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E=mc 2

Berna (Suíça), meados de maio de 1905. Após uma noite de reflexõesintensas, um empregado de terceira classe do es-critório de patentes, que mal completara 26 anos,agradece a seu amigo Michele Besso (1873-1955):“Obrigado! Resolvi completamente o problema.Uma análise do conceito de tempo é a solução.” Nodia anterior, Albert Einstein (1879-1955) tinhadiscutido com Besso cada detalhe de uma questãoque o perseguia há tempos. Seis semanas depois,enviaria um manuscrito para a prestigiosa revistaAnnalen der Physik, estabelecendo a relatividadeespecial e unificando duas áreas da física: a me-cânica e a eletrodinâmica. Em setembro, comoconseqüência da nova teoria, deduziu a expressãoE = mc2. Com essa fórmula – talvez a mais famosada ciência –, fundiu as leis da conservação damassa e da energia. Meses antes, em março, haviaproposto uma hipótese radical, que levaria quaseduas décadas para ser aceita: a luz exibe um com-portamento corpuscular, ou seja, granular.

É impressionante que apenas um cientista, empoucos meses, tenha dado contribuições tão impor-tantes para a ciência e que alteraram profundamen-te nossas concepções sobre o espaço e o tempo,bem como sobre a estrutura da radiação. Outrarevolução, mais silenciosa e que se estendeu porséculos, receberia um impulso essencial de Einsteinno mesmo ano: a teoria atômica da matéria. Emabril, com sua tese de doutoramento sobre as di-mensões moleculares e, em maio, com sua análisedo movimento browniano, ele possibilitou a con-firmação experimental definitiva da existência deátomos e moléculas. Não é à toa que 1905 foi de-signado o annus mirabilis – em latim, ano miracu-loso, maravilhoso, admirável – de Einstein. Entremarço e setembro, produziu cinco trabalhos extra-ordinários que mudariam a face da ciência moder-na e que o tornariam o cientista mais famoso doséculo passado.

Uma das mais importantes e intrigantes cartas

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Há 100 anos, um jovem físico, trabalhando como técnico de terceira classeem um escritório de patentes em Berna (Suíça), publicou cinco trabalhos.Todos de excelente qualidade. Dois deles mostrariam, com baseem teorias simples e elegantes, como poderia ser demonstradaexperimentalmente a realidade física de átomos e moléculas,assunto ainda controverso no início do século passado.Poucos anos depois, graças a essas idéias, a teoria atômica receberiasua consagração final, suplantando as dúvidas de seus mais ferrenhosopositores. Os três artigos restantes alteraram profundamentea face da física moderna. No primeiro a ser concluído naquele ano,o jovem rebelde e contestador propôs o que mais tarde ele classificariacomo a idéia mais revolucionária de sua vida: a luz, sob certos aspectos,apresenta uma natureza granular. Em junho e setembro,concluiu os dois últimos artigos de 1905 e aos quais seu nomeestaria associado para sempre. Eles, em conjunto,dariam origem à teoria da relatividade, que destruiriao caráter absoluto atribuído, durante séculos,ao tempo e ao espaço. Seu nome: Albert Einstein.

Ildeu de Castro MoreiraInstituto de Física,Universidade Federal do Rio de Janeiro

Há 100 anos, um jovem físico, trabalhando como técnico de terceira classeem um escritório de patentes em Berna (Suíça), publicou cinco trabalhos.Todos de excelente qualidade. Dois deles mostrariam, com baseem teorias simples e elegantes, como poderia ser demonstradaexperimentalmente a realidade física de átomos e moléculas,assunto ainda controverso no início do século passado.Poucos anos depois, graças a essas idéias, a teoria atômica receberiasua consagração final, suplantando as dúvidas de seus mais ferrenhosopositores. Os três artigos restantes alteraram profundamentea face da física moderna. No primeiro a ser concluído naquele ano,o jovem rebelde e contestador propôs o que mais tarde ele classificariacomo a idéia mais revolucionária de sua vida: a luz, sob certos aspectos,apresenta uma natureza granular. Em junho e setembro,concluiu os dois últimos artigos de 1905 e aos quais seu nomeestaria associado para sempre. Eles, em conjunto,dariam origem à teoria da relatividade, que destruiriao caráter absoluto atribuído, durante séculos,ao tempo e ao espaço. Seu nome: Albert Einstein.

