JULIA AUGUSTA BONI PERUCHI
ALCEU CHICHÔRRO:
E A CONSTRUÇÃO DA MULHER MODERNA, EM 1923.
Monografia apresentada à disciplina de Estagio Supervisionado em Pesquisa Histórica, como requisito parcial da conclusão do Curso de Bacharelado e Licenciatura em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof.º Dr. Magnus Roberto de Mello
Pereira.
CURITIBA
2006
ii
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.............................................................................iii
RESUMO.........................................................................................................iv
ABSTRACT.....................................................................................................v
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................1
2 O PERSONAGEM: ALCEU CHICHÔRRO..................................................4
2.1 O OFICIO DO JORNALISMO...................................................................10
2.2 A CRÔNICA..............................................................................................13
3 O TANQUE DE JERUSALÉM.....................................................................18
3.1 A MODA....................................................................................................19
3.2 O ADULTÉRIO..........................................................................................24
AS PUBLICAÇOES LOCAIS...........................................................................28
4 CONCLUSÃO..............................................................................................31
REFERÊNCIAS..............................................................................................33
iii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 - CHARGE PROPAGANDA DO FILME “OS TRÊS AMORES”...........10
FIGURA 2 - CAPA DE “OTANQUE DE JERUSALÉM”…………………………….11
FIGURA 3 - CHARGE “A PINTADA” ………………………………........................15
FIGURA 4 - CHARGE “RAIO X”………………………………………………………..22
iv
ALCEU CHICHÔRRO: E A CONSTRUÇÃO DA MULHER MODERNA, EM 1923.
Resumo
Através da análise estrutural de algumas crônicas que compõe O Tanque de
Jerusalém, o presente trabalho busca rastrear a percepção do jornalista e literato
Alceu Chichôrro sobre a construção de uma nova imagem da mulher, na década de
1920. A monografia foi elaborada em três capítulos, e seu desenvolvimento busca
demonstrar como uma obra literária participa de uma consciência coletiva, por que,
recapitula e desconstrói o discurso mítico da Virgem Maria. Na década de 1920, há
a constatação da emergência de uma nova mulher que se expõe aos olhares
masculinos em trajes e comportamentos desafiadores, e a literatura “fin-de-sciécle”,
com a qual nosso autor mantém contato, era profícua na construção de tipos
femininos “decadentes”, cristalizados na figura da “feme fatale”, o que gera uma
tensão entre os mitos da Virgem Maria e de Salomé. Chichôrro através de seu
discurso faz uma releitura da figura de Virgem Maria como antônimo da mulher
moderna. Caracterizando uma relação de afirmação da imagem da mulher moderna,
sobre a mulher romântica idealizada.
Palavras-chave
Mulheres, modernidade, literatura
v
Abstract
Through a structural analysis of some of the “Tanque de Jerusalém” (Jerusalem’s
Tank) chronics, this work attempts to capture the perception of literate Alceu
Chicôrro about the construction of a new woman image over the twenties. This work
is divided in three chapters, trying to show the way a literary work takes part in a
collective conscience, as it recapitulates and destroys the mythical speech of Virgin
Mary. In the twenties there’s the sense of an incoming women who exposes herself
to male looks in sensual clothing and behavior, and the “fin-de-sciécle” literature,
which is read by the author in question, was full of decadent female roles,
crystallized in the “feme fatale” figure, which creates a tension between the Virgin
Mary and Salomé myths. Through his speech, Chicôrro sees Virgin Mary as an
antonymous of the modern woman, affirming the image of the modern woman over
the idealized romantic one.
Keywords
Women, modernity, literature
1
INTRODUÇÃO
O livro O Tanque de Jerusalém, de 1923, escrito por Alceu Chichôrro é um
apanhado de crônicas que têm em comum o tema a mulher moderna e as
transformação do comportamento feminino. As crônicas em questão podem ser
consideradas análogas aos mitos etnológicos estudados pela antropologia. Assim, a
metodologia aqui utilizada para seu estudo segue o modelo de Claude Lévi-Strauss
de “análise estrutural do mito”.
Um mito diz respeito, sempre, a acontecimentos passados: “antes da criação do mundo”, ou “durante os primeiros tempos”, em todo caso, “faz muito tempo”. Mas o valor intrínseco atribuído ao mito provém de que este acontecimento , que decorreram supostamente em um momento do tempo, formam também uma estrutura permanente.1
A mitologia relata os acontecimentos que permanecem na memória, e que
tem uma natureza coletiva, ou seja, que se reproduzem em diferentes regiões e
culturas, e mantêm a capacidade de renovação.
Um mito tem múltiplas versões, Segundo Claude Lévi-Strauss não existe um
relato mítico original ou uma versão “boa” do mito em detrimento das demais. O que
existe, é um mesmo “dispositivo mental” que dá origem as versões de um mito e são
as variações deste que permitem chegar a uma estrutura comum. E é esta estrutura
invariável que nos possibilita compreender a consciência que uma cultura faz de si
mesma.
O caráter repetitivo ou previsível do mito é fundamental, pois é através da
recorrência de elementos que é possível determinar as relações estabelecidas entre
eles, e assim, compreender o sentido do mito.
Os mitos são formados por sistemas simbólicos relacionados entre si. Um
relato mitológico só tem sentido estrutural se for percebido no seu todo, na maneira
com que os elementos combinam entre si.
A noção de estrutura em ciências humanas não difere muito do que em matemática se denomina um conjunto: um todo constituído por partes articuladas. As partes são chamadas elementos, as articulações definidas por uma expressão indicadora de relações, por meio
1 LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos. In:___. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro :
Tempo Brasileiro. 1973., p.241.
2
da qual é possível obter qualquer elemento do conjunto. Esta expressão recebe o nome de modelo.2
A análise estrutural do mito, segundo Lévi-Strauss3, organiza-se de acordo
com o seguinte modelo:
1. Prioridade do todo sobre as partes: O mito só tem sentido quando seus
elementos se encontram combinados.
2. O mito é formado por grandes unidades constitutivas.
3. E necessário reconhecer e isolar as grandes unidades constitutivas ou
mitemas.
4. Os mitemas constituem relações entre unidades menores e organizam o
mito em feixes de relações.
5. A narrativa, concebida como uma sucessão de acontecimentos, possui
uma dimensão temporal: os elementos que o constituem mantêm entre si relações
de anterioridade e posterioridade.
O procedimento de análise empregado nas crônicas literárias de Alceu
Chichôrro, será análogo ao do mito, busca contemplar tanto os aspectos intrínsecos
do texto quanto a dimensão cultural, do impacto da modernidade, nas relações de
gênero.
A monografia foi elaborada em três capítulos, e seu desenvolvimento busca
demonstrar como uma obra literária, que obviamente não constitui em si um mito,
participa de uma consciência coletiva, a qual retira do repertório mítico recursos para
a sua composição.
No início do século XX, temos a emergência de uma cidade urbanizada, na
qual os aspectos morais e as relações humanas passam por sensíveis mudanças.
Neste contexto, o discurso tradicional moralista, a ideologia católica, e os romances
românticos definem o comportamento feminino ideal, alicerçado sobre a idéia de
pureza e virgindade.
Há uma necessidade de normalizar o comportamento feminino e isso se dá
através do estabelecimento de modelos de conduta, o principal deles é o mito cristão
2 PINTO, Milton José. Mensagem Narrativa. In:__. Análise Estrutural da Narrativa. Rio de Janeiro. VOZES LTDA. 1972. p. 8 3 LÉVI-STRAUSS, Claude. A estrutura dos mitos... p.243.
3
da Virgem Maria, que estabelece a idealização do papel da mulher: como mãe,
responsável pela educação dos filhos; a esposa benevolente; a dona-de-casa.
As narrativas literárias da época, apropriam-se deste mito de formas
variadas, de acordo com o seu objetivo: reforçar convenções sociais e culturais ou
questioná-las. Deste modo, o Tanque de Jerusalém participa do mito da Virgem
Maria com o intuito de desconstruí-lo.
O primeiro capítulo é um breve comentário sobre o escritor Alceu Chichôrro,
suas influencias literárias, obras publicadas. O segundo capítulo trata do oficio de
jornalista exercido por Chichôrro, destacamos neste ponto a adoção por Alceu de
uma linguagem técnica própria do jornalismo, perceptível na preferência de pelas
frases curtas e objetivas, e no formato literário da crônica, que mereceu uma
atenção especial de nosso escritor.
O terceiro capítulo inicialmente busca compreender a estrutura das crônicas
em questão, foram selecionadas seis crônicas das vinte que compõe a obra O
Tanque de Jerusalém, a partir desta escolha foi feito uma análise comparativa dos
elementos significativos, e por conseqüência recorrentes, nas narrativas. Através de
um processo descritivo a narrativa é dividida em uma seqüência, na qual existe uma
articulação previsível dos conteúdos.
Em seguida a descrição do mito-ocorrência é pensado em relação a
informações extratextuais, comparando-o com dois outros mitos, o mito da Virgem
Maria e o mito da Salomé. Em relação ao primeiro existe a construção de um
discurso inverso, ou seja, as narrativas constituem uma oposição ao mito da Virgem
Maria, já em relação ao segundo ocorrerá uma identificação.
