas nos vinte elementos dos quais ele foi composto. Mas
todas essas forças, das quais é herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam
em estado de repouso até o instante em que a fala venha coloca-las em movimento.
Vivificadas pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase,
tornam‑se pensamento; numa segunda, som; e, numa terceira, fala. A fala é,
portanto, considerada como a materialização, ou a exteriorização, das vibrações das
forças.
Assinalemos, entretanto, que, neste nível, os termos “falar” e “escutar” referem-se a
realidades muito mais amplas do que as que normalmente lhes atribuímos. De fato,
diz-se que: “Quando Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a
sua fala”. Trata‑se de uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se
envolve na totalidade.
Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização das vibrações das forças, toda
manifestação de uma só força, seja qual for a forma que assuma, deve ser
considerada como sua fala. É por isso que no universo tudo fala: tudo é fala que
ganhou corpo e forma (HAMPATÉ BÁ, 2010, p.170).
Parte da memória viva da África encontra-se nos tradicionalistas, expressão utilizada
por Hampaté Bá, são eles os sabedores da herança transmitida pela oralidade, chamados de
Doma ou Soma, possuem uma memória ímpar, conhecidos e reverenciados por toda
comunidade. Trata-se de um saber total, já que os Domas tinham vários conhecimentos,
abrangendo as ciências das águas, das plantas, da terra, da astronomia, da psicologia e assim
por diante, são os detentores da palavra, fazem parte da teia ancestral iniciada por Maa, o
primeiro Doma.
Aos Domas são segredadas as mais profundas verdades, eles conhecem os mistérios da
vida, seus ensinamentos têm a força interior, dosados pela harmonia e pela veracidade da
palavra proferida.
A voz de um Doma precisa ser temperada, modulada, a prudência faz parte de sua
formação. É preocupação constante desses tradicionalistas o compromisso com a verdade,
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falar a mentira é um defeito moral que implica na perda do exercício de suas funções de
Doma, que, ao falar, invoca as vozes ancestrais para trazer-lhes a memória, eis uma invocação
de um grande Doma bambara:
Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké!
Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões,
Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!
Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou
Na trombeta do Komo,
Vindo sobre o Jeliba (Níger)!
Acercai-vos e escutai-me.
Em concordância com vossos dizeres
Vou contar aos meus ouvintes
Como as coisas aconteceram,
Desde vós, no passado, até nós, no presente,
Para que as palavras sejam preciosamente guardadas
E fielmente transmitidas
Aos homens de amanhã
Que serão nossos filhos
E os filhos de nossos filhos.
Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!
Guiai o brotar das minhas palavras
A fim de que possam seguir e respeitar
Sua ordem natural”.
Em seguida, acrescentava:
“Eu, Danjo Sine, do clã de Samake (elefante), vou contar tal como o aprendi, na
presença de minhas duas testemunhas Makoro e Manifin”.
“Os dois como eu conhecem a trama. Eles serão a um tempo meus fiscais e meu
apoio” (HAMPATÉ BÁ, 2010, p.180).
Ao fazer de sua palavra prece, os Domas assumem a feitura das cerimônias religiosas
e da iniciação dos griôs, e por reverência aos seus mestres sempre citam o nome do Doma que
os iniciou. Os rituais de iniciação de um griô envolvem a consciência dessa palavra habitada
pela ancestralidade, a cadeia de transmissão encontrada na tradição oral, outras peculiaridades
do processo ritualístico, envolve embrenhar-se na mata para meditar, conhecer e conservar na
memória os contos e cantos dos antigos.
Os griôs ou diélis assumem várias ações que envolvem a voz, são os que narram
histórias, trazem as canções, poesias, animação de celebrações. Cabe a eles deixar a palavra
circular livremente nos diversos lugares e situações das comunidades africanas. Eles dividem-
se em três categorias:
1 – Os griôs músicos, que tocam instrumentos como a kora6, são afinados cantores, e o
som harmonioso extraído da kora canta a memória de sua ancestralidade;
6 Harpa africana de vinte e uma cordas que acompanha as vozes dos griôs por todo o noroeste do continente.
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2 – Os griôs embaixadores ou cortesãos são os que mediam os conflitos entre as
famílias de nobres ou a família real. Uma espécie de diplomata, têm a habilidade de intervir
nas contendas entre os grupos; e
3 – Os griôs genealogistas, historiadores ou poetas, são os contadores de histórias,
viajantes, a eles foi concedido o privilégio de embelezar as crônicas do cotidiano, têm a
licença e a liberdade poética para falar sobre qualquer assunto, usam da sátira para dizer sobre
questões sérias ou sagradas sem que sejam penalizados, diferentes do Domas, que jamais
poderiam acrescentar algo que não fosse a absoluta verdade dos fatos. Conhecidos também
como diélis, eles ganharam um codinome que faz jus ao seu papel na África, “boca rasgada”.
Segundo Hampaté Bá, na presença dos griôs, os ouvintes indagam se a história é de Diéli ou
de Doma, sabem que podem esperar o embelezamento da verdade ou a transmissão fiel,
segundo a resposta dada.
Cabe aos genealogistas conhecer profundamente as histórias das famílias, sua
linhagem e os fatos que as acompanham, para cumprirem seu papel. Eles desenvolvem uma
memória prodigiosa. Os genealogistas, por exemplo, são chamados para recitar toda a
linhagem da família nas ocasiões de nascimentos, casamentos ou funerais. Os historiadores
são os arquivistas da sociedade africana, guardam na memória os acontecimentos passados e
presentes ligados aos fatos.
Para os povos africanos, os griôs eram poupados até das guerras para que
continuassem narrando as proezas, considerados como bibliotecas vivas. Segundo um dito
popular africano, que – em conferência – ouvi da boca de Sunny, “quando um griô morre é
como se toda uma biblioteca tivesse sido arrasada pelo fogo”.
Os responsáveis pelo repasse das tradições orais eram considerados pessoas de grande
importância, conhecedores dos segredos e mistérios, dos acontecimentos passados e presentes,
reconciliadores de conflitos, grandes músicos, embelezadores da palavra, ou seja, seres
dinâmicos, enredados pelas vozes ancestrais e que ocupavam lugares de destaque.
Transitavam entre o ontem e o hoje, entre o povo comum e a nobreza, exerciam forte
influência, e por isso sua palavra vital podia levantar ou derrubar. Não é por acaso que a
palavra diéli, em bambara, traduz-se como sangue, uma forte metáfora, já que o sangue
transita e circula por todo o corpo, assim como os diferentes griôs também transitam por
distintos espaços da sociedade a que pertencem. Queridos e respeitados pela comunidade
local, por serem os guardiões da palavra, a memória viva das sociedades africanas.
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3.4. Ponto chato7 – O não-lugar da oralidade para os povos árabes
A ocupação na península denominada Arábica se deu por povos nômades, a própria
etimologia da palavra árabe quer dizer imigrante. As comunidades que passaram a viver nesta
área têm como particularidade a peregrinação. Encontramos, por exemplo, nas escrituras dos
povos cristãos, a narrativa que traz a origem nômade dos árabes, ao relatar sobre Abraão e
Sara, sua esposa8.
Abraão nasceu em 2018 a.C., provavelmente na cidade de Ur dos caldeus, situada no
sul da Mesopotâmia, casou-se com Sara e deixou Ur para morar em Canaã até o fim de seus
dias. O casal não tinha filhos, Sara era estéril. Pela impossibilidade de deixar descendentes,
Abraão decide tomar como segunda esposa Hagar, empregada egípcia, e com ela tem Ismael,
seu primogênito.
Segundo a narrativa bíblica, quase uma década depois, Sara conseguiu dar à luz Isaac,
e, por desentendimentos constantes entre as suas mulheres, Abraão decidiu expulsar de suas
terras Hagar e Ismael, que seguiram para a região do deserto, tornando-se nômades. De
Ismael, surgiram as tribos beduínas da Arábia, ele é considerado pelos muçulmanos como o
ancestral dos povos árabes.
A característica do nomadismo pode ser a motivadora do apreço pelas narrativas dos
povos árabes, as tantas andanças nutrem as crônicas da voz, deixando-os receptivos ao ouvir e
contar do que viram nas viagens. Walter Benjamin (1999, p.199) tece considerações sobre
dois grupos de narradores com características próprias do seu modo de viver: o camponês e
viajante. O primeiro é sedentário, aquele que, estabelecendo moradia num único local, passa a
ser conhecedor das histórias e tradições de seu país. Em contrapartida, o segundo – que
corresponde ao marinheiro viajante – traz as experiências e os olhares dos locais por onde
passa, o que carrega em suas narrativas outras territorialidades coletadas no cotidiano das
andanças e sendo introduzidas em seu acervo. Este último grupo nos interessa neste ponto em
que tratamos dos povos nômades, pela sua capacidade de intercambiar experiências vindas de
longe e incorporá-las a suas próprias vivências. “A experiência que passa de boca em boca é a
fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p.198).
De acordo com Malba Tahan (2001), na apresentação de As mil e uma noites, os povos
árabes eram fascinados pelas histórias:
7 Ponto dado alternadamente em cada lado, a fim de preencher todo o espaço do desenho a ser bordado. Os
pontos devem ser bem unidos e cruzados uns sobre os outros. 8 O relato sobre Abraão encontra-se registrado no livro bíblico de Gênesis, capítulos de 11-27.
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Não havia aldeia árabe que não tivesse seu contador de histórias... Em algumas
cidades – Cairo, Damasco, Constantinopla – os contadores de histórias reuniam-se
em verdadeiros “sindicatos”. Cada corporação era dirigida por um deles, de maior
prestígio e autoridade, que tinha o título de Cheik el-medar, que significa chefe dos
contadores do café... é um espetáculo curioso acompanhar as impressões que as
histórias produzem na alma ardente e apaixonada dos árabes. Conforme a palavra
sempre eloquente do narrador os ouvintes se agitam ou se acalmam. À cólera
violenta sucedem os sentimentos mais ternos, os risos estridentes são seguidos, não
raro, de prantos e lamentações (TAHAN, 2001, p.15).
Ainda segundo Tahan (2001), a relação entre narrador e ouvinte era ardente e
apaixonada. Como um maestro regendo sua orquestra, o narrador, com sua batuta de histórias,
regia as sensações e os sentimentos dos atentos ouvintes, e, de acordo com a palavra
proferida, as reações iam da euforia ao descontentamento, do riso ao pranto. Outro traço
característico do ouvinte era sua participação ativa nas histórias, e nos momentos de clímax da
trama ouviam-se em uníssono as interferências do público, dependendo da situação
apresentada pela narrativa, as palavras eram proferidas:
“– Não, não, não, Deus não consentirá!”
O coro se levanta em prece pela vida dos protagonistas ao serem ameaçados pelos
perigos, ou se o herói morre em combate ouve-se a seguinte expressão:
“– Que Deus o receba em sua misericórdia! Que Deus o tenha em paz!”
Edmundo De Amicis (apud TAHAN, 2001, p.16), escritor italiano, ao deparar-se com
o narrador, descreve a performance desse agente. O registro ajuda-nos a visualizar a presença
marcante do que narra e a compreender a fascinação causada aos seus ouvintes:
Tivemos a sorte de chegar no momento em que o Cheik el-medah, tendo terminado a
costumeira prece matinal, começava a narrativa. Era um homem de seus cinquentas
anos, quase negro, a barba negríssima e dois grandes olhos cintilantes; trajava, como
quase todos os outros narradores de Bagdá, um enorme pano branco apertado, em
torno da cabeça, por uma corda de pelos de camelo, que lhe dava a majestade de um
antigo sacerdote. Falava com voz alta e vagarosa, ereto no meio do circulo de
ouvintes, acompanhado submissamente por um tocador de alaúde e um tambor.
Narrava, talvez, uma história de amor, as aventuras de um bandido famoso, as
vicissitudes da vida de um sultão. Não lhe percebi nem palavra. Mas o seu gesto era
tão arrebatado, sua voz tão expressiva, seu rosto tão eloquente, que eu às vezes
entrevia, num rápido momento, alguns lampejos do sentido. Pareceu-me que contava
uma longa viagem; imitava o passo do cavalo fatigado; apontava para horizontes
imensos; procurava em torno de si uma gota d‟água, deixava cair os braços e a
cabeça como um homem prostrado.
Árabes, armênios, egípcios, persas e nômades do Hed-jaz, imóveis, sem respirar,
refletiam na expressão dos rostos todas as palavras do orador. Naquele momento,
com a alma toda nos olhos, deixavam de ver, claramente, a ingenuidade e a frescura
de sentimentos que ocultavam sob a aparência de uma dureza selvagem. O contador
de historias andava para a direita e para a esquerda, parava, retrocedia, cobria o rosto
com as mãos, erguia os braços para o céu, e, à medida que se ia afervorando, e
levantando a voz, os músicos tocavam e batiam com mais fúria.
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A narrativa empolgava os beduínos, e quando terminada, os aplausos estrugiram no
ar.
É na descrição de Edmundo De Amicis que o ponto chato se mantém firme, parecendo
ser feito com linha resistente, pois que o narrador, descrito neste momento, parece querer
preencher todo o espaço do desenho bordado na memória e que nesta hora é tecido pelo corpo
e pela voz. E “com a alma toda nos olhos” o narrador prende os ouvintes nos fios da sua
história. E, assim, narrador e ouvintes se confundem com o ponto chato, porque com a trama
feita eles agora estão bem unidos e cruzados uns sobre os outros.
A palavra e o portador dela recebiam a reverência e a aclamação dos ouvintes. A
descrição do escritor italiano anteriormente citado sobre seu encontro com da figura do
contador nos ajuda a visualizar os elementos constituintes na performance do que narra, desde
sua aparência, a vestimenta, o tom e a impostação de voz, os gestos, a memória, a parceria
com músicos, a receptividade dos ouvintes, ajudam a recriar a performance do narrador e
perceber a importância dele!
Havia, para os contadores árabes, uma preocupação com o acervo de narrativas, novas
histórias eram ouvidas através da voz dos viajantes com o intuito de aumentar o repertório. As
histórias em cadeia eram as preferidas, o narrador sempre interrompia a trama num momento
importante a ser continuado no dia seguinte, ou então numa ponte que liga a história narrada
com a seguinte. Dessa forma, os ouvintes se viam estimulados a voltarem a fim de saberem o
desenrolar ou o desfecho dos enredos sempre tão bem tramados pelos narradores árabes.
Uma das mais conhecidas histórias em cadeia é indubitavelmente As mil e uma noites,
um conjunto de contos populares vindos do médio Oriente e do sul da Ásia, transcritos em
língua árabe a partir do século IX. Os contos tornaram-se conhecidos no mundo ocidental com
o trabalho de tradução do francês Antoine Galland, realizados em 1704. As histórias narradas
por Sheherazade, esposa de Chariar, tornam-se um clássico da literatura mundial.
Outro motivo pelo qual as histórias tinham lugar cativo na vida dos árabes residia na
confiança em seu poder curativo, a ponto de curar moléstias como a loucura. O insano ouvia
as histórias em cadeia, ajudando-o a recobrar o juízo, o equilíbrio, a sanidade mental, como
observamos no clássico As mil e uma noites, em que Sheherazade narra histórias nas mil e
uma noites para o sultão Chahriar, acometido de um transtorno mental, que o fazia matar suas
jovens esposas na manhã que se seguia à noite de núpcias. Sheherazade, exímia contadora,
narra suas histórias, interrompendo-as em momentos de clímax, a cada amanhecer, fazendo
com que Chahriar poupe sua vida por mais um dia, a espera da continuação da trama.
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Passando-se as mil e uma noites de histórias da sultana Sheherazade, Chahriar se rende
ao poder da palavra:
Chahriar admirava, no íntimo, a estupenda imaginação de Sheherazade que todas as
noites lhe proporcionava histórias interessantes.
Já haviam passado mil e uma noites, e tudo contribuíra para diminuir o injustificado
rancor do soberano contra as mulheres. O sultão da Índia tornara-se mais brando, e
reconhecia os grandes méritos de sua esposa, que não vacilara em se apresentar
voluntariamente, sem medo da morte. Decidiu, então, conceder-lhe o direito à vida
(GALLAND, 2001, p.538).
O sultão Chahriar, por fim, fez a seguinte declaração:
– Querida Sheherazade – disse-lhe –, vejo que sabeis maravilhosas histórias, e há
muito que com elas me distraís. Foi-se a minha cólera, e é com prazer que a partir de
hoje retiro a cruel lei a mim imposta. Tendes a minha proteção, e sereis considerada
libertadora de todas as jovens que ainda seriam imoladas ao meu rancor
(GALLAND, 2001, p.539).
Instaura-se um outro tipo de poder: o da palavra. Segundo Adélia Bezerra de Menezes
(1995), a magia das palavras transforma almas adoecidas. O processo terapêutico, através das
narrativas, visto em Sheherazade e Chahriar, acontece pela escuta, o sultão recupera sua
capacidade de confiar amorosamente nas mulheres, a mediação simbólica da linguagem como
cura interior:
Sherazade ou do Poder da Palavra. A sultana era uma contadeira de histórias, não
em primeira linha uma escritora: ela as contava de viva voz. Aquelas 1001 noites
eram marcadas pela cálida proximidade da mulher, da mulher na sua inarredável
corporeidade. Não podemos esquecer da carga corporal que a Palavra falada carrega.
Na narrativa oral, a Palavra é corpo modulada pela voz humana, e portanto
carregada de marcas corporais; carregada de valor significante. Que é a voz humana
senão um sopro (pneuma: espírito...) que atravessa os labirintos dos órgãos da fala,
carregando as marcas cálidas de um corpo humano? A palavra oral é isso: ligação de
sema e soma, de signo e corpo. A palavra narrada guarda uma inequívoca dimensão
sensorial (MENEZES, 1995, p.56).
O fato interessante em As mil e uma noites é o conteúdo das histórias de Sheherazade.
De maneira perspicaz, narrava histórias que ajudavam o sultão a resolver seus conflitos
internos, reorganizando o caos psíquico, residindo aí o poder curativo das histórias de
Sheherazade. Força, fervor e fé, na palavra vital proferida pelo contador de histórias, lhe
conferiam o profundo respeito de seus ouvintes inflamados de paixão, porque agora eles
também são sabedores do que pode a arte de contar histórias:
A coragem necessária para descer até níveis inferiores do mundo das histórias pode
conduzi-lo a muitas direções diferentes de uma só vez. De forma similar, nossos
corpos contêm muitas cavernas, clareiras e ramificações circulatórias compostas por
músculos e vasos sanguíneos. Uma história pode iluminar os níveis mais inferiores
de nossa capacidade circulatória (MELLON, 2006, p.45).
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Assim, a psicoterapeuta norte-americana Nancy Mellon vai alinhavando, no ponto a
ponto, o entendimento do valor das histórias para a humanidade. E tantos outros fios de
pensamento se juntam para dar melhor forma ao bordado:
Habitar essas vidas de fantasia é uma forma de refletir sobre destinos possíveis e
cortejá-los com o nosso. Às vezes, uma história ilustra temores de que padecermos,
outras, encarna ideias ou desejos que nutrimos, em certas ocasiões ilumina cantos
obscuros do nosso ser. O certo é que escolhemos aqueles enredos que nos falam de
perto, mas não necessariamente de forma direta, pode ser uma identificação,
enviesada (CORSO, 2006, p.21).
Esse é apenas o começo do ponto dado por Diana Lichtenstein Corso, no livro Fadas
no divã. A autora prende, nos fios dos seus pensamentos, as narrativas sobreviventes, com a
psicanálise, numa tentativa de entender por que essas histórias ainda reverberam e desta forma
nos segreda, mais uma vez, o valoroso lugar que essas narrativas têm.
3.5. Ponto rococó9 – Povos europeus na Idade média – a literatura oral
Para falarmos em oralidade e Idade Média, precisamos antes compreender, à luz de
dois grandes estudiosos do período, o significado das duas expressões, acima citadas, Jacques
Le Goff, historiador francês, referência em Idade Média, e Paul Zumthor, medievalista,
estudioso das poéticas orais. O primeiro desmistifica o rótulo recebido de idade das trevas, ao
defender que o período não pode ser visto apenas como tempos de miséria, ignorância e
guerras, para ele foi um período criativo e dinâmico, bem diferente do que a história oficial
apresenta.
Le Goff fala de um período estendido, que vai do século IV ao começo da era
industrial, século XVIII, e não somente até o século XV, particularmente, em 1453, com a
tomada de Constantinopla pelos turcos, como aprendemos na escola. Paul Zumthor (1993,
p.24) comunga com a ideia acima ao dizer:
De um ponto de vista global, participo da opinião de J. Le Goff sobre a existência de
uma “longa Idade Média” entre o século IV e o início da era industrial. É maior a
necessidade de marcar as nuances e de introduzir alguma periodização. As fronteiras
recortam o tempo tanto quanto o espaço: tão frouxas quanto reais, aqui e ali.
Quanto a oralidade, Zumthor (1993) esclarece que não podemos vinculá-la apenas ao
que é transmitido pela palavra, que é apenas a manifestação material ou evidente da oralidade,
9 Ponto feito a partir de várias voltas de linha na agulha, criando sucessivas camadas sobrepostas, assemelhando-
se a uma rosa.
72
existem outros elementos, por ele denominado de Performance, como texto, sonoridades,
ritmos, elementos visuais.
Dessa forma, a oralidade, para Zumthor (1993), é dividida em três categorias
emanadas de três situações de cultura: primária, mista e segunda. A primária não comporta
contato algum com a escrita, reside nas sociedades ágrafas, isoladas. A mista sofre uma
influência parcial da escrita. E, por último, a oralidade segunda emana de uma cultura letrada,
com forte presença da escrita.
Concluímos, a partir das informações de Zumthor (1993), que o período medieval no
ocidente foi predominantemente povoado pela oralidade, e que a voz cercava os caminhos
deste tempo, pouco se fazia o uso da escrita, os textos escritos eram alvo do desejo de tornar
oral, lidos em voz alta nas praças, por exemplo. Havia o reconhecimento da importância da
voz e do seu legado entre os homens, ela era a mediadora, a unificadora da comunidade, de
habitantes dos vilarejos, dos centros urbanos, sua presença marcante estava no espaço rural.
Os intérpretes granjeavam a admiração e o respeito de todos, suas palavras transitavam nos
diversos temas, sendo semeadas pela voz, ora nômade, ora estável, quase sempre alegórica e
carnavalesca. O ir e vir da voz nas situações de oralidade na Europa medieval conferia poder,
reconhecimento e prestígio: “Quando um poeta ou seu intérprete canta ou recita (seja o texto
improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só lhe confere autoridade. O prestígio da
tradição é a ação da voz” (ZUMTHOR, 1993, p.19).
Assim, encontramos expressões como jograis, menestréis, trovadores, termos que
trazem em si aproximações e distanciamentos, mas que conservam a unidade da voz.
Pesquisadores, debruçados nos estudos do período medieval, buscaram explicar as
características específicas de cada um dos grupos citados.
Ao trazer a figura dos intérpretes da voz, Zumthor (1993, p.55) também evidencia um
grupo de narradores intitulados Jongleurs: “indivíduos que assumiam a função de
divertimento, as sociedades medievais dispuseram de um vocabulário ao mesmo tempo rico e
impreciso, cujos termos, na mobilidade geral, não param de deslizar uns sobre os outros”. Os
Jongleurs parecem mestres no ponto rococó, pois fazem da voz a linha capaz de dar várias
voltas na agulha, aqui representada pela história, enriquecendo-a pelas camadas dos
vocabulários e de tudo o que tinham que cumprir para assim ser chamados.
Raynor (1981, p.49), em História Social da Música – da Idade Média a Beethoven,
esclarece sobre os Jongleur ou menestréis:
O termo Jongleur medieval que é o nome às vezes dado ao menestrel da baixa Idade
Média, quer fosse ele membro da criadagem inferior de uma residência aristocrática
73
ou membro do que, atualmente, chamaríamos de teatro burlesco. Sobreviveram as
regulamentações redigidas para orientação dos músicos ambulantes de
entretenimento na Alemanha medieval; o menestrel tinha de saber inventar, fazer
ritmos, e ser bom espadachim; tocar bem tambor, címbalos e o Bauernleier (realejo);
jogar pequenas maçãs para cima e apará-las na ponta de uma faca; imitar o canto de
pássaros, fazer truques com cartas de baralho e saltar através de argolas; tocar cítara
e bandolim, cravo e guitarra, viola de sete cordas, acompanhar bem com a rabeca,
falar e cantar agradavelmente. Um jogral a serviço da aristocracia devia entreter seu
patrão e os hóspedes dele em tudo o que desejassem, assim como um comediante
ambulante para ganhar a vida tinha de ser contador de histórias, cantor,
instrumentista, acrobata, prestidigitador e tudo o mais que pretendesse
convincentemente ser.