Ildeu de Castro MoreiraInstituto de Física,Universidade Federal do Rio de Janeiro

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da história da ciência, de Einstein para seu amigoConrad Habicht (1876-1958), em maio de 1905,registrou esse momento:

“Eu lhe prometi quatro trabalhos. O primeirotrata da radiação e das propriedades energéticasda luz e é muito revolucionário como você verá. Osegundo é uma determinação dos tamanhos reaisdos átomos a partir da difusão e da viscosidade desoluções diluídas de substâncias neutras. O tercei-ro prova que, baseado na hipótese da teoria mole-cular do calor, corpos da ordem de 1/1.000 mm,suspensos em líquidos, devem executar um movi-mento aleatório observável, que é produzido pelomovimento térmico; de fato, os fisiologistas obser-varam movimentos de pequenos corpos em sus-pensão, inanimados, os quais chamam de ‘movi-mento browniano’. O quarto artigo, neste momen-to apenas um rascunho grosseiro, é uma eletro-dinâmica de corpos em movimento, que utilizauma modificação da teoria do espaço e do tempo.”

Vamos fazer uma incursão por esses trabalhos,que, escritos em estilo conciso e direto, são jóiaspreciosas da cultura universal. Sempre que possí-vel, nos apoiaremos nas palavras de Einstein. Co-mentaremos também características de seu autore aspectos do contexto da ciência, da tecnologia eda cultura de sua época que podem contribuirpara um melhor entendimento de sua façanha.

Uma idéiarevolucionáriaA disputa sobre a constituição da luz – se onda oupartícula – tem uma história que remonta ao sécu-lo 17, com os ingleses Isaac Newton (1643-1727)e Robert Hooke (1635-1703) e o holandês ChristiaanHuygens (1629-1695). Newton defendia uma teo-

Einstein,por voltade 1905,no escritóriode patentesem Berna (Suíça)

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ria corpuscular para a luz, ao contrário de seusdois contemporâneos. Ao longo do século 18, omodelo newtoniano predominou, embora tivessecríticos importantes. No século seguinte – com oinglês Thomas Young (1773-1829) e o francêsAugustin Fresnel (1788-1827) e com as experiên-cias de dois outros franceses, Armand Fizeau (1819-1896) e Leon Foucault (1819-1868) –, a teoriaondulatória ganharia força e se consolidaria com ateoria eletromagnética da luz proposta pelo esco-cês James Clerk Maxwell (1831-1879).

A luz passa, então, a ser vista como uma ondaeletromagnética que se propaga no éter, o meiomaterial que, acreditava-se, lhe dava suporte. Mas,no início do século passado, um problema come-çou a obscurecer o céu da teoria ondulatória paraa radiação luminosa: como explicar a intensidadeda radiação emitida por um material aquecido, auma dada temperatura, em função da freqüênciadessa mesma radiação? A teoria ondulatória usualnão conseguia descrever corretamente o fenômeno– que ganhou o nome ‘radiação do corpo negro’,porque o experimento passou a ser feito usando-seum recipiente metálico fechado, aquecido, e ob-servando-se a radiação emitida por uma pequenaabertura nele feita. O físico alemão Max Planck(1858-1947), em uma tentativa desesperada deencontrar uma solução, lançou em 1900 a hipótesede que a troca de energia entre a radiação lumi-nosa e a matéria só pode ocorrer através de quan-tidades com um certo valor mínimo – o quantum

de energia – e não de forma contínua, como exi-gido pela teoria ondulatória. Insatisfeito com suaprópria proposta e considerando-a um artifícioprovisório, Planck tentaria inúmeras vezes encon-trar outro modo de alcançar a expressão experi-mentalmente correta a que chegara e que preser-vasse o caráter contínuo da radiação.