Ao final buscamos situar as narrativas de nosso autor em um momento
literário amplo, influenciado pela literatura “decadente” do “fin-de-sciécle”, fazem
parte do mesmo imaginário outras produções locais como a novela escrita por
Octávio de Sá Brito, e inúmeras crônicas, contos e causos publicados nos periódicas
locais.
O intuito deste trabalho é perceber como se dá a relação entre os mitos de
Maria e Salomé e as narrativas analisadas. Cada crônica constrói uma história
particular sobre a mudança no comportamento feminino. Contudo, o conteúdo
significativo que estas narrativas pretendem comunicar as aproximam: são “versões”
de um mesmo mito.
4
O PERSONAGEM: ALCEU CHICHÔRRO.
Alceu Chichôrro Júnior, nasceu em 21 de junho de 1896, filho de Francisca
Hosana Rodrigues e seu esposo Joaquim Procópio Pinto Chichôrro. Seu pai era um
homem de letras, jornalista, administrador, político atuante, filósofo, polemista e
fundador do Centro de Letras do Paraná4. Chichôrro teve origem em um ambiente
intelectualizado, contudo passou por dificuldades financeiras em uma família
numerosa com onze irmãos.
Seu pai faleceu paupérrimo, com sessenta anos de idade, sem deixar nem
o numerário para seu funeral. Sua única herança foi uma vasta biblioteca,
posteriormente incorporada ao acervo da Biblioteca Pública do Paraná.
Chichôrro cursou o Ginásio Paranaense5, estudou desenho com o pintor
Alfredo Andersen e escultura com Pascoal Rispoli. Começou a trabalhar jovem, com
pouco mais de dezessete anos, como repórter fotográfico no periódico A Tribuna,
em 1913. Três anos depois iniciou sua colaboração humorística com a publicação de
versos, charges e caricaturas. Seus desenhos ganharam popularidade e um espaço
diário no jornal. Assinados sob o pseudônimo de Eloy, abordavam temas diversos,
desde reivindicações populares locais, até noticiários internacionais.
Jornalista atuante, Alceu colaborou em inúmeros jornais e revistas, foi
redator do Diário da Tarde, na Gazeta do Povo e no O Dia. Usando apenas as
iniciais A.C. assinava as crônicas humorísticas, em 20 de janeiro de 1923 edita seu
primeiro livro, uma coletânea de crônicas, intitulada o Tanque de Jerusalém. Em
maio de 1924 assume o cargo de Auxiliar de Administração nos Correios do Paraná.
Criou seu primeiro boneco Tancredo, em 1925 e, no ano seguinte, pelas
páginas de O Dia, surgiu sua personagem mais conhecida, Chico Fumaça, que caiu
no gosto do público e invadiu vários periódicos da Capital. Alceu, com seu tom
desbocado e um jornalismo combativo, sofreu ameaças de prisão, tirou férias
forçadas em Guaratuba, em 1923, e mais tarde, em 1931, foi ameaçado de
deportação para Minas Gerais.
Em 1960, lançou um livro de versos: Quando caem as trevas. No ano
4 BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p. 21.
5 O atual Colégio Estadual do Paraná.
5
seguinte, após quarenta e oito anos de jornalismo consciente, aposentou-se da lida
diária nos jornais. Em 1964, editou ainda o livro de crônicas selecionadas Mulheres
e mais Mulheres. Faleceu em 30 de abril de 1977, recebendo homenagens
póstumas da Academia Paranaense de Letras e do Centro de Letras do Paraná.6
Alceu Chichôrro fez parte do movimento futurista juntamente com Alcindo
Lima, Ada Macaggi, Correia Júnior, Jaime Balão Junior, Lacerda Pinto, Octávio de
Sá Barreto, Valfrido Pilotto e Odilon Negrão. Este empreendimento literário de
curtíssima duração teve o mérito de abalar estruturas exaustivamente repetidas e
arejar o clima da província7, empunhando bandeiras, tais como: a liberdade de
expressão, o repúdio à métrica e às formas fixas, o culto ao moderno, a oposição ao
passado e o abandono da sintaxe.
O Movimento Futurista chegou aos intelectuais curitibanos sem pretender
nenhum método ou técnica duradouros, apenas como um grito contra as escolas
parnasiana e simbolista que monopolizavam a produção literária até então. Nas
palavras de Erasmo Pilotto, a intenção era “... escrever versos sem rimas e colocá-
los de maneira arrevesada rebelar-se contra as pontuações, as maiúsculas, a
gramática, começar livros de trás para a diante, enfim abalançar-se de tudo que
fosse encenação estrambólica”8.
A irreverência aparece nos títulos dos poemas assim como nas dedicatórias
e pseudônimos utilizados pelos autores. Alceu escreveu seus poemas sob o
pseudônimo de Charles Xuxu, com títulos como: "Versos a um Bonde que Passou
em Disparada" ou "A Cidade sem Luz", ou ainda:
Poema Concreto e Anabatístico do Meu Amigo Asfalto
A rua 15 sonho, sonhando, num sonho soturno o asfalto foi inaugurado esparramado pixamente negro bem diferente ao central... O Romário está apressado, o Dr. Goulin já fumou três caixas de charutos de uma só vez... Passa o primeiro automóvel... Passa o segundo automóvel... ...........................................................................
6 Todos os dados bibliográficos contidos neste trabalho foram retirados do livro: BÓIA, Wilson. Alceu
Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p. 21. 7 SAMWAYS, Marilda Binder. Introdução à literatura paranaense. Curitiba: Livros HDV, 1988. 8 Ibid., p. 35.
6
E agora não é automóvel É um caminhão, andando contra a mão!... É tarde ... ............................................................................. Escuridão ... Escuridões... Holofoticamente negramente Fon! Fon! Fon! Fon! A chuva caiu que frio... Chuaá...Chuaaá E o asfalto ficou mais liso do que um funcionário público no fim do mês... Mas o que me deixou triste o que me penalizou mais...muito mais... mais ainda foi aquela mocinha rechonchudinha de sapato de salto alto que escorregou no asfalto... ...................................................................... (de nenhuma Academia de Letras)
(Alceu Chichorro, 1926)9
Alceu, assim como outros escritores, não abandonou totalmente a rima.
Além do visível abuso de onomatopéias e aparelhos, seus versos estão abarrotados
de situações ou comportamentos modernos: (o salto alto), a mulher ocupando os
espaços públicos, a rua, os automóveis, o asfalto. A questão do asfalto na poesia de
Chichôrro é tanto uma temática futurista – como signo de urbanização e
modernização –, quanto uma reivindicação bem humorada pela melhoria do
calçamento.
O primeiro plano de urbanização implantado em Curitiba data da segunda
metade do século XIX, ocasião em que a cidade foi elevada a Capital, tornando-se o
centro do poder e para onde convergia o desenvolvimento do Estado.
Mais ou menos na mesma época [1885], Curitiba passou a contar com água
encanada e, antes do fim do século, com eletricidade. Também são do mesmo período o
9 Alceu Chichorro. Poema Concreto e não Anabatístico do Meu Amigo Asfalto. Gazeta do Povo,
Curitiba, 20 out. 1926. apud: BÓIA, Alceu Chichorro...
7
Passeio Público e os ‘bonds’, puxados a burro que iam inicialmente da casa do Barão do
Cerro Azul no Fontana, a seus engenhos no Batel.10
As melhorias se concentraram apenas nas ruas centrais, sem acompanhar
o crescimento urbano gerado pela ascensão financeira dos industriais e
comerciantes do mate, pela proliferação de uma população urbana de profissionais
liberais e funcionários públicos e pelas políticas de imigração (iniciadas em 1855).
Portanto, as reclamações envolvendo a melhoria da infra-estrutura continuavam a
ser os principais temas abordados nos jornais, nas formas de charge, crônica e
poesia, entre outros.
Em 1913, o então prefeito Cândido de Abreu iniciou uma fase de
saneamento urbano, com a proibição da construção de casa de madeira e a
intensificação de desapropriações no perímetro urbano, necessárias ao
embelezamento da cidade,
(...) todo o centro é pavimentado com paralelepípedos, a Rua XV e a Barão do Rio Branco
alargadas, os bondes puxados a mulas são substituídos pelos bondes elétricos, o Passeio Público
passou por uma ampla reforma (...) 11
Os intelectuais curitibanos, por sua vez, estão compromissados em
alavancar a transformação do espaço urbano de Curitiba, de acordo com o modelo
parisiense, ou ainda, das duas grandes capitais brasileiras, São Paulo e Rio de
Janeiro. São inúmeros os artigos divulgados pela imprensa incentivando a
construção de espaços de sociabilidade como teatros, cinemas e parques, e a
abertura de clubes e agremiações, como também são comuns as reivindicações por
um calçamento eficaz que permita uma locomoção mais ágil, um andar apressado
ou "à inglesa”, por “bulevares” ou largas avenidas que incitam o acúmulo de pessoas
e por luz elétrica, que significa a possibilidade de ampliar o espaço de circulação
para além da rua XV.
