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BOUDICA

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Da Autora:

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Touro

Cão

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MANDA S COTT

BOUDICA

Águia

Livro 1

TraduçãoClaudia Gerpe Duarte

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Copyright © 2003, Manda Scott

Mapas: David Atkinson

Título original: Boudica – Dreaming the Eagle

Capa: Raul Fernandes

Editoração: DFL

Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

2010Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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Willett, MarciaA hora das crianças/Marcia Willett; tradução Flávia Carneiro

Anderson. — Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.350p.

Tradução de: The children’s hourISBN 978-85-286-1280-6

1. Romance inglês. I. Anderson, Flávia Carneiro. II. Título.

CIP-Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Todos os direitos reservados pela:EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 171 — 2º. andar — São Cristóvão20921-380 — Rio de Janeiro — RJTel.: (0XX21) 2585-2070 — Fax: (0XX21) 2585-2087

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendimento e venda direta ao leitor:[email protected] ou (21) 2585-2002

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Para Robin e Elaine, com amor

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SUMÁRIO

Agradecimentos 9

Europa Ocidental, 32 d.C. 10-11

Prólogo: Outono 32 d.C. 13

I: Primavera-Outono 33 d.C. 17

Britânia Tribal, 32 d.C. 18

II: Inverno-Primavera 37 d.C. 171

Fortaleza de Cunobelin 172

III: Primavera 39 d.C.-Primavera 40 d.C. 337

Gália, Bélgica e as Germânias, 39 d.C. 338

IV: Final do Verão-Outono 43 d.C. 537

Rotas da Invasão, 43 d.C. 538

Epílogo 643

Nota da Autora 647

A Pronúncia dos Nomes 651

Bibliografia 655

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AGRADECIMENTOS

QUALQUER TRABALHO DESTA NATUREZA REQUER UMA QUANTIDA-

de extraordinária de pesquisa histórica. Gostaria de agradecer às seguin-tes pessoas pela orientação e ajuda especializada: Dr. Gilly Carr, Dr. JonCoe, Philip Crummy, Dr. J. D. Hill, professor Lawrence Keppie e OwenThompson, que concederam generosamente seu tempo e sua opiniãoespecializada, bem como aos membros da lista de discussão da Brit-arch,que frequentemente deram respostas a perguntas triviais. Agradeço espe-cialmente a H. J. P. (“Douglas”) Arnold, astrônomo e anteriormentePrimus Pilus no grupo de reencenação da Legio Secunda Augusta, porseu constante apoio e inestimáveis comentários durante todo o trabalho.Como é sempre o caso, quaisquer falhas técnicas são totalmente minhas,assim como é minha a interpretação dos fatos.

Agradeço também a Jane Judd, minha agente, e a Selina Walker, daTransworld, por terem confiado em mim desde o início, e a Kate Miciake Nita Taublib, da Bantam US, pelo entusiasmo e pelo apoio que me con-cederam.

Sou particularmente grata a Leo, que me apresentou à visão, bemcomo a Carol, Hillary, Eliot e Ken, entre outros, que me mostraram comovivê-la.

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EUROPA OCIDENTAL, 32 d.C.

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PRÓLOGO

OUTONO 32 D.C.

OATAQUE COMEÇOU POUCO ANTES DO AMANHECER.

A menina acordou com a fetidez da palha recém-queimada eo som dos gritos da mãe. Lá fora, na clareira atrás da cabana,

ouviu a resposta do pai e o chofre do ferro no bronze. O grito de outrohomem, que não o seu pai, ecoou, e ela se levantou, livrando-se das pelesque a cobriam, procurando no escuro, atrás do leito, a faca de esfolar, oumelhor, o machado, não encontrando nenhum dos dois. Ouviu de novo ogrito da mãe, diferente dessa vez. A menina avançou às apalpadelas, sen-tindo na pele o chamuscar do fogo e a dor deslizante do medo que era aameaça de uma lâmina penetrando a espinha. Seus dedos se fecharamsobre um cabo de madeira desgastado e desceram em direção à reentrân-cia familiar que ela passara horas oleando com a reverência de sua poucaidade; a lança do pai, própria para caçar javalis. Ela a libertou com umasacudidela, virando e puxando de uma só vez o envoltório que protegia alâmina. Uma onda de luz da aurora atingiu-lhe os olhos quando a peleque cobria a porta foi rasgada no lugar onde estava pendurada e imedia-tamente substituída por uma sombra. Um vulto dominou o vão da entra-da. A luz do alvorecer tremeluziu na lâmina de uma espada. Perto, o paitrovejou o seu nome: “Breaca!”

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Ela ouviu o grito e mostrou-se na claridade. O guerreiro no vão daentrada sorriu, exibindo os poucos dentes que lhe restavam, e arremeteu.Sua espada captou os raios do sol e os distorceu, cegando a ambos. Semrefletir, a menina fez como havia praticado mentalmente, na segurança doscercados dos cavalos mais embaixo, e certa vez na floresta mais distante.Também investiu, colocando no arremesso da arma o peso dos ombros, ojogo das costas e o impulso retificador das pernas. Mirou no pálido segmen-to de pele que conseguia discernir. A lança penetrou e afundou na gargan-ta do guerreiro, no ponto onde a túnica acabava e o elmo ainda não come-çara. O sangue esguichou e desceu reluzente. O homem engasgou e parou.A espada que buscava a vida de Breaca desceu sibilante, impelida pela velo-cidade do arremesso dele. Ela se jogou para o lado, lenta demais. Sentiu ador lancinante entre os dedos e largou a lança. O homem tombou para olado contrário ao dela, devido ao peso do punho da espada. Ela viu a entra-da da cabana se iluminar e depois voltar a escurecer. Era o seu pai.

— Breaca? Ó deuses, Breaca... — Ele também parou. O homem caídono chão apoiou a mão debaixo do corpo, tentando se levantar. O martelodo seu pai desceu zunindo, calando para sempre o inimigo. O pai a abra-çou com força, acariciando-lhe o rosto, passando os dedos grandes e largosde ferreiro pelos cabelos da filha. — Você o matou? Minha guerreira,minha menina de ouro. Você o matou. Ó deuses, isso foi bom. Eu nãosuportaria perder as duas...

Ele a embalou de um lado para o outro, como fazia quando ela erapequena. Ele cheirava a sangue e a algo ácido, como vômito. Ela desceu osbraços pelo peito dele para se certificar de que ele estava inteiro e consta-tou que estava. Tentou libertar-se do abraço para examinar o resto docorpo dele. O alento do pai mudou, o abraço ficou mais forte e ela sentiuum calor molhado descer-lhe pelo pescoço e chegar à clavícula, avançan-do depois para o seu peito plano. Ela deixou então que ele a abraçasseenquanto chorava e não perguntou por que a mãe não viera com ele à suaprocura. Sua mãe, que carregava no ventre o filho dele.

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O cheiro ácido vinha de sua mãe. Estava caída perto da entrada e tam-bém tinha nas mãos uma lança. Já a usara antes, com bons resultados, masdessa vez enfrentara dois adversários, e a criança dentro de si dificultaraseu giro. O corte da arma inimiga a abrira do esterno ao quadril, fazendosaltar para fora o bebê e as entranhas. Breaca agachou-se ao lado da mãeenquanto a luz vacilante do dia que nascia imprimia cor às coisas.Abaixando-se, virou para cima o pequeno fardo enrugado que jazia aolado do corpo da mãe. Voltando-se para o pai, que estava atrás dela, disse:

— Teria sido um menino.— Eu sei — retrucou, repousando a mão no ombro da filha, os dedos

imóveis. Ele já não soluçava, e ajoelhou-se e abraçou-a com força.Pressionou o queixo contra a cabeça dela e, quando falou, o som guturalde sua voz trepidou ao longo do pescoço de Breaca, seguindo até o peito.

— Por que preciso de outro filho quando tenho uma filha capaz deenfrentar um guerreiro armado e sobreviver?

Sua voz era cálida e sua trágica dor encerrava orgulho, o que fez comque faltassem forças a Breaca para dizer ao pai que agira por instinto e nãopor coragem ou por ter um coração de guerreiro.

A mãe de Breaca fora líder dos icenos, primogênita da linhagem real; poressa razão, alvo na morte das mesmas homenagens que recebera em vida.Seu corpo foi cingido com fino linho e peles, que encerraram a criançanovamente dentro do seu abdômen. Construíram uma plataforma de ave-leira e olmo, e sobre ela deitaram o corpo, levando-o para mais perto dosdeuses e deixando-o fora do alcance dos lobos e ursos. Os três guerreirosmortos dos coritânios, que haviam desrespeitado as leis dos deuses, aomatar uma mulher grávida, e as dos anciãos, ao assassinar a líder de umatribo vizinha sem uma batalha justa, foram desnudados e arrastados paraa floresta para servir de alimento a quem os encontrasse primeiro. Breacarecebeu a espada que pertencera àquele que ela matara, mas não a dese-java. Ela a entregou ao pai, que a partiu sobre o seu bloco de forjar, dizen-

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do que fabricaria outra melhor, em tamanho natural, para quando elacrescesse. Por sua vez, Airmid, uma das meninas mais velhas, deu a elauma pena de corvo com o cálamo tingido de vermelho e amarrado em cír-culo com crina de cavalo azul, a marca de quem já tinha a seu crédito umamorte. Seu pai lhe mostrou como trançar os cabelos dos lados, como osguerreiros fazem quando se preparam para a batalha, com a pena caindolivre sobre a têmpora.

No final da manhã, Eburovic, guerreiro e ferreiro dos icenos, levou afilha até o rio para lavá-la, limpar o sangue da batalha e fechar o corte emsua mão, conduzindo-a em seguida de volta à casa redonda e entregando-aaos cuidados de Macha, a irmã da mãe dela, mãe de Bán, seu primeiro eúnico filho vivo.

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IPRIMAVERA-OUTONO de 33 D.C.

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BRITÂNIA TRIBAL, 32 D.C.

Fortaleza de Cunobelin – ColchesterMona – Anglesey

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I

BÁN TEVE O SONHO PELA PRIMEIRA VEZ AOS OITO ANOS,

na primavera seguinte à ocasião em que Breaca perdeu a mãe eadquiriu na mão uma cicatriz deixada pelo golpe de uma espa-

da. Ele acordou de repente e ficou deitado, suando, debaixo das peles queo cobriam, os olhos perscrutando a escuridão do vão do telhado em buscade conforto. Muito tempo antes, quando ele era menor e tinha medo danoite, seu pai havia gravado as marcas de cavalos, ursos e garriças na vigaretorcida acima da cama para mantê-lo em segurança. Ele passara muitasnoites claras de verão seguindo-as mentalmente, sentindo a força de suaproteção. Agora ele estava deitado no silêncio opressivo, implorando pelaluz, mas não conseguia distinguir nada. Se a lua já havia nascido, não ilu-minava o lado da casa em que ele estava. Se havia estrelas, sua luz nãopenetrava o telhado de colmo. Do lado de dentro, as brasas do fogo queesfriavam não emitiam chama alguma, apenas um filete de fumaça. Era anoite mais negra da qual conseguia se lembrar, e ele também poderia estarcego ou ainda no mundo dos sonhos.

Bán não queria estar sonhando. Piscando, procurou alternativas parase ancorar no mundo dos vivos. A fumaça leve e seca fez-lhe cócegas nonariz. Toda noite, sua mãe deitava um trançado de galhos sobre as brasas

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para que a fumaça ajudasse a família a atravessar em segurança o mundoalém do sono. À medida que ia ficando mais velho, começava a compreen-der a linguagem da fumaça. Bán inspirou e deixou que as diferentes sensa-ções se infiltrassem em sua cabeça, classificando-as em uma ordem que lhediria alguma coisa: o toque áspero da relva crestada pelo sol, a sucessãomais quente e sinuosa de glandes assando, as espetadelas da argila xistosa eúmida, e a nota alta a clara do tanino, como de uma pele recém-curtida.Foi esta última que corrigiu tudo. Surgiu a imagem de uma menina ador-mecida debaixo de um punhado de pétalas brancas e, depois, de uma árvo-re gotejando vermelho com frutinhos da cor de sangue ressequido que lhehaviam dito para não comer. Um pilriteiro. Era isso.