Einstein, com seu trabalho de março de 1905,‘Um ponto de vista heurístico sobre a produção ea transformação da luz’, vai muito além de Planck.Com grande ousadia e originalidade, introduz umahipótese física revolucionária: a própria radiaçãotem uma estrutura discreta (ou atomística). Seupropósito era, além de buscar uma unificação nadescrição física da natureza, explicar fenômenosnovos, como o efeito fotoelétrico, que não podiamser entendidos com base na física clássica: “Pensoque as observações sobre a radiação do corpo ne-gro, a fotoluminescência, a produção de raioscatódicos [elétrons] pela luz ultravioleta, e outrasclasses de fenômenos concernentes à produção e àtransformação da luz, parecem mais compreensí-veis se admitirmos que a energia da luz está dis-tribuída de maneira descontínua no espaço. Se-gundo a hipótese proposta aqui, na propagação deum raio luminoso, emitido por uma fonte pontual,a energia não está distribuída de maneira contínuasobre espaços cada vez maiores, mas é constituídade um número finito de quanta de energia locali-zados em pontos do espaço, cada um se deslocandosem se dividir e podendo ser absorvido ou produ-zido apenas em bloco.” Esta última frase é, talvez,a mais revolucionária na física do século passado.Nascia o conceito de fóton – nome dado ao quan-

tum de luz após 1926 – e, com ele, a era da físicaquântica moderna.

A partir desse conceito, Einstein deduziu umaexpressão matemática para descrever o efeitofotoelétrico, no qual elétrons são arrancados deplacas metálicas pela incidência de radiação. Masanos se passariam antes que a expressão de Einsteinfosse confirmada por experimentos realizados pelofísico norte-americano Robert Millikan (1868-1953). Este diria mais tarde: “Passei 10 anos daminha vida testando a equação de Einstein de 1905.Contrariando minhas expectativas, em 1915, fuicompelido a validá-la sem ambigüidade, apesar de

Escritóriode patentesem Berna,Suíça, no tempoem que Einsteintrabalhava lá

O físicoNiels Bohr(à esquerda)opôs-se, poralgum tempo,às idéiasde Einsteinsobrea naturezacorpuscularda luz

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seu caráter não razoável, pois parecia violar tudoo que sabíamos sobre a interferência da luz.” Adescoberta da lei do efeito fotoelétrico daria aEinstein o prêmio Nobel de Física de 1921.

No entanto, se a fórmula proposta por Einsteinfoi confirmada, a idéia dos quanta de luz enfren-tava a oposição da imensa maioria dos físicos, entreos quais Planck, Millikan e o dinamarquês NielsBohr (1885-1962). Somente após a descoberta dochamado efeito Compton, em 1923, pelo físiconorte-americano Artur Compton (1892-1962) –nesse efeito, a luz (ou melhor, um fóton), tem adireção de sua trajetória desviada ao colidir comum elétron, exatamente como se fosse uma partí-cula – e com as experiências dos alemães HansGeiger (1882-1945) e Walther Bothe (1891-1957),em 1925, que o conceito viria a ser aceito ampla-mente pelos físicos.

Em 1909, Einstein, em um de seus momentosmais visionários, havia proposto uma fusão dascaracterísticas ondulatórias e corpusculares daradiação. Sete anos depois, desenvolveu a idéia daemissão e da absorção estimuladas da luz – quedaria as bases teóricas para o desenvolvimento dolaser na década de 1950. Mas o problema de umentendimento completo do comportamento da luzse estende até os dias de hoje.

A dança dos átomosO movimento irregular de uma partícula muitopequena mergulhada em um fluido – fenômenodenominado movimento browniano – é ocasionadopor choques com as moléculas do fluido, que estãoagitadas em razão de sua energia térmica (calor).Essa foi a principal inferência feita por Einsteinem seu segundo trabalho de 1905: ‘Movimento departículas em suspensão em um fluido em repousocomo conseqüência da teoria cinética moleculardo calor’. Einstein previu a variação (média) naposição da partícula ocasionada por essas colisões,variação essa que pode ser medida pela observa-ção em um microscópio. Deduziu também umamaneira de se calcular o número de Avogadro(cerca de 6 x 1023), ou seja, o número de átomos(ou moléculas) existentes em uma quantidade pré-fixada – o chamado átomo-grama (ou molécula-grama) – de um elemento químico ou substância.

Einstein terminou o trabalho oferecendo aos opo-nentes da teoria atômica um experimento quepoderia testar a sua previsão: “Se [ela] não estivercorreta, isso significaria um argumento de pesocontra o conceito cinético-molecular de calor. Es-peremos que logo venha um pesquisador para elu-

cidar esta questão importante para a teoria do ca-lor.” Esse desafio encontrou ressonância no físicofrancês Jean Perrin (1870-1942). Após cuidadososexperimentos que confirmaram as previsões deEinstein, Perrin concluía em 1913: “A teoria atô-mica triunfou. Numerosos ainda há pouco, seusadversários enfim conquistados renunciam, um apóso outro, às desconfianças que por longo tempo fo-ram legítimas e, sem dúvida, úteis. Será em tornode outras idéias que prosseguirá agora o conflitodos instintos de prudência e audácia, cujo equilí-brio é necessário para o lento progresso da ciênciahumana.”