A idéia de modernidade estava diretamente ligada às cidades,
principalmente no que diz respeito à efervescência da vida urbana. Por isso são tão
comuns as construções literárias que identificam o ambiente curitibano, ainda
10 PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Rigores e método da cidade brasileira entre os séculos XVI e XIX. Revista de Ciências Humanas, Curitiba, UFPR, 1993. p. 214 11 BARTZ, Elton Luiz, apud BERBERI, Elizabete. IMPRESSÕES: A Modernidade Através Das Crônicas No Início Do Século Em Curitiba. UFPR. 1996. p. 48.
8
provinciano, com os fenômenos de modernidade típicos dos grandes centros
urbanos, pois se a belle époque não se realiza fisicamente, encontra eco na
produção cultural.
A ânsia por parecer moderno e adquirir hábitos correspondentes é
característica dos jovens intelectuais. Percebe-se que Alceu constrói sua imagem de
“flâneur”, de acordo com a definição presente nas obras de Baudelaire “E eu amo e
quero e idolatro a boemia descuidada, que tem as ruas como salas de visita e os
bancos da praça sob o copado das árvores, como alcovas sombrias...”12
Walter Benjamin, na obra Charles Baudelaire; um lírico no auge do
capitalismo, escreve uma definição, que de tantas vezes reproduzida, torna-se uma
referência para a definição de “flanêur”:
A rua se torna moradia para o flâneur que entre as fachadas dos prédios, sente-
se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros
esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom, ou melhor, que a
pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apóia o bloco de
apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas
de onde, após o trabalho observa o ambiente. 13
Segundo Baudelaire, o “flâneur” é o homem adaptado aos novos
sentimentos incitados pela “urbs”, e regogiza-se com a multidão, o “homem do
mundo”. Não apenas um transeunte ocioso, mas o detetive, o observador, o herói,
ou ainda, o pintor do circunstancial e tudo o mais que julga eterno.14
Em Curitiba, contudo, esta modernidade pretendida nos discursos e nos
hábitos é mais uma liberdade poética do que uma realidade. Daí, o futurismo ter a
renovação como principal emblema, e atacar insistentemente as duas instituições
literárias locais o Centro Paranaense e a Academia de Letras do Paraná. Apontando
seus membros como os responsáveis pela perpetuação de uma imagem estática do
Estado.
12
BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro. Curitiba: SEEC, 1998, p.14. 13 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire; um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991. p. 35. 14 BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: O pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
9
Em 1935, Alceu foi eleito para ocupar uma cadeira no Centro de Letras do
Paraná, e no ano seguinte, para participar da Academia de Letras do Paraná. Anos
mais tarde, quando questionado pela repórter Rosinere Gamael se não havia
incoerência em tal atitude, Alceu respondeu: “Não senhora, (...). Como humorista
sou um, como poeta, sou outro. (...)”15
O literato Alceu Chichôrro participou do momento futurista, mas assim como
seus pares, acabou migrando para o Movimento Modernista, tanto pela vinculação
do Futurismo à figura de Marinetti e pela ideologia Fascista, quanto pelo movimento
apresentar características indefinidas e desagregadoras.
O Modernismo encabeçado pela intelectualidade paulista apresenta feições
nacionalistas e conceitos mais profundos; mantém a ênfase na liberdade de
expressão e na conotação individualista, além de aspectos como o poema-piada, o
verso livre (quando imbuído de funcionalidade); evita as formas fixas parnasiano-
simbolistas, dando preferência aos poemas sintéticos como “tankas” e “hai-kais” e
tem o seu maior empreendimento na busca de uma língua nacional.
A produção de Alceu Chichôrro guarda influências modernistas,
empréstimos de suas leituras e, principalmente, a linguagem técnica do seu ofício de
jornalista, exprimida na sua preferência pelas frases curtas, dicção objetiva,
linguagem displicente e a predominância das crônicas satíricas, quase anedóticas.
Sob o influxo do modernismo Chichôrro publicou apenas o Tanque de Jerusalém,
livro de crônicas. Anunciou a edição em 1923 de um livro de versos Futuristas, com
o título: O Mata-borrão da Vida, que não se concretizou.
A minguada edição de livros devia-se em parte à falta de leitores, já que a
maioria da população era constituída de analfabetos, e igualmente pela falta de
recursos e a dificuldade de impressão, pelo altíssimo custo do papel importado. Pois
em decorrência da Primeira Guerra Mundial houve dificuldade em obter vários
produtos importados, o que por um lado incentivou a ainda incipiente
industrialização. Contudo, a economia brasileira, ainda atrelada à exportação de
café, sofreu todas as flutuações e crises do mercado internacional. Sendo a classe
15 Rosirene Gamael. Depoimento de Alceu Chichorro. Casa Romário Martins. 04/07/1975.
10
média assalariada, inclusive o funcionalismo público da qual fazia parte a maioria
dos nossos literatos, a principal atingida.16
O OFÍCIO DO JORNALISMO
No Brasil, da década de 1920 eram poucos os escritores que conseguiam
manter seu sustento apenas com a remuneração da atividade literária. Segundo a
pesquisa empreendida por Regina Elena Sabóia Iório sobre a literatura em Curitiba,
é possível identificar algumas características comuns à maioria dos literatos
curitibanos, como a “procedência de famílias pertencentes às camadas médias e
baixas da população”, “a inserção precoce no jornalismo local e o vínculo a
empregos públicos modestos”.17
Alceu não era exceção, após a jornada de trabalho nos correios, ia para
uma segunda jornada na redação do jornal, a qual seguia madrugada adentro, e era
trabalho estafante e mal remunerado. Chichôrro acumulou profissões como
jornalista, repórter-fotográfico, chargista, literato, funcionário concursado dos
correios e, para aumentar seus rendimentos, desenvolvia anúncios publicitários. Por
causa da alta qualidade de suas gravuras, em pouco tempo tornou-se o mais
requisitado por empresas e estabelecimentos da capital.
As propagandas tinham em sua maioria a forma de charge com as
personagens já consagradas Chico Fumaça e Dona Marcolina e, mesmo tais
charges tendo fundo comercial, mantinham-se as características de uma charge
humorística, num processo de chamar a atenção e ganhar a simpatia do leitor
consumidor para uma propaganda que não parece propaganda:
16 IORIO, Regina Elena Sabóia; Pereira Magnus Roberto Mello. Intrigas e Novelas: Literatos e Literatura em Curitiba na década 1920. Curitiba 2004. Dissertação, Doutorado em História Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências humanas, Letras e Arte. 17 Ibid., p. 229.
11
O livro também passa a ser pensado como um produto, com título,
capitulações, ilustrações e toda uma diagramação que agrade o público, além de
sua publicação começar a ser anunciada, a fim de divulgar a obra e atrair o leitor. O
Tanque de Jerusalém é um exemplo, as crônicas seguem um padrão: não excedem
uma página e meia; cada uma é precedida de uma ou mais ilustrações; os títulos
são atraentes; a capa é colorida e ricamente ilustrada, utilizando também uma
tipografia elegante. As ilustrações obviamente são do próprio Alceu, assinadas como
Eloy de Montalvão.
Segue a foto da capa de O Tanque de Jerusalém.
Propagando do filme “Os Três Amores”
CAPA - CHICHORRO, Alceu. O Tanque De Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva & Comp. LTDA, 1923.
12
Na obra Cinematógrafo de Letras, Flora Sussekind aborda a complexa
relação entre a literatura e a técnica, no período entre o fim do século XIX e
primeiras décadas do século XX. A revolução tecnológica opera uma transformação
no próprio modo de perceber o ambiente ao redor, os aparatos mecânicos como o
automóvel, o bonde elétrico, o trem, o fonógrafo – encurtando distâncias – e o
instantâneo fotográfico – congelando o tempo em um instante –, ofereciam a
impressão “de um controle possível sobre o tempo”.
Dessa maneira, se o cinematógrafo habituava o olhar à reprodução mecânica do
movimento, a popularização do automóvel automatizava, via movimentação mecânica, um
modo de olhar as coisas em volta como se fossem puras imagens passando ao lado.
Enquanto o cinema parecia tornar ainda mais verazes as imagens técnicas, a
movimentação dos automóveis, bondes e trens dava ao objeto cotidiano contornos meio
mágicos.18
A transformação no modo de olhar o ambiente ao redor, a percepção de
tempo acelerada, a construção de uma passividade do espectador perante o
cinematógrafo, a possibilidade de uma percepção desatenta, a imprensa diária que
exige a “condensação da História” na tentativa de captar o transitório mesmo que
sob a perspectiva do descarte, e por fim a profissionalização dos literatos via
imprensa, traduz-se na incorporação dos aparatos mecânicos em voga pela
literatura, o que pode ser percebido na aproximação do texto literário com o
instantâneo fotográfico ou o cinematógrafo, a leitura de fácil digestão, os enredos e
personagens simplificados que “passam-sem-deixar-marcas”. Isto não significa uma
desqualificação da narrativa literária do período, nem tão pouco a apropriação
arbitrária dos escritores por essas práticas, mas sim um registro consciente: “Diante
de um novo horizonte técnico em configuração interferindo diretamente nas formas
de percepção da população, assim como nos modos de impressão e veiculação de
textos”.19
Os jornais se utilizam cada vez mais de uma grande quantidade de textos
curtos, registros fotográficos, de modo a inculcar nos leitores uma “percepção
baseada na superfície”.