Ele estava mais calmo agora e obrigou o corpo a relaxar. O coraçãobatia com menos intensidade. Fechou os olhos e deixou que a fumaçaondulante o conduzisse de volta ao início do sonho. Era de dia no outromundo. Ele montava um cavalo desconhecido, não um dos de seu pai;uma égua vermelha, do tom de uma raposa no inverno. Ela era alta e esta-va em plena forma. Bán deslizou a mão pelo pescoço dela e o pelo reluziucomo uma moeda nova sob os seus dedos. Galopavam velozes, à velocida-de do sonho. Ele estava nu e nenhuma teliz cobria o dorso da égua. Sentiasob as coxas a contração e a distensão dos músculos do animal. Se se esfor-çasse para abandonar este mundo, conseguiria enxergar o vapor das nari-nas da égua e ouvir o assobio do alento dela acima do tropel enlameadoque retumbava sobre a relva e o charco. Logo ela se esquivou da luz do sole penetrou em uma bruma tão densa que ele mal conseguia visualizar aponta das orelhas do animal. A névoa passava tremulante pelos seus olhos,cegando-o temporariamente. Bán sugou o ar e sentiu o cheiro de suor decavalo e da água estagnada do pântano, além do odor ácido e penetranteda murta esmagada sob as patas da égua. Sem um motivo aparente, Bánlevantou uma das mãos, colocou-a em concha sobre a boca e gritou umapalavra — um nome — naquela brancura atordoante. A voz saiu dissonan-te, como a de um corvo, e o nome em si não criou forma em sua cabeça.Ecoou e voltou, mas ainda assim não fez sentido. O menino desistiu dele ese inclinou para frente, cantando para a égua vermelha, instigando-a,

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prometendo-lhe fama, vida longa e potros fortes se ela os conduzisse emsegurança para além do perigo. O risco existia, sem dúvida, e ambos o sen-tiam; uma malevolência longínqua, mantida a distância apenas pela velo-cidade do galope. A égua lançou as orelhas para trás tentando escutar,erguendo-as a seguir repentinamente para frente. O menino sentiu amudança no passo do animal e levantou os olhos. Mais adiante, um arbus-to tombado bloqueava a estrada. A égua expandiu o corpo e recolheu acabeça, encurtando a andadura. Bán premiu com força os dedos no ver-melho sinuoso da crina do animal, sentindo nas palmas a espetadela áspe-ra do pelo. A égua saltou com destreza e ele subiu com ela para a eterni-dade. O solo era firme no lado mais distante. A égua estirou as pernas para aterrissar. O menino relaxou o aperto na crina do animal,sentou-se ereto e dessa feita, pela primeira vez, perdeu-se em impetuosafelicidade, exultando com as histórias que contaria a Breaca e ao pai deles,e mais tarde, quando tivesse se restabelecido, para a sua mãe.

O mundo mudou quando tocaram o solo. A bruma havia desapareci-do e já não era dia, anoitecia; e ele não era mais um menino montado emuma égua, e sim um homem, um guerreiro armado, colado ao pescoço deum corcel em comparação com o qual a égua era um pônei magro epequeno. A besta fremia na febre da batalha, correndo desesperada, dei-xando um rastro de torrões e pedras revirados. O tropel de sua passagemsacudia a terra e arrancava os arbustos pela raiz. Bán roçou a mão marcadade cicatrizes por um pescoço negro de pele grossa e voltou encharcada desuor e sangue fresco. Respirou fundo e a fetidez do seu suor invadiu-lhe asnarinas, fazendo-se acompanhar de um medo que transcendia o pavor.

Ele poderia ter tombado ali mesmo, tão forte foi a sensação, mas sen-tiu o braço de outra pessoa envolver com força sua cintura. Soube entãoque carregava alguém atrás de si e que essa segunda vida era mais impor-tante do que a sua. Compreendeu de repente, com clareza, que o perigonão era para ele, e sim para o outro, e que mais adiante estariam em segu-rança. Bán estava se inclinando para trás para dizer isso quando o cavaloprendeu a pata em um buraco e tropeçou. O animal se contorceu com vio-lência no meio do tranco, lutando para recuperar o equilíbrio, e girou para

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trás a grande cabeça. Por um breve e ofuscante momento, os olhos de Bánficaram presos aos do cavalo, e o que viu neles fez congelar o ar na sua gar-ganta. Uma voz então gritou um aviso em um tom que ele nunca ouvirae, mesmo semiadormecido, seu corpo estremeceu e se crispou quandouma faca avançou em curva na sua direção, vinda do nada, ferindo-lhe opulso esquerdo.

Como da primeira vez, a dor que sentiu o fez acordar. Pela segundavez naquela noite, ficou deitado no escuro com os olhos bem abertos,enquanto o martelar do seu coração produzia um tropel nos seus ouvidos,intenso a ponto de sacudir as estrelas no céu. Bán sentiu menos medodessa vez. Vira uma coisa que só os deuses deveriam ver e a mera possibi-lidade dela o empurrou através do medo em direção ao lugar tranquiloque ficava além. Bán inspirou e se obrigou a sentir as coisas à sua volta. Ocão que dividia a cama com ele fora para o lado de fora, e ele estava deita-do entre as peles, tendo apenas a irmãzinha para mantê-lo aquecido. Sillaestava deitada de bruços, e o suor de ambos grudava pele com pele, demodo que ele podia sentir a ondulação das costelas e o ângulo dos quadrisda irmã pressionando o lado do seu corpo. Concentrou-se no lugar onde aponta do joelho dela empurrava-lhe a panturrilha e deixou que essa sen-sação o trouxesse de volta para si mesmo. Ao fazer isso, descobriu que arespiração da irmã assobiava no mesmo ritmo do fôlego da égua e, depois,mais tarde, constatou que o peso do corpo dela estava comprimindo-lhe opulso esquerdo, deixando-lhe a mão insensível. Bán retirou o braço comcuidado, bem devagar, fazendo o possível para não acordar a irmã.

Silla tinha três anos e só recentemente se qualificara para dormir como irmão mais velho. Bán aguardara com prazer o acontecimento, acalen-tando com carinho a ideia da companhia dela, que trazia consigo a pro-messa de mais calor, e a novidade que seria dividir as peles com uma pes-soa, além de um cão. A realidade se revelara mais como uma faca de doisgumes. Nove entre dez noites, a irmã era uma alegre trouxinha quente epegajosa que torcia o nariz e se enroscava debaixo da sua axila para ouvi-lo sussurrar as histórias do pai deles, o maior guerreiro e ferreiro que osicenos já haviam conhecido, e da mãe deles, que podia se transformar numa

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garriça e viajar pelo espaço entre os mundos para protegê-los. Naquelasnoites, sua irmã dava risadinhas e deixava que ele lhe traçasse na pele o con-torno das feras, pressionando levemente para provocar uma sensação quedurava até de manhã. Mas havia então aquela noite em dez em que algumacoisa indescritível a aborrecera, e bastava, por exemplo, que ele se virasserápido demais enquanto dormia para fazê-la voltar a choramingar e sequeixar como um bebê. Sem esforço, Silla conseguia acordar metade dacasa, e a experiência tinha ensinado a Bán que seria ele, e não Silla, que seriafulminado por olhares exaustos pela manhã.

Esta não era uma daquelas noites. Silla ouvira o irmão contar a histó-ria do corvo e da ursa, e dormira profundamente, não acordando nemmesmo quando ele despertou por causa do sonho. Bán afastou-se da irmãe rolou até a beira da cama para se sentar. Estava com a bexiga cheia e nãoconseguiria passar a noite sem esvaziá-la, talvez sendo esta a causa do sen-timento de urgência do sonho. Deslizou a mão por entre as coxas paraverificar se não havia ocorrido uma calamidade e, em seguida, com cuida-do, pôs a mão debaixo das peles e fez o mesmo na irmã. Ambos estavamsecos. Ele se levantou, deixando que a necessidade de esvaziar a bexiga ofizesse sair do calor agradável para o frio da noite.

O ar não estava tão gelado quanto imaginara. A nuvem tardia danoite havia desaparecido, mas um vento quente soprava do sul e mantinhaa geada afastada do solo. Mesmo assim, Bán estendeu a mão através dapele que servia de porta e puxou o seu manto da cama. Era um dos agasa-lhos do pai que fora reformado para ele, e a forja o havia chamuscado emalguns lugares, mas ainda estava fortemente impregnado do cheiro degordura de carneiro e do suor de homem. O mais importante a respeito domanto, à parte a cor, que era azul como o céu ao anoitecer e distinguia odono como um dos icenos, era o fato de a sua mãe lhe ter dito que, quan-do ele o usava adequadamente, preso com o broche no ombro direito, fica-va igualzinho ao pai. Essa declaração não era exatamente verdadeira; seupai era louro, ao passo que Bán tinha os cabelos castanhos e a pele maismorena da mãe, mas o menino compreendia que a semelhança residia namaneira como ele se comportava, particularmente entre as mulheres.

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Tomara o cuidado, desde que ouvira essas palavras, de observar como seupai agia com sua mãe e de se conter da mesma maneira sempre que esta-va com Breaca. Nessa noite, no escuro e sem que ninguém estivesse olhan-do, a formalidade era bem menos necessária. Bán deixou o broche nolugar, ao lado da cama, e enrolou o manto bem apertado em volta dosombros como uma pele, deixando cair as pontas soltas sobre os cotovelospara evitar que se arrastassem na lama. Bán estava se sentindo quase tãoaquecido quanto estivera na cama.

Em seguida, contornou rapidamente a parede arredondada da casa.Ele estivera errado mais cedo, quando julgara que a noite estava com-pletamente escura. Fazia muito tempo que a lua tinha sumido atrás dacurva terrestre, mas as estrelas formavam um dossel de luz de um hori-zonte a outro, espalhando sombras suaves e indefinidas. Bem no alto, oCaçador passou por cima da copa de uma faia. O menino ergueu o punho,fazendo a saudação do guerreiro. Esse gesto ele também podia fazer sozinho, no escuro, quando ninguém estava presente para lhe dizer queele era uma criança, e que ainda era jovem demais para fazer o sinal doguerreiro.

Os cães se uniram a Bán assim que este deixou a área protegida.Enquanto se apinhavam a seu redor, empurrando-lhe com o focinho aaxila e a virilha, Bán percebeu, pelo cheiro, que eles tinham estado naestrumeira. Ele forçou a passagem, sussurrando ameaças rudes queprometiam os mais diversos tipos de violência se não o deixassem passar.Nenhum deles o temia, mas de todo modo recuaram, mostrando os den-tes brancos na luz das estrelas. Apenas o cão malhado com a orelha bran-ca que dividia a sua cama permaneceu a seu lado, roçando nele etocando-lhe o ombro com a espádua, como um amigo. Ele abraçou o pes-coço do animal, que se apoiou com força em Bán enquanto este se posta-va contra o vento da estrumeira, aprumando-se como fazia o pai, paraurinar em arco sobre uma cabeça de porco que se destacava. Quando ter-minou, o cão o cutucou com o focinho, fazendo-o perder o equilíbrio.Bán agarrou-se ao manto e o usou para se aprumar de novo. O cãorecuou, mostrando os dentes, arrastando o menino consigo. Começaram

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então a brincar, pelejando calados no escuro. O animal era o maior doscães, um dos melhores caçadores de veados que eles possuíam e logo teriaos seus primeiros filhotes. A cadela escolhida havia muito perdera o vigorda mocidade e, quando ocorreu o sangramento do animal, uma longa eacalorada discussão a respeito de ela ser ou não velha demais para maisuma ninhada tivera lugar entre a mãe de Bán e uma das avós. A cadelaera a única que restava da sua linhagem, sendo ainda o único animal damatilha que já abatera sozinho um veado. Além disso, o sangue velho erauma coisa boa, fortalecendo a chama indene da juventude. Foi o que afir-mou a sua mãe, e a avó, talvez adoçada pela conversa da mocidade tem-perada pela idade, abrandara-se e abençoara o par.

Isso se passara havia dois meses, pouco antes de a primeira égua grá-vida dar à luz. Desde então, Bán ficara envolvido com os partos, assistin-do enquanto cada potro escorregava no mundo e era libertado do frag-mento do âmnio preso à cabeça. Na noite do quarto da lua, ele escolhera apotranca ruça com a marca da foice entre os olhos para ser sua égua repro-dutora quando ele tivesse idade suficiente para ter uma, e ela, para pro-criar. Bán passara a maior parte de cada dia ao lado da égua no cercadopara garantir que ela conheceria o som de sua voz melhor do que o dequalquer outra pessoa. Com três dias de vida, ela já saía de perto da mãe ecorria pelo cercado ao encontro de Bán para dar sua lambida no sal. Comtodo esse rebuliço e agitação, ele só notara vagamente que a cadela tam-bém estava prestes a dar à luz. Ao pensar a respeito, lembrou-se de quepor duas noites as tetas do animal vinham vazando leite e que, quando sedeitara ao lado dela, naquela tarde, no vão da entrada da casa, sentira apressão de uma cabeça redonda e pequena na palma da mão.