A tese de doutorado de Einstein, pela Universi-dade de Zurique (Suíça), ‘Uma nova determinaçãodas dimensões moleculares’, girava em torno domesmo tema: a existência e o comportamento dosátomos e das moléculas. Ele combinou resultadosda hidrodinâmica clássica com os da teoria dadifusão para criar um novo método de determina-ção das dimensões moleculares e do número deAvogadro. Para isso, teve que trabalhar com umateoria molecular para os líquidos, tarefa bem maisdifícil que para os gases. Os átomos e as moléculasnão podiam ser observados diretamente pelosmicroscópicos então existentes. Einstein inventouuma maneira indireta de fazê-lo: uma teoria sim-ples e elegante que, a partir da medida de quan-tidades macroscópicas, como a viscosidade de umlíquido e o coeficiente de difusão de uma substân-cia nele imersa, permitia determinar as dimen-sões das moléculas dissolvidas. Usou os dados dis-poníveis para o açúcar dissolvido na água e, comisso, pode fazer uma boa estimativa das dimensõesdas moléculas. O trabalho, assim como a interpre-tação estatística do movimento browniano, foi aceito

Esquemamostrandoa trajetóriaerrática deuma pequenapartículaimersa emum líquido.O fenômenoé denominadomovimentobrowniano

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rapidamente e deu início à teoria das flutuações,que encontrou depois enorme gama de aplicaçõescientíficas, indo da economia à matemática.

A tese foi concluída em 30 de abril de 1905,mas teve uma história longa e tortuosa. Em 1901,Einstein havia já submetido uma dissertação àUniversidade de Zurique – esse original não sobre-viveu –, mas retirou-a no início de 1902, possivel-mente por sugestão de seu supervisor AlfredKleiner (1849-1916). Em janeiro de 1903, abando-nou seus planos de tese dizendo: “Essa comédiatoda já me aborreceu.” Em 1905, no entanto, reto-mou a idéia do doutorado. As razões eram claras:isso podia ajudá-lo na ascensão no escritório depatentes e abriria a chance de uma carreira aca-dêmica. Segundo sua irmã, Maja (1881-1951), eletentou inicialmente que o trabalho sobre a relati-vidade constituísse a dissertação, o que teria sidorejeitado. Voltou-se, então, para uma questão aofeitio dos físicos de Zurique, uma investigação maissolidamente escorada em experimentos. E teveêxito. Einstein veria também, posteriormente, fa-lharem várias tentativas de conseguir um certifi-cado para lecionar nas universidades, o que sóconseguiria em 1908. Outro detalhe curioso, di-fundido em algumas de suas biografias, é queKleiner aprovou a tese de 1905, mas reclamou queela estava muito curta – 17 páginas apenas. Eins-tein acrescentou uma única frase, e ela foi acei-ta sem comentários, o que divertiu particularmen-te seu autor.

Novas concepçõessobre espaço e tempoEnviado em 30 de junho de 1905, o artigo ‘Sobrea eletrodinâmica dos corpos em movimento’ abor-dava o conflito aparente entre a teoria eletromag-nética e o princípio da relatividade – pelo qual asleis da física devem ter a mesma forma para todosos observadores inerciais, ou seja, não acelerados–, originado da mecânica clássica. O eletromag-netismo oferecia uma descrição unificada dos fe-nômenos elétricos, magnéticos e ópticos e já tinhadécadas de sucesso. Por outro lado, a mecânicaclássica contava com mais de 200 anos de êxitoquase absoluto em seu domínio descritivo. Noentanto, as equações de Maxwell do eletromag-netismo não são compatíveis com o princípio darelatividade, que está na base da mecânica clássi-ca. Como conciliá-los? Hipóteses ad hoc – ou seja,forjadas a partir do fenômeno que querem expli-car e sem maiores fundamentações teóricas – ha-

viam sido formuladas, especialmente pelo físicoholandês Hendrik Lorentz (1853-1928), mas nãoofereciam uma solução teórica aceitável aos olhosde Einstein. Sua proposta será radical e aparente-mente inconsistente: estender o princípio da rela-tividade para toda a física e introduzir a hipóteseadicional da independência da velocidade da luzem relação ao movimento da fonte que a emite.