Os Jongleurs eram andarilhos que viviam a vagar de aldeia em aldeia, reino em reino,
sozinhos ou em bandos, viviam com muito pouco, eram considerados escória, párias da
sociedade, não tinham direitos, viviam à margem da lei e dos sacramentos da cristandade. Nos
séculos XI e XII, um novo olhar é lançado a esse grupo, que passa a se organizar em
confrarias, o que impulsiona a obtenção do respeito ao seu trabalho.
Outro grupo encontrado na Europa medieval são os trovadores. Estes narradores
faziam parte da aristocracia, do movimento elitizado, ser um trovador era ter um determinado
poder em mãos, o político. Na Alemanha do século XIV, nasce uma escola de poetas
composta por nobres, inspirada no movimento do trovadorismo do século XI, batizada de
Minnesinger, os representantes desse movimento usavam como matriz as canções de amor,
mas com cunho religioso, inspirado nas Cruzadas. Mais adiante, nos séculos XV a XVI,
passam a compor o grupo dos Minnesinger não somente nobres, mas mercadores e artesãos
burgueses, assim nasciam os Meistersinger.
Figuras marcantes no cenário da oralidade no período medieval, constituem um
amálgama de narradores e narrativas, compondo a herança da literatura oral no ocidente. E,
assim, as histórias foram semeadas de boca em boca, aldeia em aldeia, reino em reino por toda
a Europa, encontram no percurso a visão cíclica, voz virando letra, retornando ao estágio
inicial de voz na movência da tradição oral, apresentada por Zumthor (1993).
Inúmeras narrativas chegaram até os nossos dias através da movência da tradição oral.
Na Europa, alguns representantes ganharam notoriedade na semeadura das histórias. O
primeiro europeu a coletar histórias da memória popular foi o francês Charles Perrault. No
século XVII, durante o reinado do rei Sol, Luís XIV, de sua recolha originou-se o livro
Contos da Mãe Gansa (1697). A coletânea de narrativas passou pelo filtro de Perrault para
agradar ao refinado gosto da corte francesa, incluía, inicialmente, algumas das mais
conhecidas histórias até o tempo presente, são elas: O Barba Azul, A Bela Adormecida no
74
Bosque, Chapeuzinho Vermelho, As Fadas, O Gato de Botas, Cinderela, O Pequeno Polegar
e Henrique do Topete.
Burke (1994), em A fabricação do rei, apresenta-nos Perrault como um dos
encarregados na construção da imagem pública do rei Luís XIV, havia pessoas específicas
para cada área de conhecimento, em literatura, pintura, escultura, música e arquitetura, esta
última estava a cargo de Charles Perrault:
No caso da arquitetura, o conselheiro de Colbert foi Charles Perrault – literato
conhecido em nossos dias sobretudo por ter reescrito contos populares, como
Chapeuzinho Vermelho –, que serviu como encarregado das edificações [commis
des bâtiments] quando Colbert se tornou surintendant em 1664. Em suas memórias,
Perrault expôs o plano para Colbert “de ter muitos monumentos erigidos para a
gloria do rei, como arcos do triunfo, obeliscos, pirâmides e túmulos” (BURKE,
1994, p.67-68).
De acordo com as pesquisas de Robert Darnton (1986), historiador cultural,
estadunidense, Perrault era “Um cortesão, „moderne‟ de maneira autoconsciente, e um
arquiteto da politica cultural autoritária de Colbert e Luís XIV, ele não tinha simpatia alguma
pelos camponeses e sua cultura arcaica”. Ao recolher as histórias do domínio oral, fez um
trabalho de arremate para torná-las apresentáveis aos gostos dos requintados salões
parisienses. Seu interesse por narrativas provavelmente se deu, segundo Darnton, pelo contato
costumeiro que pessoas ligadas à nobreza tinham através da voz acalentadora das amas-de-
leite e babás, e suas histórias de encantamentos! Perrault, através da recolha das narrativas,
proporciona o trânsito entre as duas realidades tão distintas, a dos nobres e cortesãos e a dos
camponeses.
No mesmo período, ainda na França, Jean de La Fontaine dedica-se a registrar
histórias de cunho moral, as chamadas fábulas, suas fontes incluem a memória do povo e
fontes documentais históricas, na Grécia, na Roma, as fábulas de Fedro, parábolas da bíblia,
histórias do oriente.
No século XVIII, na Alemanha, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, filólogos,
folcloristas e estudiosos da mitologia alemã, entregam-se à empreitada de sair de aldeia em
aldeia recolhendo narrativas do domínio oral. Segundo se sabe, a história conta que duas
mulheres foram suas principais intérpretes, uma camponesa de nome Katherina Wieckmann e
Jeanette Hassenplufg, amiga da família dos Grimm, que tinha descendência francesa.
Cabe ressaltar que Jeanette Hassenpplufg havia fugido da França após perseguição do
rei Luís XIV, assim trouxe seu próprio repertório de histórias, que, segundo Darnton (1986,
p.23-24), foi uma importante fonte em que beberam os irmãos Grimm:
75
Os Grimm o conseguiram, juntamente com “O gato de botas”, “O Barba azul”, e
algumas poucas outras histórias com Jeanette Hassenpplufg, vizinha e amiga íntima
deles em Cassel; e ela ouviu as histórias de sua mãe, que descendia de uma família
francesa huguenote. Os huguenotes trouxeram seu próprio repertorio de historias
para a Alemanha, quando fugiram da perseguição de Luís XIV. Mas não os
recolheram diretamente da tradição popular oral. Leram-nos em livros escritos por
Charles Perrault, Marie Cathérine d‟Aulnouy e outros, durante a voga dos contos de
fadas nos círculos elegantes de Paris, no fim do século XVII.
O trabalho de recolha dos irmãos Grimm foi fértil, muitos dos contos tidos como
clássicos da literatura infantil são frutos dessa safra, como: Branca de Neve e os sete anões,
Os músicos de Bremen, O pequeno polegar, O príncipe sapo, Rapunzel, A gata Borralheira,
A senhora Holle, entre outros conhecidos. Uma das preocupações dos Grimm foi a distinção
dos tipos de contos: os Volksmärchen (contos populares) e os Kunstmärchen (contos
artísticos), estes últimos envolvem a interferência do escritor, a elaboração literária. Marcus
Mazzari (2012, p.18), na a apresentação dos Contos maravilhosos infantis e domésticos,
editado no bicentenário dos Grimm, esclarece:
Jacob Grimm procurou apresentar os Contos maravilhosos infantis e domésticos
como a mais genuína manifestação da “poesia da Natureza”, criação espontânea de
uma coletividade anônima. Esforçou-se igualmente em distinguir os contos
populares (Volksmärchen), que coletara ao lado do irmão, dos artísticos
(Kunstmärchen), os quais ostentariam vestígios nítidos da elaboração literária
individual (como se verifica claramente em fairy tales de Oscar Wilde ou Hans
Christian Andersen, para citar exemplos posteriores). Contos populares, ao
contrário, possuem o seu habitat na tradição oral e, com frequência, iletrada, na qual
ingressam diretamente da “alma do povo”, conforme expressão empregada por
Jacob no espírito romântico então vigente. Por isso, esses contos exigiriam do
compilador a mais estrita fidelidade.
No mesmo texto, Mazzari apresenta a metáfora, trazida por Jacob Grimm, sobre a
polêmica da fidelidade ao texto original, ao dizer que quando se quebra um ovo é difícil evitar
que nenhum resquício de clara fique na casca do ovo, mas deve-se cuidar para que a gema
fique intacta. Assim, segundo os irmãos Grimm, deveria ser com as narrativas orais, conservar
sua essência, deixando-a o mais cristalina possível na passagem para o escrito. No entanto,
sabemos que pesquisas posteriores comprovaram que a gema não ficou intacta, os irmãos
sofreram influências da visão cristã, permeada pelo período do romantismo. O crivo do
ideário cristão foi passado nos textos da segunda edição, e assim os autores suprimiram
episódios de violência e crueldade, os de cunho sexual explícito, além das modificações na
passagem da voz para a letra, como o enxerto nos fragmentos dos textos e na elaboração
estilística.
Um longo período marcado por profundas transformações econômicas, sociais,
politicas, como dito anteriormente, esse amálgama constituiu a oralidade no período
76
medieval, os intérpretes cantam e contam o cotidiano, propagando louvores ou satirizando o
modo de vida vigente, compondo o bordado do tecido a vestir um período muito
incompreendido até hoje por estudiosos e pesquisadores de vários cantos do mundo. Por isso,
o intérprete assume o papel de medidor do tempo social ao trazer sua voz às mais diversas
situações da vida:
Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida,
pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço
social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos,
revestida disso de uma autoridade particular. (ZUMTHOR, 1997, p.67)
3.6. Ponto teia de aranha10
– Para cincundar a vida com a voz
Nas leituras feitas para nutrir a escrita do tópico sobre o período medieval,
encontraremos olhares de pesquisadores alinhavando oralidade, período medieval e o Novo
Mundo, ao associarem a oralidade no Novo Mundo à chegada dos colonizadores, em geral
camponeses sem terra, ou desocupados da área urbana em busca de novas oportunidades, que
ao aportarem no litoral brasileiro trouxeram a cultura oral. No entanto, devemos arrazoar na
oralidade já aqui presente, particularmente no Brasil.
Luís da Câmara Cascudo foi historiador, antropólogo, advogado e jornalista,
pesquisador das manifestações culturais brasileiras. Em Literatura Oral no Brasil (1984), o
autor nos leva ao universo da oralidade dos primeiros povos a habitar o Brasil, os indígenas.
Câmara Cascudo referenda a Poranduba, a odisseia indígena, e sua importância para a
continuação das narrativas através da memória dos velhos, ou o que ele denomina de memória
viva do grupo:
É a Poranduba, a Maranduba, expressão oral da odisseia indígena, o resumo fiel do
que fez, ouviu e viu nas horas distantes do acampamento familiar [...] A tradição
oral indígena guardava não somente o registro dos feitos ilustres da tribo, para
emulação dos jovens, espécie de material cívico para excitação, como também as
histórias facetas, fábulas, contos, o ritmo das danças inconfundíveis. [...] Os
guerreiros que envelheciam possuiriam o arquivo das versões orais. Essa
continuidade era tão normal e poderosa que compreendemos como foram
transmitidas aos naturalistas, exploradores, missionários, centenas e centenas de
fábulas e de contos, ainda inesgotáveis mananciais responsáveis por essa
conservação (CASCUDO, 1984, p.79-80).
Para os povos indígenas, as histórias nutriam o cotidiano, explicavam o mundo. E a
sonoridade da voz, que acolhe e ensina, era a maneira peculiar de dizer de si, do outro e dos
demais seres pertencentes ao círculo de vida. A intimidade existente entre os povos indígenas
10 Ponto feito em direção ao centro do círculo, com raios formando a base até preencher a circularidade do
bordado.
77
e a fauna, a flora e todo o meio ambiente tornavam-os enredados, fios da teia de histórias da
vida, característica tão preciosa dos povos tradicionais, conforme visto anteriormente. Dessa
forma, os rios, as matas, os animais, o vento, o fogo etc. faziam parte ora como protagonistas,
ora como antagonistas do repertório da literatura oral.
Tal acervo, graças à memória e à oralidade, chegou até nós. Essas histórias falam das
origens: da lua, do sol, do milho, do açaí, da mandioca, da noite, dos animais, do surgimento
dos rios, das estrelas, do fogo, do vento, do tempo em que os bichos falavam com os
humanos, dos seres híbridos, dos fenômenos astronômicos, do caçar e pescar, do
reconhecimento das marés, da saúde pelas plantas. Elas revelam o modo de pensar, agir,
sentir, a forma como, enfim, vivia cada comunidade indígena, tal como evidencia Cascudo
(1984, p.87): “O indígena conta, horas e horas. Conta, dias e dias, ou melhor, noites e noites,
um milhar de estórias de guerra, caça, pesca, origem de várias cousas, o amanhecer de sua
família no mundo”. Esse parecer é detalhado pelo autor em passagem de seu livro:
O indígena tudo explicava naturalmente dentro da vida assombrosa em que vivia.
Estrelas, manchas negras no céu, época das enchentes, chuvas, escuro da noite,
animais, rios, viveram sob outra forma, entre os indígenas, há muito tempo, quando
só existiam os avós das cousas e entes atuais, o avô da tartaruga, o avô dos macacos,
o avô dos mutuns. Depois de uma tragédia, meio escondida no esquecimento das
tribos modernas, esses entes voaram, subindo, subindo para o firmamento e lá se
transformaram em constelações. O mutum é o cruzeiro do Sul. Canopus era um
homem chamado Pechioço, casado com uma mulher-sapo-cururu. As plêiades eram
crianças que os pais não podiam alimentar. A mandioca nasceu primeiro no túmulo
de Mani. O milho do sepulcro de Ainotaré. O guaraná do olho direito do filho de
Onhiámuáçabe. Sentem-se um sabor de História fantástica, vinda de geração a
geração, como uma herança miraculosa, explicando um principio. Localiza-se a
espécie surgida, a tribo é nomeada, às vezes o próprio nome do protagonista. Há um
halo de respeito. Não há ritual, mas uma veneração, visível na maneira grave de
narrar o sucesso maravilhoso (CASCUDO, 1984, p.98).
Mistérios da vida descortinados pelo contar horas e horas, ali o tempo não é medido
pelas 24 horas do relógio, outras temporalidades são protagonistas do tempo, as histórias para
os povos indígenas são saboreadas por muitas luas, algumas duram um ou mais ciclos lunares,
sem pressa, porque precisam transitar entre os mundos internos e externos do contador e do
ouvinte, fazer sentido, sair dos espíritos que habitam em cada ser vivente, o espírito das águas,
das matas, dos ventos, e voltar em forma de pouso suave, como o de um pequeno passarinho,
ou tempestuoso como o banzeiro das águas agitadas. As histórias chegam conforme a
necessidade que o ajuntamento requer, mas, de forma geral, trazem um ensinamento maior, a
busca pela harmonia com as formas de vida e o profundo respeito pelas tradições ancestrais.
Esses ensinamentos são transmitidos eminentemente pela voz com base na memória,
dois componentes vitais para a permanência dos preceitos indígenas. Segundo Daniel
78
Munduruku (1999, p.21), “As sociedades tradicionais são filhas da memória e a memória é a
base do equilíbrio das tradições. A memória liga os fatos entre si e proporciona a
compreensão do todo”. Para ele, só conseguiremos compreender os povos indígenas a partir
do entendimento do lugar que a memória ocupa no cotidiano.
Ao puxarmos um fio para a Amazônia, observaremos que o próprio nome surgiu a
partir do imaginário dos viajantes e cronistas de viagem que por aqui passaram. No século
XVI, o explorador espanhol Francisco de Orellana, ao navegar pela região, afirmou ter
avistado uma aldeia apenas com mulheres, índias guerreiras, comparando-as com as
Amazonas, as bravas e corajosas filhas de Ares, o deus da guerra. E assim, a região
exuberante e misteriosa ao olhar do estrangeiro, é batizada de Amazônia, nome nascido sob a
égide do mito:
A voz do mito aparece em narrativas fundadoras da região, como crônicas de
viajantes estrangeiros ou brasileiros, de séculos anteriores ao nosso. Estes textos
inferem saberes sobre a Amazônia e constroem a história da região, como se observa
nos mitos das amazonas e do eldorado.
Assim, este complexo narrativo mítico representa as formas de pensar e indica os
modos de agir dos habitantes das comunidades abeiradas do rio ou moradoras da
floresta, próximas ou não, das zonas urbanas (FARES, 2008a, p.102).
Portanto, inicialmente, o ponto será costurado no período colonial pelo cronista da
companhia de Jesus, Padre João Daniel, que viveu na região entre 1741 a 1757, até ser preso
pelo Marquês de Pombal.
João Daniel (2004), em suas crônicas, traz o olhar sobre a região amazônica em seus
vários aspectos. Um aspecto de grande relevância para esta pesquisa são o contato com os
povos que aqui habitavam e as impressões provenientes deste encontro.
Ao relatar suas impressões sobre a população, o cronista tece comentários sobre o
modo de viver baseado na recepção da voz, ajudando-nos a formar o quadro da importância
da oralidade no período apontado pelos relatos:
É bem verdade que os filhos obedecem com muita sujeição aos pais, os mais moços
aos mais velhos, tendo-lhes tanta veneração, e as velhas, que juram nas suas
palavras; e o que dizem são para eles oráculos, e evangelhos, de sorte que ainda
convertidos e domésticos mais depressa acreditam o que lhes dizem as velhas do que
o que lhes pregam os missionários. E se alguma velha levantou a voz e diz morram
os missionários, tenham esta paciência, porque lhes será difícil o escapar; e pelo
contrario quando os índios amotinados querem matar algum europeu, basta um para
aquietar. Deste grande respeito que têm aos velhos e velhas nasce a grande
veneração os seus contos, que vão passando por tradição de uns a outros (DANIEL,
2004, p.269).
A palavra proferida pelos velhos adquiria status de lei, obediência, sujeição e
veneração, expressões utilizadas para dizer da sacralidade da voz emitida pelos idosos,
79
tornando-os conselheiros, mediadores de conflitos, pontos de equilíbrio e harmonização
dentro da comunidade. Os mais novos tinham ciência da sabedoria abrigada nas palavras
ditas, a reverência acompanhava outra preocupação pertinente tanto aos que falavam quanto
aos que ouviam, a necessidade de repassar os saberes para a continuidade das tradições.
Padre João Daniel (2004) cita um aspecto específico da veneração aos velhos e às
velhas: os contos. As narrativas, os mitos, conforme mencionado anteriormente, são a forma
de compreender, ser e estar no mundo, explicações da cosmogonia e do cotidiano indígena
diretamente expressa nos contos, a matriz cosmogônica construída com base na relação do
homem com seu meio, criam laços fortes entre homem e natureza, entre o próprio grupo,
fortalece a noção do todo interligado, do compartilhamento de saberes através da palavra
falada.
A oralidade entre os povos indígenas é uma prática que resiste às influências do
tempo. Cascudo (1984, p.78) mostra em períodos mais recentes a presença da oralidade entre
os indígenas:
Os seringueiros e cortadores de caucho, viajantes e pequenos mercadores, contam a
mesma cena em todas as aldeias indígenas que visitaram, Amazonas, Pará, Mato
Grosso, Goiás. Depois do jantar, noite cerrada, no pátio que uma fogueira ilumina e
aquece, reúnem-se os velhos indígenas, os estrangeiros, para fumar e conversar até
que o sono venha. Evocações de caçadas felizes, de pescarias abundantes, aparelhos
esquecidos para prender animais de vulto, figuras de chefes mortos, lembrança de
costumes passados, casos que fazem rir, mistérios da mata, assombros, explicações
que ainda mais escurecem o sugestivo apelo da imaginação, todos os assuntos vão
passando, examinados e lentos, no ambiente tranquilo.
Ao redor da fogueira, as chamas alimentavam as evocações dos feitos, dos
acontecimentos, trazem a função fabuladora, dita e redita, e, ao mesmo tempo, sempre nova
no hálito vital do narrador. Bachelard (1990, p.52-53) traz a metáfora da fênix em Fragmentos
de uma Poética do Fogo ao exemplificar que “A imagem da Fênix é essencialmente uma
imagem tornada Verbo, uma imagem que suscita uma multiplicidade de metáforas”. A
palavra é proferida com seus nascimentos, em seu estado polissêmico, dizemos estar
acontecendo a arte de contar histórias.
A atração exercida pelo fogo configura-se em várias metáforas, uma delas mencionada
anteriormente é a ligada ao mitológico pássaro Fênix, com suas penas brilhantes, douradas,
com tons entre o vermelho e o roxo, que tinha a capacidade de morrer em autocombustão e
renascer de suas próprias cinzas. A transmutação do pássaro de fogo, como era conhecido por
alguns povos, revela-nos o significado da perpetuação, do renascimento, como trouxe
Bachelard (1990) ao dizer que o pássaro Fênix vive no fenômeno da linguagem, renascendo
na existência poética.
80
Tal como o fogo, como os movimentos flamejantes das chamas, a imaginação humana
incandesce, por isso muitos povos reúnem-se ao redor das fogueiras para aquecer a alma ao
contar e ao ouvir as narrativas. Os povos indígenas fazem parte dos seduzidos pelo fogo!
Saberes e práticas educativas são transmitidos em noites iluminadas pela fogueira. Narrativas
que renascem a cada performance do contador reencontram a existência poética nas
flamejantes chamas da fabulação da linguagem.
Na Amazônia, o movimento das poéticas orais é parte constituinte da vida dos
habitantes. Loureiro (1995, p.55) esclarece que a cultura amazônica encontra-se imersa num
ambiente onde predomina a transmissão oralizada.
As narrativas na Amazônia são parte constituinte da vida dos habitantes, o narrar é em
primeira pessoa, as histórias ocorreram com o próprio contador, foi ele quem deixou o café e
o tabaco para a Matinta, após uma noite de assombramento e assovios estridentes, ou foi a
filha, a esposa ou outra mulher muito próxima quem dançou com o Boto a noite inteira,
tremer de medo ao pensar que a qualquer momento a Cobra Grande, que mora embaixo de
Belém do Pará – a cabeça sob a Catedral da Sé e cauda sob a Basílica de Nazaré – possa
despertar de seu sono e afundar a cidade com um simples remexer de seu corpo? Assim se
nasce e se cresce na Amazônia, reverenciando os narradores e as narrativas, o repertório do
contador de histórias é transmitido por parentes ou conhecidos, o narrar é uma ato natural para
quem tem o rio e a mata como casa, é a maneira de ser, estar e compreender o mundo:
Na Amazônia as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mitos,
personificam suas ideias e as coisas que admiram. A vida social ainda permanece
impregnada do espirito da infância, no sentido de encantar-se com a explicação
poetizada e alegórica das coisas. Procuram explicar o que não conhecem,
descobrindo o mundo pelo estranhamento, alimentando o desejo de conhecer e
desvendar o sentido das coisas ao seu redor. Explicam os filhos ilegítimos pela
paternidade do boto; os meandros que na floresta fazem os homens se perderem pela
ação do curupira; as tempestades pela reação enraivecida da mãe-do-vento etc.
(LOUREIRO, 1995, p.103).
Loureiro (1995, p.194) utiliza o termo “contemplação devaneante” para explicar o
entrelaçamento do homem e os elementos constituintes do seu cotidiano. Ao caboclo
amazônico, são reservadas longas horas de devaneio e contemplação necessários a sua
sobrevivência material, o pescador perdido em seus pensamentos a espera do peixe, ou o
extrativista a contemplar a mata em busca de subsistência, desse encontro, nasce a explicação
para tudo, um cotidiano povoado, seres encantados, rezas para curas, ritos etc. O devaneio
contemplativo liga o caboclo do barranco da beira do rio às estrelas, como o cordão umbilical
que liga seu ser imaginativo ao grande útero cósmico do universo:
81
Para o nativo da Amazônia, a contemplação é um estado de sua existência. O
principio e o fim de suas relações com a vida cotidiana e a raiz de suas
peculiaridades de expressão. Evidentemente que não é uma contemplação de caráter
teologal ou místico, mas uma contemplação que é a extensão de sua humanidade e
geradora do humanismo. É uma contemplação que estabelece o equilíbrio de limite e
grandeza do homem com a natureza. Diante dessa natureza magnifica e desmedida,
ele dimensiona segundo as medidas de sua humanidade. Confere à natureza uma
dimensão espiritual, povoando-a de mitos, recobrindo-a de superstições, destacando-
lhe uma emotividade sensível, tornando-a lugar do ser, materializado nela sua
criatividade, ultrapassando sua contingência na medida em que faz dela um lugar de
transcendência. Assim o caboclo se reconhece nessa natureza e amplia sua realidade,
eliminando as barreiras com o ilimitado do imaginário (LOUREIRO, 1995, p.195).
Neste cenário, em que a mitopoética das águas e da mata sinaliza o modo de
compreender o mundo, as histórias são cadenciadas pelo fluxo das marés, as que trazem a
presença do rio, como o Boto, a Cobra Grande, e as de mata, como Curupira, Matinta Perera,
para citar apenas algumas das fecundas narrativas que abrigam o imaginário amazônico.