O garoto sentiu a focinhada do cão e procurou a cadela no meio damatilha. Por não tê-la avistado, Bán retornou a casa, imaginando que tal-vez tivesse passado por cima dela na entrada, na pressa de sair. Ela nãoestava lá. Quando levantou a pele da porta para espiar, verificou que a suamãe também estava ausente.

Bán soltou a pele, deixando que voltasse ao lugar. Sua mãe poderia sair ànoite por muitas razões e o parto de uma cadela não era a mais importante

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delas. Se ela fora além da muralha de proteção, ele talvez não a encontras-se. Ao lado da grande casa redonda, só havia seis construções, ou sete, seconsiderássemos o silo, dentro do fosso circundante, mas além dele haviaos cercados dos animais, o rio e depois a floresta, que encerrava perigosmaiores do que um menino de oito anos poderia enfrentar. Ele estava proi-bido, sob pena de ser amaldiçoado, de atravessar o portão à noite sem acompanhia de um adulto. Ele só poderia violar a regra se os coritânios ata-cassem, e ele estivesse prestes a morrer ou a ser levado como escravo.

Onde procurar então? Bán mordeu o lábio e virou-se lentamente, ten-tando ouvir alguma coisa. Os ruídos da noite soaram em seus ouvidos: oofegar úmido dos cães, o mordiscar e os passos das éguas no cercado alémdo fosso, o relinchar de um potro que mamava e, bem distante, o grito iso-lado de uma coruja para seus filhotes e um guincho solitário em resposta.Das pessoas, ele só conseguia ouvir a respiração do pai, cujo ritmo só eralevemente amortecido pela parede que os separava.

Bán decidira caminhar em círculo, seguindo o trajeto da lua, quandoouviu um som que não pertencia à noite: o ganido de dor de um cão e omurmúrio confortante de vozes, entre estas a de sua mãe. Era o que eleestava esperando. Correu o mais rápido que pôde, evitando a estrumeira,parando, ofegante, à porta da moradia das mulheres, na extremidade ocidental do terreno cercado. Quando era bem pequeno, sua mãe o levarapara dentro consigo para que se deitassem no musgo, enquanto a cadênciade sua voz o mantinha tranquilo. Depois, à medida que ele foi crescendo,as visitas se espaçaram e, por fim, cessaram totalmente. Daí a doze mesesele nem mesmo poderia chegar perto da entrada. Ele ficou, portanto, para-do na porta e ouviu a cadela ganir uma segunda vez; um grito de doragudo e expressivo. O cão malhado andava nervoso a seu lado, ganindo.Ele não era um animal paciente e não tinha a menor ideia de que o machonão era bem-vindo do lado de dentro. O cão puxou a pele da porta com asunhas, arrastando-a para o lado, e o menino se viu diante do vão aberto daentrada, os olhos apertados contra o brilho repentino do fogo, fulminadopelo olhar combinado de todas as mulheres que conhecia.

— Bán? — A voz de sua mãe transportou a respiração retida dasoutras. Sua figura se moveu do lado mais distante do fogo. Ao lado dela,

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ele avistou o brilho de um cabelo da cor da pele de uma raposa no outono,curvado sobre uma forma imóvel no chão. O sonho voltou de repente,destrutivo. Ele se esquecera dele enquanto procurava pela cadela. Agoraele invadia os seus sentidos. Bán avançou tropeçando, contra o umbralentalhado da entrada. As marcas do cavalo e da garriça se desenredaramdo resto, rodopiando sobre a sua cabeça.

— Bán!Ele estava perto demais do fogo. Conseguia sentir o calor atravessar-

lhe os ossos. Estava muito quente. Tinham queimado a bétula, bem enve-lhecida, para que fornecesse o máximo de luz com o mínimo de fumaça.Em outro lugar, a salva fumegava espessa. Sua mãe o agarrou e o fez girar,afastando-o do fogo. Ela se ajoelhou e aproximou o rosto. Bán pestanejouatravés das lágrimas causadas, apenas em parte, pela salva.

— Tive um sonho — declarou, com voz de criança. — Eu montavauma égua com o pelo igual ao cabelo de Breaca.

— Isso é bom. — A voz dela era suave e as mãos nem tanto. — O pil-riteiro está falando com você, como achei que talvez fizesse. Volte comigoagora e poderá contar-me seu sonho.

Ele se esforçou para se virar. O sonho mostrara outras coisas além daégua.

— E a cadela? — perguntou ele. — Ela está bem?— Está exausta. Foi uma longa noite. Estará melhor ao amanhecer.— E o cãozinho? O preto de cabeça branca?Atrás dele, o menino ouviu os murmúrios das avós e não gostou desse

som. Os dedos da mãe enterraram mais nos seus ombros. — Para casa —ordenou a mãe. — Agora. — Em seguida, acrescentou, tendo recuperadoo controle: — Podemos conversar sobre isso lá.

— Por que, Macha? — Era uma voz velha, que a fumaça dos anosressecara. — Não há por que ter pressa agora. O menino viu o máximoque lhe será permitido enquanto viver. Se a fumaça o trouxe, talvez caibaa ela decidir quando deixá-lo partir.

Bán sentiu relaxar o aperto nos ombros. Resolveu arriscar e se virou.A irmã da mãe do seu pai estava sentada à beira do fogo mais próximo à

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porta e sorria para ele, o que em si era um milagre. Em toda a sua breveexistência, ela nunca se mostrara alegre com ele. Ele achava que ela pare-cia aquele texugo com focinho de porco; lenta, laboriosa e se zangava porqualquer coisa. Se ela alguma vez já lhe havia dirigido três palavras segui-das, fora apenas para lhe dizer que soltasse a pele da porta e nunca com ohumor profundo que acabara de ouvir. Bán sentiu a mãe mudar de ideia.Ela largou a pele que cobria a entrada e o fez sentar-se ao lado da avó,indo se acomodar na outra extremidade do fogo. Ao ouvi-la estalar osdedos, o cão malhado se virou e saiu. Bán sentiu em suas costas o sopro dacortina, agitada pela passagem do animal. Imediatamente, teve vontadede segui-lo. A avó bateu-lhe de leve no ombro para que ficasse quieto.Breaca estava sentada de frente para ele, do outro lado do fogo. O cabeloda menina era um rio de bronze derretido, fluido nas chamas, mais bri-lhante do que o pelo da égua do sonho. Ela sorriu para ele, o sorriso espe-cial que guardavam um para o outro em momentos de dificuldade. Era aprimeira vez que ele a via sorrir desde que a mãe dela morrera. Uma ondade alívio carregou parte do medo. Ele retribuiu o sorriso e endireitou oombro, como o pai fazia no conselho dos anciãos.

A avó falou:— Só havia um cãozinho — disse ela. — Ele era grande demais e

estava em posição invertida. A cadela não teve forças para pari-lo sozinha.No final, precisamos puxá-lo pelas pernas traseiras.

O coração do menino se contorceu no peito.— Mas ele vai viver?— Não — respondeu a avó, balançando a cabeça. Os olhos dela esta-

vam vermelhos por causa da fumaça. Ele se deu conta de que fora ela quese opusera ao acasalamento. — Sinto muito. Em parte, sua mãe estavacerta. Ele teria sido um grande cão, talvez o melhor, mas está fraco demaispara viver... e não tem boas marcas. Os deuses enviam estas coisas comoum sinal. Não cabe a nós contrariá-los.

— Mas por que então ele foi enviado? — O cãozinho estava deitado nasombra projetada pelo fogo. O menino se deixou cair no chão, erguendo aforma flácida até o rosto. O animalzinho pendeu das suas mãos, uma coisaúmida, fria e salgada com a cabeça grande demais para o corpo. A cabeça

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não era branca, aquilo tinha sido um truque do limo e da claridade dofogo, tampouco o corpo completamente preto. Quando Bán o examinoucom cuidado, descobriu que uma das orelhas era branca com uma marcasemelhante a uma lágrima que descia e circundava um dos olhos, e que oresto do pelo era escuro e malhado como nos outros sabujos, porém compequenas pintas brancas espalhadas, como granizo em uma noite escura.

Granizo. Hail no seu idioma. A palavra ressoou em sua mente. Umbom nome para um cão. Ele guardou a ideia para si naquele momento,embalando a coisinha de encontro ao peito. Ela se contorceu e o meninosentiu-lhe o coração palpitar sob os seus dedos.

— Vejam! — exclamou, erguendo o cãozinho na luz. — Ele não estámorto.

— Ainda não, mas já não o podemos trazer de volta. — Dessa feita,foi outra avó que falou. Ela parecia cansada. Em volta dele, as outras con-cordaram em um murmúrio uníssono. Bán podia sentir a força subjacen-te de coisas que não estavam sendo ditas.

Sua mãe tinha rugas em volta dos olhos que não estavam ali pelamanhã. Um longo segmento de muco ensanguentado cobria-lhe um dosbraços. Ela falou com o filho, em um tom de voz mais brando do que o dasegunda avó:

— É um filhote, Bán. Haverá outros — declarou, estendendo a mãona direção dele, através do fogo. — Ele deveria ter tido irmãos e irmãs aolado dele no útero, mas a cadela era velha demais e só conseguiu conceberum. Por estar sozinho, ele cresceu muito e o parto foi longo demais.Mesmo que consigamos revivê-lo, ele não terá forças para mamar. O leiteda cadela secará em poucas horas e o filhote morrerá de fome. É melhorque ele se vá agora.

A voz da mãe de Bán soava sincera. Ela falou como se acreditassenisso. Ele ficou sentado onde estava.

— Mas o sonho... o cavalo dos deuses... — Ele não tinha contado a ela.Ela olhou para o filho de revés através da claridade do fogo. Bán pros-seguiu: — No meu sonho, eu cavalgava uma égua vermelha, mas depoisnão era mais uma égua, era um cavalo preto, e tinha a cabeça branca. —

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Seu nome significava “branco” na língua dos hibérnicos. Ele aprenderaisso assim que teve idade suficiente para conhecer o som. Mas nunca des-cobrira por quê.

Todas as avós voltaram o olhar para a cabeça do menino. Ele sentiu otrajeto desse olhar como o golpe de uma espada. A mãe ajoelhou-se ao seulado. As novas rugas em seus olhos haviam desaparecido.

— Bán? Você sonhou com um cavalo de cabeça branca? Toda branca?— Sim. Não. Nem toda. Ele tinha uma mancha preta entre os olhos,

como um escudo com uma espada atravessada sobre ele.— E o que você viu nessa mancha? — Quem fez a pergunta foi a avó

anciã, a mais idosa das mulheres, meia-prima da mãe de Bán. Seu cabeloera tão fino e branco que deixava à mostra o delicado couro cabeludo deum ouvido ao outro. Mais abaixo, a pele do rosto era tão enrugada e more-na quanto a casca raspada de um carvalho. Os olhos eram castanho-claros,amarelados nas bordas, e o ponto negro no meio deles estava se tornandoleitoso, o que denotava que em breve ficaria cega. Mas esta noite ela nãoestava cega. Tinha os olhos bem abertos e eles captaram a luz do fogo, bri-lhando através da cabeça do menino e seguindo em direção à memória dosonho. Devia ser assim. De que outra maneira poderia saber que ele viraalguma coisa na refulgência negra na cabeça do cavalo?

— Não sei. — Bán franziu a testa, tentando se lembrar. No sonho, elesoubera exatamente o que era. Tudo o mais fizera sentido. Agora era ape-nas uma mancha com a forma de um escudo de guerreiro que lhe mostra-ra outra coisa com um reflexo. O menino lutou para se lembrar e vislum-brou o esforço refletido nos olhos da mãe. — Sinto muito — disse ele. —Não consigo me lembrar.

Sua mãe pegara no colo o filhote de cão e esfregava, distraída, o peitodele, o olhar ainda fixo no filho. Uma das avós bateu-lhe no ombro e, semolhar para cima, ela entregou o cãozinho através da fumaça. Breaca segurouo animalzinho e começou a respirar por ele, pressionando a boca contra ofocinho do filhote, soprando com força o ar para dentro do peito. Alguémcertamente ensinara essa técnica a Breaca havia pouco tempo; ela nãosoube aplicá-la quando o potro morreu no rio. Uma das outras mulheres

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pegou uma dobra do manto e começou a massagear com força o coraçãodo cãozinho. Alguma coisa tinha mudado. Elas iam trazê-lo de volta. Elequeria assistir, ajudar, mas a mãe o fez sentar-se diante dela, de costas paraa cadela e o filhote.

— Conte-me o sonho — ordenou ela.Bán contou à mãe tudo o que conseguiu recordar. A narrativa foi mais

breve do que o sonho. No final, ele ainda não conseguia explicar o quevira quando o cavalo virara a cabeça. Restara-lhe apenas o sentimento eele não tinha palavras suficientes para descrevê-lo.