O início do artigo de Einstein deixa claro seupropósito de unificar as duas teorias:

“Como é bem conhecido, a eletrodinâmica deMaxwell – tal como usualmente aceita no momen-to – quando aplicada a corpos em movimento,produz assimetrias que não parecem ser inerentesaos fenômenos. (...) Exemplos desse tipo, junta-mente com as tentativas infrutíferas de detectarqualquer movimento da Terra em relação ao “meioluminoso”, sugerem que os fenômenos daeletrodinâmica, assim como os da mecânica, nãopossuem propriedades correspondentes à idéia derepouso absoluto. Sugerem, além disso, (...) que asleis da eletrodinâmica e da ótica sejam válidaspara todos os sistemas de referência para os quaisas equações da mecânica são válidas. Elevaremosessa conjectura (o conteúdo da qual será daquipara frente chamado de “Princípio da Relativida-de”) ao status de um postulado, e também intro-duziremos outro postulado, que é apenas aparen-temente irreconciliável com o primeiro, a saber,que a luz sempre se propaga no espaço vazio comuma velocidade definida c, que é independente doestado de movimento do corpo emissor. Esses doispostulados são suficientes para se construir umateoria simples e consistente (...). A introdução deum ‘éter luminífero’ provar-se-á supérflua ...”

Note-se a coragem do jovem físico ao elimi-nar, com uma frase curta, a noção de éter de suasconsiderações, conceito que era um paradigmasecular da física como meio transmissor da luz eaceito como ‘realidade’ por praticamente todos oscientistas de sua época. O resultado, decorrente desuas premissas, de que a luz tem a mesma veloci-dade para todos os observadores, quaisquer quesejam seus movimentos, estava em conflito com osenso comum e com a mecânica de Newton, queprevia velocidades diferentes quando medidas porobservadores que se movem um em relação aooutro. Isso forçou Einstein a uma revisão dos fun-damentos cinemáticos da física: rediscutiu os con-ceitos de tempo e de espaço e a maneira como sãomensurados. Sua nova definição para se medir otempo e sincronizar os relógios, por meio de sinaisluminosos, levou ao abandono da noção de tempoabsoluto: dois eventos simultâneos para um obser-vador (com um relógio) em repouso não são simul-tâneos para um observador em movimento. Da nova

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formulação decorrem alguns re-sultados físicos importantes:

i) o tempo flui em taxas dife-rentes para observadores emmovimento relativo entre si; tan-to os intervalos de tempo quan-to os comprimentos medidos va-riam com o observador, dandoorigem, respectivamente, aoque se convencionou chamardilatação temporal e contraçãoespacial;

ii) a nova lei de somas dasvelocidades – que não obede-ce mais à soma direta das ve-locidades v = v1 + v2, comoocorria na mecânica newtoniana – per-mite resolver a aparente inconsistência entre seusdois princípios já mencionados;

iii) ocorre variação da massa do objeto com avelocidade.

Essa reformulação dos conceitos fundamentaisde tempo e espaço, tomados como dados a priori

por séculos, constitui certamente uma das revolu-ções mais importantes da ciência, embora seupróprio autor não pensasse assim: ele a via comoum aperfeiçoamento da física clássica.

Em setembro de 1905, em um artigo de apenastrês páginas, com um titulo interrogativo, ‘A inér-cia de um corpo depende de seu conteúdo energé-tico?’, Einstein deduziu uma fórmula, relacionan-do a energia de um corpo com sua massa (inércia),que indica que quantidades muito pequenas demassa podem ser convertidas em quantidades enor-mes de energia e vice-versa. A massa e a energiasão de fato equivalentes. Concluiu o artigo de ma-neira cuidadosa, mas premonitória: “A massa deum corpo é uma medida de seu conteúdo de ener-gia; se a energia muda de E, a massa varia no mes-mo sentido de E/c2... Não é impossível que, comcorpos cujo conteúdo de energia é variável em umalto grau (por exemplo, com sais de rádio), a teoriapossa ser colocada à prova com sucesso. Se a teoriacorresponder aos fatos, a radiação carrega inérciaentre os corpos emissores e os corpos absorvedores.”Escreveu na época para um amigo: “O argumentoé divertido e sedutor; mas, por tudo que sei, oSenhor poderia estar zombando comigo...” Não erazombaria. Na década de 1930, experimentos vie-ram confirmar as expectativas ali colocadas. E, em1945, a bomba atômica – que Einstein, por muitotempo, duvidou que pudesse ser construída e cujouso condenou fortemente – mostraria, de formatrágica, o acerto e o poder de suas idéias.