18 SUSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras – literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 50. 19 Ibid. p. 86
13
Por causa dos enredos concisos e simplificados, assim como pelas próprias
personagens, há uma proliferação de denominações como “personagem-charge”,
“personagem-ilustração”, “personagem-crônica”, “personagem-figurino” e
“personagem-rótulo”, inúmeras variações da “personagem-só-superfície”, que
apresenta somente duas dimensões, assim como uma fotografia ou um cartaz,
podendo ser descrito com poucas palavras, e prestando-se a uma leitura de “meia-
atenção”.
Chichôrro, em 1929, anunciou a “estréia” de sua nova seção de crônicas
chamada Gravetos e Fagulhas no jornal O Dia:
Vai começar a função do teatro moderníssimo Gravetos e Fagulhas. Esse teatro não tem ‘ponto’ e se agradar, se tiver sucesso de bilheteria, quem sabe se vai dar ‘ponto’... Ele não tem gênero certo. Não tem preço fixo, nem hora marcada. No geral, abre-se pela manhã, como todo café que se preza. Mas isso não quer dizer que o respeitável público seja obrigado a assistir pela manhã. Não! O espectador que quiser pode guardar no bolso, na pasta, debaixo do braço ou mesmo na mão e à noite saboreá-lo da forma que lhe convier. É uma questão de gosto e comodidade... Está assim, feita a apresentação de Gravetos e Fagulhas, teatro noticioso, informativo, comercial e político, humorístico, clerical, lírico, apaixonado, independente, filosófico, variado, ilustrado, esportivo e tudo o mais que for inventado.20
Perceba que Chichôrro anuncia sua nova seção como uma mercadoria ou
uma peça de teatro, cuja longevidade está diretamente ligada ao “sucesso de
bilheteria” e que pode ser consumida como um divertimento, tal qual a apresentação
circense, ou como pode também ser “saboreada”, como sugere o autor. Chichôrro
compreende a natureza da crônica, sua “senilidade precoce” e coloquialidade,
aproximando-se ao causo de botequim, que brilha e encanta no instante em que é
lida ou consumida, para logo em seguida dissipar-se junto com o jornal do dia.
A CRÔNICA
O formato narrativo da crônica moderna alcança enorme popularidade,
porque é baseado no cotidiano, no circunstancial, um registro individual de seu
tempo, com espaço para comentários e sensações do autor. A crônica pode ou não
20 Alceu Chichorro, Gravetos e Fagulhas. O Dia. 02 abr. 1929. apud. BÓIA, Wilson. Alceu Chichorro. . . p.22
14
abordar um acontecimento de conhecimento público, mas busca sempre estabelecer
uma identidade com o leitor, utilizando a cor local, situações familiares ou que
indiquem a alteração no tempo vivido.
A crônica é um texto breve, geralmente veiculado em jornais. Assim sendo,
não tem pretensões de perenidade, “oscila entre a reportagem e a Literatura”, num
movimento de “recriação do cotidiano por meio da fantasia”. Marcada pela utilização
da primeira pessoa, “o ‘eu’ está presente de forma direta ou na transmissão do
acontecimento segundo sua visão pessoal”, portanto, é subjetiva. Nas palavras de
Drummond, um “monodiálogo”, ao mesmo tempo diálogo e monólogo.21
No caso de O Tanque de Jerusalém, as crônicas foram escritas por Alceu
Chichôrro para compor o livro, portanto perde-se muito da ligação com o
acontecimento diário, aproximando a crônica do conto. Com exceção de algumas
crônicas como No Céu, Nas Entranhas da Terra, O Aroma Delicioso e As Vantagens
do Decóte, nas quais o eu lírico está na primeira pessoa, o restante utiliza-se do
“não eu”, ou seja, da terceira pessoa, como definiria Moisés Nassaud:
A crônica voltada para o horizonte do conto prima pela ênfase posta no “não-eu”, no acontecimento que provocou a atenção do escritor. (...) Não significa que o escritor se alheia do acontecimento, pois que a própria crônica testemunha uma adesão interessada – mas que o acontecimento tão-somente requer o seu cronista, inclusive no sentido etimológico do termo, ou seja, o seu historiador22.
Alceu assemelha-se a um contador de causo, com uma narrativa fluida,
despreocupada, e faz uso de todos os dispositivos possíveis para ampliar a
comicidade das personagens, recorre ao riso fácil sem nenhum remorso.
A crônica acaba por incorporar o mesmo processo mimético de fácil
decodificação das charges. As personagens e as situações são descritas com
poucas palavras, a ponto de deixar propositalmente explícito desde o início, sua
função cômica na trama. Muitas vezes a própria ilustração, tipo charge, já antecipa a
mensagem do texto.
21 MASSAUD, Moisés. A criação literária: Prosa. São Paulo: Melhoramentos, 1967. 22 Ibid. p. 254.
15
Veja o exemplo da charge a seguir, ela antecede a mensagem da narrativa,
na crônica intitulada A Pintada um senhor procura por sua vaca leiteira chamada
pintada, ao perguntar a uma vizinha se esta sabia onde a pintada poderia estar, A
vizinha leva-o até a pintada
Com o objetivo de aproximar a crônica ao gênero cinematográfico, Alceu
utiliza o procedimento literário da “imitação”23, abusa dos diálogos para dar
velocidade e ressaltar o imprevisto da narrativa, utiliza uma chuva de exclamações e
reticências para teatralizar a fala das personagens, com ênfase no espanto e na
hesitação dissimulada. As crônicas de Chichôrro trabalham com a percepção de
tempo voltada para o instante, toda a crônica se desenrola num curto espaço de
tempo, tendo em vista o momento inusitado, que dá sentido à narrativa.
A modernização tecno-industrial ocorrida na virada do século XIX,
juntamente com as transformações do ambiente citadino e a rápida alteração dos
costumes, são fatores vivenciados pelos literatos, que assim como o desejo do vir-a-
ser, concretizado nas leituras dos grandes escritores em voga no período,
influenciaram a escrita de nossos autores.
Portanto, o levantamento das possíveis influências de algumas leituras
empreendidas por Alceu Chichôrro é útil no sentido de balizar e indicar qual seria a
forma mais autorizada de ler seus escritos.
23
SUSSEKIND, Cinematógrafo. . . p. 90
CHARGE -CHICHORRO, Alceu. O Tanque De Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva & Comp. LTDA, 1923. p.22
16
Wilson Bóia, na biografia escrita sobre Alceu Chichôrro, elenca os títulos de
parte da biblioteca pessoal de Chichôrro. Entre 688 títulos, os dois escritores de
maior recorrência são Eça de Queirós e Honoré Balzac. O primeiro com as obras: A
Cidade e as Serras (1915), Alves e CIA (1926), Cartas de Inglaterra (1915), Cartas
Familiares e Bilhetes de Paris (1925), Ecos de Paris, O Egito (1927), Os Maias
(1930) e Ultimas Páginas (1922), e as obras sobre Eça: Eça de Queirós (Alberto
Oliveira/ 1951), As idéias de Eça de Queirós (Francisco Werneck) e Os tipos de Eça
de Queirós (J. De Melo Jorge/ 1944). As obras de Honoré Balzac são: A mulher de
trinta anos (1961) e Luz interior (1935), e as obras sobre Balzac: A vida prodigiosa
de Balzac (René Benjamin/ 1961) e Dois Mestres – Dickens e Balzac (Stefan Zweig/
1935).
Ambos eram escritores Realistas, que almejavam construir por meio de
suas obras, um amplo painel da sociedade, ao abordar uma gama diversa de
assuntos e uma variedade de tipos urbanos em seus romances.
Balzac (1799-1850) trata, em boa parte de sua obra, da vida aristocrática
francesa e da pequena burguesia, dando ênfase às relações humanas. Em suas
obras, as mulheres são a “pedra angular” e, independente se heroínas ou vilãs,
agem no intento da satisfação de seus próprios interesses. Este seria, portanto, o
fator crucial para a caracterização de seus tipos femininos.24
Eça de Queirós (1845-1900) tem como influência a literatura realista
francesa e, entre outros, Balzac. Eça é dono de uma observação crítica e minuciosa
e atendo-se aos detalhes, retrata os costumes da sociedade de seu tempo. Em Os
Maias (1888), o subtítulo é “episódios da vida romântica”, mas para além do
romance surge a discussão sobre as relações entre a alta burguesia e a fidalguia.
Em “A cidade e as Serras” (1901), aborda a sociedade parisiense e descreve-a
através dos costumes, dos passeios pelo “Boulevard”, do gosto pela tecnologia, da
ânsia pelo progresso decaindo em um desânimo, ou ainda através de certo niilismo.