— Você sentiu medo?— Não. Na primeira vez eu senti, mas não na segunda. Eu sabia que

nada tinha a temer.— Nem mesmo quando a espada o atingiu?— Não. — Isso o deixava confuso. Ele deveria ter sentido medo da

espada. Mas era um soldado em combate e o seu pai lhe dissera que, nofuror da batalha, alguns guerreiros transcendiam o medo. Bán desceu osolhos para o braço esquerdo. Ele estava tão inteiro quanto o direito. —Talvez eu soubesse que não era real.

— Talvez. — Mas Macha não acreditava nisso. Do outro lado dofogo, uma coisa choramingava de leve, como o vento no juncal. A cade-la idosa levantou a cabeça e resmungou um cumprimento. O filhote foimassageado uma vez mais e colocado de encontro às tetas da mãe. Ela olambeu com força, empurrando-o para cima e para dentro. O cãozinhochoramingou e mexeu as patas, desajeitado, sem ter a menor ideia decomo mamar.

— Ele terá que ser alimentado. — A mãe de Bán se aproximou dacadela e apertou a teta traseira entre o polegar e o indicador. Quando a pri-meira gota de leite apareceu, ela encostou nela o filhote, besuntando-lhe ofocinho com o líquido branco. O cãozinho emitiu um som, sugou a teta e ofez de novo, com mais força.

A avó anciã se pronunciou. A voz dela farfalhava como as folhas mor-tas no inverno:

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— O menino teve a visão — disse ela. — Ele deve criar o cãozinho.— Voltando-se para Bán, com os olhos fixos em seu rosto, ela declarou: —Ele não viverá sem ajuda. Você o ajudará?

— Ajudarei. — Bán não tinha dúvida alguma a respeito disso. Emseguida, acrescentou: — O nome dele é Hail.

Essa resposta selou a promessa. Dar nome a uma coisa conferia vida aela. A mãe segurou-lhe o braço.

— Durante a primeira meia-lua — explicou Macha, eles se alimen-tam com muita frequência, tanto durante a noite quanto durante o dia.Vou lhe mostrar o que você deve fazer. Se você se mostrar à altura da tare-fa, o filhote viverá. Caso contrário, morrerá. Se isso acontecer, terá sido avontade dos deuses e você não deverá se sentir culpado. Está claro?

— Está.— Jure para mim que você não se culpará.O menino jurou. Jurou por Briga, a Mãe tríplice, e sua filha Nemain,

a lua, e pelos deuses menores do parto e da criação dos filhos. A seguir,como o filhote era macho, e não fêmea, ele também jurou por Belin, deusdo sol, e por Camul, o deus da guerra. O juramento foi longo e complica-do, e, no final, ele se lembrou de que não estava jurando que ficaria acor-dado para manter o cãozinho vivo, e sim que não se culparia caso ele mor-resse. Ele disse isso em voz alta para que ficasse bem claro.

Macha estava sorrindo quando ele terminou. Em seguida, estendeu amão e o fez se levantar.

— Venha então; vou lhe mostrar o que precisa ser feito. E depoistemos que encontrar um lugar onde você possa morar com a cadela semnos manter acordados a noite inteira por estar cuidando do filhote.

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EBUROVIC ACORDOU COM A LUA. UM FULGOR PRATEADO

deslizava através da abertura entre a pele da porta e o pilar decarvalho, resvalando pelos seus olhos e interrompendo o sonho.

Ele ficou deitado imóvel, escutando. A noite estava quieta. Estiverasonhando com o perigo e o eco do sonho confundiu suas ideias. A respira-ção serena dos que dormiam formava um manto de som estendido sobrea fumaça da noite para amortecer seus ouvidos. Girou a cabeça e ouviu oganido de um cão, bem como o arranhar e as corridinhas dos roedores.Em outro lugar, no mundo além do telhado de colmo, uma coruja chir-riou e obteve resposta. Eburovic ouviu o canto e esperou; estes eram ossons que o acompanhavam no sono todas as noites e nenhum deles o acor-dara. Deitado, imóvel, prendeu a respiração e se esforçou para captar oque estava além da fumaça. Com o tempo, o som voltou, o tinido sutil deferro contra ferro, como o que poderia ser produzido por um homem des-cuidado, deixando a espada se chocar contra o centro do escudo ou a arma-dura ranger enquanto galgava a murada de uma fortaleza para atacar osque dormiam do lado de dentro. Mas Eburovic não estava dormindo.Durante seis meses ele não tinha realmente pegado no sono, esperando porum momento como este. Sentindo algo semelhante à felicidade, ele desceu

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a mão em direção à espada que estivera ao seu alcance, noite e dia, desde oataque dos coritânios. Sua mão se fechou sobre a empunhadura, acomo-dando-se como se nascida para ela, e ele retirou a espada da bainha. O ferro polido deslizou sobre o couro de touro oleado e não fez mais baru-lho do que os que dormiam. Ainda assim, ele foi ouvido.

— É cedo e sua filha já está trabalhando.Eburovic parou. A alegria o abandonou. O sussurro veio da esquerda,

de uma das mulheres. Era seco como o roçar do vento sobre a pedra.Eburovic perscrutou a escuridão. As brasas do fogo da véspera pouco ilu-minavam, mas percebeu uma figura curva mover-se na obscuridade e obrilho fraco e mortiço refletido de olhos esbranquiçados, quase cegos, eentão soube quem era. As palavras da avó anciã costumavam ser erráticase duras, mas ele nunca ouvira dizer que ela tivesse falado algo em vão.Certamente, nunca mentira para ele. Sentou-se na beira da cama e deitousobre os joelhos, na horizontal, a espada desembainhada.

— Que trabalho é esse, avó? — Eburovic modulou a altura da vozpara que esta atravessasse a respiração e chegasse até a velha senhora, semacordar os demais.

— Como eu poderia saber? Você precisa perguntar a ela.O tom da anciã era mordaz, mas ele havia muito aprendera a ouvir

além das palavras ácidas e escutar os silêncios que encerravam o verdadei-ro significado. Foi o que fez então.

— Que trabalho é esse que ela precisa fazer no escuro e sozinha?— Ela está trazendo à tona a visão dela, como você deveria fazer —

retrucou a velha. — Não vale a pena um homem, ou uma criança, sonhardemais com a violência.

Eburovic calou-se com relação a esse comentário. Seu sonho haviasido o mesmo, todas as noites, desde o outono. Nele, ele dormia com aespada na mão, e não pendurada na parede, e não se separava das mulhe-res, apesar de Graine estar começando a sentir as dores do parto. Ele ouviaos guerreiros se aproximando, antes que começassem a matar, e chegava atempo, colocando-se no caminho deles, brandindo o ferro afiado e cruel

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para interromper o avanço do inimigo. No sonho, apenas os coritâniosmorriam. Os três primeiros tombaram pelo seu martelo e espada combi-nados, muito antes de alcançarem as mulheres. O último, como na vidareal, morrera pela lança de sua filha. Todas as noites o sonho terminavacom Eburovic no vão de uma porta, olhando para Breaca, de pé, ao ladodo corpo do homem que tombara, sentindo o frêmito do êxtase da batalharetinir-lhe na cabeça e o orgulho invadir-lhe o coração. O sol da alvoradase anunciava sobre o seu ombro, incendiando o cabelo, o sorriso e a pontareluzente da lança de Breaca. Ela erguia a arma à guisa de saudação e eletinha a impressão de que o seu coração ia explodir de tanta alegria.Depois, todas as vezes, ele via os olhos dela. Na vida real, eles eram de umverde brilhante com minúsculos fios acobreados expandindo-se a partirdo centro, uma cor própria, exclusiva. Aqui, do umbral do sonho, eleolhava para o azul do final do verão dos olhos da mãe dela e o sorriso queos animava era aquele que ardera no seu coração muito antes de eletornar-se pai. Era o sorriso que o fazia recordar sua perda e trazia de voltaa dor devastadora. Chorando, Eburovic observava a filha abrir a boca,sabendo que ela falava com a voz da mãe. Ele se esforçava para ouvi-la,mas as palavras se perdiam nas correntes de dor e ele sempre acordavaantes que elas pudessem alcançá-lo. Agora, sentado no escuro, ele sentia ador de todas as manhãs, só que dessa feita mais intensa porque compreen-dia que Breaca também sonhara com as mortes e ele não soubera disso.

— Não é bom para uma criança ter estes sonhos — comentouEburovic.

— Ela sabe disso. Está trabalhando como acha que deve. Não cabe avocê interrompê-la.

— Não. — Ele colocou suavemente a espada de volta na bainha e pôs-se de pé. Sua túnica jazia dobrada sobre as peles da cama. Ele a fez desli-zar por sobre a cabeça.

— Você pretende ir até lá? — A voz idosa soou importuna como umdente dolorido e o escárnio se dirigia inteiramente a ele. — Você acha queela trabalharia no escuro se desejasse a sua presença?

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— Despertei cedo do meu sonho — replicou Eburovic, percebendoque aquela era primeira vez que isso acontecia. — Talvez eu precise ver oque ela está fazendo.

— Ela está ensinando a si mesma a ser paciente. — A avó pôs de ladoa ideia como se não fosse importante, mas os dois sabiam que isso não eraverdade. — Não é cedo demais.

— Então darei uma olhada. Só oferecerei ajuda se ela pedir. Nadafarei para interrompê-la. — Ele passou pelo fogo e seguiu em direção àporta. Uma cadela idosa se adiantou para acompanhá-lo, mas a empurroupelo focinho e a fez voltar. Ela andou até o lugar onde ele dormia, acon-chegando-se entre as peles. Eburovic esperou que ela se acomodasse eentão saiu.

A forja ficava distante da casa, na extremidade do complexo, com a entradavoltada para o sul, para evitar que, no tempo seco, as centelhas pudessematear fogo ao telhado de colmo e causar um desastre. A construção erafeita de madeira, com o telhado de tabuinhas de aveleira e ele próprio amolhava regularmente para que não se incendiasse. O chão era de terrabatida, umedecida, pisada e vitrificada pelo fogo até ficar plano, liso eresistente, exceto na entrada, onde as galinhas haviam raspado um buracoe se deitavam nele de vez em quando para se aquecerem ao sol.

Não havia galinhas à noite. Elas haviam despertado ao anoitecer eaproveitado os resquícios de luz para ir bicando até o galinheiro protegidodebaixo do beiral do celeiro. Depois que elas saíram Eburovic tinha veda-do a pele da porta, deitando uma fileira de seixos ao longo da capa, paraque a fornalha, livre das correntes de ar, pudesse se manter aquecida até oamanhecer. Aproximando-se agora do prédio, à luz do luar, Eburovic avis-tou a névoa subindo diretamente do buraco da fumaça e percebeu que ofogo não estava apagado. Ao chegar à porta, descobriu que as pedras havi-am sido colocadas de lado, arrumadas por ordem de tamanho, com maiselegância do que era o seu hábito, que a aba fora virada para dentro e queuma única pedra posta em cima a mantinha presa. Eburovic ficou parado

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por um momento, com o ouvido encostado no couro, mas não ouviu nada.Se Breaca estivera usando o seu martelo, não o estava fazendo agora.

Eburovic deslizou a mão em volta da borda da pele, colocando o rostona abertura e preparando-se para receber um jato de calor, o que nãoaconteceu. Isso o deixou satisfeito. Afinal, era a sua filha que estava traba-lhando na forja e ele a treinara bem; ela sabia acender o fogo,alimentando-o de modo que se mantivesse baixo, e represando as bordaspara que o calor não se dispersasse, em vez de esquentar o ar da noite.Mesmo assim, estava claro lá dentro. Quando seus olhos se acostumaramàs chamas, Eburovic notou que ela acendera um fogo para fundição; asbordas represadas eram mais altas do que as que ele usava para forjar e ocarvão no centro reluzia esbranquiçado, dispersando-se em cinzas bran-cas e pequenas golfadas de fumaça. O interior do fogo abrigava um moldeque não era um dos seus. Breaca estava de cócoras diante dele, de costaspara o pai. O efeito da luz que emanava do fogo captava o bronze profun-do do cabelo da menina e o transformava em cobre derretido, que se der-ramava além dos ombros. Quando Breaca se levantou para pegar o fole,Eburovic percebeu que ela estava vestindo a velha túnica que tinha nafrente as antiquíssimas marcas pretas deixadas pelo fogo e, por cima dela,o avental de pele de boi fervida que ele fabricara para ela no verão ante-rior. Ele pôde constatar que o avental agora estava pequeno demais paraBreaca. Nos seis meses de inverno, debaixo dos seus olhos, mas sem queele enxergasse, sua filha se tornara uma mulher. Ele se perguntou quãopróximo ela estaria do primeiro sangramento e teve certeza, de repente, deque esse era o motivo da presença dela ali. Ainda não acontecera, certa-mente, senão ela estaria sob os cuidados das avós, mas o momento estavapróximo.