Note-se que o físico e matemático francês HenriPoincaré (1854-1912), independentemente de

Einstein, desenvolveu traba-lhos importantes sobre a re-latividade e deduziu muitasdas expressões matemáticascontidas na teoria. No entan-to, por razões variadas, quetêm sido muito discutidaspelos historiadores – entre asquais, sua visão filosófica maisconvencionalista e menos rea-lista que a de Einstein e a ma-nutenção da noção de éter –,não atribuiu uma realidade fí-sica significativa às expressõesa que chegara, ao contrário deEinstein.

Em 1907, o matemático russoHermann Minkowski (1864-1909), que havia sidoprofessor de Einstein na Escola Politécnica deZurique (Suíça), teve a importante idéia de con-siderar o espaço e o tempo conjuntamente, cons-tituindo um contínuo quadridimensional no qual otempo, como quarta dimensão, funde-se com asoutras três espaciais. Concepção similar fora jáexpressa por Poincaré. Na apresentação de suasidéias, Minkowski diria em 1908: “As visões deespaço e tempo que desejo apresentar a vocês cres-ceram do solo da física experimental e daí nasceo seu vigor. Elas são radicais. Daqui para frente, oespaço por si mesmo, e o tempo por si mesmo,estão destinados a se tornarem meras sombras, esomente uma espécie de união dos dois preservaráuma realidade independente.”

O contexto e a fonteda criatividadeUm motivo de intensa discussão e controvérsiaentre os estudiosos da obra de Einstein é a fonte desua criatividade e os caminhos que o conduzirama suas teorias. Ele não tinha o costume de guardarseus manuscritos, nem se preocupou muito emreconstruir a linha de suas reflexões. Mas muitasreconstruções históricas, mais ou menos plausí-veis, têm sido feitas, levando em conta suas carac-terísticas particulares, a situação da física em suaépoca e o contexto em que estava inserido.

Segundo ele mesmo, o que o distinguia era umainsaciável curiosidade: “Eu não sou nem especial-mente inteligente, nem especialmente dotado. Souapenas curioso, muito curioso.” Esse aspecto, alia-do à grande capacidade de autodidatismo, inicia-ra-se já na infância. Também era capaz de profun-

O francêsHenri Poincarétambémdesenvolveuestudosimportantes sobrea relatividade,independentementede Einstein

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culas distribuídas de forma descontínua no espaço–, a teoria eletromagnética faz uso de ondas, quesão descritas por funções matemáticas contínuas.

No contexto formativo, o envolvimento da famí-lia de Einstein em negócios ligados à tecnologiaelétrica – uma das fronteiras tecnológicas da época– deve tê-lo influenciado significativamente. Seupai, que queria vê-lo formado em engenharia elétri-

ca, e seu tio produziam equipamentos deprecisão para medidas elétricas e dí-

namos. Por outro lado, como estu-dante universitário, Einstein pas-sava longas horas no laboratório:“Trabalhei a maior parte dotempo no laboratório de física,fascinado com o contato diretocom a experiência.” Já sua ativi-dade no escritório de patentes –de junho de 1902 a outubro de

1909 – foi “uma verdadeira ben-ção para mim. Isso me forçou a um

pensamento multilateral e também for-neceu um importante estímulo para a reflexão emfísica”. Ao longo de sua vida, o interesse pelasmáquinas permaneceu aceso: tirou algumas paten-tes de invenções feitas sozinho ou com colegas –uma delas, a de um refrigerador, desenvolvido jun-tamente com o físico húngaro Leo Szilard (1898-1964). Seu trabalho na análise das patentes podeter também contribuído para seu estilo direto epouco usual de escrever artigos científicos: a partirda colocação clara do cerne do problema, se segueo elenco de premissas, o desenvolvimento dos mo-delos – ou das teorias – e as conseqüências experi-mentais deles decorrentes.