A crítica aos costumes de Eça de Queirós prima pela ironia, e sua
capacidade de destruir instituições e comportamentos arraigados. A definição de
ironia proposta pelo crítico José Maria Bello a Eça:
24
BALZAC, Honoré de. A Comédia Humana XVII. Fisiologia do Casamanto: Pequenas misérias da vida conjugal. Trad. Luís Lambert Seráfita. Rio de Janeiro: 1955.
17
Opomos naturalmente, no campo da estética, o irônico ao grave, ao solene, ou,
ao sublime. Pela ironia, procuramos fugir à grandeza, ao dramático contingente das que nos
esmagam e que, portanto, nos diminuem em nosso próprio orgulho. Despertando o riso, a
ironia corrige ou destrói, pela sensação agradável que proporciona, a emoção inversa de
tristeza e de acabrunhamento que possa derivar-se da gravidade trágica da vida. 25
Definição que serve também para Alceu Chichôrro, pois suas crônicas em O
Tanque de Jerusalém utilizam-se de um exagero caricatural nas personagens para
desnudá-las sem misericórdia às gargalhadas do leitor, para sorrir das tolices, dos
enganos humanos e acreditar na capacidade construtiva da ironia. Isto é marca
patente em sua obra. Não importa se na literatura ou na caricatura, ele tem o riso
como a forma mais elaborada de crítica.
25 BELLO, José Maria. Retrato de Eça de Queirós. São Paulo: Nacional, 1977. p. 148.
18
O TANQUE DE JERUSALÉM
Alceu Chichôrro escreveu O Tanque de Jerusalém26, em 1923, o livro é
composto por vinte crônicas humorísticas que falam sobre as mudanças dos
costumes, com ênfase na transformação do comportamento feminino. Neste
trabalho, serão analisadas apenas seis crônicas que foram subdivididas em dois
temas: a moda e o adultério.
As crônicas selecionadas: Raio X..., As vantagens do decóte, A valsa de
Chopin, Cachimbadas, O Capeta e A velha myopia, possuem unidades funcionais
em comum, o que possibilita pensarmos em significados gerais para alguns
elementos, como por exemplo: o espaço em que se passam as crônicas são os
locais públicos de lazer ( praças, bailes, jogo de “football” ou saindo de casa), o que
remete ao processo de deslocamento da mulher do ambiente privado para o público.
Já o espaço em que se passam as narrativas de adultério e os próprios adultérios
femininos é a casa, ou seja, as dicotomias existentes entre público/privado, entre
locais de sedução/reclusão, entre homem/mulher são amenizadas, em uma crítica à
construção de regras morais que enclausuraram a mulher no lar, sob a pretensa
vigilância do esposo. As recorrentes descrições do caráter das personagens
(volúvel, namoradeira, formosa, vaidosa) implicam na tentativa de construir um tipo
feminino específico a “melindrosa”, cujas qualidades são o oposto do ideal de mãe e
mulher, que constituíam os discursos tradicionais na época. O vestuário (fator
desencadeante de varias tramas) é um dos elementos em destaque, pois as
transparências e os decotes ousados são um indicativo das alterações no
comportamento feminino, e denotam a emergência de uma sexualidade feminina,
até então, oculta.
A ação das narrativas se articula em meio à tensão entre a tentativa de
afirmação dos comportamentos modernos (o uso de transparências, decotes, e o
adultério feminino), e a permanência da tradição (desaprovação e censura). As 26
CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque de Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva & Comp. LTDA, 1923.
19
crônicas têm seu desfecho ou com a complacência do homem em relação ao novo
comportamento feminino, o que denota certa passividade dos personagens em
relação às transformações trazidas pela modernidade, ou ainda, as histórias
terminam em um impasse de efeito humorístico, quando a narrativa bifurca-se do
“sério” para o “cômico” revelando a existência de uma narrativa paralela disjunta.
A MODA.
O tema das narrativas a seguir é a moda e a insurreição da mulher no
espaço público. A crônica intitulada Raio X. . . é iniciada com a espera dos pais d.
Gioconda e dr. Aragão pelo termino da “toilette” de sua filha, senhorita Aida.
O dr. Aragão a esperava pacientemente, consultando de momento a momentos o “Omega” de algibeira, e olhava por entre as cortinas de renda e os vidros da janella a “limousine marin” de carrosserie” brilhante, estacionada defronte o portão. (...) Nessa occasião entrou na sala, radiante e linda, a senhorita Aida, vestindo uma bella “toilette” de sêda lavável, muito leve, transparente e “roseclair”. E notando a visível contrariedade do pae, falou com acanhamento: -- Estou prompta, papae... -- Prompta? Parece que tu não usas roupa branca? -- É moda, papae... respondeu Aida, depois de morder os labios de carmim. --É moda, sim, Aragão – continuou d. Gioconda. -- Não aprovo esta moda : andar agora uma moça, com vestido transparente, em cima da carne... -- É pra fazer Raio X, papae ... -- Raio X ? Que coisa é esta ? -- É passear na Avenida Xavier à hora em que o sol, no occaso, atira lá da linha do horizonte os seus raios de luz sobre os vestidos transparentes. -- E tu achas bonito isso? -- Eu não, papai, mas a moda não é para que usa, e sim para quem a vê, E os moços
dizem que a moda mais bonita é a do Raio X. . . 27
A valsa de Chopin é uma narrativa que se desenrola no salão de um baile:
Mlle. Carmen, que havia interrompido o dialogo, percebendo a inércia do meio masculino e não resistindo á tentação da música, cujos accordes se casavam perfeitamente com a sua alma romântica, iniciou o baile, dirigindo-se ao dr. Oliveira Martins, cavalheiro edoso, a quem convidou para dansar. Isto bastou para que logo affluísse aos magestosos salões grande numero de pares, agora por solicitação dos cavalheiros contagiados pelos enthusiasmos da romântica senhorita.(...) A valsa parecia tanto mais interminável, quanto era visível o cansaço de todos (...) Desalentado, exausto, quasi morto, o conselheiro arriscou expressões muito fora de seus moldes:
27Ibid. p. 12
20
-- Senhorinha deante do fausto pagão desse decóte, eu sinto toda a indigencia do meu esforço, toda a miséria da minha inferioridade. A patina do tempo acaba sempre desgastando o ardor juvenil. Estou offegante. Sentemo-nos, que o maestro Zarath não termina mais. Mlle. Carmen, contrariada e disposta a esperar que o maestro desse fim à marca, interpellou-o: -- Como, dr.? não acabamos? (…) -- Na minha idade, senhorita, não se acaba mais ...28 A crônica As Vantagens do Decóte, se passa na arquibancada de um
“match de football”, local em que o narrador ouve a conversa de duas senhoritas.
E lá sentado entre senhoritas, qual uma magriça nesga de presunto apertado por duas cheirosas fatias de pão branco, gostoso e delicado, estava eu – original sandewiche! – olhando os britannicos garbosos e valentes a baterem-se em lucta com os intrépidos esforçados internacionaes. (...) E como pouco, muito pouco, eu comprehendesse daquella peleja, puz-me a ouvir a conversa de duas vizinhas minhas. Falavam ellas interessadas e intimamente: -- Não vês. Eunice, como Rachel está exageradamente decotada? Repara que quando ella se agita para aplaudir os internacionaes, os seus seios quasi saltam por cima da linha divisória do decóte... -- Mas que quéres, Lady. . . A Rachel anda na última moda . . e eu mesma creio que o decóte exagerado é vantajoso? -- Vantajoso? -- Sim. Imagina tu que difficuldades encontra uma senhora que não usa vestido decótado, quando tem necessidade de ammamentar o filhinho. . . -- Mas a Rachel é solteira. . . não tem filho!... Nesta ocasião, a moça chegou-se mais para perto da amiga e balbulciou: -- Mas. . . tem namorado! . . .29
A década de 1920, momento em que foram escritas as crônicas, é marcada
pela ascensão econômica da classe burguesa, e a construção de um discurso
disciplinador dos costumes e do comportamento, baseado no controle dos instintos.
A urbanização da cidade surge como uma tentativa de disciplinar a população em
torno de uma idéia de civilização, e das idéias positivistas.
No pensamento positivista disseminado por Augusto Comte, o modelo de
conduta estabelecido para a mulher tem: a moral, o casamento, a submissão e a
castidade como características desejáveis. À mulher, devido a sua “natureza”
altruísta, cabia o papel regenerador da sociedade, seu dever era educar os filhos e
zelar pelo bem estar da família.
Um conjunto de normas, deveres e obrigações foi formalmente estabelecido para regrar o vínculo conjugal, a fim de assegurar a ordem familiar. A cada representante da sociedade matrimonial conferiu-se um atributo essencial. Assim, se ao marido cabia promover a
28
Ibid..p.25 29
Ibid. p. 28
21
manutenção da família, à mulher restava a identidade social como esposa mãe. A ele a identidade pública; a ela, a doméstica30.