O fole suspirou enquanto ela bombeava. O fogo crepitava e rugia, e omolde no centro reluzia incandescente. Eburovic observou a filha ergueras tenazes mais longas, as que ele fabricara para poder trabalhar com ferrobem quente. Com cuidado, ela passou pelo molde e as conduziu a umcadinho com metal derretido. Ele nunca a vira fazer isso. Prendeu a respi-ração, observando a superfície do bronze liquefeito, rezando para tê-la

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ensinado corretamente, para que ela soubesse a importância de manter as mãos firmes. Mesmo que soubesse, ele não tinha certeza de que alcan-çaria o seu intento. A mão esquerda de Breaca ainda era a mais fraca. Ocorte feito pela espada do coritânio não tinha cicatrizado bem durante oinverno. A avó anciã dedicara algum tempo ao ferimento nas noites escu-ras do meio do inverno, abrindo a ferida e explorando-a com uma agulhade prata recém-forjada até encontrar um fragmento de osso solto dentrodela. Breaca se sentara no banco que haviam preparado para ela com oslábios brancos e em silêncio. Os olhos verdes tinham se fixado nos dele,imóveis como água congelada, e, quando a agulha começou a se mover, elesentira orgulho porque eles permaneceram secos. A mão livre agarrara obraço do pai enquanto a exploração prosseguia e só depois ele notara aintensidade do aperto. As contusões levaram cinco dias para desaparecer.

Depois, por meio de cataplasmas e cuidados, a ferida começara a sefechar como deveria, mas uma cicatriz que acompanharia Breaca a vidainteira corria pelo centro da palma, e havia uma separação maior do que onormal entre o indicador e os outros dedos. Além disso, a mão não funcio-nava como antes, e não era do feitio de Breaca tratar levianamente umaincapacidade. Ela se atormentara diariamente sob a direção da avó,esforçando-se demais para fazer com uma das mãos coisas que nunca foracapaz de executar com as duas. Quando os cataplasmas tornaram-se des-necessários, ela começara a trabalhar resoluta. Com um aperto no coração,Eburovic a observara caminhar pelos campos ou ao longo do muro deproteção, fletindo o dedo contra um pedaço de couro velho, reprimindo ador até que esta descorava-lhe a pele e os seus olhos enchiam-se de lágri-mas. Na única vez em que ele lhe pedira que parasse, ela se voltara contraele, chorando abertamente, e declarou com veemência que, se a sua mãeconseguira suportar a agonia do parto, ela seria capaz de tolerar a dor bemmenor de uma mão machucada. Na ocasião, ele ficara chocado ao vê-latão zangada. Em retrospecto, compreendeu que aquela fora a única vezem que a vira chorar.

Na forja, Eburovic observou a filha erguer o cadinho e depois levaro molde até a beira do fogo. Mesmo da porta, ele conseguiu detectar o

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tremor dos últimos movimentos. Aliviado, ele a espiou pousar as tenazese fletir os dedos. Ela tentou novamente, mas tremeu ainda mais. Ele podiasentir a tensão aumentando na coluna da filha. Ela balançou, zangada, acabeça. Ele ouviu o alento dela sibilar sobre a sucção do fogo e a impreca-ção em tom baixo que se seguiu. Na imaginação, ele a via derrubar omolde no ponto crucial em que ia verter o metal. O metal derretido desli-zava pelas pernas dela, procurando os lugares não cobertos pelo avental,produzindo queimaduras que nem mesmo a avó anciã conseguiria curar.Ele deslizou a mão pela pele da porta para levantar o peso que a prendiaembaixo, decidido a ir em auxílio da filha. Quando sua mão se fechousobre o disco de cobre, veio-lhe à memória a lembrança de uma conversaà surdina: Você acha que ela trabalharia no escuro se desejasse a sua presença?E sua resposta: Vou então dar uma olhada. Só oferecerei ajuda se ela pedir.Nada farei para interrompê-la.

Nada farei para interrompê-la. Eburovic não enunciara a frase comoum juramento, mas palavras ditas no escuro para a avó anciã não deve-riam ser levianamente desprezadas. Os deuses não contemplam combenevolência o homem que quebra a palavra, e nenhum ferreiro pode sedar ao luxo de provocar o desfavor deles sem um forte motivo, muitomenos alguém que sofrera recentemente uma perda tão grande. Eburovicretirou então o braço e soltou a pele da porta, deixando apenas uma frestapara poder observar. Ao lado do fogo, Breaca curvou a cabeça e inspiroumais longamente, soltando o ar devagar. Com grande cuidado, levou asmãos às tenazes e ergueu-as horizontalmente. Quando ficou claro que aspontas estavam firmes, ela as deslizou para frente, em direção ao fogo,usando-as para segurar o pescoço do cadinho e erguendo-o apenas o sufi-ciente para perfurar a borda do molde. O metal fundido derramou-se sua-vemente. Um fluxo delgado de bronze liquefeito escorreu para a cavida-de que ela preparara. Eburovic ouviu o ar sibilar e suspirar nos orifícioslaterais e a parte de seu ser que vivia para seu ofício reconheceu o méritoda filha por tê-los colocado adequadamente. Seu lado de pai só voltou arespirar quando o cadinho ficou vazio. A seguir, ela golpeou três vezes ocadinho com o martelo para eliminar as bolhas de ar, e o perigo estava

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dissipado. Tudo tinha sido feito em ordem e do modo correto. Eburovicrespirou de novo.

O molde esfriou lentamente. O tempo que era preciso esperar paraquebrar o molde depois que o metal era derramado sempre fora para elaa parte mais difícil. Dos seus três filhos, Breaca era a mais impulsiva. Duasvezes, quando criança, ela se aproximara cedo demais e tivera de serentregue aos cuidados da avó anciã para que esta envolvesse a pele cha-muscada em folhas de labaça e raízes de funcho para que não inflamasse.Agora, ela se levantou devagar, aliviando os músculos comprimidos dascoxas, e começou a arrumar as ferramentas do seu trabalho. Como se esti-vesse sonhando, Eburovic observou o cuidado com que as tenazes forampenduradas na parede e o martelo, depositado na armação perto daslimas. Sua filha, sua criança ardorosa, impetuosa e impaciente, nunca seimportara com a ordem. Desde que ela tivera idade suficiente para vir àforja observá-lo e “ajudá-lo”, ele mencionara, calmamente, que certas coi-sas moravam em certos lugares e que talvez fosse bom, ao final de um diade trabalho, colocá-las de volta no lugar. Ela sempre voltara para ele osgrandes olhos verdes, sorrira e prometera “mais tarde”, indo embora cor-rendo para brincar nos cercados, procurar a mãe ou cuidar das dezenas deoutras coisas que precisavam da sua urgente atenção, deixando que o paiarrumasse tudo. Ele tinha convencido a si mesmo, enquanto punha as fer-ramentas no lugar, que, se a importunasse bastante, talvez um dia ela selembrasse de como se pendurava um martelo. Ele nunca imaginara quefosse presenciar aquela façanha ser feita com tanta facilidade.

A peça estava praticamente pronta. Breaca aproximou-se dela, fran-zindo a testa enquanto observava a superfície do metal, esperando que aescumalha endurecesse. O fogo, não alimentado, esfriou, lançando umaluz mais vermelha e sombras mais suaves nos cantos da forja, retirando ostons outonais do cabelo e sobrancelhas, e formando com o resto umasilhueta. O perfil de Breaca era o da mãe. A fronte alta e plana seguia dire-tamente para a linha do cabelo. O nariz, reto e firme, equilibrava a linhaforte do maxilar e as largas maçãs do rosto. A pele era mais escura do que a

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de Graine. Herdara esta característica do pai: a capacidade de bronzear-seum pouco no sol, sem chegar a alcançar o tom moreno de Macha e Bán,mas também sem ficar vermelha como a mãe. Eburovic sentiu que, com aidade, ela seria grata por isso. Ela também era alta como ele. Podia afir-mar, mesmo agora, que Breaca puxara mais essa característica dele do queseus outros filhos e que, quando adultos, ela e Bán teriam a mesma altura,e Silla seria um pouquinho mais baixa. Quando ela se ergueu e se voltoupara trás para pegar o martelo menor, ele pôde constatar, nas linhas domovimento dela, que a filha estava adquirindo a graciosidade da mãe.Observou-a então inspirar uma vez antes de bater de leve no molde e acurva do sorriso da filha cortou em dois o coração de Eburovic. O marte-lo desceu, fendendo o molde, dando à luz o metal reluzente. Breaca levan-tou a cabeça e o fitou diretamente nos olhos, ainda sorrindo, do jeito queele vira no sonho.

— Você pode entrar agora — declarou ela. — Já terminei.Ele vacilou. Nunca se sentira inseguro ao entrar em sua própria forja.

Mas era como se sentia agora. — Como você soube que eu estava aqui? — indagou.— O fogo me contou. — O sorriso de Breaca se alargou. Ela exultava

com a manhã e com a obra que concluíra. Seu sentimento a fazia reluzircomo se estivesse em plena luz do sol. Ela prosseguiu, dizendo: — As cha-mas se moveram na corrente de ar quando você puxou a pele da porta. Eusabia que alguém estava me observando. Quando você ficou quieto, espe-rando, tive certeza de que era você. Ninguém mais tem a sua paciência.

— Você está aprendendo — comentou ele. — Não queimou os dedos.— Ainda não — replicou ela, franzindo de novo a testa enquanto

contemplava a peça sobre a bancada. — Mas é difícil e eu tenho que pen-sar. Você não precisa pensar. — Breaca levantou a cabeça. — Você nãoquer ver o que eu fiz?

— O quê? — Eburovic imaginara que fosse um segredo. Não lheocorrera que pudesse ter permissão para ver o trabalho. — Claro quequero.

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A peça repousava na bancada, chamuscando a madeira já enegrecidapor inúmeras outras anteriormente fundidas. Eburovic aguardouenquanto Breaca pegava as pequenas tenazes de mão e mergulhava a peçana caçamba onde os metais eram temperados. O chiado do vapor era umdos pontos altos da sua vida. Fechou os olhos e deixou que o som o acal-masse. Ao abri-los de novo, notou que Breaca colocara o trabalho sobre abancada e estava ao lado do bloco de forjar esperando sua opinião. Comcerta relutância, Eburovic afastou os olhos do rosto da filha e contemploua bancada e o objeto que ela havia fabricado.

Exatamente como as melhores peças, esta era ilusoriamente simples.À primeira vista, tratava-se de uma pequena ponta de lança, do compri-mento do dedo médio de Eburovic, com uma longa lâmina em forma defolha e a ponta afiada, característica da fundição. Era um objeto de inten-sa beleza e ela claramente tomara como modelo a ponta de lança antigaque ele mantinha em sua bolsa de trabalho, fabricada pelos antepassadose que chegara a ele pela linhagem da mãe de Breaca. Eburovic ficouimpressionado com a execução primorosa e o tempo que a filha levarapara tornar as proporções corretas, aumentando a escala para que o resul-tado final fosse um terço maior do que o original. Ao mesmo tempo, sen-tiu um desapontamento efêmero por ela ter produzido algo tão simplescomo uma ponta de lança em sua primeira obra. Ele virou o objeto paraexaminar a parte posterior, como uma maneira de ganhar tempo.

Foi quando descobriu a primeira ilusão. Não era apenas uma ponta delança; quando Breaca a colocou sobre a bancada, tivera o cuidado deesconder a parte de trás, e ele não tinha visto o detalhe no reverso que atornava também um broche, moldado no estilo antigo dos antepassados,com o anverso voltado para o mundo e dois orifícios no reverso atravésdos quais passaria o pino que o manteria seguro no manto. Ela fora talen-tosa, e ele se viu invadido por uma onda de orgulho. Breaca aprenderamais do que ele esperara nos anos que ela passara observando-o, e o traba-lho era praticamente tão bom quanto qualquer coisa que ele poderia terfeito quando começara. Depois, ao virar a peça, notou o terceiro elemento

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e soube que ela o havia superado. Como o melhor dos artífices, Breacacaptara vida na simplicidade, movimento na imobilidade, e o que eleenxergou diante de si eriçou o pelo dos seus braços. Segurada de determi-nada maneira, a peça era uma lança, um objeto feito para um guerreiro.Mas, se inclinada de outro modo, os arcos que modelavam o anverso seresolviam em algo bem diferente. Eburovic virou o objeto na palma damão para captar a luz do fogo. O bronze tremeluziu no calor, e na super-fície, moldada no lugar adequado, o milhafre-real dos coritânios caía nasgarras punitivas da pequena e feroz coruja de olhos amarelos que caça dedia — a que fora a visão da sua mãe. Ele sonhara o inverno inteiro com asua vingança. Sua filha a moldara em bronze.