Einstein era um mestre na arte, que teve tam-bém expoentes em Galileu e Maxwell, de cons-truir experimentos mentais – produzidos apenasna imaginação e que estão além de nossa capaci-dade de realizá-los diretamente no laboratório –para refletir sobre os princípios básicos da física.Já em 1895, com 16 anos, começou a refletir sobrea questão do éter e a propagação da luz. Concebeude início um experimento mental que o acompa-nharia por 10 anos: o que ocorre se acompanhar-mos uma onda luminosa com a mesma velocidadedela? Ela ficaria ‘congelada’, em uma estranhaforma de onda não movente? Para Einstein, esseexperimento mental juvenil foi o primeiro passopara a teoria da relatividade especial. Em 1902,com dois amigos, Habicht e Maurice Solovine(1875-1958), criou um ‘clube’ informal, a Acade-mia Olímpia. Leram e discutiram longamente vá-rios autores clássicos, incluindo obras de físicos efilósofos. Nessa última categoria, entre os que maiso influenciaram, estavam Poincaré e o físico aus-

da concentração e intensa dedicação a um mesmoproblema por anos a fio. Até 1905, Einstein decerta forma corria por fora, às margens da ciênciainstitucionalizada. Era dotado de notável autocon-fiança e alta dose de rebeldia: “Sou um herético”,repetia com freqüência. A pouca reverência comas autoridades, inclusive universitárias, e a postu-ra crítica permanente quanto às verdades adquiri-das foram sempre um traço marcante de suapersonalidade e podem ter contribuídopara sua dificuldade em conseguir umcargo em universidades depois deformado, em 1900. Note-se queEinstein viveu na Suíça, como es-tudante universitário, em um am-biente no qual abundavam socia-listas, anarquistas e intelectuaiscontestadores e inovadores.

Outro aspecto marcante emEinstein é sua visão de ciência. Ti-nha profunda crença na racionalidadedo mundo: o real pode ser descrito por leiscientíficas, e o comportamento da natureza serentendido a partir de alguns princípios gerais eesteticamente belos. A física deveria ser formula-da a partir de princípios abrangentes e ‘simples’,e as teorias deveriam naturalmente resistir ao crivoexperimental. Os artigos de 1905 começam quasetodos com uma insatisfação de Einstein com algu-ma assimetria ou incompatibilidade entre domí-nios da física e a necessidade de superá-las a qual-quer custo. Toda a sua obra gira em torno de buscardescrições unificadoras da física. Isso ocorreu, comovimos, no caso da relatividade. Ao propor a hipó-tese do quantum de luz, também não foi movidopor nenhum experimento particular. Partiu daconstatação de uma profunda diferença formal entrea descrição da matéria e a dos campos eletro-magnéticos. Enquanto a teoria da matéria pressu-põe um número finito de átomos – ou seja, partí-

Membrosfundadoresda AcademiaOlímpia.Da esquerdapara a direita,ConradHabicht,MauriceSolovinee Einstein

A sincronizaçãodos relógios– na imagem,o relógioda torrede Berna –preocupavaos físicosda épocade Einstein

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Sugestõespara leitura

STACHEL, J. (org.)O ano miraculosode Einstein –Cinco artigosque mudaram aface da física.Rio de Janeiro,Editora da UFRJ,2001.

PAIS, A. Sutilé o Senhor...A ciência e a vidade Albert Einstein.Rio de Janeiro,Nova Fronteira,1995.

FÖLSING, A. AlbertEinstein.Harmondsworth,Penguin Books,1997.

EINSTEIN, A. A teoriada relatividade especiale geral.Rio de Janeiro,Contraponto,2000.

BRIAN, D. Einstein:a ciência da vida.São Paulo,Ática, 1998.

tríaco Ernst Mach (1838-1916), com textos que trata-vam da crítica aos funda-mentos da mecânica clássi-ca, bem como o estatísticoinglês Karl Pearson (1857-1936) e o filósofo escocêsDavid Hume (1711-1776), comcríticas sobre o procedimentoda indução em ciência, alémde Maxwell e do físico austría-co Ludwig Boltzmann (1844-1906). Do ponto de vista filosó-fico, os avanços fundamentaisque Einstein realizou em 1905dependeram de modo crucial desua forte adesão a uma crença narealidade das entidades físicas no nível atômico,preconizada por Maxwell e Boltzmann.