A maternidade aproximará a mulher ao modelo de Maria, e à medida que o
sexo feminino é construído como símbolo de pureza e castidade, a mulher era
definida em função dos valores masculinos, devia ser boa esposa e mãe extremada.
O ideal de mulher/mãe foi construído, nos discursos tradicionais, tendo como
referência o mito da Virgem Maria com seu ideal de pureza, maternidade e
redenção.
As crônicas de Chichôrro são escritas num momento em que Curitiba
passava por uma intensa urbanização, e a dinâmica da cidade sofria alterações
perceptíveis inclusive no comportamento feminino. A mulher até então, reclusa ao
lar, passava a ter mais liberdade para ocupar os espaços públicos.
Neste ponto a cidade moderna, exerce um papel fundamental, pois inaugura
espaços de convivência mútua entre homens e mulheres, o espaço público passa a
ter um novo significado, o dos jogos de sedução, como o flerte. A mulher assume
posturas muitas vezes consideradas difamadoras pelo discurso conservador: passa
a ocupar as salas escuras dos cinemas e os locais destinados à diversão, como os
bailes e pratica danças provocantes como o maxixe e o tango.
A mulher, ao ganhar o espaço urbano, atinge maior visibilidade e com isso
multiplicam-se as preocupações com o embelezamento do corpo. Paralelo a isso,
deu-se um processo de incentivo ao consumo, devido à ampliação do mercado e
dos produtos importados, como os “...perfumes, cremes, loções, batons, leques,
jóias, lenços, chapéus, meias de náilon norte americanas...”31.
Nas crônicas de Alceu, a mulher moderna aparece como produto de uma
sociedade que se torna cada vez mais superficial e consumista, num movimento
amplo de culto à auto-imagem e de supervalorização da aparência. Nas palavras de
Margareth Rago “Se a aparência feminina era colocada em primeiro plano pela
própria mulher, preocupada em exibir-se como figura sedutora, charmosa e
30
MOTT, Maria Lúcia, Maluf Marina. Recônditos do mundo Feminino: da Belle Èpoque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.379. 31 Ibid. p. 66
22
sofisticada, sobretudo no caso das mais privilegiadas socialmente, tudo levava e
exigia que assim fosse”32.
A elite urbana local se identificava com um gênero de vida europeu ou
cosmopolita e tinha a preocupação de adequar-se à penetração da cultura moderna.
Perceba como o autor recorre ao emprego dos estrangeirismos, afim de demonstrar
este pretenso cosmopolitismo nos seus personagens. Na crônica Raio X... há um
cômico abuso das palavras em francês como: “biseauté”, para referir-se ao espelho,
“limousine marin” de “carrosserie” brilhante e das marcas para referir-se ao objeto
“lencinho ‘gris’ perfumado a Coty” e o “Omega” de algibeira. Devemos ter em vista
que nas cidades brasileiras de uma forma geral: “A transformação cultural precede a
industrialização, a urbanização e a modernização de fato. As cidades passam a
imitar a maneira de ser européia, passam a desejar esse novo gênero de vida”.
Em relação á moda Chichorro dá destaque para a progressiva minimização
do vestuário feminino, que pode ser percebida como uma reivindicação por uma
maior igualdade de direitos, e como tentativa de libertação da mulher em relação aos
antigos valores.
32 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 64.
23
Os vestidos aparecem extremamente decotados e transparentes “à moda
RaioX...”, o uso de cabelos curtos a “garçoniere”, a maquiagem visível, o ato de
fumar cigarros, São elementos que auxiliam na construção da imagem da mulher
como transgressora, e objeto de desejo, ao mesmo tempo que contribuíam também
para a idéia de liberdade feminina.
Além do vestuário o próprio comportamento feminino ganha novos
contornos, o progressivo deslocamento da mulher do ambiente privado para o
espaço público, constrói a imagem da mulher moderna e sedutora.
A cidade urbanizada, assim como a mulher sedutora constituem a beleza da
civilização moderna. A identificação entre a cidade e a mulher se torna comum no
fin-de-sciécle. “A imagem da mulher desejável se justapunha à imagem da cidade
adornada, e ambas evocavam sentidos sexualizados”33.
33
OLIVEIRA. Claudia. A ‘Venus Moderna’: Mulher e sexualidade nas ilustradas cariocas Fon-Fon!, selecta e para todos…, entre 1900-1930. Disponível em <http://www.Seol.com.br/mnene/ed11/081.pdf.>. Acesso em: 08 nov. 2006.
CHARGE -CHICHORRO, Alceu. O Tanque De Jerusalém. Curitiba. PR.; Placido e Silva & Comp. LTDA, 1923. p.12
24
Uma nova imagem da mulher como objeto erótico, fetichizado, e sedutor
ganha espaço na imaginação dos homens. Na crônica As vantagens do decóte, por
exemplo, o narrador da evoca uma imagem sensorial-gustativa, as duas mulheres ao
seu lado aparecem como duas “fatias de pão branco, gostoso e delicado” a serem
devoradas34.
Na sociedade do início do século XX, percebida por Chichôrro, a mulher
aparece como uma figura desestabilizadora, os seus “desvios” morais são a
negação dos valores tradicionais. Nosso cronista esmera-se em construir um tipo
feminino específico, a “melindrosa”, em geral, são moças na flor da idade,
“admiráveis” pela futilidade, volúveis à moda e auto-centradas, portanto, a antítese
do mito da Virgem Maria.
A substituição do ideal feminino positivista pela figura da mulher libertina e
transgressora coloca em xeque, não só a instituição familiar, como a própria
organização da sociedade. A mulher passa a questionar o status de esposa, dona
de casa e mãe, para timidamente adentrar o mundo social da diversão e do trabalho.
A imagem da mulher moderna, misteriosa, sedutora e “disponível” ao olhar
masculino, permitiu a emergência de uma narrativa sobre a mulher, que tem como
temática o flerte, a ingenuidade dissimulada, o adultério ou o amante. Enfim, um
conjunto de imagens que apresentam a mulher como transgressora.
O ADULTÉRIO
As narrativas a seguir, são algumas das crônicas, encontradas em O
Tanque de Jerusalém que têm como tema o adultério:
A crônica a Velha Myopia... é a história de um velho Major cuja vista sofria
com a idade e a avançada “myopia”:
34 A relação entre a sexualidade a e alimentação já é abordada, em 1987, por Freud em uma passagem da obra A Interpretação dos sonhos, “(...) Visto que ‘cama e mesa’ constituem o casamento, esta muitas vezes ocupa o lugar da primeira nos sonhos, e o complexo de idéias sexuais é, na medida do possível, transposto para o complexo do comer”. in Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1987, vol. V, p. 387. Apud Aline Gurfinkel. Sexualidade feminina e oralidade: comer e ser comida. Disponível em <http://www2.uol.com.br/percurso6/aline.html>. Acesso em: 08 nov. 2006.
25
A esposa do velho major, catita e formosa jovem de 17 annos. (...) pedia ao oculista que empregasse todos os recursos de sciência ocular... para salvar o marido de uma cegueira completa. [Ao oculista, o velho Major queixava-se] -- O meu maior desgosto, doutor, é ter chegado a tal ponto a minha myopia, que não enxergo a minha querida Lydia. (...) -- à noitinha, doutor ... Quando ella vae ao jardim gosar os últimos frescores da tarde no caramanchão” (...) -- Tenho a vista tão perturbada, doutor, que, às vezes, as imagens começam a dançar, a dançar e parece que ao envez de uma pessoa, eu vejo duas! O dr. Celerino coçou a cabeça e terminou: -- Parece, major... parece mas não é ... Isso de ver duas pessoas no caramanchão é efeito de óptica à noite... E o major convenceu-se.35
Na próxima crônica intitulada Cachimbadas, os recém casados Miranda e
sua senhora Mme. Carlota, ainda tentando adaptar-se aos costumes um do outro:
Nada mais desagradável para uma senhora, como Mme Carlota, bonita, educada, elegante e moça, do que aturar um marido que cachimba (...). -- Meu queridinho, vou pedir-te a primeira cousa. Tu fazes? -- Eu queria meu amor, que tu não fumasses mais nesse cachimbo. Não posso suportar este cheiro de fumo. . . -- E é só isso que pedes, meu anjo?!. . . -- Só julgava que tu ias brigar com tua Carlotinha, pois és doido por uma cachimbada... -- Mas bem sabes que eu faço todas as tuas vontades... de hoje em diante prometto que não mais fumarei no cachimbo em tua frente. . . -- E dizendo isso, o Miranda já architectava um plano, no cerebro, para sahir todas as noites com pretexto de ir dar uma cachimbada na rua. . . Habituando-se com os repetidos pedidos que seu esposo fazia todas as noites para ir dar uma cachimbada fora de casa, Mme Carlota via nisso uma necessidade como outra qualquer e não mais reprehendia o marido quando elle chegava pela madrugada ao santo lar, onde dormia socegada sua querida mulher... (...) Clemente, voltou para casa muito antes da hora que costumava chegar diariamente. A casa estava com a porta semi-aberta e no seu interior não havia luzes. Seriam talvez três horas da madrugada, quando um automóvel parou á esquina(...) Era Mme. Carlota. Entrar no quarto e despir-se foi obra de alguns minutos. -- Onde estivesse até estas horas, Carlota? Bonita, educada, elegante, e moça, mostrando as linhas esculpturaes de seu corpo, sob a camisa de sêda creme, temendo uma fúria que viesse prejudicar todo seu futuro, Mme. Carlota imitou o marido, cheia de mêdo: -- Fui dar uma cachimbada, meu bem. . . E desapareceu sob os cobertores.36
A próxima crônica, de título O Capeta, conta a história de Saturnino, que
sendo muito medroso desde criança, virou motivo de “troça”, tamanho era o medo de
assombrações, capeta, fantasmas, mulas sem cabeça, lobisomem...