As histórias na Amazônia fazem parte do legado das culturas aqui encontradas. Fares
(2008, p.102), pesquisadora das poéticas orais na Amazônia e pioneira na construção das
cartografias poéticas, nos alerta sobre a multiplicidade de culturas e identidades aqui
encontradas:
Não existe uma cultura, uma identidade amazônica no singular, a compreensão deste
espaço é sempre concebida no plural. As diferentes manifestações culturais trazem
marcas do híbrido e da mestiçagem, e reconhecem as presenças indígenas, africanas,
libanesas, nipônicas, entre tantas outras. São essas vozes poéticas de múltiplos
sotaques e línguas que fundam a Amazônia, mesmo sem ser necessário comprovar
quais os desenhos mais fortes e os rascunhos mais claros.
Dificilmente um amazônida ousa tomar banho nos rios nas horas mortas ou horas
grandes (00:00, 06:00, 12:00, 18:00 e), ou uma mulher banhar-se no rio ou igarapé
menstruada. Como dito anteriormente, as narrativas fazem parte do nosso cotidiano,
semeamos as histórias ouvidas com naturalidade, elas são abrigo e proteção para a memória e
a tradição dos povos que aqui habitam.
3.7. Ponto de cadeia11
– A oralidade e o narrador contemporâneo
O ato de narrar é muito antigo, cada povo, de sua forma, possui um acervo de
narrativas. É certo que hoje não encontramos mais “sindicatos de contadores de histórias”.
Vivemos em outros tempos, houve mudanças na mentalidade atual, mas a presença das
narrativas continua a encontrar lugar na grande teia de histórias da vida. A percepção de que
somos parte desta tessitura permite-nos olhar o outro e a nós mesmos.
11
Ponto formado por argolas feitas a partir da introdução da agulha no mesmo lugar de onde saiu a última vez.
82
Narrar pressupõe olhar nos olhos, beber da experiência que anda de boca em boca,
visitar mundos e criar outros, exercer o ouvir e o falar, elaborar e reelaborar o que está sendo
narrado, entre tantos outros benefícios que o narrador/ouvinte adquire.
Até o final do século XIX, frequentemente as pessoas reuniam-se para ouvir histórias,
porém no início do século XX, mais precisamente pós-Primeira Guerra Mundial, a Europa
presenciou o desaparecimento rápido do ouvir e contar histórias. O fenômeno repetiu-se no
Oriente Médio, os contadores de cidades como Cairo e Túnis começam a não ser encontrados
mais narrando proezas.
Na África, semelhante processo ocorreu, mas devido ao processo de colonização
europeia. A escola ocidental era legitimada em detrimento dos saberes locais repassados pelos
griôs, suas palavras passaram a ser vistas como supersticiosas e enganadoras pelos
colonizadores.
Na América do Sul, os contadores também não eram encontrados nos centros urbanos,
processo que chegou ao interior a partir de 1960, com a chegada da TV, palavras ditas por
Machado (2004, p.14), “Se por um lado os velhos contadores tradicionais estão
desaparecendo, porque nas comunidades rurais a televisão ocupa implacavelmente seu lugar,
nos grandes centros urbanos a quantidade de gente que se dedica a essa arte está crescendo.”
Machado apresenta um limiar entre o desaparecimento do contador tradicional e o
ressurgimento de um contador encontrado em outro território, e com diversas necessidades.
Os efeitos da modernidade apontavam outros caminhos para o narrador, a palavra essencial do
contador não morreu, apenas ficou quieta aguardando ouvidos generosos.
Os Contadores de histórias resistiram! Suas palavras calorosas e acolhedoras
encontraram abrigo mesmo em tempos de desiquilíbrio, prova disso é a reinvenção da “gente
das maravilhas”, como são chamados os contadores de histórias pelo povo árabe.
Um ponto de alinhavo para apresentar em um contador brasileiro, nascido em 1895, no
Rio de Janeiro, Júlio César de Mello e Souza, mais conhecido como Malba Tahan,
pseudônimo usado por ele por gostar de ler e contar histórias árabes. Machado (2004) conta-
nos do legado deixado por ele, através da arte de contar histórias:
Malba Tahan formou-se como professor primário, depois concluiu o curso de
Engenharia Civil na Escola Politécnica da USP – profissão que nunca exerceu – e
chegou a estudar um tempo numa escola de arte dramática. Durante muitos anos foi
professor em escolas publicas do Distrito Federal, trabalhou na formação de
professores, deu aula para alunos deliquentes numa escola no final da década de
1920. Lecionou História e Geografia e foi catedrático de Matemática no famoso
Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, durante doze anos.
No instituto de Educação do Rio de Janeiro foi professor de Matemática, Literatura
Infantil, Folclore e Arte de Contar Histórias, titulo também de um de seus livros.
83
Nessa obra, escrita para professores, pode-se perceber claramente uma época da
História da educação brasileira com suas tendências pedagógicas e o estilo fluente e
direto de um contador de histórias, aliado a um propósito bastante didático de
oferecer recursos e técnicas uteis para o magistério (MACHADO, 2004, p.186).
Não temos como puxar o fio da teia das histórias no Brasil sem citar o trabalho de
Malba Tahan, que, já na década de 1920, preocupava-se em contar, pesquisar e produzir
materiais escritos sobre a arte de contar histórias. Tahan ressignificou a entrada dos contos
tradicionais na escola, não enquanto perspectiva pedagógica, mas como possibilidade da
educação humanizadora e integral tão buscada na atualidade do contexto educacional. Nos
seus escritos, Tahan nos chama ao mergulho na capacidade criadora e fabuladora presente em
cada um de nós, educar através do sensível.
No puxar o fio para bordar o ponto de cadeia, nos deparamos com a linha matizada de
Rubem Alves (2003, p.12) ao apresentar duas tarefas da educação. A primeira diz respeito ao
conhecimento científico, o currículo formal praticado pelas instituições escolares. Alves nos
traz a imagem de tal conhecimento como sendo o primeiro olho, a legitimada e acolhida nas
escolas.
A segunda tarefa, ou o segundo olho, tem a ver com o despertar das funções anímicas,
do encontro entre conhecimento e deleite, com saborear o mundo e as formas existentes e
contidas nele, conhecer e lapidar o mundo interior que chamamos de alma, compreender a si
para compreender o outro, construindo o impulso de amorosidade, solidariedade,
comprometimento e alegria entre os povos:
Daí a necessidade de se abrir o segundo olho. O segundo olho nos leva à alma dos
seres humanos onde estão adormecidos os sonhos de beleza e bondade. E, como na
história de Aladim, a porta só se abre quando a palavra certa é pronunciada.
“Trouxestes a chave?” A chave é a poesia. A poesia é a palavra que fala a mesma
linguagem do nosso corpo. O Verbo se faz carne: o corpo é a poesia encarnada
(ALVES, 2003, p. 13).
Assim, a obra de Malba Tahan é repleta de imagens para serem vistas através do
segundo olho, o do poético, conhecimento como parte constituinte do amor, das metáforas, da
alegria, da harmonia entre todos os seres enredados na teia da vida. Tahan encontra destino
certo na história dos contadores de histórias, seu trabalho serve de referência para os que se
dedicam à pesquisa das poéticas orais e ao caminho precioso de ouvir e contar histórias.
Por volta dos anos de 1970, pessoas de diversas áreas do conhecimento, em especial
educadores, voltam sua atenção para pesquisas e vivências sobre o ato de contar e ouvir
histórias.
84
Matos (2005, p.17) apresenta-nos a culminância do retorno do contador através da
realização de um Colóquio Internacional, realizado no Musée National des Arts et Traditions
Populaires, em 1989, na cidade de Paris, com trezentos e cinquenta participantes de quatorze
países, que se reuniram para discutir a volta dos contadores de histórias no cenário urbano.
Foram ouvidos os depoimentos sobre a retomada do narrador. Ainda na década 1970, em
Londres, a afegã Amina Shah reunia pessoas para o chá das cinco e costumava narrar histórias
do Oriente. No mesmo período, na França, um estudante de letras, Henri Gougaud, socializou
as lendas de todo mundo através da rádio TSF.
A pesquisadora Gyslaine Matos pontua o movimento de contadores de histórias
realizado na França, ao dizer:
Na França, primeiro país em que tomei contato com esse movimento, nos anos
1980,contos e contadores mostravam seu vigor em diversas formas de manifestação.
Espetáculos semanais de contadores de histórias eram oferecidos a um público cada
vez maior e mais interessado; reedições e novas publicações sobre o tema apareciam
com frequência nas livrarias; festivais regionais e internacionais de contadores de
histórias eram realizados em várias cidades; oficinas de formação e de
aperfeiçoamento destinadas a contadores de histórias proliferavam, e a publicação de
duas revistas especializadas: a Ouïrdire, Bulletin du collectif – contes des
bibliothèques municipales de Grenoble, fundada em 1981, e a Dire, editada a partir
de 1987 pela Association pour la Promotion de la Culture Orale e publicada pelo
Centre National de Lettres – Paris, eram a confirmação de que os contadores de
histórias tinham vindo para ficar (MATOS, 2005, p.19-20).
No Brasil, o reaparecimento do contador urbano ocorreu nos anos de 1980, através de
iniciativas individuais e coletivas de pessoas desejosas em semear as narrativas. Em alguns
casos, o início se deu em espaços em que a palavra encontrava possibilidades de fluir, há
notícias de impulsos do contar e ouvir em bibliotecas, universidades, escolas, e demais
espaços onde a palavra encontrasse abrigo.
No livro Acordais: fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias, Regina
Machado registra sua experiência como contadora de histórias e fala sobre sua trajetória de
pesquisa na área e o consequente comprometimento com o narrador e as narrativas. O relato
remonta ao início da década de 1980:
Os contos entraram na minha história no início da década de 1980, e desde 1984
meu trabalho foi ganhando contorno mais preciso no curso de Especialização em
Arte e Educação que coordenei na Escola de Comunicações e Artes da universidade
de São Paulo, durante 16 anos. Em torno dessa ideia de formação que chamo de
teórico-poética, desenvolvo minha pesquisa na Universidade. Não me considero
acadêmica de gabinete, ao contrario, tenho necessidade de ver as palavras pularem
do papel e se mexerem dentro das pessoas, de preferencia na vida de todos os dias
[...]
Ao mesmo tempo, tornou-se importante compreender melhor esse material com que
estava trabalhando. Afinal, do que trata a arte de contar histórias? Como esses
85
contos desabrocham dentro das pessoas? Então o segundo eixo da pesquisa trata da
arte de narrar. Do mesmo modo que a melhor forma de aprender sobre natação é
entrar na agua e nadar, tive de aprender a contar histórias para compreender minhas
perguntas. Fui descobrindo devagar o que um contador de histórias precisa saber,
que recursos internos e externos tem de buscar, como reconhecer bons contos
(MACHADO, 2004, p.14).
Na década de 1990, em Belo Horizonte, começaram a surgir grupos de contadores de
histórias organizados pela Biblioteca Pública Infantil e Juvenil, além de um Festival de
contadores, “Os melhores contadores de histórias”, promovido também pela Biblioteca acima
citada no ano de 1992 (MATOS, 2005, p.20). Temos notícias de muitos encontros e festivais
sobre a arte de contar. Sisto (2012, p.64-65) nos traz um panorama:
Havia ainda, há mais de dez anos, uma serie de festivais de contadores de histórias
em vários países. Em Buenos Aires, ainda há o Encontro Argentino e Latino-
Americano de Narração oral, como parte da Feira do Livro de Buenos Aires e havia
o Festival Nacional de Narração Oral. O Festival das Ilhas canárias, em Tenerife,
mais precisamente, no povoado de Los Silos – Festival Internacional do Conto – é
um dos mais antigos e costuma reunir contadores de vários partes do mundo,
mobilizando uma grande parcela da população local. Lá também atuavam (e ainda
atuam) ótimos contadores, como Ernesto Rodríguez Abad e Ruth Dorta.
Os Festivais, encontros, cursos e escolas espalhadas pelo país e pelo mundo também
se multiplicaram. No Brasil, em especial, o Simpósio Internacional de Contadores de
Histórias (SESC do Rio de Janeiro), o Boca do Céu (SESC São Paulo), o Seminário
A arte de contar histórias (Feira do Livro de Porto Alegre), o Seminário
Internacional de Contadores de Histórias (Jornada nacional de Literatura de Passo
Fundo) e o Instituto Aletria (Belo Horizonte- MG) continuam atraindo um enorme
público e reunindo os profissionais e os futuros profissionais da área.
Um redescobrir da arte de contar histórias nos espaços urbanos, diversas pessoas de
diferenciadas áreas do conhecimento se voltam para a prática milenar e ancestral de narrar,
cada vez mais há o crescente interesse em oficinas, cursos, disciplinas e até pós-graduação
sobre a temática. Contadores individuais ou em grupos semeiam a palavra em bibliotecas,
hospitais, praças, aniversários, escolas, livrarias e demais espaços receptivos à voz e à
performance do novo contador.
Em Belém do Pará, cidade lócus desta pesquisa, também temos muitas histórias para
contar sobre a figura do narrador, muitos dos contadores que hoje atuam no circuito acima
citado beberam na fonte da oralidade, fato comprovado pelos próprios contadores ao
partilharem suas memórias, a imagem do idoso narrador (avós, vizinhos, tios etc.) geralmente
é trazida.12
“Na Amazônia, contam-se histórias nas esquinas, nas portas, nas calçadas, nos bancos,
e quanto mais se adentra a mata ou se abeira o rio, mais o repertório se enriquece e se
12
Ver página 14 da introdução sobre a memória de infância da pesquisadora.
86
avoluma” (FARES, 2010,p.90). Aqui se cultivou por longos anos o hábito de reunir-se nas
portas das casas para contar e ouvir histórias. Até meados da década de 1990, ainda podíamos
encontrar nos bairros periféricos as cadeiras dispostas em círculo na porta das casas, famílias
inteiras e vizinhos eram cobertos pelo manto de histórias ricamente bordado pelo sereno das
noites quentes de Belém.
Em Duarte (2008, p.56), em sua dissertação de mestrado intitulada Memórias
(in)visíveis: narrativas de velhos sobre suas infâncias em Belém do Pará (1900-1950),
ouvimos a história de Dona Corila, de 93 anos, sobre as rodas de conversas noturnas: “Havia
história à noite, a gente via aquelas velhinhas, aquelas cozinheiras que sentavam na frente das
casas pra contar histórias. A gente fazia aquela roda pra ouvir história”.
O ritual de ajuntamento era prazeroso a ponto de ter lugar cativo na memória dos que
viveram de forma mágica e intensa a cultura da conversa. No entanto, Dona Corila acrescenta
em seu depoimento memorialístico o duro golpe sofrido pelas rodas de conversas noturnas, ao
citar a proibição imposta pelo Código de Postura da administração municipal, criado em 1900,
para disciplinar os habitantes.
A inserção do Código de Postura fazia parte de uma ampla campanha de
modernização da cidade com normas rígidas e punições aplicados aos que desobedecessem.
Situações do cotidiano que fossem contra o projeto de urbanização vigente eram proibidas e
banidas. Entre as práticas que passaram a sofrer as sanções por parte das autoridades, foram as
conversas noturnas entre familiares e vizinhos, nas portas das casas. A proibição está no
artigo 110 do Código de Postura do Município de Belém, de 1900.
Num lugar chamado Amazônia, a tentativa de “civilizar” o narrador e as narrativas é
tarefa nada fácil! Eles estão presentes entre nós até hoje reinventando jeitos, características,
repertórios, performances de acordo com as territorialidades e temporalidades. Ainda hoje, no
século XXI, encontramos contadores tradicionais em Belém espalhando a palavra nas
calçadas, casas. Para nosso contentamento e profunda felicidade, os encontramos em diversos
recantos da Amazônia como testemunho vivo da força da palavra.
3.7.1. Ponto de cadeia – A oralidade e o narrador em Belém
O surgimento da pesquisa, ora apresentada, ocorreu a partir do encontro com um
desses contadores na Ilha Grande/Belém. Seu Simeão, morador da ilha, é reconhecido pelas
crianças da Unidade Pedagógica São José como um contador de histórias. No caminhar da
87
pesquisa, em contato com outros moradores de diversas idades, a mesma referência foi dada.
Seu Simeão é o contador.
Nos espaços urbanos, encontramos várias iniciativas de pesquisas e trabalhos voltados
para o Contador e as histórias, citaremos apenas algumas.
Em 1981 em Belém, Paulo Nunes, Josse Fares e Ciro Pimenta, professores de Língua
Portuguesa, criaram no Colégio Estadual Deodoro de Mendonça o grupo lítero-musical Mãos
Dadas, para semear a literatura aos alunos, através da arte, celebrar a palavra e tornar
prazeroso o contato dos alunos com a leitura literária.
Na década de 1990, a Universidade Federal do Pará, através da disciplina Mito e
Literatura, vinculada ao curso de Letras, inicia um trabalho de recolha de narrativas orais,
coordenado pela professora Socorro Simões. Do trabalho com o acervo, surgiram, no segundo
semestre de 1993, os contadores de histórias itinerantes, juntamente com o Projeto Integrado
IFNOPAP (O Imaginário nas Formas Narrativas Orais Populares da Amazônia Paraense),
com o intuito de recolher as narrativas, criar um acervo para disponibilizar a alunos e
professores.
Em 1997, a Prefeitura Municipal de Belém, por meio da Secretaria de Educação/
Coordenadoria de Esporte, Arte e Lazer e UNICEF, implantou o Projeto “O contador de
histórias”, com o objetivo de levar contadores às Escolas, Unidades de Educação Infantil e
Unidades Pedagógicas.
No final de década de 1990, precisamente em 1999, a Universidade do Estado do Pará
começa um projeto de extensão, coordenado pela professora Renilda Rodrigues Bastos,
intitulado Griô, alunos do curso de Formação de Professores participavam de reuniões
semanais de estudos e vivências sobre o contar histórias.
No início de 2000, na Escola Municipal Terezinha Souza, localizada na Castanheira,
bairro periférico de Belém do Pará, foi iniciado um projeto de formação do grupo infantil de
contadores de histórias TUERARUP (significa “para sempre” na língua Tembé), que nasceu a
partir de um projeto maior: “A Ciência do povo na escola”, pensado no início do ano letivo,
por duas professoras do Ciclo básico II da escola, Ana Cristina Ramos e Andréa Cozzi. Tal
instituição de ensino está localizada na Castanheira, bairro periférico de Belém do Pará.
Estendemos um pouco os pontos deste último bordado, por se tratar de uma
experiência inaugural com a formação de crianças contadoras de histórias e por eu estar
diretamente envolvida no projeto que mudou o curso dos ventos em meu trajeto pessoal e
profissional. Por esta razão, o que aqui chamamos de ponto de cadeia começa a formar uma
argola e introduzir a agulha nesta história de vivências e mudanças.
88
A proposta inicial do projeto era trazer para a sala de aula as narrativas que invadem o
imaginário popular da comunidade da Castanheira e, assim, do amazônida. O grande desafio
era trazer para a sala de aula as narrativas. Após o período de contação de histórias, que durou
aproximadamente um mês, as crianças foram orientadas a buscar na comunidade outras
histórias. Em pouco tempo, as duas classes passaram a conhecer e a socializar com os colegas
as histórias narradas por seus vizinhos, pais e avós.
Todas as histórias foram transcritas pelos alunos, sob a orientação dos professores,
dando origem ao livro texto Histórias Pai d’égua, que expressa, em mais de 50 histórias, o
imaginário popular da comunidade da Castanheira. O livro-texto passou a ser trabalhado
sistematicamente, não apenas na disciplina Língua Portuguesa, como nas outras áreas do
conhecimento. O fascínio das crianças ao lerem e discutirem as histórias contribuiu para que a
coordenação do projeto repensasse os novos caminhos a serem seguidos. Aquele era o tempo
de concluir que o projeto tinha que atingir alunos dos outros ciclos de estudo, através da
contação de histórias.
Em pouco tempo, o grupo de contadores de histórias começou a estruturar-
se democraticamente. Todos os encaminhamentos foram retirados em assembleias dos alunos
envolvidos no projeto. As crianças passaram a apreciar todo o universo de encantamento
amazônico, nossa ancestralidade indígena é contada e cantada pelos pequenos contadores. O
uso de cocares nas contações, bem como o nome do grupo TUERARUP (“para sempre”),
aprendemos com os Tembé, que, apesar do pouco contato, foram presença forte e constante
para nós. As histórias narradas constituíram um movimento de resistência e reversibilidade,
contribuindo para a circulação das narrativas.
Nas contações, além das histórias, introduzimos poemas e músicas de ritmos
amazônicos como carimbó, toadas de boi e cantos indígenas, os instrumentos foram
confeccionados com elementos da floresta (sementes, cipós, troncos de árvore etc.).
No início de 2001, o grupo de contadores de histórias estava formado por 15 alunos,
entre 07 e 12 anos, ou seja, de vários ciclos, e dois professores que, inicialmente, se reuniam
aos sábados pela manhã, sendo deslocadas as reuniões para as quintas-feiras após o término
das aulas. Em menos de dois anos, a contação de histórias, antes restrita à escola, foi levada
para outros espaços (feiras de livros, encontros de educadores, abertura de congresso, outras
escolas etc.).
Os alunos anteriormente com dificuldades na leitura e escrita, agora, estavam
organizados em um grupo de contadores infantis de histórias, revelando nossa identidade em
forma de arte, a arte da palavra falada e escrita. As coletas de histórias proporcionaram o
89
prazer de editarmos, mesmo que artesanalmente, três livros, que foram usados como
referência para atividades em turma, e a produção do jornal da escola, o Cheiro do Pará, com
artigos, entrevistas, poesias, produzidos por alunos, pais e professores. Houve também a
premiação de três crianças do grupo no Prêmio Escrevendo o Futuro, da Fundação Itaú Social,
nas categorias poesia, reportagem turística e texto de opinião.
No final de 2002, realizamos, na própria escola, o I Encontro de Contadores Infantis
de Histórias, com a presença de três grupos infantis de contadores formados a partir da
experiência do TUERARUP e do grupo Griô, da Universidade do Estado do Pará. O momento
foi de troca de saberes, afetos e muitas histórias. Neste momento, já contávamos com a
participação de duas coordenadoras pedagógicas da escola, Sônia Situba e Eliene Seabra, e da
assistente administrativa Vanja Silva.
Na primeira metade da década de 2000, observamos um aumento considerável de
contadores de histórias em todo o Pará, especialmente em Belém, espaços foram abertos para
receber vozes e ouvidos, como as Livrarias Jinkings, através do Clube do Menino
Maluquinho, Fox, Saraiva, em que, semanalmente, aos sábados, há a presença de contadores
de histórias, o SESC, a Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, o Mangal das Garças, a
Estação das Docas, Casarão dos Bonecos, Biblioteca Pública Avertano Rocha, por meio do
Projeto “Buca da nuite”, além de outros. Em hospitais, também são reservados momentos
dedicados ao ouvir e contar histórias.
Em 18 de abril de 2011, um ajuntamento de contadores de diversos grupos, ou os que
fazem trabalhos individuais, firmou parceria para a formação do Movimento de Contadores de
Histórias da Amazônia/MOCOHAM, com os seguintes objetivos iniciais:
Realizar o I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia, a fim de iniciar um
fórum de discussões sobre a arte de contar histórias na região, por meio de palestras,
mesas-redondas, relatos de experiências, rodas de histórias etc., congregando
contadores, arte-educadores, pesquisadores, professores, alunos e público em geral que
se identifiquem com a arte de contar de histórias e sua importância para a
sensibilização da sociedade contemporânea, suas inúmeras possibilidades e
potencialidades;
Construir uma cartografia dos múltiplos agentes sociais envolvidos na arte de contar
histórias na Região Amazônica; e
90
Promover a troca de experiências no âmbito do trabalho com a contação de histórias
entre os educadores, mantendo discussões permanentes para incorporar e ampliar nos
espaços educativos.
Figura 18 – Logomarca do Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia/MOCOHAM
Em 20 de março de 2011, dia comemorado internacionalmente como o do contador de
histórias, foi dado o primeiro passo de ação do Movimento de Contadores de Histórias da
Amazônia, com a realização do I Festival Pororoca de Histórias, ocorrido no Cine Líbero
Luxardo, da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves/CENTUR, com alunos, professores e
público em geral de cerca de 100 pessoas. Entre os objetivos do Festival, estavam:
Promover o movimento de contação de histórias com educadores e alunos das redes
pública e particular de ensino e demais interessados;
Marcar o Dia Internacional do Contador de Histórias;
Reunir contadores de histórias em seu ofício essencial de narrar histórias; e
Disseminar a prática da contação de histórias entre educadores e público em geral.