O contexto no qual Einstein se insere é tambémessencial para que se entenda sua obra e o impactodela decorrente. Viveu em uma época de profundatransição na ciência: a física passava por uma crise,e os conceitos e as teorias construídos nos séculosanteriores se defrontavam com novos domínios daexperiência. Entre os anos 1895 e 1904, muitasdescobertas importantes foram feitas – como osraios X, a radioatividade, as ondas de rádio e oelétron – bem como novas técnicas experimentaisforam desenvolvidas, permitindo perscrutar o in-terior da matéria. É interessante destacar queEinstein construiu sua teoria da relatividade abs-trata em um contexto de um mundo material ro-deado de máquinas elétricas e de mecanismostransmissores de sinais elétricos e de ondas eletro-magnéticas. Patentes e invenções de novos equipa-mentos eletromecânicos e propostas para a sincro-nização de relógios – um importante problema daépoca – foram o seu cotidiano por anos. Até em suacaminhada diária para o trabalho, passava pelasgrandes torres com relógios que determinavam acoordenação do tempo em Berna. Note-se quePoincaré também abordou a questão da sincroni-zação dos relógios sob vários ângulos. Além derefletir filosoficamente sobre a medida do tempo,ao presidir o Bureau de Longitude ele ajudou adesenvolver métodos para cobrir o mundo com umtempo sincronizado, pela utilização de transmis-sões telegráficas.

Tudo isso mostra que algumas das visões predo-minantes sobre Einstein são parciais e incorretas.A visão empirista ingênua atribui a origem de seustrabalhos à tentativa direta de explicar experi-mentos – como o de Michelson-Morley, no caso darelatividade – que a física clássica tinha dificulda-de em tratar. Já uma visão antipositivista vê em

seus trabalhos apenas o pensamen-to abstrato, distante dos experi-mentos e do entorno material etecnológico que o circundava. Es-sa última visão contribui para umdos mitos persistentes sobre Eins-tein: o de um pensador comple-tamente desligado das coisasterrenas. Visões ambas parciaise que distorcem a complexidadedo processo criativo na ciência.

Einstein viveu, refletiu e pro-duziu em uma arena onde con-vergiam: a) a física, na tradiçãodos grandes mestres e que sedefrontava com novos resulta-

dos experimentais intrigantes; b) a fi-losofia, com a crítica à natureza do conhecimentoe às noções clássicas sobre o tempo e o espaço; c)a tecnologia, com os aparelhos elétricos, os relógiose as novas radiações que enchiam o final do século19. Essa interseção tripla de fatores foi certamenteum ponto importante na construção de suas teorias.

A sagradacuriosidadeEinstein nasceu em Ülm (sul da Alemanha), em 14de março, e morreu em Princeton (Estados Uni-dos), em 18 de abril, aos 76 anos de idade. Viveuprofundamente também as contradições políticase sociais de seu tempo. Lutador incansável pelapaz, socialista ‘emocional’ e crítico do socialismoreal, opôs-se ao nazismo, ao macartismo – perse-guição a supostos simpatizantes de regimes deesquerda nos Estados Unidos –, à guerra e à corri-da armamentista. Pagou alto preço pessoal por isso.Quanto ao mito de gênio que o cerca, traduzido nafigura de um velho cientista excêntrico e isolado,com cabelos brancos e desgrenhados, ele mesmodeu a receita: “É curioso ver como a gente apareceaos olhos dos outros. Foi meu destino que minhasrealizações fossem supra-avaliadas além de todosos limites, por razões incompreensíveis. A huma-nidade necessita de alguns poucos ídolos românti-cos como spots de luz no campo da existênciahumana. Eu me tornei um tal spot de luz.”

Ao rememorarmos o annus mirabilis de Einstein,vale encerrar lembrando o que para ele era o cerneda atitude científica diante do mundo: “A coisaimportante é não parar de questionar. A curiosida-de tem suas próprias razões para existir. (…) Nuncaperca a sagrada curiosidade.” ■

Einstein jáperto do fimda vida, naUniversidadede Princeton,ondededicou-seàs suaspesquisaspor maisde 20 anos


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