Transcript

"Algumas Consideraes em torno da Antropologia Visual", por Luis Nicolau Pars (*)

"Algumas Consideraes em torno da Antropologia Visual", por Luis Nicolau Pars (*) A Antropologia Visual tem sido tradicionalmente entendida como aquela rea da Antropologia Scio -Cultural que utiliza os suportes imagticos para descrever e analisar uma cultura ou um aspecto particular de uma cultura. A produo de documentrios etnogrficos, ou de monografias que articulam texto com imagens fotogrficas foram, at recentemente, as principais atividades associadas Antropologia Visual.

Como foi notado por Sol Worth (1981), existe uma diferena entre "utilizar um meio e estudar como um meio utilizado". A Antropologia Visual vem desenvolvendo, desde a dcada de 70, um importante trabalho terico e reflexivo, que consiste em determinar e analisar as propriedades dos sistemas visuais e suas estratgias discursivas, assim como as condies da sua interpretao, relacionando esses sistemas particulares com as complexidades dos processos polticos e sociais dos quais so parte. O estudo do uso dos meios visuais na disseminao do conhecimento antropolgico seria, portanto, o segundo domnio de atuao da Antropologia Visual.

Como uma extenso desta preocupao na anlise dos sistemas visuais, colocaes mais recentes (Morphy & Banks, 1992) argumentam que o domnio da Antropologia Visual deveria estender-se ao estudo dos sistemas representacionais da cultura visvel, isto , ao estudo de qualquer sistema expressivo da sociedade humana que comunique o seu sentido, parcial ou principalmente, atravs de meios visuais. Este mbito muito mais vasto, que, a rigor, deveria chamar-se de Antropologia do Visual, incluiria a emergente disciplina dos estudos da cultura visual (Visual Culture Studies), assim como a Antropologia da Comunicao Visual.

Frente a um determinado fato social, o que interessa Antropologia apreender os seus sentidos ou significao, desvendar a sua complexidade conceitual e entender como os prprios atores interpretam e problematizam as suas prticas e valores. A funo do antroplogo , portanto, essencialmente interpretativa, entendendo a interpretao como um passo intermedirio entre a compreenso e a explicao. Alm disso, a interpretao antropolgica comporta um processo de traduo, no sentido de que as representaes antropolgicas so, geralmente, de uma cultura para outra. Ao lado da sua dimenso epistemolgica, ou de produo de conhecimento, o discurso antropolgico, de um modo geral, um processo representacional e comunicativo.

precisamente nessa dimenso representacional e comunicativa que os elementos imagticos, tanto estticos (fotografia) quanto dinmicos (filme, vdeo), ou a sua combinao nos suportes multimdia, com a sua capacidade para mostrar, para dar a ver diretamente, constituem recursos descritivos de inegvel valor para a reflexo antropolgica. O que resulta mais problemtico saber at que ponto esses modos de representao visual possuem uma capacidade argumentativa intrnseca que sirva aos propsitos interpretativos que se espera do discurso antropolgico e aqui cabe distinguir fotografia e linguagem cinematogrfica.

Qualquer registro visual traz sempre implcito um certo grau de interpretao do fato representado, pois ele um recorte subjetivo dessa realidade. Porm, do ponto de vista do espectador, uma imagem esttica est aberta a mltiplas interpretaes e no capaz por ela mesma de gerar um sentido unvoco, sendo que precisa ser articulada com outras imagens ou com um texto para gerar uma narrativa reflexiva. A virtude da fotografia est na interrupo da durao temporal e na capacidade de analise que se deriva da. J a linguagem cinematogrfica (ou videogrfica), na sua linearidade temporal, teria uma discursividade similar da palavra. A dimenso processual do filme cria sentido e expressa inteno. Atravs de concatenaes sintagmticas imbudas com capacidade argumentativa (Eco, 1982), o filme marca um itinerrio narrativo que direciona e estabelece limites interpretao do espectador.

A imagem fotogrfica (ou cinematogrfica) um artefato socialmente construdo, e, apesar da sua natureza icnica e indicial, capaz de gerar a iluso de constituir uma cpia ou analogia da realidade, ela apenas uma analogia de um determinado olhar, de um ponto de vista sobre a realidade. Nas ultimas dcadas, o paradigma do realismo fotogrfico tem sido seriamente questionado. A pretenso, to cara ao positivismo cientifico, de que a cmara capaz de produzir uma evidncia do real, ao considerar a imagem fotogrfica como uma transcrio fiel e neutra do real, no mais aceita. Hoje prevalecem as teorias que entendem a mensagem fotogrfica como um signo convencional, to arbitrrio quanto a linguagem verbal. A subjetividade implcita na produo de qualquer imagem relativiza a sua suposta verdade, autenticidade ou objetividade.

Entretanto, apesar dessas e outras possveis criticas, os registros visuais, sob certas condies, so susceptveis de serem utilizados como fonte primria para a anlise antropolgica. Se as imagens so produzidas com a necessria eficincia visual para destacar elementos teis reflexo e se explicitam os modos de produo empregados, a documentao visual pode constituir-se numa meta-realidade, acessvel e permanente, a partir e em torno da qual se desenvolva o exerccio interpretativo. Certamente, dependemos do compromisso tico do pesquisador para garantir a confiabilidade dos documentos visuais, especialmente hoje, em que as tecnologias digitais permitem uma cada vez mais fcil manipulao imagtica - mas isso acontece tambm com as etnografias textuais.

A proximidade ntima e singular que proporciona um registro visual capaz de descrever complexos aspectos do real e evocar um sentido de experincia e participao dificilmente expressveis pela palavra. As imagens podem funcionar, no como representaes fieis da realidade fenomenolgica, mas como um caminho, uma janela aberta para aceder realidade invisvel que se oculta por trs da aparncia sensvel. Com a crise dos discursos antropolgicos de carter totalizante, existe uma crescente tendncia a experimentar formas etnogrficas parciais, abertas, metafricas, que adotam estilos reflexivos e dialgicos, susceptveis de provocar perguntas ao espectador. Talvez nesses experimentos, os elementos imagticos, e com eles a Antropologia Visual, venham a propor novos caminhos para o futuro do projeto antropolgico.

(*) Luis Nicolau Pars pesquisador Visitante no PPCS da FFCH, UFBA, PhD em Londres com a tese The phenomenology of spirit possession in the Tambor de Mina: an ethographic and audio-visual study. London, SOAS, 1997.


Top Related