Nos dias 01 e 02 de dezembro do mesmo ano da formação do MOCOHAM, foi
realizado, em parceria com a Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves, o I Encontro de
Contadores de Histórias da Amazônia, intitulado “Mergulhar na memória, revolver histórias”,
com um público heterogêneo estimado em 400 pessoas participando ativamente de palestras,
bate-papos, mesas redondas, oficinas e rodas de histórias.
91
Figura 19 – Cartaz do I Encontro de Contadores de Histórias da Amazônia
Nos dias 20 a 22 de março de 2013, acontece a segunda edição do Encontro, que
excepcionalmente ocorreu concomitante com o II Festival Pororoca de Histórias. Foi preciso
ampliar os dias do Encontro e o número de contadores convidados para a programação.
Pessoas que hoje são referências nas pesquisas e vivências sobre a arte de contar histórias
foram convidadas a trocar saberes e experiências, entre elas: Regina Machado (SP), Francisco
Gregório (RJ), Maurício Leite (DF), Josebel Fares (PA), Margareth Marinho (MG), Juraci
Siqueira (PA), Joca Monteiro (AP), Adriana Cruz (PA), Paula Velozo (AC), Joana Martins
(PA), Marluce Araújo (PA).
O Encontro, a partir de então, passou a ser intitulado “Nem te Conto – Um encontro de
muitas vozes”, o número de participantes entre o Festival e o Encontro saltou de 400 para
1000 pessoas na segunda edição. O crescente interesse pela arte de contar histórias foi um
indicativo para o aumento do público.
Figura 20 – Cartaz do II Festival Pororoca de Histórias
92
Figura 21 – Cartaz do II Encontro de Contadores de Histórias
Congregar e fortalecer o movimento das histórias aqui na Amazônia foi o desejo de
vários contadores que doaram seu tempo e disposição para realizar um momento importante
para os que creem no poder da palavra e na sua capacidade de transformações. As palavras de
Regina Machado, uma das contadoras de histórias participantes do encontro, traduzem o
sentido da necessidade dos ajuntamentos entre os contadores e os ouvintes:
A natureza fundamental da narração viva de contos é justamente essa qualidade
especial de encontro entre as pessoas. Tenho vontade de defini-la como uma troca de
significações “à moda da eternidade”. Uso a palavra eternidade para falar de um tipo
de situação que nunca sai de moda, por assim dizer. Como, por exemplo, a
contemplação do fogo. Imagino que, desde sempre, toda vez que um ser humano se
senta à beira de uma fogueira numa noite escura e pra pensar em circunstâncias
exteriores, deixando-se entreter pelo vaivém das labaredas, alguma coisa especial
acontece. Não é por acaso que o momento de contar histórias está ligado na nossa
memoria como a presença de algum tipo de fogo (MACHADO, 2004, p.34).
Ao terminar o bordado com as imagens dos contadores de histórias espalhados pelo
mundo, podemos ver diferenciados pontos e nuances matizadas, cores diversas e vibrantes. E
o resultado final? O fiar e tecer o manto para então bordar foi um trabalho árduo, foi preciso,
tal como Penélope, tecer de dia e destecer à noite, perceber pontos que antes pareciam do
nosso conhecimento, mas, ao enfiar a linha na agulha e tentar reproduzir, observamos que a
delicadeza dos pontos tinha que vir acompanhada de movimentos firmes e precisos. Aqui
apresentamos o manto agora bordado, com a utilização de muitos fios que ajudaram na
escolha do tecido, bastidor, agulhas, desenhos do bordado e os pontos.
93
Perde-se porque já não se tece e fia, a afirmação foi feita por Walter Benjamim,
teórico do século XX, já citado aqui, que se preocupou em pesquisar o papel do narrador
frente à modernidade. Benjamim associou o ato de narrar ao tecer, as histórias aos fios. A
metáfora é apropriada, pois quando falamos em narrativa nos referimos a enredo, trama, fio da
meada, novela (novelo). A trama é tecida pelos fios de vida do contador de histórias, cabe a
cada um de nós encontrarmos o fio da meada e enredar-se na grande teia de histórias da vida.
Tecer e fiar histórias nos tempos atuais ainda é possível? A resposta é um sonoro sim!
“É nesse caos de começo de milênio que a imaginação criadora pode operar como
possibilidade humana de conceber o desenho de um mundo melhor. Por isso, talvez a arte de
contar histórias esteja renascendo por toda parte” (MACHADO, 2004, p.15). O desejo em
redescobrir o narrador e sua arte reflete a retomada do homem em religar os fios com uma das
mais essenciais formas de comunicação humana: a voz.
94
4. Riscos do bordado: ensaio cartográfico dos saberes e práticas educativas da Ilha
Grande
Aqui o tempo é outro. Nosso tempo não é o mesmo, o rio é quem
manda!
Professor da UP São José, Ilha Grande.
4.1. Pesponto1 – Os desenhos da cartografia
É possível ouvir as vozes do rio e da mata? Quem já atravessou os rios da Amazônia e
se deixou emaranhar no novelo das suas águas há de nos contar tudo o que ouviu da mata e do
rio. Os segredos começam a ser ditos pelo rio tão logo embarcamos no popopô. Aos que não
sabem, este é o nome dado pelos nativos à pequena embarcação amplamente utilizada na
região e que tem um som peculiar e proveniente do motor que a faz funcionar. O som das
águas do rio indo ao encontro do casco da embarcação é também outra forma de nos falar. E
os ventos? Eles parecem não ser dados ao silêncio. Os ventos daqui entram no diálogo
ritmado ao incidirem nas lonas usadas para aplacarem as chuvas que costumeiramente
chegam nesta região.
Ao aportarmos, outros sons ocupam os espaços do não silenciar na Amazônia, é a
mata pedindo vez e voz. Os ventos novamente entram em cena ao tocarem nas folhas das
árvores, produzindo, do encontro de galhos, folhas, frutos e troncos, uma espécie de assovio.
Animais trazem suas vozes para o concerto abrolhando melodias múltiplas.
Essas são as vozes geralmente percebidas aos que cruzam o continente rumo à região
insular, sons que compõem indubitavelmente este espaço e que, muitas vezes, são tidos como
exóticos, fazem parte da exuberância de um lugar que, desde a chegada dos primeiros
navegantes, é alvo de olhar parcial, preconceituoso ou alegórico. Conforme somos
esclarecidos por Fares (2008b, p. 23),
Nas narrativas dos primeiros cronistas viajantes da América – especialmente das
regiões tropicais – há uma tendência a alegorizar alguns aspectos do território, com
finalidades comerciais, sem se importar com os demais elementos.
Certamente, não podemos desconsiderar os elementos constituintes do meio e do
modo de vida ribeirinho, o contato do homem com a diversidade da fauna e da flora
amazônicas foi determinante para a formação das culturas aqui encontradas, mas há vozes
1 Pesponto: costura pelo lado direito da roupa em cima dos pontos feitos pelo lado do avesso.
95
silenciadas neste curso de rio, sons que atravessam temporalidades e territorialidades e
mostram-se indizíveis no percurso tantas vezes feito.
Os contornos do mapa, iniciado através dos registros feitos durante esta pesquisa no ir
e vir entre a Belém continental e a insular, buscam uma composição cartográfica a partir das
vozes silenciadas, das narrativas orais contadas por um morador idoso, referendado pela
comunidade e, particularmente, pelos alunos da Unidade Pedagógica São José como narrador:
Seu Simeão Monteiro.
Para a construção cartográfica de saberes e práticas educativas da Ilha Grande, serão
trazidas para compreensão de sua feitura as pesquisas feitas por Fares (2003) à luz de
Zumthor (1994), Barbero (2004), Cowan (1999), Deleuze e Guattari (1995).
Zumthor (1994, p.304) nos diz que a cartografia é anterior à escritura e expressa o
desejo universal de representar o lugar em que se vive, desenhos traçados, iconizados a partir
da necessidade de fixar distâncias, pontos peculiares, fronteiras e o que mais for tido como
importante de conceber através dos ícones. Fares (2008, p.25) estabelece itens tantas vezes
ignorados ou que passam despercebidos nos mapas: os registros culturais, a forma como os
povos se veem e se organizam em cada localidade:
O mapa objetiva a terra concreta e constitui importante registro cultural. Neste
sentido, o conjunto de seu contexto é como um holograma, em que cada um dos
pontos contém informações do todo. Este ícone arquiva conhecimentos de um grupo
humano, memoriza a história, articula os espaços em uma globalidade, projeta e
direciona um itinerário. Renega o nômade, toma partido pela estabilidade.
A carta é um signo que tem uma lógica própria, é instrumento de referência e
mensagem, que remete mais a representação condicionada pelas tradições culturais,
que a própria realidade espacial. Como texto, o mapa exige ao mesmo tempo uma
leitura e uma interpretação e atua sobre a imaginação de quem o consulta.
Do que nos serve fazer uma cartografia das vozes dentro daquele espaço chamado Ilha
Grande? Qual a troca necessária e urgente que essas vozes nos entregam e ao mesmo tempo
esperam ter dos que as escutam? O que sonhamos cartografar na Ilha Grande se perdeu das
malhas do mundo objetivo, obstinado pelo que se pode ver de imediato e quer se manter vivo
enquanto saber que não se faz em laboratórios ou não pede para ser tão previsível. E é assim
que, em consonância com o pensamento de Cowan (1999, p.28-29) e dos demais estudiosos
em cartografia, aportamos o desejo de mapear os saberes da Ilha Grande, pois:
Cada lugar que gravo em minha mente me conduz a uma terra imaginária. Estou à
procura de novas ideias e visões. Não quero afirmar o que já sei. Cada mapa que
desenho é feito tanto com as informações que recebi de visitantes à minha cela,
quanto com as minhas próprias ideias, inspirados por seus conhecimentos e,
frequentemente, por seus comentários precisos e fantásticos. De maneira estranha,
entretanto, me encontro vivendo na presença do que para eles já é passado.
96
Conversando comigo, eles podem relembrar tudo o que tinham pensado estar
completamente perdido [...] Estudamos os mapas que nossos olhos gravaram no
coração de cada um. Juntos, cartografo e aventureiro discutem sobre distâncias e
rotas sabendo, silenciosamente, que nada mais são do que diversão, pois o que
estamos tentando é dar um sentido a conhecimentos disparatados. Somos iguais ao
remo e à cavilha, tentando determinar a medida do poder de cada um, mesmo que
saibamos que estamos viajando em direção ao mesmo destino.
Quanto de fuga da objetividade cabe no que aqui chamamos de cartografia de saberes
e práticas educativas da Ilha Grande? Para o proposto, é preciso saltar de uma ponte
construída por longos anos e que separa os saberes populares dos saberes científicos. E, para
ganhar força necessária ao que está sendo pretendido, ouvimos com atenção a voz de Brandão
(2002, p.24), que nos diz dos ―mapas simbólicos‖ construídos a partir das experiências dos
grupos:
A cultura configura o mapa da própria possibilidade da vida social. Ela não é a
economia e nem o poder em si mesmos, mas o cenário multifacetado e polissêmico
em que uma coisa e a outra são possíveis. Ela consiste tanto de valores e imaginários
que representam o patrimônio espiritual de um povo, quanto das negociações
cotidianas através das quais cada um de nos e todos nos tornamos a vida social
possível e significativa.
O desejo de dizer de si e do espaço vivido refaz e recria a noção de mapeamento a que
fomos acostumados a conceber, e chegam até nós outras vozes dos pesquisadores que se
aventuram em longos voos capazes de expulsar os pés do chão e chegam até nós ampliando
conceitos e transitando por territórios antes pouco percorridos.
Para cartografar os saberes e práticas educativas da Ilha Grande, precisaremos aguçar
os sentidos, estar porosos para ouvir as histórias contadas e recontadas pelos moradores.
Entrelaçados em redes, os símbolos e sentidos, que representam as histórias, são experiências
de comunicação entre grupos. Sendo assim, são experiências de cultura, mediadas pela
oralidade. Ouvir tal acervo envolve a percepção da complexidade, das tensões em se vê a
história a partir de outra ótica, a do saber múltiplo. A proposição é ―enredar‖ os saberes entre
universidade-comunidade-escola, partindo da disposição rizomática do conhecimento
desenvolvida pelos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995, p.33):
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as
coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança, unicamente
aliança. A árvore impõe o verbo ―ser‖, mas o rizoma tem como tecido a conjunção
―e... e... e...‖ Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo
ser.
A compreensão da multiplicidade de conhecimentos envolve a mudança do
pensamento, centrado como unidade principal, exercendo o controle rígido sobre os demais
97
saberes. A proposição do sistema rizomático surge para nortear a construção dos mapas dos
saberes daquele lugar de encantarias com seus contornos reversíveis, desmontáveis, passíveis
de espaços de entradas e fugas. Afinal, nos alerta El Khouri (2015, p.1):
Trata-se, portanto, de uma valorização da experiência sensível, daquilo que é vivido
individualmente, em que não se enquadram conceitos puros, rígidos. Em Deleuze, o
conceito expressa um acontecimento, e não uma essência. Ele reflete multiplicidades
criadas a partir da experiência, e não uma verdade única. E devem ser os conceitos
utilizados como ferramenta de reflexão.
Para o entendimento do sistema rizomático aplicado ao conhecimento filosófico e
epistemológico, acreditamos ser necessário entendermos o conceito de rizoma sob a égide dos
estudos biológicos:
Em botânica, chama-se rizoma a um tipo de caule que algumas plantas
verdes possuem que cresce horizontalmente, muitas vezes subterrâneo, mas podendo
também ter porções aéreas. O caule do lírio e da bananeira são totalmente
subterrâneos, mas certos fetos desenvolvem rizomas parcialmente aéreos. Certos
rizomas, como em várias de capim (gramíneas), servem como órgãos de reprodução
vegetativa ou assexuada, desenvolvendo raízes e caules aéreos nos seus nós.
Noutros casos, o rizoma pode servir como órgão de r e s e r v a d e
e n e r g i a , n a f o r m a d e , t o r n a n d o - s e t u b e r o s o , m a s c o m u m a
estrutura diferente de um tubérculo.2
Para a botânica, o rizoma é uma estrutura encontrada em algumas plantas cujo caule
cresce horizontalmente interligado por pequenos brotos quase sempre subterrâneos, porém em
algumas espécies encontramos ramificações aéreas. As plantas com essas características
apresentam a estrutura descentralizada, ou a-centrada, sem uma única raiz, um eixo-tronco
que dê a sustentação. As conexões do rizoma fortalecem a planta, proporcionando resistência
frente a situações adversas ao beneficiar-se das ligações, por exemplo, com seus domínios
mais extensos e heterogêneos. Isso permite que uma parte da planta seja beneficiada caso
ocorra falta de água, pois a outra parte do rizoma pode suprir a carência caso esteja mais
próxima do líquido.
As gramas da família das gramíneas (Gramineae) são uma das mais conhecidas
representantes das plantas rizomáticas. De estrutura simples, utilizam o rizoma para
reprodução e são nutridas pelo mesmo até poderem sobreviver sozinhas. Caso necessitem da
mudança de espaço, são plantas fortes, adaptam-se às intempéries em locais que outras
encontram dificuldades para se estabelecer. Esse tipo de vegetal estende-se a grandes e
diferenciados territórios, como savanas, estepes, pradarias etc. As características apresentadas
2 Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em <http://www.wikipedia.org/rizoma>.
Acessado em Janeiro, 2014.
98
demostram dentro da botânica a importância das plantas com a estrutura do rizoma, que são
resistentes, preenchem as ausências no solo, crescem entremeio de outras espécies, no
―intermezzo‖ das coisas, constituidoras de relações de cooperação entre os diversos
segmentos que a compõem, cada parte possui sua importância indispensável dentro da
organização do sistema.
Deleuze e Guattari (1995) partiram do conceito biológico de rizoma para propor a
teoria da multiplicidade, contrária à lógica dicotômica que ancora o sistema totalitário,
validado pelos polos antagônicos bom/mau, dominadores/dominados, perfeição/imperfeição e
assim por diante. A ideia de raiz centrada remete ao totalitarismo que inicia e encerra em si
mesmo, excluindo o que se localiza ao redor, a sua margem. Assim:
Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das árvores ou de
suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer e cada
um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe
em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos
(DELEUZE, GUATTARI,1995, p.31).
Eis a imagem do rizoma em consonância com a definição proposta anteriormente.
Nela, podemos observar que um ponto se conecta a outro, se entrelaça e forma o que aqui
chamamos de teia de saberes:
Figura 22 - Rizoma
Fonte: http://escoladeredes.net/profiles/blogs/rizomas-1
O rizoma, conforme observamos antes, conecta-se de um ponto a outro, privilegiando
as linhas que os ligam, que se encontra no meio. Mesmo quando há rupturas, o rizoma trata de
reordenar o sistema, garantindo a necessária sobrevivência e o crescimento, o que Deleuze e
Guattari chamam de desterritorialização e reterritorialização3. A complexidade é um traço
3 Gilles Deleuze & Félix Guattari trazem no livro Mil Platôs, vol. I, os conceitos de desterritorialização e
reterritorialização. O primeiro conceito envolve a ruptura, o deslocamento, e nesse processo de movimento,
construção e reorganização ocorre a reterritorialização. Os processos são complexos e não acontecem
isoladamente.
99
característico, as conexões, rupturas e reorganizações são constantes, há sucessivos
movimentos de desterritorialização e reterritorialização.
Com o conhecimento, o modelo rizomático traz-nos à reflexão a multiplicidade do
saber, reinventando a lógica hierarquizada do conhecimento arbóreo, centrado nas
instituições, contrariando tal organização epistemológica, não há uma instituição ou um único
saber que funcione como eixo, e sim uma rede que pode ser acessada de vários pontos do
sistema, rompimentos de fronteiras entre saber popular e saber científico dialogam na
proporção que o pesquisador amplia seu olhar e se entrelaça no cotidiano, nos processos
envolvidos no foco da pesquisa. E mais uma vez El Khouri (2015, p.6) nos esclarece:
Entender a educação na perspectiva rizomática, seja na escola ou na universidade,
como um campo de construção de conhecimento, requer, sobretudo, a compreensão
de que existem diversas formas de conhecimento, e que elas dialogam entre si dentro
de contextos históricos e sociais. Os conteúdos abordados criam conexões múltiplas
com elementos de outros campos do saber. Mito, ciência, filosofia, artes, religião e
senso comum se comunicam entre si e estabelecem redes interligadas de construção
de conhecimento. Mesmo as ciências naturais, como a matemática, estabelecem
relações com saberes de outras áreas, como as ciências humanas.
Deleuze & Guattari (1995), a partir desse pressuposto, estabelecem as bases teóricas
para o trabalho cartográfico, uma vez que na obra Mil Platôs não encontramos em si a
aplicação metodológica, mas a partir dos estudos sobre o sistema rizomático diversas áreas do
conhecimento voltam-se para a construção da cartografia a fim de conectar o pesquisador ao
objeto de estudo, atendendo as necessidades de repensar os possíveis caminhos do fazer
científico.
A cartografia de saberes e práticas educativas através da voz dos moradores da Ilha
Grande surge como um caminho metodológico possível para legitimar conhecimentos que
margeiam as instituições, em especial, a escolar. O mapeamento tem os contornos desenhados
sob o signo da multiplicidade, a escola não é o centro, os saberes que estão ao seu redor se
retroalimentam através das linhas que formam as redes que compõem os conhecimentos
contidos na comunidade, ―o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído,
sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas,
com suas linhas de fuga‖ (DELEUZE, GUATTARI, 1995 p.32).
A maleabilidade apresentada pelo método cartográfico de forma alguma pode ser vista
como negativa, sem a seriedade investigativa, o estudioso adentrará no campo da pesquisa
com o olhar da diversidade, com atenção voltada também para o que está no meio ou nas
margens, nas múltiplas entradas ou saídas, características do sistema rizomático. Tal
pensamento é trazido por Kastrup (2009, p.07):
100
Essa reversão consiste numa aposta na experimentação do pensamento – um método
não para ser aplicado, mas para ser experimentado e assumido como atitude. Com
isso não se abre mão do rigor, mas se é ressignificado. O rigor do caminho, sua
precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo,
de que fala Canguilhem4. A precisão não é tomada como exatidão, mas como
compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção.
Não se trata de romper ou desconsiderar o conhecimento instituído, mas alinhavá-lo
com a participação intensa de todos os envolvidos, considerando que os fios que compõem a
rede nem sempre são desvelados de início, exigindo a leitura das entrelinhas, no que está
porvir, nos dados ainda não revelados. Por esse motivo, o exercício do cartógrafo envolve não
apenas acompanhar o processo, mas habitar um território investigativo antes não habitado,
ainda conforme afirma Kastrup (2009, p.56):
Sempre que o cartógrafo entra em campo há processos em curso. A pesquisa de
campo requer a habitação de um território que, em princípio, ele não habita. Nesta
medida, a cartografia se aproxima da pesquisa etnográfica e lança mão da
observação participante. O pesquisador mantém-se no campo em contato direto com
as pessoas e seu território existencial.
Kastrup (2009) apresenta pistas na aplicação do método da cartografia com as bases
teóricas no pensamento de Deleuze e Guattari, demandando do pesquisador procedimentos
mais abertos e inventivos. Assim, a cartografia, como estratégia metodológica, aproxima-se
do trabalho etnográfico ao apresentar o caráter processual da investigação, ao mesmo tempo
em que lança o olhar da observação, participa do cotidiano, intervindo na realidade, mas
também sofrendo modificações, sendo imprescindível a disponibilidade do pesquisador para a
diferença, para o novo. Não é possível o fazer cartográfico isolando o objeto das linhas que o
interligam a sua rede histórica, a busca excessiva pelas informações, pelos dados, dará lugar à
abertura do pesquisador ao encontro, por intermédio do acesso às vivências das comunidades.
Ir a campo pressupõe estar junto, vivenciar o cotidiano do grupo, lançar mão da escuta
sensível, que sinalizará, além das informações precisas coletadas, também as observações e
impressões percebidas pelo pesquisador no contato com as múltiplas vozes. Bem
compreendido novamente por El Khouri (2015, p.6):
Os princípios de cartografia e de decalcomania mostram que os rizomas não podem
ser modelados, seguindo estruturas ou assumindo pontos específicos que orientam o
conhecimento. Eles são sempre esboços incompletos. Deleuze e Guattari falam de
mapas. Os mapas norteiam, indicam caminhos, mas também requerem novos traços.
4 Georges Canguilhem, filósofo e médico francês. Especialista em epistemologia e história da ciência. Sua tese
principal é de que a vida não pode ser deduzida a partir de leis físico-químicas, ou seja, é preciso partir do
próprio ser vivo para compreender a vida. Fonte: Enciclopédia On-line Wikipédia. Disponível em
<http://www.wikipedia.org/ Georges_Canguilhem>. Acessado em Janeiro, 2013.
101
Eles expressam algo por vir, um devir. Assim, os mapas podem ser revistos,
rediscutidos, ressignificados, remapeados. Para Deleuze e Guattari não existem
cópias, sobreposições perfeitas de ideias. Existem releituras, recriações a partir de
algo criado. É o que eles chamam de roubo criativo, em que transformamos os
conceitos dos quais nos apropriamos para criar algo novo.
A experiência cartográfica instiga o pesquisador a estar aberto e atento às ocorrências,
a ida ao campo não deve ser norteada apenas pelo roteiro, estrutura das entrevistas etc., há de
se espiar, espreitar, mergulhar, conhecer, escutar a polifonia das vozes acompanhando de
perto os movimentos de vida.
A utilização de um diário de campo, ou diário de bordo, para os que fazem a travessia
é, para Kastrup (2009, p.69), uma prática preciosa por possibilitar ao pesquisador cartográfico
o registro das entrelinhas, das falas significativas, de seu olhar atento sobre o que lhe
contaram, mas também do que viu, ouviu e viveu no campo da pesquisa, como imagens,
memórias, expressões, e o que demais apresentar-se como parte integrante da composição do
mapa a ser construído:
Podemos dizer que para a cartografia essas anotações colaboram na produção de
dados de uma pesquisa e têm a função de transformar observações e frases captadas
na experiência de campo em conhecimento e modos de fazer. Há transformação de
experiência em conhecimento e de conhecimento em experiência, numa
circularidade aberta ao tempo que passa (KASTRUP, 2009, p.70).