35
CHICHORRO, Alceu, O Tanque. . . p.35 36
CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque. . . p.37
26
O tempo passou. Saturnino aos vinte e oito annos desposára a Belinha, luxenta filha do escripturario federal aposentado. (...) Faceira, volúvel, namoradeira, a mocinha não podia de forma alguma coadunar com o feitio do seu marido, que se tornara aos vinte e oito anos o mais perfeito exemplar do burguez, e além de tudo, do burguez medroso. Desgostoso com o desprezo da esposa, Saturnino mettia-se todas as noites no club e só tornava ao lar quando os gallos começavam a amiudar seus cantos e afugentar os phantasmas... Chegando em casa, ó tortuta! Bateu, bateu à porta que a criada custou vir abrir... Nervoso, rangendo os dentes com o chapéo na cabeça, dirigiu-se para o quarto onde encontrou a Belinha, de pé, em camisa, cabellos, em dasalinho e as faces vermelhamente lascivas, como si fossem luxuriosamente beijadas... Ao ver o marido, a faceira e moça Belinha pulou toda melindrosa para a cama e debaixo da alva colcha de fustão suplicou ao marido -- Saturnino, fecha a janella, meu amor...(...) -- Um vulto corria pelo grande quintal deserto, sumia-se, para pouco depois escalar o muro... Saturnino não poude refrear a sua admiração e o medo que o tomára: -- Belinha, anda um vulto a correr pelo quintal!... -- No quintal? Interrogou a esposa, simulando surpresa. -- Sim, no quintal, e vae pular o muro!.. -- E homem ou mulher? -- E homem : está de preto e veste capa.... -- Ah!...Gemeu a Belinha, está de capa, então é um capeta!...Vem deitar... Num pulo, rapido, sem tirar o chapéo nem a roupa, o Saturnino metteu-se debaixo da colcha e confessou à esposa: -- É por isso que eu não gosto de vir antes da madrugada!...37
A abundância de crônicas a respeito do adultério significa que o discurso
masculino passa a identificar a mulher comum, com a figura da mulher
transgressora. Não por coincidência, as traições femininas acontecem
majoritariamente no âmbito doméstico: na crônica a Velha Myopia... a traição ocorre
no caramanchão do jardim, sob a vista míope do marido; em O Capeta dentro do
próprio quarto, na ausência do marido. A única exceção é a crônica Cachimbadas,
na qual a traição ocorre fora do âmbito doméstico. Observe em que termos é feita a
descrição do lar quando o marido chega: “A casa estava com a porta semi-aberta e
no seu interior não havia luzes.”, a casa na ausência da esposa perde o sentido,
configura um local abandonado, o que só faz reforçar a identificação da mulher com
o espaço doméstico.
O que nos leva a crer que o motivo da desilusão do nosso cronista em
relação ao casamento está relacionado com a percepção de que : “ Salomé e a
37
CHICHÔRRO, Alceu, O Tanque. . . p.52
27
mulher que está em casa são uma mesma pessoa. Isto é entendido como a
destruição do mundo doméstico do homem.” 38
Na versão bíblica, Salomé era apresentada como agente responsável pela
morte do profeta João Batista. Salomé, influenciada pela sua mãe Herodíades, pediu
a cabeça do profeta em troca de uma dança para o rei, ao receber a cabeça de João
Batista das mãos do carrasco Salomé entrega-a a sua mãe.
Na literatura “fin-de-siécle”, contudo, existe uma mudança no tratamento
deste tema, Salomé assume a posição de “fêmea fatal”, altiva e sedutora, ela passa
a ocupar o centro dos conflitos. Na versão de Oscar Wilde, Salomé torna-se um
ícone da mulher moderna, pois inaugura uma feminilidade munida de sexualidade,
uma mulher consciente de seu desejo e que agia no intento de possuir o objeto
fetichizado. Salomé pediu a Herodes a cabeça de João Batista (Jakannan) em uma
bandeja de prata para satisfazer um desejo seu, Nesta versão Salomé sentiu-se
fascinada pelo corpo de João Batista, desejava sua boca e seu beijo, mesmo que o
preço fosse um beijo em uma cabeça morta que em vida a havia rejeitado.
Na versão de Oscar Wilde, o poder de sedução de Salomé está baseado no
olhar, durante a trama existem várias advertências para que os homens não
encarem Salomé: O pajem diz ao soldado apaixonado “Olhas demais para ela. È
perigoso olhar as pessoas dessa maneira. Algo de horrível pode acontecer.”;
Herodíades recrimina o seu marido (Herodes) pela maneira como ele sempre olha a
princesa: ; e por fim Salomé: “” . Sua beleza, sua auto-suficiência, e a
assertividade de suas atitudes estão diretamente ligadas ao seu poder de sedução e
de manipulação do desejo masculino.
O poder de sedução fundado no olhar e a emergência de uma sexualidade
explícita são as características predominantes da Salomé de Oscar Wilde, uma
gama de características transgressoras e perturbadoras que formaram um
imaginário a cerca da figura feminina. E que foram transpostos para a mulher
comum do início do século XX, posto que com o surgimento da cidade urbanizada,
inauguram-se novas possibilidades de exposição e inserção social a essa mulher,
que passou a exibir o prazer de flanar pelas ruas, participar do flerte e dos jogos de
sedução.
38
SANTOS, Antonio César de Almeida.et al. Cortazar, Paz e Sá Barreto: cidade experiência urbana e estrutura. In:___. Cultura e Cidadania. Coletânea V.1 Curitiba : ANPUH-PR/CNPq. 1996.
28
Pode-se notar que as personagens femininas das crônicas de Alceu,
embora casadas não têm filhos, pois dentro da concepção idealizada de mãe
benevolente e “altruísta”, baseada no mito da Virgem Maria, não cabe a figura da
mulher de elite “sedutora”, “frívola”, “egoísta” e ”vaidosa”.
A figura do esposo, por sua vez, são variações do sujeito “burro”,
“medroso”, “ignorante”, enfim uma série de predicados pejorativos e cômicos, que
servem à crítica da classe burguesa: O burguês como indivíduo egoísta, fechado em
si mesmo, a ponto de não perceber os acontecimentos que o circundam. No caso
das crônicas, as traições ocorridas sob os olhos do esposo são ignoradas.
Daí a grande crítica de nosso autor em relação à classe burguesa, são
homens e mulheres extremamente individualistas, motivo de serem tão raras as
alusões ao relacionamento familiar. Pois na vida do burguês não há espaço para a
cumplicidade da convivência familiar baseada no respeito, fraternidade e ajuda
mútua.
Esta idéia se faz presente no título O Tanque de Jerusalém. Local bíblico
em que eram feitas imersões rituais de cura, o resgate desta parábola, para título de
um livro de sátira dos valores e hábitos de uma elite urbana, tem o objetivo de
enfatizar a desmistificação das relações humanas na sociedade moderna. Nas
palavras de Marx, “(...) A burguesia extirpou da família seu véu sentimental e
transformou a relação familiar em simples relação monetária. (...) ”39
Chichôrro utilizou em suas crônicas o arquétipo da família burguesa, pois
esta classe, embora tenha buscado estabelecer valores e normas de conduta a
serem seguidos pelas demais classes, foi em grande parte, a responsável por
romper com os pudores morais da sociedade. O triunfo do homem liberal e seu
caráter individualista, afetou a todas as dimensões de sua vida, principalmente a
instituição familiar.
As narrativas de Chichôrro estavam em consonância com as demais
produções literárias da época, principalmente em relação às conjecturas
estabelecidas entre o casamento e a mulher moderna.
39 Marx, O Manifesto. Apud. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p.122.
29
AS PUBLICAÇÕES LOCAIS
As crônicas de Alceu Chichôrro são frutos de um momento literário profícuo
em imagens femininas “decaídas”, afim de reconhecer o comportamento assumido
pela mulher moderna a literatura “fin-de-sciécle” retoma os mitos de Lilith, Salomé,
Judith, Dalila, entre outros.
Podemos citar como exemplo local a novela escrita por Octávio de Sá
Barreto, uma produção local, intitulada O Automóvel 117, que conta a história de
Carlito, atropelado repetidas vezes por um automóvel de placa 117, tanto em bairros
do centro quanto na periferia da cidade. Carlito apaixona-se por uma mulher
anônima e posteriormente a encontra na praça Osório, eles entram num automóvel e
vão para o Batel, Carlito descobre que ela é uma caveira, desce correndo do
automóvel, tropeça e fere-se, encontra placa no chão e descobre que estivera no
117, e enlouquece.