Eburovic ficou parado, um longo tempo, em silêncio. As palavras daavó anciã ressoavam em seu ouvido: Ela está trazendo à tona a visão dela,como você deveria fazer. Ele ergueu os olhos. Breaca estava na mesma posi-ção de antes, a mão perfeita ainda sobre o bloco de forjar e a outra penden-do solta ao longo do corpo. O sorriso e o colorido haviam desaparecido doseu rosto, deixando-a cinzenta como a manhã. Ela não perguntaria; seuorgulho não o permitiria. Ele tinha de dar a ela o que ela precisava, espon-taneamente e com integridade, mas era difícil para ele examinar critica-mente o trabalho, como faria no caso de qualquer outro ferreiro. Eburovicobrigou-se a examinar as linhas, combinando e equilibrando as marcasindividuais com o fluxo global. Sem pensar, ele pegou a areia de polimen-to e corrigiu uma falha na superfície da peça. O movimento involuntáriodo braço da filha o trouxe de volta à realidade.

Ele pousou novamente a peça. Devia a ela sinceridade; ela não espera-ria menos que isso.

— Está quase perfeito — declarou.— Mas...?— Mas você não usou a ferramenta de desenho. Os dois arcos dos

olhos não estão bem equilibrados. Este aqui — o seu dedo acompanhouuma linha na superfície — não combina com este.

Ela sabia. Ele pôde perceber a verdade na inclinação da cabeça da filhae na única linha vertical no cenho franzido.

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— Eu não conseguiria pegar a ferramenta sem que você percebesse —declarou Breaca. — Tentei fabricar uma eu mesma, mas não deu certo.

— Mas, mesmo assim, é uma peça extraordinária. E muito bonita —acrescentou. Eburovic estendeu a mão até a prateleira superior para pegara sua caixa de trabalho. O perfurador, colocado no centro e protegido comlã, tinha na extremidade uma peça no formato de uma ursa nutriz, amarca da família de Eburovic. Ele o estendeu a ela. — Se você quiser usá-lo — sugeriu ele —, vale bem a marca.

Foi o melhor presente que ele poderia ter dado à filha, e Breaca nãoesperara tanto. Os olhos dela brilharam e ele percebeu, abalado, que lágri-mas cintilavam nos cantos.

— Você acha que o trabalho é bom o suficiente para merecê-la? —perguntou ela.

— Eu não teria oferecido se não achasse.Eburovic estendeu seu martelo médio para Breaca. Ela pegou o sinete

e colocou-o sobre o anverso do broche, em uma área onde o metal estavanu, desprovido de ornamentos. O som tangeu como um sino. Com amarca no lugar, a forma do broche equilibrou-se melhor, e Eburovic seperguntou se a assimetria não teria sido mais deliberada do que a filhaadmitira. Do lado de fora, o sol rompia no horizonte. Um fragmento per-dido da luz do sol infiltrou-se pelo vão da porta e deitou-se sobre a banca-da. Eburovic colocou a peça no trajeto dele para que a coruja reluzissecomo ouro, e contemplou o broche junto com a filha. Ele perguntou:

— Você pretende usá-lo agora?— Não — respondeu ela, balançando a cabeça. Ele percebeu o brilho

dos dentes alvos no lábio inferior. Sob certos aspectos, Breaca ainda erauma criança. — Não o criei para mim.

Por um breve instante, Eburovic imaginou que a filha estava lhe ofe-recendo um presente, o que o inundou de prazer. A seguir, ele notou asfaixas coloridas no alto das maçãs do rosto de Breaca, que contrastavamcom o branco da pele, e, oprimido, compreendeu. Olhou para ela emsilêncio.

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Com visível esforço, Breaca declarou: — É um presente para... aquela que conhecia a coruja.Ela estava rígida, e sua voz, tensa. A mão machucada pousava aberta

e estirada na borda da bancada, e o corpo fremia como uma folha nachuva. A linha vertical das sobrancelhas franzidas estava gravada na testa,como a da mãe. Breaca inspirou para falar de novo e Eburovic a silenciou,transpondo o espaço que os separava antes que se tornasse um abismointransponível. Cautelosamente, porque estava claro que ela estava pres-tes a se alquebrar e não queria fazê-lo, ele pousou um braço sobre o ombrode Breaca e abraçou-a, puxando-a para baixo, até que se sentaram juntosno canto umbroso atrás da fornalha, onde ela passara muito tempo quan-do criança. Eburovic acariciou-lhe o cabelo, falando com a filha como sedirigiria a um cavalo recém-amestrado ainda propenso a fugir, com oritmo significando mais do que as palavras.

Quando o sol nascente aqueceu a geada que cobria a relva, e as gali-nhas acordaram no galinheiro, Breaca mostrou-se menos tensa ao contatocom ele, e sua respiração, embora não totalmente natural, parecia menosforçada. Eburovic virou o corpo da filha de modo que as costas de Breacase apertassem contra seu peito e cruzou os braços na frente dela.

Com o rosto quase tocando o cabelo da menina, Eburovic disse: — Breaca, sinto muito. Passei o inverno inteiro acalentando a minha

dor e julgava que você estivesse livre da sua. É claro que podemos falarsobre a sua mãe. Devemos falar. Só não podemos mencionar o nome dela.Seu espírito ainda está viajando através do rio dos deuses, em direção àsterras dos mortos. Ela não chegará do outro lado enquanto não queimar-mos seus ossos no início do inverno, um ano depois da sua morte. Até lá,ela está em busca do seu caminho e não devemos fazer nada que possaatraí-la para nós.

— Ela já está sendo puxada de volta. — O corpo de Breaca voltara ase enrijecer e sua voz era dura. — Tenho sonhado com ela. Pronunciei onome dela nos meus sonhos e ela veio. E continua a vir.

Eburovic não esperara por isso. Gelo correu-lhe nas veias e ele lutoupara não ficar rígido como a filha. Sua mente procurou uma resposta.

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— O que ela disse? — ele finalmente perguntou.— O que sempre disse: que somente os deuses conhecem o futuro e

não cabe a mim julgá-los; que eu não devo nutrir ódio contra os coritâ-nios, pois eles não são os nossos verdadeiros inimigos. Disse ainda que oconselho estava certo ao decidir não atacar no inverno e que devo usar aminha influência para advertir contra o ataque quando voltarmos a nosreunir na primavera. — Breaca relaxou um pouco, apoiando de novo acabeça no ombro do pai. — Não quero fazer isso.

— Eu sei. Mas seria bom dizer isso, e eles a escutarão. Você é filha delae um dia, como ela, será a líder do nosso povo. E agora você é uma guer-reira. Eles a respeitam.

— Eu sei.Breaca expressou-se em um tom grave, novo e inesperado. Ao matar

o agressor, sua filha se tornara uma guerreira e conquistara um lugar noconselho antes da época prevista. Não era algo de que as pessoas aindavivas se lembrassem, mas não era a primeira vez que ocorria na história.Por uma ou duas vezes, as narrativas dos heróis e das suas façanhas des-creveram uma criança que matara ainda jovem e realizara posteriormen-te feitos maiores. Eles não tinham um cantor — esse fora o papel da suamãe —, mas havia aqueles que conheciam as narrativas e podiamdescrevê-las bem, e parecia que cada um que se erguera para falar nas len-tas noites de inverno escolhera uma história sobre alguém que se tornaracedo um herói. Eburovic, que conhecia as narrativas que eles decidiramnão contar, sobre aqueles que mataram e morreram jovens, sem que res-tasse ninguém para chorar sua perda, ouvira tudo aquilo com sentimentosconfusos. Somente agora, ao olhar para trás, percebia as sombras quetinham se reunido em torno da sua filha.

— Foi a sua mãe que lhe disse para fabricar o broche? — perguntouele. — Ou foi a avó anciã?

— Nenhuma das duas. Foi ideia de Airmid. Ela entende.Airmid, a menina alta, silenciosa, de cabelos escuros, que recentemen-

te se tornara mulher e fora aceita pelas anciãs como vidente. No outono,

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antes do ataque dos coritânios, ela não era uma amiga especial. Essa ami-zade também evoluíra no inverno sem que ele soubesse. Eburovic pegouo broche que estava sobre a bancada e o premiu contra a palma da mão dafilha.

— Poderíamos ir esta manhã. Se cavalgarmos agora, alcançaríamos aplataforma e estaríamos de volta antes da metade da manhã.

— Não posso. Já amanheceu. Preciso ir ter com a avó. Já estou atrasada.Durante dois anos, sua filha fora os olhos e membros da avó anciã,

eliminando o sofrimento das manhãs da velha senhora e conferindo a seusdias a força da juventude. Ser escolhida para servir era uma grande honra,mas também uma enorme limitação. Ele observara, divertido, vendo afilha acomodar-se à função como um potro semiamestrado se ajusta aosarreios, esfregando-se nas cordas e testando os limites. Recentemente, elase tornara mais conscienciosa.

Breaca começou a se levantar. Eburovic sentiu que algo importanteestava se afastando dele, como um peixe no rio. Puxando-a de volta paraseu abraço, ele disse:

— Não. Airmid serviu a avó antes de você. Ela não poderia fazê-lo denovo, desta vez?

— Talvez. — Ela se voltou e olhou para ele. Seu rosto estava molha-do, mas o sorriso era firme. — Se ela soubesse o motivo.

— Ela está no rio?— Ainda não. Está na casa do oeste.— Entendo. — Ele não perguntou como ela sabia. A casa do oeste era

o lugar onde dormiam as jovens em idade de engravidar e que ainda nãotinham tomado um homem. Os varões de idade semelhante dormiam nosul. A casa redonda, no centro, destinava-se às famílias e aos idosos.Eburovic sentiu outra tradição oscilar na tempestade da morte ocorridaem sua família; não se esperava que um homem visitasse a casa do oestesem ser convidado. Aquela manhã, na opinião dele, era um momento deexceção. Ele se ergueu, soltando a filha. — Vou falar com Airmid —declarou. — Pegue os arreios e busque os cavalos. Irei a seu encontro noscercados mais baixos.

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* * *

Encontraram-se quando o sol tocava os galhos mais baixos do pilriteiro naextremidade do campo. Airmid concordara em cuidar da avó anciã e estaaceitara alterar sua rotina. Quando atravessaram o complexo, Eburovicparou para pegar seu melhor manto e descobriu que Breaca fizera omesmo antes dele, indo buscar o dela e trocando a velha túnica pela nova,tecida no azul dos icenos com um padrão espiralado em um tom maisescuro bordado na fímbria. Eburovic firmou a espada nas costas e pegou alança e o escudo de guerra com a protuberância de ferro e a marca da ursagravada a quente sobre a orla de pele de touro. As armas adicionais eramdesnecessárias, mas ele não voltara à plataforma desde que fora construí-da e sentiu a necessidade de viajar de forma solene.

Caminhou até os cercados mais baixos e constatou que Breaca, pen-sando como ele, buscara o cavalo ruão que ele cavalgara na guerra e pas-sara o tempo dela limpando os carrapichos e a lama do pelo do animal.Para surpresa de Eburovic, ao lado do cavalo, uma potranca cinza-clarocom uma marca cor de pele no focinho e uma listra em forma de enguianas costas postava-se embridada e pronta. Contemplou as duas dúzias decavalos bem treinados que teriam atendido prontamente ao chamado.Breaca lançou-lhe um olhar que era ao mesmo tempo um desafio e umpedido de desculpas.

— Ela se comportará bem — afirmou. — Quase tão bem quanto oruão. Ela precisa de tempo para aprender a confiar em alguém.

Ele conseguia acreditar. Tentara vender a égua na feira de cavalos dooutono, mas ela dera coices nos primeiros que se aproximaram e os outrosdepois se mantiveram a distância, de modo que fora obrigado a retirá-lasem vendê-la. Pusera-a de lado durante o inverno, pensando em treiná-laquando o solo enrijecesse na primavera. Alguém se antecipara. Sorrindo,sua filha declarou:

— Ela não tentou desencorajar ninguém recentemente. Se você avan-çar primeiro com o ruão, estará em segurança. Ela o seguirá, aonde querque ele vá.