Pontuamos ainda sobre os procedimentos adotados na produção escrita dos relatos na
pesquisa cartográfica:
Para a pesquisa cartográfica são feitos relatos regulares, após as visitas e as
atividades, que reúnem tanto informações objetivas quanto impressões que emergem
no encontro com o campo. Os relatos contêm informações precisas – o dia da
atividade, qual foi ela, quem estava presente, quem era responsável, comportando
também uma descrição mais ou menos detalhada – e contêm também impressões e
informações menos nítidas, que vêm a ser precisadas e explicitadas posteriormente.
Esses relatos não se baseiam em opiniões, interpretações ou análises objetivas, mas
buscam, sobretudo, captar e descrever aquilo que se dá no plano intensivo das forças
e dos afetos. Podem conter associações que ocorrem ao pesquisador durante a
observação ou no momento em que o relato está sendo elaborado (KASTRUP, 2009,
p.70).
4.2. Chulear5 – Saberes e práticas educativas arrematadas
Impressões iniciais após a primeira travessia para a Ilha Grande, registradas no Diário
de bordo, aqui chamadas de ―Apanhadores de histórias‖, foram determinantes para a
construção do texto dissertativo.
5 Chulear: é o arremate feito na parte de dentro do pano com o objetivo de evitar que haja o desfiamento.
102
Em posse da compreensão dos registros no Diário de bordo, a pesquisa aporta-se no
entre-lugar, no espaço de articulação que o olhar do pesquisador precisa buscar para ler e
(des)ler os movimentos encontrados no lócus de pesquisa. As anotações assumem um papel
relevante ao trazerem as impressões detalhadas nas falas, no ambiente, nos silêncios, em
pormenores que muitas vezes escapam da memória quando o registro não é feito. Recorto
trechos do Diário de bordo no meu contato inicial com a Ilha Grande:
Os ventos sopraram... Atendemos o chamamento das águas! O barco aportou.
Chegamos para contar e ouvir histórias. O grupo de Contadores de histórias,
Cirandeiros da Palavra, com Rodrigo, o filho do Grilo Falante, Juraci Siqueira, o
filho do Boto e eu, filha dos retalhos das linhas e dos bordados, aprontamo-nos para
a festa das palavras. As crianças foram chegando... Algumas mães sentaram no lado
esquerdo do barracão ao lado da UP São José.
As ações da escola procuram enredar-se com os saberes da comunidade, a observação
foi feita nas atividades propostas pelos professores. No momento, a atenção voltou-se às
turmas do Professor Cecílio, os alunos haviam preparado uma performance, uma cantiga de
bem-querer aos elementos encontrados na Ilha Grande: a água, a mata, os bichos e as pessoas.
Os alunos foram se arrumando, Professor Cecílio dedilhando no violão, as dançarinas,
com suas saias rodadas e floridas, e o seu Mané, apanhador de açaí, estavam prontos, mas
faltava a garota do açaí!
Procurada pelos arredores, pode ser que estivesse a amassar o fruto! Posteriormente,
ela vem, e um coro de pequenos passarinhos solta a voz.
Na Ilha Grande, os alunos acalentam os dias sem que o desencanto tente chegar,
fazendo-nos crer na renovação da vida como as marés do rio-mar que aportam no trapiche da
escola.
A canção de bem-querer dos alunos e alunas chega com a voz do professor dizendo
sobre os elementos encontrados na ilha, conforme se pode observar na Figura 23.
103
Figura 23 – Imagem do Diário de bordo
Os Cirandeiros da Palavra agradeceram fazendo a palavra circular, o filho do Boto
contou as histórias de rio, o filho do Grilo Falante trouxe o conto popular chinês O menino a
sua semente. A Maria-vai-com-as-outras, da Sylvia Orthof, aquela ovelha sem personalidade
própria, deu os ares da sua graça na forma de história contada por mim e ouviu em coro das
crianças:
– Nós conhecemos essa história!! A professora já leu!
Encontrei o livro Maria-vai-com-as-outras no Baú das histórias, projeto da Semec
através do Sistema Municipal de Bibliotecas Escolares, que leva acervo inicial de 300
exemplares de livros literários às Unidades Pedagógicas e Unidades de Educação, espaços que
não possuem bibliotecas escolares.
Como em toda Roda de histórias, a palavra circulou livremente. A literatura oral saltou
e mergulhou na forma de Boto (seria o pai do Juraci Siqueira?), vimos a Cobra Grande que foi
parar na rede de uma moradora, ouviu-se o assovio estridente da Matinta, e sentiu um arrepio,
medo de atravessar o rio e entrar na casa mal-assombrada. Tantas histórias que, assim como
os contadores indígenas, ficaríamos muitas luas a narrar e ouvir:
Histórias moram dentro da gente, lá no fundo do coração. Elas ficam quietinhas num
canto. Parecem um pouco com areia no fundo do rio: estão lá, bem tranquilas, e só
deixam sua tranquilidade quando alguém as revolve. Aí elas se mostram
(MUNDURUKU, 2001, p.7).
104
Brincantes da palavra, a chuva poética caiu encharcando todos nós com poesias de
Cecília Meireles, José Paulo Paes, Vinicius de Moraes, Heliana Barriga, Paulo Vieira, José
Ildone, Juraci Siqueira, entre outros poetas. ―Uma chuva caiu, / duas, três ou muitas mais, / a
mim não importa nada, / nem que volte a chover outra vez...‖ – o Professor Cecílio recheou a
chuva com esse antigo brega, estilo musical bastante apreciado na região, e o filho do Boto,
nosso poeta/trovador/contador/filósofo etc., etc., mandava as advinhas para as crianças, e
assim os livros enviados pela Professora Roseli Sousa foram ganhando novas casas, novos
donos.
A revoada de borboletas brancas, azuis, amarelas e pretas finalizou nossa Ciranda da
Palavra.
Após a Roda de histórias, outro convite. Uma mesa posta, açaí com camarão, farinha
de tapioca, farinha d’água e o almoço como complemento! As merendeiras da Unidade
Pedagógica têm mãos de fada, sorriso aberto e braços que abraçam o mundo.
Rever os escritos do Diário de bordo foi determinante para escolha do objeto de
pesquisa. A cada página percorrida, as vozes eram ouvidas novamente, crianças, desde as bem
pequenas até os adolescentes, contando e ouvindo histórias, forte movimento de oralidade
entre os alunos da Unidade Pedagógica, e chegava aos nossos ouvidos, através deles, a
indicação da pesquisa ora apresentada e dos seus intérpretes:
A identidade de um intérprete manifesta-se com evidência tão logo abre a boca: ele
se define em oposição às outras identidades sociais, que com relação à sua são
dispersas, incompletas, laterais, e as quais assume, totaliza, magnifica (ZUMTHOR,
1993, p.68).
4.3. Ponto a ponto – fios epistemológicos da cartografia
A circulação dos saberes através da memória é o que alimenta a literatura oral,
mantendo-a viva e atravessando o tempo e os espaços. Quase todas as narrativas contadas
pelas crianças na roda de histórias emergem da voz do contador de histórias. Aqui nas páginas
desta pesquisa, ele será chamado de intérprete, termo usado pelo crítico literário e historiador
da literatura Paul Zumthor, para designar os que se utilizam da oralidade com o propósito de
semear e nutrir a memória viva. ―O intérprete é o indivíduo que se percebe na performance, a
voz e o gesto, pelo ouvido e pela vista‖ (ZUMTHOR, 2010, p.239). Ainda sobre o intérprete:
―são os portadores da voz poética [...] os detentores da palavra pública; é sobretudo, a
natureza do prazer que eles têm a vocação de proporcionar: o prazer do ouvido; pelo menos,
de que o ouvido é o órgão‖ (ZUMTHOR, 1993, p.57).
105
O intérprete, o narrador, o contador de histórias, nomenclaturas para dizer dos que
enredam a comunidade pelos fios da voz e que estão presentes entre nós desde os tempos
antigos a testemunharem o poder da palavra dita:
Pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida,
pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço
social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos,
revestida nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela
que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio (ZUMTHOR, 1993, p.67).
No momento inicial da pesquisa, foram ouvidos quatro moradores da Ilha Grande, os
critérios seguiram os requisitos: moradores antigos, localização geográfica da residência do
morador (diferentes pontos da ilha), um morador de outra ilha que tenha relação com a Ilha
Grande, liderança na comunidade. No total, foram ouvidos quatro moradores, aqui
identificados por números, Morador 01, Morador 02, e assim por diante, todos trouxeram
importantes contribuições por meio de olhares, visões de mundo diferenciadas, fios de vida
que se entrelaçaram na rede de conhecimentos encontrada na ilha.
Como intérprete da cartografia da Ilha Grande, já na perspectiva da pesquisa do
Mestrado em Educação, ouvimos a voz de Simeão de Sousa Monteiro, nascido em 05 de
janeiro de 1940, em Itaquá-mirim, que foi morar na ilha ainda criança com a irmã que se
casou com um rapaz também morador da referida comunidade. Seu Simeão tinha um apego
muito grande pela irmã, não conseguiu ficar longe dela após o casamento, passava as férias
escolares na Ilha Grande e depois retornava para casa. A chegada de uma enfermidade na mãe
fez com que ela deixasse o menino Simeão aos cuidados permanentes da irmã.
Seu Simeão é referência na comunidade como o contador de histórias. Visivelmente,
observa-se o prazer em narrar, suas histórias, assim como as de Sheherazade, são contadas em
cadeia, o término de uma é passagem para uma nova. Fazem parte de seu repertório histórias
ligadas ao imaginário amazônico como: Matinta, Uiara, Boto, Cobra Grande e outros seres
encantados da mata e do rio, além das histórias do que viu e viveu ao longo dos seus 75 anos,
memória viva dos fatos históricos da Belém continental e insular. E para um estudo que tem
como proposição a cartografia através das poéticas orais, Seu Simeão tornou-se o intérprete
da pesquisa.
106
Figura 24 – Simeão Monteiro, no momento da performance
A palavra pede passagem pela voz do intérprete. ―A performance é a ação complexa
pela qual uma mensagem poética é simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida‖
(ZUMTHOR, 2010, p.31). Ao ouvir Seu Simeão contar histórias, percebe-se a ação complexa
que envolve a performance: o corpo, a memória e a voz em movimentos interligados na
poética oral. Os gestos, o olhar, os suspiros, os silêncios, a sonoplastia etc., elementos que
compõem a orquestra do narrador oral. ―A oralidade não se reduz à ação da voz. Expansão do
corpo, embora não o esgote. A oralidade implica tudo o que, em nós se endereça ao outro:
seja um gesto mudo, um olhar‖ (ZUMTHOR, 2010, p.217).
O ritual de chamamento de Seu Simeão inicia com ―eu vi, aconteceu comigo...‖,
constatando que na Amazônia o contador narra em primeira pessoa, os fatos são sempre
presentificados pela pessoa que narra ou por alguém muito próximo que igualmente relata o
ocorrido em primeira pessoa. Desde cedo, por essas bandas, aprende-se a gramática do
chamamento para a vinda das encantarias da mitopoética amazônica:
Olha só, essa cobra grande eu já vi três vezes, já vi ela boiar, urrando
parece um boi e boiando duas vezes ali perto da cada da dona Quinha;
ninguém percebeu de lá e nós daqui vimos...
É verdade, eu cansei de ver umas, muita assombração... Quando eu era
solteiro, fui entrando dentro de um igarapé, aí eu ia remando pra ir pra uma
festa, dentro do Carará, sabe o Carará?
107
Então, eu era solteiro, ai fui remando no casco, quando de repente me deu
um assopro, horrível assim, quando olhei assim, um homem todo de branco
na beira do igarapé, olhando pra mim, aí eu fiquei adormecido né, meu
deus, aí continuei remando e ele batendo na beira do casco...
No igarapé aqui eu vi um lobisomem virado num porco, ele queria me
pegar olha, queria no igarapé, mas eu fui sabido, porque ele queria me
pegar numa passagem e eu varei muito mais rápido que ele... Quando ele
chegou na passagem eu já tinha passado...6
Ser escolhido e legitimado como contador de histórias envolve um ―saber-fazer‖, um
―saber-dizer‖ e um ―saber-ser‖, que Zumthor (2010, p.166) atribui à performance de quem
narra:
Performance implica competência. Além de um saber-fazer e de um saber-dizer, a
performance manifesta um saber-ser no tempo e no espaço. O que quer que, por
meios linguísticos, o texto dito ou cantado evoque, a performance lhe impõe um
referente global que é da ordem do corpo. É pelo corpo que nos somos tempo lugar:
a voz o proclama, emanação do nosso ser. [...] A partir desse sim primordial, tudo se
colore na língua, nada mais nela é neutro, as palavras escorrem, carregadas de
intenções, de odores, elas cheiram ao homem e à terra (ou àquilo com que o homem
os representa).[...] É por isso que a performance é também instancia de
simbolização: de integração de nossa relatividade corporal na harmonia cósmica
significada pela voz; de integração da multiplicidade das trocas semânticas na
unicidade de uma presença.
Ao apresentar as narrativas de Seu Simeão para o campo de pesquisa científica,
buscamos trazer para os debates epistemológicos conceitos sobre performance, tradição oral,
corpo, voz, memória e outros elementos fundamentais das poéticas orais, enquanto
enredamento com diversas áreas do conhecimento, como História, Antropologia, Sociologia,
Psicologia, Pedagogia etc., além da tentativa de trazer para o centro das atenções e das
intenções da pesquisa aqui apresentada o fluir do rio das memórias daquele que sabiamente
cumpre o desígnio de ser um dos guardiões da palavra falada, permitindo que a escola e os
demais moradores possam também usufruir de tais águas.
4.3. Contraponto – Ser e saber na Amazônia, tensões e complexidades no desenho do
mapa
Os caminhos percorridos rumo às travessias poéticas da Ilha Grande incidem na
compreensão de parte de uma complexa região chamada Amazônia. Nesse sentido, alguns
conceitos e elementos teóricos chegam à nervura do processo para o nosso entendimento
6 As falas do intérprete estão dispostas no texto em itálico.
108
acerca de tensões, conflitos, negociações dos habitantes da região conhecida desde os tempos
da chegada dos primeiros navegantes como um lugar exótico, isolado, habitado por criaturas
fantásticas, coberta pelo manto do mistério na vastidão das águas dos rios e dos caminhos da
mata.
Adentrar na densa floresta e mergulhar nas águas turvas e barrentas dos rios parece ser
o constante imaginário construído sobre a região, como algo fictício, irreal, uma anomalia da
razão. Durante muito tempo, o conceito de imaginário permeado pelas ciências foi o de
reducionismo e o de desvalorização, pois as ciências naturais privilegiavam a razão como
única possibilidade de conhecimento, mentalidade amplamente observada. Por exemplo, no
século XVII, Galileu e Descartes, pensadores que lançaram o alicerce da física moderna, têm
suas experiências puramente ligadas à racionalidade, aos cálculos e às medidas,
desconsideram o lugar e o papel do imaginário:
A partir do século 17, o imaginário passa a ser excluído dos processos intelectuais.
O exclusivismo de um único método, o método, ―para descobrir a verdade das
ciências‖ – este é o titulo completo do famoso Discurso (1637) de Descartes –
invadiu todas as áreas de pesquisa do ―verdadeiro‖ saber. A imagem, produto de
uma ―casa de loucos‖, é abandonada em favor da arte de persuasão dos pregadores,
poetas e pintores. Ela nunca ascenderá à dignidade de uma arte demonstrativa
(DURAND, 1998, p.12-13).
Para Durand (1998, p.14-15), o pensamento positivista, com as lógicas binárias e
sistemas cartesianos, e a filosofia da História do século XVIII encarregam-se de banir de vez
o imaginário:
As duas filosofias que desvalorização por completo o imaginário, o pensamento
simbólico e o raciocínio pela semelhança, isto é, a metáfora, são o cientificismo
(doutrina que só reconhece a verdade comprovada por métodos científicos) e o
historicismo (doutrina que só reconhece as causas reais expressas de forma concreta
por um evento histórico). Qualquer ―imagem‖ que não seja simplesmente um clichê
modesto de um fato passa a ser suspeita. Neste mesmo movimento as divagações
dos ―poetas‖ (que passarão a ser considerados os ―malditos‖), as alucinações e os
delírios dos doentes mentais, as visões dos místicos e a sobras de arte serão expulsas
da terra firme da ciência.
O imaginário encontrou resistência por se tratar de um traço importante para a vida
humana e a simbolização que dá o sentido ao mundo e as coisas. Com o passar dos tempos,
porém, encontra lugar novamente no campo científico, e pesquisas são feitas para contrapor a
visão racional instaurada sobre a capacidade de criar imagens. Tomamos, para a compreensão
do imaginário, os estudos de Gilbert Durand (1997, p.18), ao dizer que:
o Imaginário – ou seja, o conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o
capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador
109
fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O
imaginário é esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de
uma determinada ciência humana por um outro aspecto de uma outra.
A vivacidade do imaginário faz parte de um grupo de imagens que gera a significação
ao mundo. Não há, portanto, segregação entre o pensamento racional e as imagens formadas,
esta última carrega os sentidos da imagem ligados aos arquétipos, signos e símbolos. Para os
habitantes da Amazônia, o imaginário é parte constituinte do cotidiano, ―o imaginário
poético-estetizante, que preside o sistema cultural na Amazônia‖ (LOUREIRO, 1995, p.36), o
estético passa a ser compreendido, segundo Loureiro, como uma realidade geradora baseada
na relação com o sensível, esta será a maneira singular de contato entre o homem e sua
realidade. Logo, pensar numa região como a Amazônia é atribuir um grau elevado de fator
estético, pois se trata de um espaço em que as relações culturais estão entrelaçadas com a
natureza, a permissão para o devaneio faz parte do modo de vida ribeirinho, ―o imaginário
exerce um papel deflagrador desse processo‖ (LOUREIRO,1995,p.81). Cada povo possui
traços estéticos característicos que emergem das culturas. Na Amazônia, há ―Uma cultura
dinâmica, original e criativa, que revela, interpreta e cria sua realidade. Uma cultura que,
através do imaginário, situa o homem numa grandeza proporcional e ultrapassadora da
natureza que o circunda‖ (LOUREIRO, 1995, p.30):
Era muito linda essa ilha... Tipo tudo de tipo de caça, tatu, paca, veado,
preguiça, cotia... A gente ia andando no mato a gente, quando via a cotia
pá, passava entrava no buraco, a gente ia pegar, às vezes tava a mãe, os
filhos, tudo... Aí pegava a mãe e deixava os filhotes... Aí acontecia isso, né,
porque quando grande a gente pegava muito... Tudo que a gente precisava
aí tinha nessa ilha, tinha canteiro daquele, canteiro do jutaí, lago do Mané,
aí tudo aqueles negócio que caí do jutaí, que breia a canoa, pois é uma
pedrinha desse tamanho, ela fica dentro da terra aí dentro do ano ela tá
desse tamanho, aí vai crescendo... Não sei como é esses mistérios, a gente
passava nesses canteiros aí tinha muito, aí tinha às arvores que tinha aí,
maçaranduba, mata-matá, tudo que é tipo de madeira, tauari, esses pau que
tem aí, paujazeiro, bacabeira, tucumãzeiro, todos... É uma maravilha essa
ilha aí... Conto porque aí eu morei, andava tudinho isso aí, muito lindo aí
dentro...
A grandeza do espaço em que reside o amazônida influencia diretamente no modo de
olhar o meio que o circunda, as tentativas de compreensão dos fenômenos expressos em seu
cotidiano remete ao imaginário fundante dos nativos enquanto seres que habitam entre rios e
florestas. As imagens criadas para dar explicações fundem-se entre o mundo material, o físico
110
e os devaneios, o elucidamento que muitas vezes chega do imaginário, das criações e
representações para dar significado aos tempos e espaços, e, quando não chegam na forma de
conceitos organizados e reorganizados pelos próprios sujeitos, são expressos por ―Não sei
como é esses mistérios...”.
A multiplicidade do modo de vida na Amazônia constitui sua forma de enredamento
cultural, a teia de significações, estudada por Geertz (2008, p.4), na qual os grupos estão
entrelaçados:
Acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de
significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua
analise, portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como
uma ciência interpretativa, à procura do significado.
A criação e a recriação da vida estão de acordo com as necessidades humanas de
produzir sentidos e significados, um constante ir e vir de transformações da natureza em
cultura. A partir dessa perspectiva, é uma forma de existência que engendramos para o
encontro e o reconhecimento das possibilidades de aprender a viver e conviver enquanto
sujeitos culturais:
Tudo aquilo que criamos a partir do que nos é dado, quando tomamos as coisas da
natureza e as recriamos como objetos de utensílios da vida social representa uma das
múltiplas dimensões daquilo que, em uma outra, chamamos de: cultura. O que
fazemos quando inventamos os mundos em que vivemos: a família, o parentesco, o
poder de estado, a religião, a arte, a educação e a ciência, pode ser pensado e vivido
como outra dimensão (BRANDÃO, 2002b, p.22).
Os saberes construídos e estabelecidos dentro das culturas serão os desenhos do
mapeamento da Ilha Grande, que começou a ser traçado, conforme dito no início desta
dissertação, enquanto necessidade de um grupo de educadores preocupados em interligar os
fios dos saberes presentes na ilha, no entanto, muitas vezes enrolados no carretel das
dificuldades, dos obstáculos que o sistema lhes entrega. Enquanto isso, a Equipe Técnica da
Secretaria Municipal de Educação de Belém e funcionários da Unidade Pedagógica São José
tomaram como ponto de interesse o religamento dos fios de conhecimentos através da
construção cartográfica de saberes da Ilha Grande, para melhor compreender o espaço vivo e
pulsante do lócus que abriga a escola e a geração de um registro escrito. Esse foi o intuito
inicial dos educadores que agora se lançavam ao universo desconhecido da função de
cartógrafos.
As impressões iniciais de professores e alunos da Unidade Pedagógica São José, no
exercício cartográfico, são anotadas no intuito de que a partilha do caminho percorrido seja
necessária para que outros possam juntar-se a nós no tecer, destecer e (re)tecer.
111
Embarcar rumo a Ilha Grande era algo feito muitas vezes. No entanto, hoje tudo
parece diferente, lembro da Grécia antiga, de Heráclito e da sua expressão Panta Rhei, ―tudo
flui‖, nada é imutável, constante, há o ir e vir permanente das coisas. Quarenta minutos de
travessia, e aportamos no trapiche da Unidade Pedagógica São José, onde os educadores
aguardavam-nos.
Eliana Pojo, coordenadora das ilhas na Secretaria Municipal de Educação de Belém,
lançou o convite para um trabalho extensivo com oralidade na Ilha Grande. Decidimos, além
de organizar as Cirandas da Palavra, conhecer as narrativas que abrigam o imaginário da
comunidade e trazer para a escola os narradores e suas narrativas.
Buscamos aportar nos conhecimentos da Prof.ª Roseli Sousa, por já ter navegado por
essas águas ao pesquisar a Ilha de Caratateua em sua dissertação de mestrado pela
Universidade do Estado do Pará e pelo trabalho desenvolvido frente à Coordenadoria de
Educação do município de Belém. Após os diálogos feitos, compreendemos a necessidade de
cartografar os saberes locais a partir da história de vida dos moradores.
Os trabalhos iniciaram com o relato dos professores sobre as atividades desenvolvidas
na UP. O Projeto Político-Pedagógico foi socializado, e a sensação é que muito deste rio já
fora percorrido, a cartografia nos ajudaria a organizar as ideias, a sistematizar, a conhecer o
chão dessa história através da voz dos moradores. As histórias de vida de alunos, educadores,
comunidade, barqueiros se cruzam com o rio. Pensando nessa afirmação, iniciamos com a
seguinte problematização feita aos presentes no encontro: onde minha história se cruza com o
rio?
Com o desenho do mapa da ilha no quadro negro, cada um dos presentes respondeu a
pergunta traçando o caminho feito entre o embarque e a Unidade Pedagógica São José.
Figura 25 – Mapa da Ilha Grande feito pelos professores
Fonte: Diário de bordo
112
Durante o traçado do caminho percorrido rumo à ilha, cada um falou um pouco da sua
história.
Educador 01 – Voltei no tempo, na infância, vim do Acará. Fui acostumada com isso,
me sinto em casa. Comecei na beira do rio e voltei para a beira do rio.
Educador 02 – Não queria ser professora, mas dou o máximo!