O homem, desejando a modernidade para si, expõe-se ao acaso no centro da cidade e acaba deparando-se com a figura nefasta da Salomé (ou Judite). Esta personagem, tão em moda na virada do século, nada mais é do que a réplica feminina do homem. Ela é nefasta porque a sua presença no centro da cidade foge aos preceitos rituais. No centro, os efeitos nefastos do encontro são contidos, pois o centro é um espaço masculino. A tática da Salomé é levar sua vítima para fora do centro, onde ocorrem os desenlaces trágicos. Depreende-se desta novela, e de outras histórias de Sá Brito, que aquilo que leva à loucura é a descoberta de que a Salomé e a mulher que está em casa são uma mesma pessoa. Isto é entendido como a destruição do mundo doméstico do homem.40
Na novela de Sá Barreto, assim como as crônicas de Alceu, são texto
produzidos anos 20, a cidade urbanizada é o local que serve a desconstrução das
identidades tradicionais. Em paralelo ao desejo de participar da modernidade e a
aceitação das mudanças trazidas por ela, existe o medo e a ansiedade em relação
ao novo, que se configura na tentativa de perpetuar os valores tradicionais.
A imprensa local, em que nossos escritores atuavam, estava abarrotada de
aforismos, causos, contos e crônicas bem humoradas sobre a desilusão em relação
ao casamento. Através dos textos publicados em jornais e revistas é possível
apreender uma gama de representações acerca do amor e do casamento, a
preferência por enredos sobre amor à primeira vista, paixões avassaladoras que
40
SANTOS, Antonio César de Almeida.et al. Cortazar, Paz e Sá Barreto: cidade experiência urbana e estrutura. In:___. Cultura e Cidadania. Coletânea V.1 Curitiba : ANPUH-PR/CNPq. 1996.
30
levam jovens incautos ao altar, e a chegada a conclusão de que a paixão inicial que
levou ao casamento, desvanece, e o relacionamento conjugal se transforma em
rotina, tédio, e conflito.
Logo na primeira edição do O Olho D’Rua41, um cronista anônimo se
preocupa em dar conselhos aos jovens desavisados, o casamento por interesse ou
levado pelos “caprichos da paixão” são enganos que devem ser evitados, por isso
temos, na primeira página, o conto Um estupor, em que a personagem Elpidio relata
a transmutação que se deu em sua esposa após o casamento a um jovem
apaixonado prestes a casar-se:
Eu tinha mais ou menos a sua idade 20 annos e pouco, quando encontrei Euzebia (...) Eu estava como diz esse Eça de Queirós que o senhor tanto aprecia, estava caninamente apaixonado. E Euzébia na flor de seus 16 annos, era uma lindeza. (...) -- E’ como estou contando parece mentira, mas é verdade. Ninguém dirá que foi bonita essa que hoje é uma carcassa hedionda, essa megera desdentada coalha, mãos papudas, sem seios nem ancas, chata como uma taboa, magrizela (...) ignorante, estupida e desaforada... -- Àh se tivesse eu naquele tempo, quem me escancarasse os olhos! É certo que o Ferreira, o mais ajuizado do grupo, malhou por me convencer que eu estava cego (...). Scena se passou quando eu lhe dei parte de que eu estava disposto a casar. -- ...Ancelmo (...). Essa mulher não te serve. Entre ela e voçê não há affinidade electiva, não existe harmonia de idéias e gostos, de aspirações. È doidivanas, superficial, e má. Bate nas creadas (...), na conversa só pronuncia futilidades e disparates grammaticaes. . . -- Foi tudo inútil: Dois meses depois eu entrava para o inferno, isto é Eusébia era minha esposa. Maldicto dia! Oh! Si o senhor pudesse imaginar o que tenho sofrido! Moço, quando estiver apaixonado, consulte seus amigos sinceros e ouça-lhes os conselhos. Nesse momento o trem parou. . .
Perceba que a esposa torna-se uma megera após o casamento, perde os
encantos e os atrativos da juventude e torna-se parte de uma rotina medíocre, o
marido passa a sofrer com seus desmandos, completando o quadro do “inferno
conjugal”. E assim como a história de Elpídio, muitas outras se proliferam nas
páginas dos jornais.
Com a crescente urbanização, a dinâmica da cidade sofre alterações, novos
espaços de convivência e de diversão acenavam às mulheres, o que suscitou
uma remodelação nas relações entre gêneros. E diante disso os nossos escritores
trazem à tona discussões sobre a modificação do comportamento das mulheres,
indagações sobre o espaço reservado para a manifestação da sexualidade feminina,
41
Um dos jornais que mais se pronunciou sobre o tema casamento foi o O Olho D’Rua, periódico quinzenal, auto-intitulado humorístico, que circulou pela capital entre 1907 a 1911.
31
e questionamentos sobre o conceito de respeitabilidade burguesa inerente ao
casamento e à estabilidade social que ele deve proporcionar.
Alceu Chichôrro em suas crônicas, assim como seus contemporâneos,
registrou a modernização do espaço urbano, através da quebra do padrão de
comportamento feminino. A constatação da emergência de uma nova mulher gera
uma tensão entre dois pólos; De um lado, uma percepção sobre o feminino baseada
na tradição romântica; de outro uma nova mulher, que se expõe aos olhares
masculinos em trajes e comportamentos desafiadores.
É possível verificar que os mitos, assim como, as produções literárias
servem como mecanismos para se pensar e refletir sobre a realidade vivida.
Chichôrro através de seu discurso faz uma releitura da figura de Virgem Maria como
antônimo da mulher moderna. Caracterizando uma relação de afirmação da imagem
da mulher moderna, sobre a mulher romântica idealizada.
CONCLUSÃO
Existe um tipo de experiência vital – experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como “modernidade”. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento e autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo que sabemos, tudo o que somos.
Marshall Bermanem seu estudo, Tudo que é sólido se desmancha no ar,
busca rastrear como se dá o contato das pessoas com a experiência urbana ou a
“modernidade”, e que todas essas sensações são compartilhadas por pessoas em
todo o mundo, tanto hoje, como no início do século. O que justifica a importância de
32
empreender investigações sobre as mudanças de hábitos e comportamentos
engendrados pela modernidade.
As crônicas escritas por Alceu Chichôrro retratam exatamente essa tensão
entre a experiência ambiental da modernidade e a sensação de perda dos
referenciais, que aos poucos, vai cedendo lugar ao reconhecimento do fenômeno
urbano como natural.
As narrativas selecionadas para compor este trabalho, são analisadas em
termos de uma estrutura única, contendo elementos funcionais comuns, dos quais é
possível apreender algumas oposições significativas.
A primeira oposição categórica que supomos é a tradição versus
modernidade, que se encontra posta em correlação, no interior da narrativa, com
outras categorias como homem versus mulher, público versus privado. Sendo que
este último comporta uma função invertida, pois ao invés de delimitar o espaço
público como restrito ao homem, enquanto o espaço privado era reservado à mulher,
o texto mostra a desconstrução desta dicotomia, os espaços público e privado se
equivalem, tanto no momento, em que, a mulher passa indiscriminadamente a
ocupar os espaços públicos de sociabilidade; quanto na ocasião, em que, o
ambiente doméstico se torna o espaço da sedução e do adultério, tal qual o público.
O mesmo acontece com a oposição entre o permitido e o censurável.
O mote das crônicas é a mudança do comportamento feminino, o confronto
entre a tradição e as atitudes modernas das protagonistas gera um conflito entre o
que é permitido e o que deve ser censurado. A repetição deste conflito, aos poucos,
vai dando lugar à legitimação dos comportamentos modernos, até então, vistos
como transgressores, o que significa, em última instancia, a aceitação da
modernidade e a calcificação de uma nova tradição.
Nas crônicas de Chichôrro a cidade aparece como agente propulsor da
modificação dos comportamentos femininos, e em um movimento dialético a mulher
moderna representa a nova dinâmica da cidade urbanizada.
A nova mulher e a cidade urbanizada são vistas como objetos de desejo e
de temor, paradoxo tão intenso que leva o personagem Carlito, da novela de Sá
Barreto, à loucura. E que faz com que os personagens de Chichôrro se mantenham
inertes frente às situações mais desestabilizadoras.
33
A emergência da mulher no espaço público com a adoção de novos
comportamentos e hábitos, fez com que boa parte dos escritores passassem a
retratar a mulher como fútil, vaidosa, auto centrada, manipuladora e sedutora. A
figura feminina é concebida sob um novo prisma, que se transcendia suas velhas
atribuições de mãe; esposa; e dona- de- casa, e também suscitava a identificação da
mulher comum com a figura “decaída” de Salomé.
No discurso masculino é possível identificar uma descrença em relação ao
amor moderno, pois, essa nova mulher é vista como uma ameaça às tradições. As
narrativas de infernos conjugais são a cristalização da idéia de “disjunção” entre o
homem e a mulher moderna.
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