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— Se é o que você diz.Em seguida, conduziram os cavalos ao caminho estreito entre os cer-

cados. Estalando a língua, Eburovic fez o ruão trotar e correu ao lado deledurante alguns passos. Quando o ritmo se acertou, ele agarrou um punha-do de crina e deu o salto do guerreiro sobre o dorso do cavalo. No auge doverão, com algum tempo para praticar, ele conseguia montar totalmentearmado, com a espada livre em uma das mãos e a lança na outra, sabendoque se calculasse mal o tempo mataria a si mesmo ou mutilaria um cavaloque amava. Agora, bastava que a espada estivesse na bainha às suas costase que a mão da lança também segurasse o escudo. Acomodando-se na sela,levou o escudo para o braço. O sangue correu para seus ouvidos e eleouviu o ruído das patas martelando a terra atrás de si. Girando o ruão, viua égua cinzenta lançar-se em um meio-galope. Eburovic desceu a mão emdireção à brida, pronto para obrigar a égua a se desviar, quando viuBreaca, que corria do lado da lança, estender a mão em direção à crina.Ela estava do lado errado e com o pé incorreto, mas montou com perfeitasincronia. O sorriso que ela lançou na direção do pai foi um reflexo damanhã. Ele se apanhou sorrindo de volta enquanto seu cavalo tambémcomeçava a cavalgar a meio-galope.

— Você é capaz de fazer isso com uma lança na mão? — perguntouEburovic, gritando por sobre o tropel dos cavalos.

— Acho que sim.— Pegue, então. — Era a sua lança de guerra, mais delgada e leve do

que a lança de caçar javalis com a qual Breaca matara pela primeira vez,porém com um alcance maior e uma lâmina afiada de maneira a perfuraro metal. Eburovic jogou a arma para ela, mantendo a ponta voltada paracima. Breaca a apanhou com uma das mãos e escorregou para o chão. Aseguir, correu uma extensão de três passos e, usando a lança como alavan-ca, com o conto apoiado levemente na relva, saltou novamente sobre ocavalo. Em nenhum momento a égua alterou o passo. Eburovic sorriu efez um gesto de aprovação. Breaca riu e girou a lança no ar. Depois, ape-nas para se exibir, repetiu o feito no lado do escudo. Eburovic ficou obser-vando e tentou lembrar se ela fora capaz de fazê-lo dessa maneira antes do

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inverno. Ele achava que não. Em retrospecto, tentou recordar se foracapaz de montar assim, dos dois lados, quando contava doze anos, a idadeque ela tinha agora. Tinha quase certeza que sim.

A potranca não tinha experiência de combate e, ao sentir a lança asso-biar perto da cabeça, começou a galopar. Cavalgaram livres durantealgum tempo, conduzindo os cavalos aos campos, nos dois lados, paraapostar corrida, e, finalmente, descreveram um círculo e reduziram avelocidade para o passo ordinário. Era a primeira cavalgada da primave-ra e não era bom forçar excessivamente os animais. Eburovic largou asrédeas e deixou que seu cavalo escolhesse o caminho, sentindo a glória damanhã. Ele passara o inverno existindo, e não vivendo de fato. Hoje, pelaprimeira vez desde o outono, sentia-se feliz por estar vivo. O ar estavalímpido e vigoroso, frio o suficiente para encrespar os pelos do narizquando ele inspirava, mas não gelado a ponto de enrijecer os dedos damão. A seu redor, a primavera rompia o domínio do inverno. Os primei-ros amentilhos pendiam dos salgueiros, polvilhados de geada. As bétulasproduziam novas folhas, desdobrando-as diante do sol nascente. As floresdo pilriteiro-branco, ainda em botão, espalhavam-se pelas sebes como osúltimos vestígios da neve.

Os cavalos estavam perdendo a pelagem do inverno. O ruão cavalga-va de cabeça erguida e orelhas empinadas, do jeito como ia para a guerra.A égua avançava colada nele e não revirou os olhos quando Eburovic seinclinou para retirar a lama do pescoço dela com as unhas. Breaca a fezavançar até cavalgarem com os joelhos se tocando. Ela estava mais soleneagora, sem se mostrar rígida com o choque e o ressaibo dos sonhos, comoo fizera mais cedo na forja, mas tampouco sem exibir a exuberânciaespontânea do galope a que haviam se entregue antes. Ela exalava um arcomedido, que Eburovic desconhecia. Ele pensou em como ela montara ocavalo com o salto de guerreiro e na elegância com que o fizera. Sua filhade um ano antes não teria empenhado as horas de prática necessárias paraobter uma perfeita sincronização. Isso o fez recordar a fornalha que elaconstruíra na forja, com as bordas represadas bem alto para direcionar ocalor para dentro. Antes da morte da mãe, ela fora uma chama resplan-

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decente da lareira, lançando fagulhas ao acaso com uma alegria vívida edescuidada. Agora, Breaca seria capaz de derreter o próprio coração, seassim o desejasse. A imagem o incomodou, extinguindo o encanto damanhã. Eburovic ficou ruminando a ideia. Com excessiva frequência, pre-senciara o que acontecia a um recipiente alimentado até ficar quentedemais ou um molde derramado sem os orifícios para a saída do ar.Eburovic cavalgou quieto ao lado da filha e rezou em silêncio, pedindo aosdeuses para que ela descobrisse uma maneira de deixar escapar o fogo antesque ele a consumisse.

Os cavalos seguiram inclinando a cabeça. Eburovic guiou o ruão comos joelhos, entregue às suas reminiscências. Ele estava a pé na última vezque fora para essas bandas, apoiando Graine, caminhando ao lado dela,temendo que a criança pudesse nascer antes de chegarem ao lugar que elepreparara para ela. Ela dera seu sorriso característico e prometera que issonão iria acontecer, e, como era o segundo, ele tentara acreditar nela.Breaca ainda era pequena; a menina correra na frente, esquadrinhando asbordas do cercado em busca de cogumelos fora de época, trazendo-os paraos pais em punhados sujos. Graine os recebera e, mais tarde, encontraraum lugar em outra bolsa para o seixo de formato estranho que poderia, apartir de certos ângulos, parecer uma cabeça de lagarto, e o vômito seco deuma coruja que mostrava os ossos do animal que ingerira. Ambos perma-neceram com o corpo dela depois, servindo de divertimento para os corvos.

O sol aquecia o ombro direito de Eburovic quando alcançaram as ruí-nas da cabana que ele construíra para o parto. O telhado fora derrubadopoucos dias depois do ataque e o inverno cuidara do resto. Ele seguiu afilha quando passaram pela cabana em fila indiana e a seguir saíram datrilha, cortando para a direita, em direção ao bosquete que subia pelo ladooriental da encosta. Lá chegando, viraram novamente para a direita, paraacompanhar a orla.

Os ossos de Graine jaziam na plataforma ao sul do bosquete. Ela mor-rera com uma lança na mão e a pequena coruja fora a guardiã de sua alma.Eburovic não conseguia imaginar um melhor presente mortuário do que o broche que sua filha criara para ela. Ele se obrigou a pensar na

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peça, imaginando a forma do molde, a impressão côncava das linhas e aaparência do broche quando Breaca partiu o molde; qualquer coisa quesignificasse que ele não tinha de pensar na direção que estavam seguindo.A filha cavalgava à sua frente, as costas eretas, o cabelo derramado aoredor dos ombros como um manto faiscante, e era impossível saber o queela estava pensando.

Chegaram ao destino na metade da manhã. O sol brilhava por trás,lançando sombras curtas que se acumulavam nas patas dos cavalos. Umvento soprava suave do leste, levantando farrapos de lã azul na platafor-ma. À sua chegada, uma pega e duas gralhas levantaram um voo pregui-çoso e pousaram em um galho próximo. Não fizeram barulho. Emude-cido, pois não poderia ter falado naquele momento, Eburovic apeou econduziu o cavalo para frente. Breaca empurrou a égua para a base deuma estaca. Ela não era alta o suficiente para enxergar a parte de cima.Eburovic estava prestes a lhe oferecer ajuda quando sua filha alcançou otravessão e, com um desembaraço que deixava transparecer muitas repe-tições, ela se ergueu, mantendo o equilíbrio com a ponta de um dos pés nagarupa da potranca. Nessa posição, Breaca conseguiu se estender parafrente e colocar o broche onde queria. Eburovic viu o movimento doslábios da filha, mas não ouviu as palavras que eles proferiram. Virou oruão e fez com que ele se afastasse, sentindo que seu olhar era uma intru-são. Logo depois, Breaca apeou de um salto e foi para perto do pai. Esteperscrutou o rosto dela, procurando indícios de que o sonho tinha se desfeito, de que ela o arrancara como a avó dissera que ela deveria fazer.Breaca então sorriu e ele a deixou em paz. Cavalgaram de volta, nova-mente em silêncio. O vento deslocou-se para o sul e o ar ficou pesado. Adistância, nuvens finas e cinzentas prometiam chuva.

Quando chegaram aos campos e conduziram os animais ao pasto,Eburovic voltou a encontrar a voz:

— Você está ocupada? — perguntou. O plantio da primavera se ini-ciara. A filha passava os dias no campo. Quando não estava semeando,estava mondando ou limpando as pedras. Ela se lavara cuidadosamenteantes de ir ao encontro dele; caso contrário, teria terra acumulada debaixo

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das unhas devido ao trabalho do dia anterior. Do outro lado dos cercados,Eburovic já podia avistar os outros trabalhando.

Breaca não estivera pensando em trabalho. Ela o contemplou som-briamente por um instante, franzindo a testa, e a seguir declarou:

— Airmid e Macha já começaram a plantar o pastel-dos-tintureiros eprecisarão de ajuda para terminar antes que a chuva chegue. Devo juntar-me a elas agora.

— Encontre-me na forja quando terminar. Tenho algo para lhemostrar.

Breaca foi ao encontro do pai ao anoitecer, quando as galinhas aproveita-vam os resquícios da luz do final da tarde na entrada da forja. Choveramais cedo, mas, como as telhas de ardósia do telhado se projetavam sobrea entrada, o buraco que as galinhas tinham raspado estava seco. Uma gali-nha pequena e pálida, com um único ponto escuro em cada pena, abriu asasas no centro, afofando a plumagem e inclinando a cabeça para captar ocalor que vinha do interior da forja, que estava excessivamente aquecida.O fogo ficara aceso o dia inteiro, consumindo a maior parte do carvão.Eburovic se desnudara até a cintura, abandonando o avental. Trabalhavade costas para a porta, martelando. Breaca sentou-se ao lado da galinha,observando o ferro bater no ferro, sentindo balançar pelo corpo o ritmoque não se ajustava exatamente às batidas de seu coração. Ela estava can-sada. A mão machucada doía por ela ter passado a tarde plantando e mon-dando. Massageou a palma com o polegar da outra mão, deixando que orolar do martelo passasse impetuoso por ela, levando embora os aborreci-mentos do dia. Breaca andava irritadiça, sem motivo, e esse fato a preocu-pava; tivera um comportamento impertinente com a avó anciã, o que foradespropositado e só lhe trouxera problemas, e discutira depois comAirmid, que era sua amiga e não merecia esse tipo de atitude. Até mesmoa cavalgada até a plataforma fora decepcionante, embora tivesse se esfor-çado para ocultar esse sentimento. Ela deixou que a mente recuasse aosmomentos anteriores, tentando descobrir em que ponto o dia havia saídode controle.

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— Breaca? — O barulho do martelo tinha parado sem que ela perce-besse. — Você está bem?

— Estou — respondeu ela, sorrindo, para o pai. Não era mentira.Precisava apenas de uma boa noite de sono, o que acreditava ser possívelagora. — Estou atrasada — disse ela. — Sinto muito. Nemma está pres-tes a dar à luz, e Airmid queria encontrar algumas raízes de valerianapara armazenar. Procuramos por mais tempo do que deveríamos.

— E encontraram?— Claro. — Dessa vez o sorriso era sincero. — Por acaso eu estaria

aqui se não tivéssemos achado? Não é do feitio de Airmid desistir de umacoisa quando está determinada a consegui-la. — O que fora, na verdade,a origem da discussão que haviam tido. Breaca se levantou, tomando cui-dado para não perturbar as galinhas. — Estou atrasada demais para o quevocê queria me mostrar?