Educador 03 – Faço de tudo um pouco! Meu trabalho sempre foi dentro do mato, cada
lugar é diferente. Queria seguir outra profissão. Despenquei na educação. Sou muito
alegre, falo muito alto, entrei em conflito, hoje já aceito que faz parte de mim. As
mudanças na Unidade Pedagógica não foram fáceis.
Educador 04 – Busco a essência, escolhi vir para a ilha, tem a ver comigo, pessoal e
profissional. Sou de Oriximiná. Tenho experiência com crianças infratoras e trabalho
com o teatro. A viagem de barco é normal para mim. Estou resgatando o teatro. Meu
desafio é aprender a trabalhar com os menores, estou começando do nada, não é nem
recomeço, e ó começo! Arte é sensibilizar! A história de vida deles é minha matéria.
Educador 05 – Em 2005 vim de Benevides morar aqui na Ilha Grande. Fui professor
não por opção e sim por necessidade, queria ser radialista. Aqui o tempo é outro,
nosso tempo não é o mesmo, o rio é quem manda! O senso de cooperação é grande, se
atraso todos atrasam (referência ao barco), não temos portão para fechar na escola.
Após a socialização das histórias de cada um, seguimos com a discussão sobre o
calendário da SEMEC versus calendário das águas. Definimos o nossas problemáticas: qual o
Projeto Politico-Pedagógico da escola? O que queremos saber sobre o entorno da escola? O
que a realidade dos sujeitos da Ilha Grande nos mostra?
Para chegarmos à resposta a tais questões, havia dois caminhos a percorrer:
1. As memórias dos moradores da comunidade;
2. Documentos produzidos sobre a ilha.
Chegou enfim o momento de organizar as duas primeiras etapas. Com o tema e os
subtemas escolhidos, a técnica da coleta de dados foi a escuta, mas ainda assim fizemos um
pequeno roteiro para nos basearmos no momento da visita aos moradores.
113
A proposição era fazer a visita domiciliar para o movimento de escuta, mas também
levar os moradores para a escola. A entrevistas deles foi no espaço da Unidade Pedagógica,
acompanhada de perto pela comunidade escolar. Fomos divididos em três grupos, incluindo
educadores e alunos.
Grupos organizados, fomos ouvir as vozes dos protagonistas da cartografia de Saberes
da Ilha Grande, roteiro, máquinas, MP3. Dois barcos saíram, um rumo a Guarapiranga, para a
Unidade Pedagógica Nossa Senhora de Nazaré, e o outro atravessou a ilha para o furo do
Bijogó. O terceiro grupo caminhou para a residência de um dos moradores. Saímos então para
nosso primeiro ensaio cartográfico!
Um outro grupo fez a travessia para a residência do Sr. Simeão e foi recebido pelos
trabalhadores que estavam separando a folha da maniva no barracão ao lado. A casa estava
com ares de quem aguarda visitas: paninhos de crochê na estante, flores nos vasos e um cheiro
de café passado na hora pela esposa do Sr. Simeão.
Fomos convidados a sentar, os alunos ora iam à janela, ora sentavam-se espalhados na
sala, ou corriam para a pequena ponte que liga a casa de Simeão a de altos e baixos que fica
bem ao lado (a referida casa é enredo de uma das narrativas contadas pelas crianças na
Ciranda da Palavra e, segundo elas, a casa é mal-assombrada).
A conversa iniciou em tom amistoso, pessoas acolhedoras, e nós dispostos a ouvir suas
histórias! E foram tantas e tantas histórias que ficamos extasiados diante da capacidade de Seu
Simeão de contar histórias, ele é deveras o Guardião da Palavra.
Figura 26 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão
114
Figura 27 – Visão a partir da escola da outra margem do rio onde mora Seu Simeão
Esse foi o primeiro contato com aquele que seria o intérprete da continuação da
cartografia da Ilha Grande, já que não conseguimos dar andamento à cartografia inicial, feita
coletivamente. Ao relembrar os momentos passados em companhia de um mestre na arte de
narrar, o sentimento foi de que a preamar havia chegado para o desejo e a intenção da
pesquisa, agora no âmbito do mestrado.
Após o ingresso no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade do Estado do Pará/UEPA, na linha de Saberes Culturais e Educação na
Amazônia, os caminhos trilhados para a construção cartográfica da Ilha Grande passaram a ter
como intuito mapear os saberes da ilha a partir da voz de Simeão Monteiro, o morador
apontado por alunos e demais habitantes como o contador de histórias da comunidade. Essa
foi a temática da dissertação desenvolvida para a obtenção do título de Mestre em Educação.
A cartografia através da voz consiste na identificação dos seguintes pontos: I. Saberes
do lugar; II. Saberes ambientais; III. Saberes escolares; e IV. Saberes mitopoéticos.
I – Saberes do lugar
As informações obtidas através dos relatos de moradores sobre a história da Ilha
Grande nos conta que ela tinha um único dono, Salomão Donato. Os primeiros moradores
possuíam um pedaço de terra, mas tinham que dividir o excedente da pequena produção para
subsistência com o suposto dono da Ilha:
115
Não nossa vida aqui na ilha isso eu não vou negar nem vou encobrir era
uma vida de escravidão o dono da Ilha Salomão Donato quando eu casei aí
eu já tinha minha casa aí eu mandei buscar minha família como eu falei
cada um tinha sua casa, mas se a gente criasse 04 casais de galinha dois era
dele mesmo o meu marido que era o braço direito dele, mas isso acontecia,
o açaí, se o meu marido tirasse 08 latas de açaí 04 era dele nós não
tínhamos o direito de vender nosso gênero e quem vendia era o gerente da
fazenda e nos passava quanto ele queria. Aí já depois da minha irmã aí nós
já tinha nossos filhos descobrimos que a ilha não era dele. (Morador 01)
O período em que a intérprete se refere compreende as décadas de 1950, 1960, em que
a ilha vivia sob a tutela do que se intitulava ―dono‖, permanecendo nesta situação até quase o
final da década de 1990, quando o próprio intérprete que nos traz o relato descobre que as
terras são da União. De acordo com Violeta Loureiro (2011, p.21), nos anos de 1950 e 1960, a
ocupação das terras amazônicas se encontrava na seguinte situação:
A maior parte das terras da Região Amazônica pertencia basicamente à União e aos
Estados, sendo portanto, terras públicas. As terras públicas são aquelas que
pertencem aos municípios, aos Estados ou à União; não são terras de particulares.
Assim sendo, essas terras podiam ser ocupadas pelas populações locais (ou por
quem viesse de fora), desde os tempos coloniais, sem disputa e conflito (grifo da
autora).
A informação obtida de que a ilha era de posse da União e que qualquer morador
poderia requerer livremente seu pedaço de chão fez com que os moradores se organizassem
para terem o direito à terra e às benfeitorias feitas nela, como a construção da moradia, as
plantações, a criações de animais etc. Segundo relato, a Gerência Regional do Patrimônio da
União no Estado do Pará/GRPU auxiliou para a tomada de posse das terras pelos moradores:
É aí passamos pra ele, Salomão Donato, não, essa terra aqui é da união. Aí
foi que ele começou a trabalhar em cima disso. Isso eu posso dizer nós
temos um apoio muito grande do GRPU, muito grande mesmo pra hoje nos
sermos uma pessoa livre, termos nosso documento da terra. (Morador 01)
O relatório 2008 de gestão do GRPU/PA7 esclarece sobre os projetos de inclusão
sócio-territorial das populações tradicionais, que inclui, entre outros, o reconhecimento de
terras quilombolas e dos moradores das áreas ribeirinhas. O objetivo central é a
regulamentação fundiária de tais populações. No caso específico dos ribeirinhos, o Projeto
Nossa Várzea destina-se a essa finalidade:
7Fonte:http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/arquivo/acesso-a-informacao-1/auditorias/processos-
de-contas/spu_regionais-1/spu_pa/2008/spu_pa2008_relatorio_de_gestao.pdf . Acesso em: 10/07/2015.
116
Esse projeto envolve a celebração de parcerias com Ibama, Incra, Ministério da
Justiça, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, governos
estaduais e municipais, comunidades ribeirinhas, universidades e sociedade civil. O
objetivo é promover a regularização fundiária das ocupações de populações que
habitam as margens de rios federais, por meio da entrega de Termo de Autorização
de Uso – um instrumento de inovação administrativa, que constitui o fundamento
expressivo da iniciativa.
O Termo de Autorização de Uso, instrumento prévio à titulação das famílias
ribeirinhas, permite o reconhecimento do direito à ocupação e à exploração
sustentável das áreas de várzeas, a comprovação oficial de residência e também
assegura o acesso a linhas de crédito e a programas sociais do Governo Federal, tais
como aposentadoria e recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar – PRONAF.
A luta por um pedaço de chão em terras tão vastas, onde a concentração de bens está
nas mãos de um restrito grupo, parece ser, até o presente, uma realidade na região. A política
desenvolvimentista visando o crescimento e a integração da Amazônia, e aclamada pelo
governo militar, na década de 1960, para atrair empresas nacionais e estrangeiras, a fim de
implantar os grandes projetos de desenvolvimento, gerou consequências nefastas para o
habitante da região e o meio ambiente. Em nome do progresso, populações foram degradadas
de suas comunidades de origem, a natureza foi explorada e devastada, mudando modos
viventes e paisagens, corroborando para a violência cultural, de que somos alvo desde os
tempos coloniais.
Com o território da Ilha Grande, não foi diferente, a luta foi travada para o
reconhecimento dos títulos de terras de todos os moradores, contribuindo para a
descentralização e combatendo o mau uso do poder.
Nos relatos do Seu Simeão e dos demais moradores, observamos o fluxo de chegada
das famílias para a Ilha, o que chamamos de Saberes do lugar. Seu Simeão conta que não
nasceu na Ilha Grande, mudou-se quando criança e, entre idas e vindas, acabou ficando:
A minha irmã se casou com um rapaz daqui, gostou dele, se casou, e eu era
muito ligado a ela, que ela lhe dava comigo quando minha mãe adoeceu, me
entregou pra ela, eu era pequeno, menor do que esse aí [aponta para um
menino que o escuta], pra ela tomar conta de mim. Quando ela se casou, eu
não me sentia... Lá eu ficava triste, porque eu queria tá do lado dela, ai eu
disse, “não, eu vou me embora, lá no Itaquá, eu estudava com um e com
outro, quando faltava as aulas, quando dava às férias, caía praí, ia pro lado
dela. Aí foi, foi, foi, até...que eu não quis mais voltar pra lá, estudava por
aqui e não quis mais voltar pra lá, ficava aí...
Aí fui crescendo, crescendo, aí quando eu estava com doze anos, eu ainda
voltei pra lá pra fazer a segunda, pra acabar de estudar, né... Porque
naquele tempo ainda ia pro Acará, né?! Aí eu voltei, digo agora eu não vou
mais voltar, né?! Já tô mais entendido, vou aprendendo com um e com outro
o resto, então, aprender é isso, aí fiquei pra cá, fui morando aí com ela, fui
117
crescendo, trabalhando com meu cunhado, cortando seringa com ele no
meio do mato, aí aprendi já, já trabalhava por minha conta, mas sempre
aqueles deles, era dominado deles... E com isso nós moramos um tempo aqui
e se mudamos pra essa linha grande, nós moramos ali no seu Zeca mora,
naquele barracão grande, mas essa área aqui agente trabalha tudinho, dali
donde Dona Maria José mora...
Pensar o espaço geográfico, a partir das relações estabelecidas entre homem e
ambiente, mutuamente influenciados e modificados, cria uma dinâmica própria dos grupos.
Ao criar e recriar seu meio, laços de identificação são atados, garantindo a sobrevivência dos
grupos. Nessa lógica, os contornos geográficos modificam-se para atender as necessidades das
populações:
Poucas famílias. Aí se contava; olha, se eu lhe disser que aqui tinha duas
casas, uma lá perto da casa da Eliza, aliás três, que era uma do finado
Guilherme, que era marido da Eliza, uma do finado Zinho, uma do Zarapari
e uma do Tonhão, lá embaixo, eram quatro casas que tinham, ali perto da
torre... Agora aqui, tinha uma casinha bem aqui, entrando aqui e a outra lá
onde mora o Vadico, olha só essa uma... Desse lado tinha uma na boca da
varada do Paciência [furo do rio], tinha a da Tia da minha senhora, que
morava bem perto da torre aí e agora tinha a deles bem aqui perto de onde
o Afonso mora e a outra na boca do igarapé do rego grande e do finado
Ageniro lá em cima. Olha só essa tristeza, era muito triste, soturno, soturno,
soturno, basta dizer que quando a gente morava na frente da ilha e quando
o meu cunhado arrumou um terreno e pediu para a gente passar pra cá, que
nós voltamos pra ilha de novo, voltamos pra essa aí nos viemos pra esse
Bijogó [furo do rio] e eu não queria vir de jeito nenhum porque era muito
triste, muito triste, porque lá pra frente da ilha era mais alegre... “Poxa, nós
vamos para aquela tristeza lá...” Aí foi movimentando, foi aparecendo um
daqui outro de acolá, movimentando de gente, né? Movimentando,
movimentando e hoje em dia do jeito que está, que não tem onde fazer uma
casa quase, né?! E daqui mais uns tempos como é quer vai ser, por que,
olha, vão crescendo.
Para Rodrigues e Oliveira Neto (2008), a complexidade das relações homem e
ambiente torna os espaços únicos, característicos da dinâmica peculiar de um lugar chamado
Amazônia. Porém, uma advertência chega para refinar o olhar sobre as culturas dos grupos
que aqui habitam:
Fica clara, então, a necessidade de se respeitar a dinâmica de cada grupo social
amazônico. Respeitar suas especificidades e modos de vida, pois estes, em grande
parte, estão diretamente ligados à cultura e as tradições desses grupos.
A criação do lugar por esses sujeitos adquire uma conotação de resistência à
violência simbólica que representa a globalização, com sua visão homogênea e
arbitraria de sociedade, imposta pela logica do capital. Essas comunidades valorizam
o convívio e formam um espaço diferenciado, capaz de responder aos seus
verdadeiros anseios e aspirações, onde, como dissemos, transformam, sofrem as
118
influências de sua transformação e identificam-se com esse novo lugar, que sempre
estará em mudança/construção, pois e uma das características fundamentais do ser
humano (RODRIGUES; OLIVEIRA NETO, 2008, p.31).
II – Saberes ambientais
Os meios de produção descortinam as paisagens em movimento, e as transformações
do espaço natural através do trabalho do homem determinam o modo que grupos encontram
para sobreviver, da maneira em que utilizam e reutilizam os recursos naturais que estão ao seu
redor. A subsistência dos grupos depende da interação com o ecossistema, pois dele retiram a
porção diária para manutenção da vida:
Aí nos cortava seringa aí... Nesse tempo ainda não se trabalhava com
palmito, tava falando pra ele aí que a gente se mantinha com moru-moru,
andiroba, ucuúba, era o que a gente se mantinha, né?! Além da seringa... Aí
ia vender, era uma alegria, porque não era muito dinheiro, não era que
fosse muito, mas naquele tempo, era muito porque tudo era barato, eu digo
pra esses moleques, pra essa rapaziada de hoje e eles não acreditam, que
naquele tempo, se a gente fazia trinta cruzeiros em dinheiro, a gente fazia
todas as compras d’a gente, trazia tudo pra casa e ainda trazia dinheiro.
Porque um quilo de charque era barato, pirarucu era barato, o café não
tinha nem peso, o açúcar era baratinho, tudo era barato, o peixe... não tinha
por que... A gente fazia dez reais, doze reais dava pra tudo, a farinha, o
açúcar, o café... Vinha alegre pra casa...
Os produtos extraídos na Ilha Grande, na sua maioria, são comercializados no Porto da
Palha, na Av. Bernardo Sayão, em Belém. Seu Simeão traz a lembrança de um tempo de
fartura, o lucro pelo comércio dos produtos levados na travessia rumo a Belém possibilitava o
usufruto das compras dos gêneros alimentícios na parte continental. A memória de Seu
Simeão abriga também um tempo de fartura dos recursos naturais:
Aí enquanto ela estava fazendo o cafezinho, a maré estava boa, eu dizia
“vou pegar uns peixes ali...”, dentro de quinze minutos eu voltava com vinte,
trinta pescadas, aí eu jogava, ela fritava... é verdade... Era muito bom. Aí
ela dizia, “não vai mais de tarde...”, se eu fosse de tarde era outra quantia
de novo, mas hoje em dia você chega na beira de novo, você reza, pede pra
tudo quanto é santo e não pega uma pescada...
Não achava um camarão pra pescar, foi embora... Mas quando ele vinha,
vinha muito e agora mudou, porque todo tempo têm, não dá mais aquela
inquantidade daquela época. Põe o matapi e pega, não pega muito, mas
pega todo tempo...
119
O caranguejo é outra coisa, o caranguejo só vinha no inverno, mas quando
vinha, vinha muito, e agora hoje em dia não falha mais, não é como era,
mas não falha... O problema é que nem cresce mais o bichinho, não é?!
A razão das mudanças para escassez dos recursos naturais é explicada por Seu Simeão.
O narrador detém o saber do que está acontecendo em sua volta, ainda que não tenha se
comprometido com o rigor do sistema educacional e não exponha qualquer diploma
emoldurado na parede da sua casa. Seu Simeão pescou saberes com a linha e o anzol da sua
sensibilidade, porque soube ouvir os rios e a mata, porque soube sentir o cheiro dos ventos e
reconhece a direção das tempestades, porque sabe a cor que tem o céu em dias de chuva ou
sol. Ele reconhece as atuais perdas ambientais, porque traz na sua memória o tempo vivido da
fartura da pesca:
Olha o peixe e camarão já deu muito aqui, mas esse negócio da poluição é
que estraga, né, afasta, afasta o produto...
Aí a gente maneja, por que aí, tem a malhadeira, a gente já pega um, dois,
três, porque não pega como pegava antes... Olha, eu trabalhava com
espinhão, aí você coloca um espinhão na água, aí quando você levanta é
saco plástico, é aqueles redes, rede de tempero, vem tudo quanto é coisa, na
malhadeira é a mesma coisa... E no camarão dava em grande quantidade...
Eu jogava quinze matapi na água, aí eu pegava um balaio de camarão,
nessa época agora, e agora pra você pegar, três, quatro quilos de camarão,
é difícil... Dava grande quantidade, mas agora não...
E ele também se refere ao término da abundância na agricultura:
Olha, por que quando eu vim pra esse Bijogó [furo do rio] aqui, taí minha
senhora que não deixa eu contar mentira, a gente morava nesse igarapé bem
ali, aí eu trabalhava no roçado que eu tinha, trabalhava com roça, quiabo,
maxixe, chicória, esses negócios todos...
A poluição é um dos fatores apontados no relato do intérprete como o causador das
mudanças no meio ambiente no rareamento dos mariscos e peixes nos rios que banham a ilha.
O conceito de sustentabilidade é trazido por Seu Simeão ao chamar atenção dos moradores
sobre a necessidade do cuidado com o lugar em que habitam:
Tem que ter uma união que é pra fazer um movimento numa ilha dessa, que
é pra ficar como era de primeiro, porque a pessoa não pode só desplantar,
desfrutar, vamos fazer o plantio, assim como se tira vamos colocar, porque
se tira e não põe, vai acabando... Se você derruba uma árvore, plante uma
semente, duas, pode não servir pra nós, mas depois vai servir, serve para os
netos...
120
Essa é a voz do Seu Simeão anunciando a necessidade do desenvolvimento sustentável
para o meio em que vivem, saberes sobre o plantio, a semeadura da terra como garantia da
sobrevivência. O sentido de interligação com todos os seres e o desejo do religamento dos fios
que compõem a teia da vida para a geração presente e as vindouras mostram-se como
pertinentes preocupações na voz do intérprete:
Têm pessoas que dizem assim, “olha eu não vou plantar porque eu não vou
colher...”; não pode ser assim, porque se os antigos não plantassem nós não
tínhamos pra colher, né verdade? E então temos que nos lembrar disso.
Olha, têm muitas crianças aí, vai servir pra eles, para os filhos deles, a
geração vai embora e nós vamos... A semente vai ficando, vai ficando...
Silva (2008, p.59) esclarece sobre a problemática recorrente na Amazônia sobre o
manejo sustentável para conservação da fauna e da flora e consequentemente da vida humana:
as formas de manejo dos recursos da natureza utilizados pelas comunidades locais,
em alguns casos, tem um custo social e ambiental muito alto, hipotecando as
condições de reprodução material, na medida em que algumas práticas produtivas
vão sendo subsumidas em função do desgaste do solo, da falta da mata ciliar, etc.
Certamente ai reside uma problemática que o saber prático por si só não é suficiente
para superá-lo, na medida em que começa a haver um comprometimento da
―sustentabilidade‖ local, uma vez que a organização social e modos de vida se
constroem em relação direta com a natureza.
Os saberes do cotidiano são acumulados e repassados aos mais jovens, são as formas
de se organizarem e reorganizarem tanto nos aspectos materiais quanto os simbólicos. Nesse
sentido, as comunidades ribeirinhas encontram sua própria ciência para o manejo das questões
sobre as práticas produtivas. Por exemplo, Seu Simeão conta do seu ressentimento pela
postura do IBAMA ao proibir a extração do palmito sem apresentar justificativa ou
proposições, pois, segundo o saber do cotidiano trazido pelo intérprete sobre o manejo e
extração do açaí, é necessária a derrubada das velhas palmeiras para dar espaço ao
desenvolvimento das mais novas. Esse tipo de manejo advém do conhecimento utilizado pela
comunidade como forma de subsistência, sobrevivência, a derrubada para o consumo, ―matar
a fome‖:
O que é comercializado aí é o açaí e o palmito, palmito nem muito, porque
eles não deixam a gente tirar, porque tem uma lei, o IBAMA não deixa.
Alguma coisa tá errado, porque, olha minha filha, se a gente não limpasse
isso aí, não tratasse de limpar, não existia tanto açaí como tá agora, porque
nesse tempo que não entendia, os açaizal eram tudo fechado, mas agora, ele
dava muito açaí. Mas numa época não tinha, não dava nada... E hoje em dia
vai derrubando os velhos, vai levantando os novos, vai ficando novo o
121
açaizal a pessoa tem que saber ajeitar também, saber fazer o manejo, e não
falha mais o açaí. Você vê que em canto nenhum falha o açaí... Se eles do
IBAMA viessem conversar comigo, eu dizia, “vocês tão certo por um ponto,
mas vocês devem autorizar e dar explicação de como deve acontecer e não
maltratar”, mas eles só dizem, “vocês não vão tirar”, mas agente sente fome
também, criança sente fome, têm dias aqui que a gente não têm do que se
manter, não concorda comigo?! Aí vem o cara e corta o palmito e não dá
nada para a gente, aí como é? Fica ruim, fica difícil, né?! Por que os
produtos que nós temos, que tem hoje em dia aqui, é só o palmito e o açaí...
O saber do cotidiano construído a partir da observação e da experiência foi estudado
por pesquisadores da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária/EMBRAPA, e estão em
sintonia com a forma de manejo trazida na voz do intérprete, apreciando as etapas do semeio,
das mudas, a roçagem e os desbastes dos estipes8, até o raleamento das matas
9, são estratégias
de agricultura sustentável:
Os fatores que determinam a intensificação da mão de obra, usada pelos ribeirinhos
no açaizal, tendo em vista o aumento da produção de açaí fruto são: a estabilidade na
terra ocupada, a quantidade de mão de obra familiar disponível e as limitações de
renda das outras atividades.
Para aumentar o rendimento de açaí fruto, os ribeirinhos estão enriquecendo os
açaizais por meio do semeio e de transplantes de mudas de açaizeiro, raleando a
mata e fazendo o desbaste dos estipes, além da intensificação da mão de obra para
roçagem.
Considerando que o tipo intensivo delineia uma estratégia de incremento de mão de
obra, as propostas de manejo de açaizal para aumento da produção de açaí fruto são
muito bem-vindas nesses agroecossistemas, pois encontram-se bem alinhada aos
horizontes de uma agricultura sustentável (AZEVEDO e KATO, 2014, p.13).
Outro saber emergido da observação do cotidiano apresentado pelo intérprete é o
fenômeno da sepacuema:
Agora presta muita atenção como o maruim vem, quando a água vai fazer
sepacuema seis horas da manhã, meu camarada... É a maré que dá seis
horas da manhã... É que dá o maruim, são três dias... Antes dela encher eles
vem, a pessoa não pode nem ir na beira que tá fumaçando, o maruim,
passou essa fase, já vai terminar, a maré dobrar, quando já dá oito horas aí
já vai terminar, acabou... Porque Deus é bom, porque o bichinho é
atentado...
8 O desbaste é realizado na maioria das touceiras, deixando-se de um a três estipes jovens e também de um a três
estipes adultos. Esta prática é feita no momento da roçagem do açaizal. A função dos estipes jovens é a de
substituírem os estipes adultos ou aproveitá-los para a produção de palmito. Fonte:
http://www.alice.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/409228/1/23.pdf. Acesso em: 20 de Novembro de 2014. 9 É um termo empregado em agricultura que consiste em retirar as plantas em excesso, deixando o espaçamento
ideal para o desenvolvimento das demais. Fonte: http://www.dicionarioinformal.com.br/raleamento/. Acesso em:
20 de Novembro de 2014.
122
Nos saberes cartografados na voz do Seu Simeão, encontramos memórias da paisagem
de Belém continental, dados históricos, situações do cotidiano e mudanças sofridas pelo
espaço geográfico: um tempo que se foi, mas encontra lugar cativo nas reminiscências por ter
os contornos de um mapa de sentidos, que são imperecíveis entre os que viveram. Alguns
desenhos traçados pela memória do intérprete remetem ao saudosismo presente no
alinhamento entre homem e espaço geográfico – ―o pessoal ia é se deitar lá no meio da rua e
dormir, porque só passava carroça...‖, e, nos dias atuais, ―a gente cruza os braços porque não
consegue atravessar... Meu Deus do céu, quem viu isso aqui, quem vê...‖. A visão e os demais
sentidos atentos às mudanças ocorridas na cidade, aqui ele traz na memória as mudanças no
terreno da Universidade Federal do Pará:
Eu me trato lá na Universidade, aí eu tava dizendo, quem viu essa
universidade... Porque eu morei uns cinco anos na Barão, em Belém... Eu
andava aí nesse lugar da Universidade, era horrível... Era uma mata muito
horrível... Quando que eu dizia que eu ia ver carro correndo dentro
daquelas matas, do jeito que tá, como eu tava conversando com um senhor
lá dentro do hospital assim... “É verdade, conheci isso aqui...”
O Porto da Palha, uma referência para os moradores da Ilha Grande, por ser o espaço
de embarque e desembarque de pessoas e produtos, é trazido nas lembranças de Seu Simeão
como o lugar do trânsito, da passagem, nos tempos em que se podia ―deitar lá no meio da rua
e dormir‖, uma paisagem modificada com a explosão demográfica da cidade e as implicações
que isso acarreta:
Esse Porto da Palha aí era só um caminho, varava lá na Alcindo Cacela, no
tempo do inverno a gente via o povo andando, uns pra cá, outros prali. Essa
estrada aí, Bernado Sayão, né, que vai varar na Copala, o pessoal ia é se
deitar lá no meio da rua e dormir, porque só passava carroça, era... (risos),
alguma carroça que passava, o carro da olaria, às vezes da Copala, que
varava... Mas era horrível, era horrível, era horrível, e agora a gente cruza
os braços porque não consegue atravessar... Meu Deus do céu, quem viu
isso aqui, quem vê... O Porto da Palha ali era antigo, mas de primeira era
só um aterro, nunca tinha visto, né, o Padre vira santo, né, o santo vira
padre, agora como vê como foi, antes era só um aterro, aí virou Padre
Eutíquio, se lembra?! Até um certo tempo chamavam de São Mateus... Foi o
santo que virou padre... (risos)
A vida agitada na Belém continental, em detrimento à calmaria da Ilha Grande,
encontra lugar no relato. A violência é apontada como um dos fatores determinantes para o
retorno à comunidade ribeirinha. Os constantes assaltos, a falta de segurança, a prisão
domiciliar em que os moradores são confinados fazem com que a vida na ilha seja vista como
123
uma maravilha, inevitável comparação do intérprete com as ocorrências da violência urbana
versus a calmaria da ilha:
Uma maravilha aqui pra nós, a gente morar aqui é maravilha, sob o negócio
do clima e outras coisas aqui. Vê como é que estão as coisas do assalto em
Belém, a pessoa que não pode nem sair... Eu morei em Belém, quando
estava com dezoito anos fui pra Belém e voltei com vinte e pouco aí, naquele
tempo era bom lá, mas hoje em dia, é dose... A pessoa não pode sair, não
pode usar mais nada, não pode fazer nada... Até aqui no interior, você não
pode dizer eu tenho muito dinheiro... Passamos uma situação bem difícil,
mas agora em outros casos, pra nós é bom aqui, porque é tranquilo, a gente
pode estar de porta aberta, pode de noite se quiser, se tiver calor, pode abrir
a janela e lá em Belém? Aqui o clima é bom, é agradável, a gente se sente
alegre por isso, é tranquilo... Lá em Belém, como diz o cara, o homem
falando no jornal, a gente vive atrás das grades, em vez de ser o bandido...
III – Saberes escolares
A dificuldade em encontrar escola para as crianças da comunidade também é vista no
depoimento, e um fluxo contínuo de alunos precisa deslocar-se para as áreas urbanas a fim de
buscar escolas. O quadro agrava-se no ensino médio, em que são quase nulas ou inexistentes
as ofertas de vagas. Ao mesmo tempo, se reconhecem as mudanças ocorridas na escolarização
das crianças e dos jovens da ilha com o advento das duas Unidades Pedagógicas da Prefeitura
Municipal de Belém na comunidade:
Não tinha, não tinha... Meus filhos pra estudar foram lá pra Boa Vista... Aí
tinha Dona Maria José que veio morar aqui e ensinava, meus filhos
aprenderam um bocado com ela, mas não tinha... Aí quando ela saiu daí, só
no Boa Vista, aí era muita dificuldade, hoje em dia tá bom, por que a
criança, só não estuda, se não quiser, o barco vem buscar no porto, né?
Naquele tempo se não tivesse canoa, às vezes molhava o livro, caderno,
porque o barco era pequeno, tudo isso acontecia, era muito atrasado
mesmo...
Um dado é recorrente em todos os relatos dos moradores ouvidos, a referência ao
trabalho pioneiro na educação formal feito pela Professora Maria José:
Há, aqui nessa ilha não tinha educação, a primeira professora que veio
para cá foi a Maria José, irmã da Quinha, meus filhos estudaram com ela,
Manoel, Antônio, Maria. A primeira professora foi ela, a Maria José.
(Morador 02)
124
De acordo com outro relato, do Morador 01, a Professora Maria José foi a passeio
visitar os irmãos que moravam na Ilha Grande e, ao deparar-se com o quadro grande de
analfabetismo, decidiu pedir permissão ao senhor Salomão Donato (dono da ilha) para
lecionar. A resposta foi positiva, e Maria José mudou-se para a Ilha Grande e iniciou seu
trabalho como professora, alfabetizando crianças de dia e os jovens e adultos à noite, sob a luz
da lamparina. Após quatro anos de trabalho, recebeu o convite do então prefeito de Acará,
Orlando Cunha de Oliveira, para trabalhar em regime de contratação, recebendo seus
proventos como professora do município do Acará.
Durante a gestão do Prefeito Edmilson Rodrigues, a escola passou a fazer parte do
quadro da Secretaria Municipal de Educação de Belém/SEMEC. A comunidade entrava com
o espaço físico e a SEMEC com os funcionários, materiais permanentes e de consumo,
transporte escolar. A partir de então, há notáveis melhorias, mas ainda precisa ser trilhado um
longo caminho para de fato ser garantido o direito à educação de qualidade, especialmente no
que se refere à infraestrutura dos prédios que abrigam as escolas das ilhas.
Dados constatam a realidade da educação do campo, a oferta de vagas aos moradores
das comunidades rurais-ribeirinhas é apenas uma das problemáticas enfrentadas, mas sinaliza
a primeira exclusão a que são confrontados, o desrespeito ao direito a frequentar uma escola:
De fato a inexistência de escolas suficientes no campo tem imposto o deslocamento
de 48% dos alunos dos anos iniciais e de 68,9% dos alunos dos anos finais do ensino
fundamental para as escolas localizadas no meio urbano em todo país, problema este
que se agrava à medida que os alunos vão avançando para series mais elevadas, em
que mais de 90% dos alunos do campo precisam se deslocar para as escolas urbanas
a fim cursar o Ensino Médio, segundo o Censo Escolar de 2002 do INESP. Se
adicionarmos a esses dados as dificuldades de acesso às escolas do campo, as
condições de conservação e do tipo de transporte utilizado, bem como as condições
de tráfego das estradas, concluímos que a saída do local da residência torna-se uma
condição para o acesso à escola, uma imposição, e não uma opção dos estudantes do
campo (ROCHA e HAGE, 2010, p.17-18).
O quadro negativo associado às escolas do campo, envolvendo professores sem
qualificação, prédios em condições precárias, falta de materias didáticos, dificuldades ou
ausências no transporte escolar etc., coloca as escolas que compreendem a educação do
campo no patamar de inferioridade, despreparo. Arroyo (2010, p.10-11), no prefácio do livro
Escola de direito: reinventando a escola multisseriada, coloca-se no lugar de estranhamento
diante da visão empreendida:
Difícil superar essas visões tão negativas do campo e de suas escolas porque
reproduzem visões negativas dos seus povos e das instituições do campo. [...] A
quem interessa essa visão tão negativa da escola do campo? Porque ver o campo
como problema? Para ver o Estado, as politicas como solução? Para reduzir seus
125
povos a meros destinatários agradecidos de nossas políticas e intervenções-solução?
Essas imagens tão negativas do campo e de suas escolas tiveram e tem uma
intencionalidade política perversa: reduzir o campo, suas formas de existência e de
produção de seus povos à inexistência. A escola do campo é, assim, considerada
como não escola, não educandário, sem qualidade; os educadores-docentes, como
não educadores, não docentes; a organização curricular não seriada, multisseriada,
como inexistente; os diversos povos do campo, na pré-história, na inferioridade
cultural.
A resposta aos questionamentos suscitados na presente pesquisa é de igual maneira
exposta pelo autor: ―Enquanto esses imaginários e paradigmas hierarquizantes,
inferiorizantes, segregadores persistirem as pesquisas e analises nascerão viciadas,
preconceituosas‖ (ARROYO, 2010, p.11). Olhar a escola do campo com suas problemáticas e
complexidade, com a diversidade que lhe é tão peculiar, é um passo necessário para um tempo
mais fértil, fecundo para a organização do pensar e fazer pedagógicos, ―um currículo que
respeite os tempos humanos‖, como propôs Arroyo (2010, p.10-11):
Reconhecida a especificidade desse tempo final da infância na especificidade do
campo, define-se a organização escolar, a enturmação. Seria por idades? Por
interidades ou por temporalidades humanas mais próximas? Como organizar os
conhecimentos, os saberes, que trazem das especificidades de suas experiências
infantis na especificidade do viver no campo? [...] A partir dessas especificidades
coletivas, tenta-se organizar conhecimentos: modos de ver o mundo, de se ver;
modos de pensar o real e a especificidade desses tempos e das formas de vivê-lo no
campo; modos de ver a terra, de aprender a lutar pela terra. Que agrupamentos são
mais próximos em vivencias, saberes, socializações? Respeitar as vivências e
saberes, os valores e modos de pensar o real e de pensar em si, de aprender e
socializar-se nos convívios coletivos que não são diferentes por idades cronológicas,
por anos de idade, mas que são próximos por temporalidades geracionais, pré-
adolescentes, adolescentes, jovens ou adultos.
Compreender a complexidade da educação na Amazônia é o desafio apresentado a
todos os sujeitos envolvidos neste processo. No que se refere às escolas margeadas pelo rio, as
problemáticas envolvem desde questões de infraestrutura, até as questões pedagógicas
vinculadas à apropriação dos saberes cotidianos necessários à organização da prática
educativa da escola, enquanto instituição responsável pelo desenvolvimento integral de
competências, habilidades e capacidades dos educandos.
IV – Saberes Mitopoéticos
Um elemento fundante na cartografia da Ilha Grande é o imaginário mitopoético
expresso nas narrativas do intérprete, reconhecido na comunidade como o contador de
histórias, o guardião da memória. As histórias de Seu Simeão percorrem todos os espaços da
126
ilha, inclusive são semeadas no solo da escola, resta-nos saber se encontrarão solo fértil entre
os educadores, já que os alunos recontam as histórias contadas pelo intérprete e fazem circular
as palavras poéticas. E é tudo o que temos:
Os textos que circundam através da voz nos rios, nas matas, nas estradas, retratam o
cotidiano das comunidades amazônicas e se comparam àqueles ditos nas praças ou
nas feiras pelos aedos clássicos, ou nos serões medievais pelos vassalos, ou ainda
mais tarde pelas classes populares. No caso das populações mais pobres, na maioria
das vezes, essas narrativas são uma das poucas formas de convívio com o poético.
Um estético envolto em magia e em sangue marcado pelo difícil cotidiano (FARES,
2010, p.95).
A imagem é a de um senhor sentado na cabeceira da mesa. Ao abrir de sua boca,
somos enredados por sua voz e transportados para as temporalidades e as territorialidades que
abrigam suas histórias. O medo na descrição da Cobra Grande, a alegria e o alívio de livrar-se
da Matinta, os arrepios ao ouvir o som do tambor da Uiara, sensações latentes provocadas
pela voz, pela palavra dita, especialmente num lugar como a Amazônia.
Na performance de Seu Simeão, observamos um corpo que fala através da voz viva. O
intérprete desenvolve sua performance sentado, e, ao narrar, sua voz ultrapassa os limites do
corpo, suscitando em quem escuta evocações sensoriais, atributo característicos dos
contadores de histórias tradicionais. Zumthor (2010, p.13) relata sobre um aluno da região de
Volta, Gana, África, que na sua etnia ―a confidência é feita em posição deitada, a palavra
séria, sentada; aquilo que é dito em pé não tem importância‖. São estruturas e codificações de
que os grupos apropriam-se para a organização e o entendimento do elo entre corpo e voz:
O som-elemento, o mais sutil e mais maleável do concreto – não constituiu e não
constitui, no futuro da humanidade como do individuo, o lugar do encontro inicial
entre o universo e o inteligível? Ora, a voz é querer dizer a vontade de existência,
lugar de ausência que, nela, se transforma em presença; ela modula os influxos
cósmicos que nos atravessam a capta seus sinais: ressonância infinita que faz cantar
toda a matéria... (ZUMTHOR, 2010, p.9).
Narrador e ouvinte ficam enlaçados, configurando inclusões estabelecidas a partir de
uma ―relação emocional que se estabelece entre o executante e o público [...] que exigem uma
grande destreza, mas engendram liberdade‖ (ZUMTHOR, 2010, p.167). O ouvinte é partícipe
da performance do intérprete, ao emprestar seus ouvidos generosos, narrador e ouvinte se
unem ao experenciar os desdobramentos trazidos no momento da história que chega até o
ouvinte, causando-lhes marcas e impressões únicas. Então, acontece o processo de recepção, a
propósito da qual explica Zumthor (2010, p.258):
127
A componente fundamental da ―recepção‖ é assim a ação do ouvinte, recriando, de
acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo
significante que lhe é transmitido. As marcas que esta recriação imprime nele
pertence a sua vida íntima e não se exteriorizam necessária e imediatamente. Mas
pode ocorrer que elas se exteriorizem em nova performance: o ouvinte torna-se por
seu turno intérprete, e, em sua boca, em seu gesto, o poema se modifica de forma,
quem sabe, radical. É assim, em parte, que se enriquecem e se transformam as
tradições.
Este movimento é observado na relação entre as crianças e os jovens, alunos da
Unidade Pedagógica São José, e o Seu Simeão. A recepção é observada na semeadura das
narrativas por parte dos pequenos ouvintes. Zumthor (2010, p.55), ao questionar ―Que tipo de
conhecimento o conto veicula, que papel sociológico desempenha este conhecimento e que
finalidade lhe é atribuída? Trata-se de um simples divertimento, de uma narrativa iniciática,
ou do que mais?‖, comenta:
Nas sociedades arcaicas, o conto oferece à comunidade um terreno de
experimentação em que, pela voz do contador, ela se exerce em todos os confrontos
imagináveis. Disto decorre sua função de estabilização social, a qual sobrevive por
muito tempo às formas de vida ―primitiva‖ e explica a persistência das tradições
narrativas orais, para além, das transformações culturais: a sociedade precisa da voz
de seus contadores, independentemente das situações concretas que vive
(ZUMTHOR, 2010, p.56).
No repertório de Seu Simeão, encontramos os personagens do imaginário amazônico,
tais como: Matinta Perera, Boto, Uiara, Cobra Grande, entre outros. De acordo com os saberes
do intérprete sobre a Matinta Perera, encontramos as categorias Matintas vivas e mortas:
Porque a Matinta Perera é quem já se foi desse mundo, é a alma, é
assombração... Porque tem a viva e tem a que já morreu; essas que são
vivas são as piores, porque vem perturbar a gente...
Na categoria Matinta viva, há aquelas que se apaixonam e fazem o cortejo ao par
desejado:
Quando eu era novo, eu namorava com uma que fosse Matinta Perera, ela
não veio me abraçar e me beijar de noite?! Me abraçou e me beijou de
noite, quase me matou...Lá numa casa que eu morava, eu ainda era solteiro,
aí ela veio comigo, eu olhei ela, enxerguei quando ela entrou e ela me disse
“oi...”
Muitos passam pela metamorfose sem ter ciência do fato:
É porque tem gente, assim como tem moças, tem rapaz que viram bicho e
não sabem, saem pra malinar, porque tem pessoas que já vem na veia... A
128
Matinta Perera, por exemplo, não sabe, vem saber tempos depois... E esse
que me atacou era um rapaz, que virava lobisomem...
Elas são conhecidas pelo seu local de origem:
A gente via Matinta Perera, mas ela já conhecia agente... Ela assobiava e a
gente dizia, “Matinta Perera da onde? De tal lugar...” Aí ela achava
graça...
Ai eu disse, que o que me impressionou mesmo foi que uma vez eu perguntei,
“Matinta Perera da onde? Aí ela disse de Cametá...”.
Segundo Fares (1997), a Matinta na mitopoética amazônica, é um ser noturno e
solitário que vaga na escuridão atormentando os moradores, ela se mostra através do ouvir, do
estridente assobio, ―fiiiiiiitttt, Matinta Perera...‖, até conseguir a promessa do café e do
tabaco, que será entregue no dia seguinte. A autora apresenta três configurações de Matintas:
a invisível, a voadora e a terrena:
A matinta não se materializa, ela se dá a conhecer através do assobio noturno. Às
vezes, o narrador utiliza no discurso o verbo ver, mas com significado de ouvir —
eu vi o assobio dela. A mudança semântica atenta para a visão do imaginário: o
narrador vê a imagem construída pela imaginação simbólica ou pelo imaginário
coletivo, ou só consegue enxergar com os olhos da ilusão, resultado do medo ou da
coragem. Os olhos da razão estão cegos. E como não se está mais nos tempos em
que os bichos falavam, fica-se sem argumentos para defender ou negar o fato.
A personagem que vem a lume é a humana que vira matinta, ela assume a condição
do fado que carrega, a penitência no vagar noturno. O movimento dos contos é o
seguinte: escuta-se o assobio durante a noite, oferece-se a prenda, na manhã seguinte
uma pessoa se identifica como a bruxa que vem buscar o prometido. Essa pessoa,
grande parte das vezes, é conhecida da comunidade. O jogo noite-dia, ente invisível-
visível são partes da invariância narrativa (FARES, 1997, p. 61).
As narrativas de Matinta Perera são amplamente contadas tanto nas áreas ribeirinhas,
quanto na urbana. A personagem é geralmente uma idosa que vive sozinha, situação vivida
por muitos velhos nos diversos espaços habitacionais, com facilidade encontramos as histórias
envolvendo as Matintas, diferente do Boto ou da Cobra Grande que necessitam do elemento
água para banhar o imaginário.
Elas convivem, são parte do cotidiano, podem ser qualquer pessoa que conhecemos,
talvez façam parte dos nossos laços familiares, estão vividamente entre nós, assim como o
devaneio está para o amazônida:
A matinta pode ser essa identidade saída da alma do poeta-caboclo; pode ser o efeito
dos resíduos dos espíritos indígenas habitantes do entre-lugar dos vivos e dos
mortos, das aves agourentas ou dos pássaros adivinhos portugueses, das bruxas
medievais e das entidades vampirescas; pode conter partes da negritude do saci, da
gargalhada do curupira, do fado da mula-sem-cabeça, da licantropia do lobisonho;
129
pode existir para ajudar as mães a assustar crianças desobedientes, ou para a
sociedade justificar a solidão dos velhos. Todas essas qualidades fazem dela, uma
personalidade múltipla: latino-americana — brasileira — amazônica (FARES, 1997,
p.163).
No campo das metamorfoses, humanos se transformam em outros animais, as
Matintas, como observamos anteriormente, são ligadas ao tempo noturno e podem
transformar-se em pássaros, aves – predomínio do regime noturno da imagem, de que fala
Durand (1997). No entanto, na voz do intérprete da pesquisa há pessoas que viram os mais
diversos bichos, sem a necessidade da chegada da noite:
E esse que me atacou era um rapaz, que virava lobisomem...
Soube por que eu discuti com ele, vigiava meu matapi, aí eu fui e
esculhambei sem saber que ele virava bicho, quando foi de noite... Aí, rapaz,
depois que ele quis me comer, ele não falava comigo, quando foi um dia, que
eu cheguei no Porto da Palha, falei meu nome, ele tava meio bêbado, pediu
uma cachaça e eu, pois não, aí comprei meia garrafa de cachaça pra ele,
pronto! Daquela data em diante ele ficou meu amigo, me deixou, eu não
podia sair aí no igarapé que ele vinha me pertubar... De dia, na verdade,
não tinha hora pra ele virar... Porque a pessoa que vira bicho, vira tudo que
tipo de bicho, vira aranha, vira cobra, vira pássaro, vira tudo...
A relação do ser amazônida com os personagens das narrativas contadas é
naturalmente estabelecida no cotidiano, a ponto de narrador e personagem negociarem a
trégua, a paz. O visível, o material, no caso aqui a meia garrafa de cachaça, diminuindo as
distâncias entre o dizível e o indizível, corroborando para o assentamento do imaginário,
enquanto partícipe do cotidiano das populações rurais-ribeirinhas.
Loureiro (1995, p.37-38) dispõe um conceito de imaginário trazido das pesquisas de
Leonardo da Vinci sobre suas experimentações com pintura: o sfumato, ou seja, a zona difusa
de sombreamento no desenho, efeito conseguido através do uso da estopa e não do uso do
pincel, que causa uma fusão sutil, não determinada com linhas demarcando e separando os
desenhos, um jogo de luz e sombra que causa nos apreciadores da obra de arte um impulso
poético.
No imaginário amazônico, o conceito de sfumato remete à interseção do cotidiano com
os fenômenos poéticos, gerando um entre-lugar característico da cultura amazônica, o espaço
do devaneio, da contemplação, pois ―O devaneio assim ajuda-nos a habitar o mundo, a habitar
a felicidade do mundo‖ (BACHELARD, 1988, p.23):
Coabitando, convivendo, deparando-se com o surreal como contíguo à realidade, o
homem amazônico navega culturalmente num mundo sfumato que funde os
130
elementos do real e do irreal numa realidade única, na qual o poético vibra e envolve
em sua atmosfera. Dessa maneira, o homem amazônico cria uma cultura de grande
beleza e sabedoria, transformando o habitat, onde desenvolve seu projeto pessoal e
social de vida e sonho (LOUREIRO, 1995, p. 38).
A água, nossa casa primeira, refúgio, abrigo, proteção, o elemento que nos constitui,
nutrindo, hidratando, deixando fluir a vida. As águas para os amazônidas significam corpo
vivificado, presente nos diálogos entre seres viventes e o cotidiano, o rio está em tudo,
serpenteando a própria existência.
Conhecer os ditames das águas amazônicas, seus desejos e caminhos é, para as
populações desta região, questão de sobrevivência. Compreender o fluxo das marés, a
geografia hídrica, com seus furos, igarapés etc., faz parte dos saberes adquiridos desde a
infância. As crianças aprendem logo cedo a reverenciar o rio, nadar é tão importante quanto
começar a dar os primeiros passos.
O tempo é medido pelo ir e vir das águas, elas ditam os espaços e tempos de
habitação, as cheias dos rios impelem a reinvenção do cotidiano, o rio, sem pedir licença,
passa a morar nas casas dos ribeirinhos, quando não, toma como empréstimo a pequena casa
de palafita e passa a viver até seu corpo fluido e corrente encontrar a calmaria.
Neste cenário de imensidão e propício ao devaneio, encontramos, nas histórias
contadas por Seu Simeão, os mitos ligados às águas, daí considerarmos tais textos como
verdadeiras aquonarrativas – para usar o conceito elabora por Paulo Nunes acerca da obra do
romancista Dalcídio Jurandir (2001) –, o Boto, a Cobra Grande, a Preguiça Gigante, os
Poraquês e a Uiara.
O Boto se vira em pessoa, já vi ele em terra, já de branco, chapéu, se vira...
Aí na pontinha eu vi ele me olhando, tudo de branco... Aí eu não mexi com
ele, mas quando foi uma noite ele me carregou nas costas... Olha eu vinha
da casa dela, tava namorando ainda com ela, aí tinha um lugar que eles só
viviam lá, nunca tinha passado por lá, quando foi nessa noite eu resolvi
passar por lá, aí eles entraram, dois, ai eu passei nessa beira e eles iam
voando também, rapaz, pintaram o sete e eu só faltei morrer, aí quando foi
uma noite eu vi eles em pé, me olhando, tudo de branco... O Boto é uma
coisa incrível, na água ele se joga, aqui ele tomava banho, subia no pau, se
jogava igual uma pessoa, parece uma pessoa se jogando na água... Agora o
que eu fiquei muito incrível foi que, eu vou contar pra vocês, se lembra
quando o Diquinho morreu ali, tava só eu e meu genro na ponte, minha
senhora tava pra lá, quando eu vi vem dois Botos, vinham jogando pedra,
uma pedra grande, colocavam na boca e jogavam, um pro outro, brincando
com a pedra, tô com essa idade e nunca tinha visto isso... Se fosse só eu
falando as pessoas não acreditariam, mas foi eu e meu genro, vendo eles
brincando bola... (grifo nosso)
131
Segundo Loureiro (1995, p.209), o Boto é um mamífero cetáceo de águas doces, na
Amazônia os mais conhecidos são os da espécie Boto preto, conhecido como o que
salvaguarda em caso de naufrágios e afogamentos, e os da espécie Boto vermelho, o ―grande
amante insaciável das mulheres ribeirinhas‖, o ―D. Juan das águas, sedutor de moças donzelas
e mulheres casadas‖, que em noites de lua cheia metamorfoseia-se em um belo rapaz de
vestes brancas e chapéu. Como exímio dançarino, chega às festas nas comunidades ribeirinhas
e põe-se a dançar com as mulheres, que logo são encantadas pela graça e pela elegância do
sedutor rapaz, ou aparece nos quartos das mulheres e, sem licença, deita-se nas redes para
consumar a cópula. Também as moças que se encontram em seu período menstrual, ao
olharem para o Boto, correm o risco da gravidez.
Do fruto desse amor híbrido nasce o ―filho do Boto‖, uma criança sem pai presente,
aceita pela comunidade. A situação é compreendida por se tratar de algo sobrenatural, que
foge ao domínio das mulheres. De acordo com Fares (1997, p.51), ―Eufemiza situações e
liberta a mulher de três interditos – a perda da virgindade ou o adultério, a relação entre
humanos e animais e a cópula no período menstrual‖.
A Cobra Grande, ou Boiúna10
, é um elemento da mitopoética indígena, ser encantado
que habita os rios, e assume a forma de uma navio iluminado, ou a de humanos, como na
narrativa da Cobra Honorato, para citar apenas duas das diversas variações que a Cobra
assume. Na Ilha Grande, umas das narrativas mais recorrentes na voz da população são as
ligadas ao personagem da grande cobra que serpenteia os rios e furos do entorno da
comunidade:
Olha só, essa cobra grande eu já vi três vezes, já vi ela boiar, urrando
parece um boi e boiando duas vezes ali perto da casa da dona Quinha;
ninguém percebeu de lá e nós daqui vimos... A cobra grande quando ela vem
do fundo ela dá um pulo e vem mais alto que essa casa aí, põe a cabeça lá
em cima e depois vai ficando normal, na altura do rio... E nós, olhando
daqui...
Eu e meu cunhado, quando a gente viu, “olha, olha a cobra, ela boiou”; não
tem aquela mangueira, mas abaixo um pouco, o pessoal num movimento lá,
ela escutando tudinho, ela boiou, arriou de novo na água e ficou horas e
depois sentou de novo... Aí no outro dia de novo, seis horas, aí estava eu,
meu cunhado, o Valdinho, o Arley no porto dele... Pois quando eu ia
embarcando na canoa eu vi, “olha a cobra grande, espia, espia”, aí todo
mundo olhando, aí ela boiando, ficou uns cinco minutos e foi embora... Aí
aqui eu vi ela de novo, aqui defronte, eu remando numa canoa.
10
Segundo Loureiro (1995, p. 222), uma das criações do fabulário indígena povoador das encantarias do fundo
dos rios da Amazônia é a Boiúna: mboi, cobra, una, preta.
132
Ih, muito grande, do tamanho de um camburão... É muito grossa, aí esse
Milton que tá aqui, pega uma boia dessas que tem no canal, de primeiro
fugia, aí fugiu uma saiu por aqui, varou por aqui e quando ia passando na
casa dele, ele pegou a boia e amarrou na beira...
Eu saia com um primo que eu tinha pra vender açaí em Belém, aí tinha um
senhor que morava defronte da boca do igarapé, de primeira onde morava o
Tococá, aí eu fui apanhar o açaí dele, dez latas de açaí embarquei lá. Nesse
tempo eu fumava, aí o rapaz me deu um cigarro, quando vi assim de peito,
quando eu olhei ela estava de peito, ia batendo nela, meu Deus do Céu, ela
estava olhando pra luz, ela não fez nada por causa da luz... De fronte da
Copala eu já vi uma boiar, essa foi horrível, quando ela nos pega, quando
eu vou pilotando, o barco cheio de gente, cheio de mercadoria, bem em
frente a Copala, olhando pra Universidade, as luzes...Aí, a cobra grande,
ela veio do fundo só duma vez, do lado do barco, eu só dobrei, enorme...
Rapaz, ela foi lá em cima, ela ficou olhando pra nós, ela lá em cima, agente
via tudinho ela se movimentando, e agente conta pra certas pessoas e eles
ainda dizem que não existe, porque eles nunca andaram de noite e nunca
viram... Eu já vi muita cobra grande no rio, ali no Tucunduba vinha uma
correndo em cima d’água como eu nunca tinha visto, correndo igual um
barco n’água... Quem anda de noite vê as coisas... Quem não anda não vê...
De dia é mais difícil...
Segundo o intérprete, o lugar de moradia da Cobra Grande não é o rio. Por este
motivo, as embarcações não são atacadas, ela costuma habitar num buraco subterrâneo e se
alimenta nos furos. Algumas são bravas, urram e expelem odor desagradável, outras são
mansas, convivem bem com a presença dos barcos no rio:
Agora eu vou te dizer onde essas cobras estão, não pega muita gente,
porque ela nunca mora no rio, ela tem um buraco que passa por debaixo da
terra, ali na ponta negra mora uma enorme. Agora, a de lá é braba, porque
esses meninos do Sabazinho foram pescar pra lá e ela ia pegando eles, ela
só não pegou porque eles largaram a canoa e correram pra terra... Eles
amanheceram no galho do poste e ela urrando na beira, ela solta uma
catinga muito horrível...
Na boca desse Paciência [furo do rio] aí, boiava uma cobra que ela
atravessava a boca do paciência e nós passamos três vezes por cima dela,
mas ela era mansa, porque tinha um barco igual a esse que tá fechado aqui,
aí nos passamos e ela não fez nada... Passamos três vezes, o rabo pra lá e a
cabeça ali perto da casa da piroca. Agora outra vez eu fiquei com medo, eu,
com meus dois filhos, de noite, passando no furo. Fui deixar um senhor que
estava aqui em casa, lá em Belém, lá no ponto certo, na minha lancha, na
lancha que se chamava Darlene, mas ela já se acabou por aqui, aí eles
funcionaram o motor, levaram rede, se deitaram na rede, e eu, pilotando o
motor... Quando ele chegou ali na casa do Boá, beirando aquele lado, ah
meu caro, quando passei do lado de um negócio escutei um barulho, que me
jogou lá do outro lado, a lancha quase emboca de cabeça pra baixo, eles
133
caíram da rede, “Que foi papai? Eu não sei dizer, passei de um lado de um
negócio aí...”; acho que era a cobra grande, porque ela não marisca no rio
grande de noite, ela marisca num rio estreito, a pessoa tem que ter muito
cuidado...
Mariscar, pra pegar o bicho, porque o que ela pegar, ela vai comendo...
Então, ela num rio, que nem nesse Guamá, de noite é difícil, só em estreito
como o Itaquá, no furo do prazer, tem que ter muito cuidado a noite, porque
o bicho entra pra mariscar...
Os movimentos da Cobra Grande são acompanhados pelo intérprete, ele sabe que
―quando ela vem do fundo ela dá um pulo e vem mais alto que essa casa aí, põe a cabeça lá
em cima e depois vai ficando normal, na altura do rio‖, que ―ela não marisca no rio grande de
noite, ela marisca num rio estreito‖. Eis um olhar contemplativo e peculiar ao amazônida,
apresentando-se como parte constituinte de sua existência no mundo das águas, ou, como
disse Loureiro (1995, p.231), as ilhas são os locais de refúgio das grandes cobras:
Um dos lugares de morada ou refúgio da Boiuna são as ilhas. Componentes
importantes da paisagem amazônica, elas desempenham os mais diversos papeis do
imaginário. Há, por exemplo, os periantãs ou marapatás, que são ilhas flutuantes
levadas pela correnteza dos rios; há as ilhas de capins que oscilam no movimento
das marés, como verdes cabeleiras flutuantes; há as ilhas que aparecem e
desaparecem no período das enchentes e vazantes; há as ilhas que mudam de lugar;
há as ilhas imaginárias na vaga geografia do pensamento errante [...] A ilha – circulo
fechado, imagem do cosmo, mundo reduzido – apresenta-se como um território de
sonho e de desejo. Lugar de refúgio, silêncio e paz. Circularidade mágica. Cobra
enovelada em torno de si mesma. Uma espécie de valor concentrado da natureza.
Não é por acaso que abriga importantes fabulações do imaginário relacionado à
Boiuna.
No rio que banha a Ilha Grande, seu Simeão ainda nos conta da existência de uma
preguiça de aparência horrenda e que costuma devorar as pessoas:
A Preguiça, ela boiava bem aqui, não tem esse igarapé aí, o Jaime uma vez
pescando, quando ele deu, ela boiou, ela de braço aberto pra ele, a valença
é que ela sentou... O Jaime chegou aqui quase morto, disse que ela é muito
feia, que come as pessoas, ataca... Acho que ela se mudou daí, por causo do
barulho, porque ninguém viu mais nada.
Outra história trazida pelo intérprete diz respeito a um poraquê muito grande que
habita num buraco em frente ao barracão onde fica localizada a escola, o peixe é temido pelos
ribeirinhos. Por causa da presença de células eletrócitas em seu corpo, ele pode produzir
energia de mais de 500 volts. Por esse motivo, poraquê, na língua tupi, significa ―o que coloca
para dormir‖:
134
Outra coisa, ali onde mora, ali onde é o barracão da D. Quinha, morava um
poraquê, muito enorme... Olha, eu te juro, porque o poraquê tinha um
buraco que dobrava a água assim, era enorme, enorme... O Boré, tu não te
lembras dele, ele morava aí, quando ele queria ir pra Belém, ele chamava
nós, pra nós ir de cumpanha, quando uma noite ele deixa a canoa dele no
maral, fora, né, aí tinha um pau do lado da canoa, mas o pau sentava,
quando é a noite que ele vai pra puxar a canoa o pau tá boiado, ele achou
estranho; quando ele avistou o poraquê tava olhando, a cabeça pra terra, aí
ele viu o olho do poraquê na lamparina, que ele disse meu Deus... Já ia
pisar, em cima dele, já pensou... Aí, ele só recuou, porque o poraquê faz
assim [gestos, como que serpenteando com as mãos]. E agora pra ele pegar
essa canoa? Ele pegou uma vara que tinha em terra, botou no berço da
canoa, no barranco e foi puxando...
Eu disse, “olha, esse poraquê mora aí, quando vê ele derruba, porque o
casco é fundo, o poraquê é muito horrível, ele derruba, onde ele encosta ele
derruba...”. Ele quis morar ali perto de onde o Nonato mora, lembra que
caiu um bocado de barranco lá.
A Mãe d’Água, Iara ou Uiara vem ao nosso encontro nos igarapés da Ilha Grande.
Fares (1997, p.51) apresenta uma configuração de Iara.
A iara é uma espécie de sereia amazônica ou mãe-d’água brasileira. Na nossa região,
ela aparece cercada de vitórias-régias e mururés, encanta pela beleza do corpo e dos
cabelos e, principalmente, pelo canto. O caboclo, seduzido, segue o som do canto e
conhece os mistérios do fundo do mar para onde ela o leva e não o traz de volta. E se
volta é mundiado.11
A Uiara revelada por seu Simeão não entoa canções, como costumeiramente é
observado nas narrativas, ela toca tambor, uma espécie de batucada – segundo o intérprete –,
conserva os longos cabelos como nos arquétipos femininos da sedução das sereias, nereidas e
ondinas, ao mesmo tempo em que não permite que vejam seu rosto, ―quem tiver visto seu
rosto uma única vez jamais poderá esquecê-lo, pode até, no primeiro momento, resistir-lhe
aos encantos por medo ou precaução. No entanto, mais cedo ou mais tarde acabará por se
atirar no rio em sua busca...‖ (LOUREIRO, 1995, p.261):
Uiara tem sim, aqui tinha, ali no igarapé perto de onde o Raimundo morava,
eu pescava, quando eu era mais novo, ela é idêntica uma pessoa, fica
batendo um tamburinho... Aí eu era novo, né, essas pequenas eram tudo
nova também, andavam no igarapé... Aí um dia eu ia andando de tarde,
umas quatro horas, eles vinham na batucada, entrando pra tentar ver,
quando se aproximou de mim o batuque, passou e eu não vi nada... Era ela,
11
Na Amazônia, usa-se a expressão para definir as pessoas encantadas por algum ente sobrenatural. Elas
parecem entorpecidas ou magnetizadas por um mundo desconhecido (FARES, 1997, p.51).
135
meu Deus... Eu disse pro meu cunhado, olha o nome desse Igarapé é Uiara
porque ela ainda aí por dentro...
Isso, só ouvia... Agora lá no Itaquá, quando eu era moleque lá, tinha um
igarapé, perto da casa do Eduardo, tinha um lugar bonito lá que ficava uma
sentada, ele só não deixa ver o rosto dela, mas ela é muito linda, um cabelão
na costa, ela não olha pra pessoa...
Tem, não, não, elas não cantam, ela só batia o tambor, batucando, isso era
certo... Elas cansaram de ver também, bate tambor igual uma pessoa, muito
tamburinho, o cara ficava assim, eras, parece uma banda... A Uiara, mas se
ela quiser judiar da gente ela judia, fica olhando pra pessoa, até a pessoa
ser viva ela não pega, mas ela mundia...
Os saberes aqui mapeados pela voz do intérprete fazem parte das culturas praticadas
pelos povos amazônicos. O universo mítico em que habitamos confronta-se com a feroz e
devastadora modernização, das mais agressivas às mais sutis formas de dominação a que
somos confrontados e até violentados, que concorrem para modificações em vários campos,
inclusive no modo de vida do amazônida. No entanto, o imaginário se mantém vívido,
ocupando um lugar de grande importância dos que habitam essa região, com toda a força e a
beleza das encantarias, dos seres que transitam entre os mundos.
Não perdemos nossa cultura, reinventamo-la continuamente como forma de
sobrevivência. Cartografar saberes através da voz é uma forma de resistência, de pontuar,
registrar, deixar impresso, entre as epistemologias hoje legitimadas, o nosso modo de ser, de
ver o mundo que nos cerca:
O professor é alguém que fez uma viagem e voltou. Ele foi até terras desconhecidas
e teceu suas teias. Ao voltar, mostra-as àqueles que não foram. Ele lhes diz como é o
mundo. Suas teias de palavras são mapas que mostram os caminhos seguros e
indicam as trilhas que não levam a lugar algum.
Ensinar é mapear o mundo, fazer visíveis, pelo poder da palavra, os lugares
desconhecidos [...] Sem mapas, a vida seria muito difícil, o mundo seria
permanentemente desconhecido, impossível de ser aprendido (ALVES, 2003, p.37).
Essa fala de Alves é o espelhamento para todo trajeto percorrido nesta pesquisa, de
modo que não poderia haver acabamento mais apropriado para o término do capítulo
principal, aquele em que o sujeito-chave da pesquisa – o narrador – expõe as nuanças de sua
arte de tecer com as palavras.
136
Ponto de espinha1: aproximações (in)conclusivas
Ao lançar a proposta das tessituras poéticas e fazê-la acontecer, a sensação é de ter
cartografado não somente os saberes enredados na Ilha Grande, mas de ter mapeado a minha
própria existência como pessoa nascida e criada num lugar ímpar, chamado Amazônia. Em
cada linha percorrida, os ventos das memórias da pesquisadora também sopravam forte na
face, nos cabelos, no corpo de quem também viveu nos arredores do Seu Simeão...
Haveria ainda tempo para a agulha atravessar o tecido das águas barrentas daquela ilha e
saber que nem mesmo o nome do local foi dado como um pequeno lugar, ou qualquer coisa
sem tamanha importância? Cada lugar aqui visitado ficou no bordado desta pesquisa,
conduzindo o leitor a uma terra imaginária.
Ainda haverá tempo de pegar a agulha, molhar a linha na saliva, e fazê-las atravessar
cotidianamente aquele lugar chamado Ilha Grande, para sempre costurar os saberes dos seus
moradores no tecido que veste a história da humanidade. Mas, por enquanto, aporto aqui –
após essa travessia, não haverá mais como para descansar o nosso pensamento nas formas
impostas de saberes julgando-os certos e imutáveis. Essa concepção foi lavada e levada pelas
águas que banham a Ilha Grande.
Sem querer sempre afirmar o que já sabemos, o nosso tempo agora é o rio que dita. E,
se ele corre na direção contrária ao que aprendemos, ousar pensar que é chegado o tempo da
mudança, de romper com os paradigmas e – quem sabe? – tentar sermos mais felizes. E é a
voz de James Cowan (1999, p.28) que, agora, ecoa nos ouvidos, quando chamados a finalizar
esta pesquisa:
Cada mapa que desenho é feito tanto com as informações que recebi de visitantes à
minha cela, quanto com as minhas próprias ideias, inspirados por seus
conhecimentos e, frequentemente, por seus comentários precisos e fantásticos. De
maneira estranha, entretanto, me encontro vivendo na presença do que para eles já é
passado. Conversando comigo, eles podem relembrar tudo o que tinham pensado
estar completamente perdido.
Assim como o cartógrafo sonhador, também sonhamos com a travessia que nos
levasse para a terceira margem do rio – para usar a mais que apropriada expressão que dá
título ao famoso conto de Guimarães Rosa (2001) –, para ilhas andarilhas, o lugar que apenas
é compreensível aos que ouvem a voz da tradição, escutam com os ouvidos do sensível as
1 Ponto feito da direita para a esquerda, arrematado com um pequeno ponto na horizontal em uma camada e
depois na outro, visando o cruzamento das linhas. Ponto que, mesmo deixado fixo, proporciona movimento para
o tecido.
137
palavras ditas pelos povos, que convivem irmanamente em sintonia com o cosmos e todos os
seus elementos. A estes, é reservado aportar na Ilha das encantarias, um entre-lugar onde
passado e presente navegam no mesmo popopô em busca deste porto tão (in)seguro e
(in)constante como as marés que banham o imaginário amazônico.
Os caminhos percorridos no desenho do mapa de saberes da Ilha Grande fizeram com
que fosse possível trilhar locais nunca antes visitados, ir mais longe do que as iniciais
indagações previam ao adentrar no campo da pesquisa no âmbito do mestrado.
O objeto de estudo, as questões norteadoras e os objetivos que se completavam foram
sendo elucidados no momento em que deixamos os ouvidos e os demais sentidos porosos ao
universo percebido e vivido no campo de pesquisa. O aporte teórico é um fio de linha
dourado, diz respeito a homens e mulheres que já fizeram o caminho, percorreram longos e
distintos lugares e trazem no cerne de seus estudos olhares e conceitos necessários para o
entendimento da pesquisa ora apresentada, mas encontrar na voz do intérprete a interlocução
dos saberes, o emergir das memórias abafadas, silenciadas, foi o movimento central para as
problematizações e conclusões a que se chegou.
Enquanto não reaprendermos (ou será que um dia aprendemos?) a educar pelo
sensível, através da criação, da percepção e da sensibilidade, em contraposição ao pensamento
cartesiano, binário, homogeneizador, com verdades únicas e paradigmas imutáveis, não
seremos capazes de desconstruir os discursos opressivos, que nos aprisionam sob a égide de
conhecimento científico legitimado!
Nas linhas aqui costuradas, reside um desejo de compreender e assim fazer entrar, na
circularidade das discussões em educação e cultura, a presença da voz, da memória, do
imaginário, dos saberes mediadores de relações entre povos e meio ambiente, deixar
registrado para uso da comunidade da Ilha Grande, inclusive a escola, como um dos pontos
conectáveis do rizoma, os saberes partilhados pela voz de Seu Simeão Monteiro, de 75 anos, a
partir de sua história de vida.
A bússola indica o território pretendido, mas não aquele já estabelecido pelos seus
supostos descobridores. Não aquele que a ciência não deu conta de explicar. Não o Norte
pretendido, mas o Norte esquecido, deixado de lado, afogado, silenciado. E o sonho se
amplia, faz a releitura bruta da bússola para o desenho de um novo mapa traçado. Sonho fazer
um mapa que, de tempos em tempos, possa ser ouvido, um mapa falante, com voz de histórias
estremecendo as embarcações, os rios e as matas.
138
Talvez o mapa aqui sonhado seja pouco compreendido, mas há de ser um mapa
traçado pela voz dos silenciados com suas histórias recuperadas pela agulha de marear. Eis o
sonho de mais um cartógrafo.
A pesquisadora, nestas últimas linhas, ouve a voz de tantos contadores de histórias que
generosamente compartilharam seu hálito vital, seu sopro encarnado no verbo amar, amar e
amar, porque também ouviu a voz da avó lhe falar do que aprendera com as histórias. E assim
há de ser, de geração em geração.
Fechar os olhos e sentir a brisa fria, apesar do sol do verão amazônico, é saber que o
vento forte, quando toca o rosto, é sinal de chamamento para a tomada de consciência da
essência formada pelos elementos vitais. A água, nossa casa primeira, refúgio, abrigo,
proteção... é que hoje conduz esta pesquisadora em seu útero-rio trazendo serenidade no seu
balançar, a sensação é de fazer parte do todo! E então ela se inquieta: como pode uma
amazônida viver tanto tempo sem esta troca, que é a própria troca da vida? E ela sente o hálito
de Deus neste cheiro de rio, em que o céu e rio se encontram formando uma unidade tão
múltipla...
139
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Anexos
145
ANEXO 1 – ESPAÇO NÁUTICO (AO LADO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO
PARÁ), ATUAL PORTO UTILIZADO PELOS PROFESSORES DA SEMEC.
146
ANEXO 2 – TRAVESSIA PARA BELÉM, VENDA DO FRUTO DO AÇAIZEIRO
147
ANEXO 3 – OS CAMINHOS DO RIO QUE LEVAM A ILHA GRANDE
148
149
ANEXO 4 -A ESCOLA E SUAS CERCANIAS
150
151
ANEXO 5 – RESIDÊNCIA DE SEU SIMEÃO
152
ANEXO 6 – SEU SIMEÃO EM PERFORMANCE
153
ANEXO 7 – PONTOS DE BORDADO
PONTO 1 – CASEADO
PONTO 2 – HASTE
PONTO 3 - VANDYKE
154
PONTO 4 – CHATO
PONTO 5 – ROCOCÓ
PONTO 6 – TEIA DE ARANHA
155
PONTO 7 - CADEIA
Universidade do Estado do Pará
Centro de Ciencias Sociais e Educação
Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
Travessa Djama Dutra s/n - Telégrafo
66113-200 Belém- Pa