— Não. Entre. Eu estava terminando.A aparência da forja era praticamente a mesma do período da manhã;

o fogo reluzia alaranjado, lançando sombras estranhas e instáveis nasparedes. O cheiro era uma mistura de metal queimado, de carvão incan-descente e do suor de seu pai. Ela beijou impulsivamente o braço dele,sentindo o gosto de sal e pelo chamuscado. Ele a abraçou e, ao olhar porcima do ombro dele, Breaca descobriu por que o fogo ficara aceso comtanta intensidade e por tanto tempo: Eburovic passara o dia soldando.Sobre a bancada, jazia uma espada inacabada cuja lâmina era tão longaquanto seu braço e tão larga quanto a mão, com uma das extremidadesestreitando-se em uma tenaz que um dia receberia a empunhadura.Breaca levantou a arma. A extremidade da empunhadura encaixava-sebem na mão dela e a lâmina não era pesada demais. O metal ainda exibiaa poeira esbranquiçada oriunda do fogo e as listas azuladas das soldasentrelaçadas que ligavam as nove faixas estreitas de ferro bruto em umalâmina mais larga. Breaca brandiu a espada uma vez, para experimentar,e sentiu a tênue emoção, próxima do medo, que zunia através dela sempreque manejava uma das armas produzidas pelo pai. Respeitosamente,colocou-a de volta sobre a bancada.

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— E então?— É uma boa arma — retrucou. Ela aprendera com ele a ser cuidado-

sa com os elogios.— Você a experimentaria contra uma espada de verdade?— Posso?— Claro. Pegue-a.Breaca obedeceu. O sentimento era mais intenso do que antes. Um

lugar côncavo na palma de sua mão abriu-se para receber a arma. Aoempunhá-la, suas articulações vibraram mais livremente, como depoisque ela cavalgava ou se exercitava com a lança. Ela brandiu a espadaalgumas vezes, sentindo seu peso, e a seguir, levantando o olhar, percebeuque Eburovic se colocara em posição de luta à sua frente, empunhando aprópria arma, a grande espada com a ursa nutriz no pomo que detinha avida e as façanhas dos ancestrais de Breaca na linhagem do seu pai. Eledisse:

— Dê o golpe para trás, em direção à cabeça.A espada queria se mover. Usando as duas mãos, Breaca brandiu a

espada de revés, tomando como alvo a têmpora do pai. Ferro chocou-secontra ferro. Uma única centelha voou em direção à porta.

— Muito bem. Agora o golpe de frente no meu joelho.O ar passou zunindo pelos braços de Breaca. O fio sólido e irregular

da espada que ela empunhava desceu sibilando por todo o comprimentoda do pai, passando por cima da ranhura que o campeão de cabeça brancados coritânios fizera quando travou com o seu bisavô um combate homema homem para resolver a disputa em torno de uma linha divisória. Umatempestade de fagulhas voou alto na escuridão. Ela deixou que a ponta daespada batesse com força no chão de terra batida.

— E agora no peito...Breaca foi mais cuidadosa com esse golpe, sabendo que o pai iria apa-

rar o peso dele na empunhadura. Sua espada avançou sobre a dele e paroude repente. O choque do impacto percorreu-lhe o ombro. A oval deesmalte vermelho do lado esquerdo do guarda-mão do seu pai soou em

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desarmonia com o resto, mas não se partiu, como acontecera nas mãos doavô do seu avô, quando ele combateu as legiões de César, perto do rio.

— Bom. Muito bom. — Eburovic estava sorrindo, sossegado, comofazia quando tinha uma surpresa para ela. Pegando um pedaço de greda,comparou a medida da espada com o comprimento do braço da filha.

— Você é jovem. Ainda vai crescer dois palmos, mas mesmo assim elaé longa demais para a altura que você terá. Vamos cortá-la, aqui — disseEburovic, fazendo uma marca com a greda — no terço inferior. Se quiser,você poderá usar, outra peça de ferro para formar o guarda-mão e o pomo.Ou então, se preferir, eles poderão ser moldados em bronze. Se fosse vocêa fabricar a espada, o que escolheria?

Os olhos de Breaca se arregalaram.— Vou fabricá-la?Essa possibilidade, se concretizada, teria tornado o dia perfeito. Du-

rante anos, ela imaginara a espada que criaria quando o pai a julgassecrescida o suficiente para trabalhar o ferro.

Mas o presente que estava por vir era ainda melhor. Eburovic declarou: — Você pode ajudar a fabricá-la, se quiser, mas acho que a sua espada

deveria ser manufaturada por outra pessoa. Ela ficará mais forte.A cabeça de Breaca rodopiou. Era mais do que perfeito. Ela tocou,

hesitante, a lâmina incriada e sentiu uma enorme emoção. Seu pai entãodisse:

— Quando a sua mãe morreu, prometi que fabricaria uma espadapara você, e é esta que você tem diante de si agora. Ela canta para você evocê para ela. Assim, estando ciente disso, você quer que eu faça o punhode bronze ou de ferro?

Era muita coisa de uma vez só. Breaca sentou-se de costas para a for-nalha e tentou deixar de lado a música que tocava em sua cabeça.Precisava pensar como um ferreiro. A qualidade e o peso da lâmina con-tribuem para a extensão do golpe e a força necessária para penetrar ocorpo do adversário, mas o bom artífice inseria a alma da espada nospadrões do guarda-mão, na sensação da empunhadura e na forma defini-da para o pomo, e era a escolha dos materiais que tornava único cada um

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desses elementos. O ferro era mais duro, porém mais frio. O bronze podiamorsegar, mas era mais maleável e podia receber mais detalhes. A espadade seu pai estava suspensa na parede atrás dele. Os padrões gravados nopunho da espada da ursa nutriz eram antiquíssimos e complexos; seriaimpossível extrair do ferro a mesma sutileza. Breaca descobriu que dese-java que sua espada fosse o mais parecida possível com a do pai.

— O punho e o pomo devem ser de bronze — declarou formalmente.— Mas só devemos fabricá-los quando eu tiver a minha visão e souber oformato que deverão ter.

— Assim será, então. Fabricaremos primeiro a lâmina e aguardare-mos sua visão. Venha quando puder e trabalharemos juntos. Tenho umanova ideia que talvez possamos experimentar.

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TRABALHARAM INTERMITENTEMENTE NA NOVA ESPADA

no restante da primavera, aproveitando os momentos em quepodiam ficar juntos. Os potrinhos pararam de nascer e o plan-

tio tardio começou. Breaca passava as manhãs e as primeiras horas danoite cuidando das necessidades da avó anciã, e a maior parte do dia nacompanhia de todos os adultos e adolescentes saudáveis, semeando feijões,ervilhas e cevada, mondando entre as fileiras de trigo do inverno em cres-cimento e carregando água para os campos elevados quando as novassementes começavam a brotar. Nos intervalos, era preciso examinar astetas das éguas para tratar a mastite, cuidar dos potrinhos e tomar as pri-meiras medidas para amansar os potros nascidos no ano anterior quehaviam passado o inverno aproximando-se das pessoas para receber comi-da, mas que ainda não conheciam a brida.

O sentimento com relação à mãe de Breaca mudou. A plataformaalém dos campos na orla da floresta abrigava os ossos dos mortos, desco-rados pelo sol e acinzentados pelas chuvas. Durante algum tempo,enquanto os pilriteiros deixavam cair as flores, jaziam debaixo de umacascata de neve petalada e revestiam-se das cores que os circundavam.Breaca ainda visitava a plataforma, porém com menos frequência, e suas

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III

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noites eram mais calmas. A mãe, quando aparecia, já não trazia sofrimen-to, e sim paz e boas lembranças.

O mundo girava rapidamente ao redor deles. Uma cabana de partoconstruída dentro da área protegida presenciou Nemma dar à luz ummenino ruivo. Verulos era um dos vários rapazes que poderiam ser o pai,e comprometeu-se a criar a criança. Ele era manco de um dos pés e forareprovado nas provas de guerreiro, mas era um bom aprendiz de seleiro eo consenso geral foi de que seria um pai adequado. Nemma mostrou-seclaramente satisfeita com o resultado.

Na forja, a espada ia lentamente se transformando da haste densa eescura no aço azulado de uma lâmina forjada. O metal trabalhava bemdebaixo do martelo. Ele fazia Eburovic cantar como não cantara o inver-no inteiro. Certa vez, pediu a Breaca que arrancasse alguns fios de cabe-lo dos lados da cabeça de onde partiriam as tranças nos tempos de bata-lha e, em outra ocasião, aparas de suas unhas. Ela entregou ao pai o queele pedira e o observou enquanto ele as adicionava, ainda cantando, aofogo que começava a arder naquele dia. Ele também fez outras coisas,coisas que ela não vira antes, e a forja tornou-se um lugar de novasexplorações que a faziam voltar diariamente e cantavam à noite para eladormir.

Alhures, Bán cuidava do filhote de cão. O animalzinho já não era tãofrágil e aprendera a ficar de pé. Os olhos, que quando se abriram eramazul-celestes, ficaram depois cinzentos como os do pai de Breaca e maistarde castanhos, como os de Macha e Bán. Com pernas mais compridas ea visão mais aguçada, ele se desenvolveu e passou a perseguir lesmas ebesouros, e depois a arrebanhar as galinhas e perturbar as éguas. Quandocresceu um pouco mais, aprendeu que valia a pena observar a carne queassava, e Camma, a irmã mais nova de Nemma, que cuidava dos assados,passou a se envolver todos os dias em uma disputa em que o vencedorganhava pelo menos parte de uma refeição e o perdedor podia ficar comfome. Nem sempre ela vencia.

Os mercadores chegaram quando o tempo mudou. Arosted foi o pri-meiro; o negociante de sal, franzino porém vigoroso, que seguia as trilhas

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ainda com vestígios de neve, conduzindo a sua caravana de pôneis decarga com talipe chato, seu filho, sua filha e dois meios-primos na condi-ção de ajudantes, carregadores e defensores. Ele estendeu seus blocos desal, ainda friáveis e secos por causa dos fornos, em um dos celeiros, e anegociação teve início. Em anos anteriores, ele permutara o sal por armas.Este ano, como o povo dobunni, em cujas terras nasciam as fontes salinas,se reconciliara com os vizinhos do sul, aceitou broches e fivelas de cinto de Eburovic, dois cães jovens, produto do cruzamento de uma jovem epromissora cadela, organizado por Macha, e um par de peles de corçascaçadas por Sinochos e preparadas por Nemma, cuja visão era a corça vermelha e que era capaz, mais do que ninguém, de tornar essas pelesextremamente macias.

Além do sal, Arosted trouxe as primeiras notícias do mundo exteriordepois do inverno, serviço pelo qual ele também era regiamente remune-rado. Quando a azáfama das negociações declinou, ele chamou Eburovice Macha à parte, transmitindo-lhes as informações que os anciãos doscoritânios desejavam tornar conhecidas, ou seja, que eles haviam expul-sado, no início do inverno, três de seus mais jovens guerreiros como cas-tigo por um ataque surpresa que contrariou as leis dos deuses e doshomens. Acima de tudo, queriam que ficasse claro que eles, em nenhumacircunstância, teriam sancionado um ataque a uma mulher grávida, espe-cialmente uma mulher honrada pelos deuses, como era a falecida líderdos icenos.

Quando Macha insinuou educadamente que não era desconhecido ofato de os anciãos dos coritânios serem mentirosos, Arosted mostrou aambos o bracelete de ouro que recebera para garantir que a mensagemseria rapidamente transmitida aos ouvidos certos. Se eles estavam men-tindo, isso não lhes saíra barato. Eburovic, por sua vez, ofereceu a ele umcavalo baio recém-domado e uma adaga feita de ferro duro com um fio decobre amarrado em volta do punho. A permuta foi considerada justa.

O mercador de sal partiu no quarto minguante. O quarto crescentetrouxe outros, o mais notável sendo Gunovic, competidor em corridas decavalo, guerreiro e ferreiro ambulante — e o único fabricante de armas na

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memória de pessoas, cuja habilidade se comparava à de Eburovic. Ele veiodo sul, trazendo de lá barras de ferro bruto dos seus fornos, tabletesrecém-fundidos de cobre e estanho das minas e fornalhas, lingotes deprata do extremo norte e ouro hibérnico. Ele era um homem alto e corpu-lento de cabelo castanho e pele morena que já estava bronzeado no inícioda primavera. Vestia uma túnica preta, adornada com broches de ouro,prata e bronze que formavam um contraste favorável no tecido escuro, eas mangas haviam sido talhadas de maneira a exibir a fortuna em brace-letes que ele usava nos braços desnudos. Gunovic passou pelos portõesem uma tarde nebulosa, em meio ao som metálico do tilintar de metaispreciosos, e os negócios tiveram início antes que ele chegasse à primeiraestrebaria. Na casa redonda, algumas pessoas ofereceram-lhe cerveja ebiscoitos de aveia, enquanto outras desempacotavam a bagagem de suacaravana. Ele se sentou no vão da porta com Macha e a avó anciã, per-mutando notícias sobre as partes do sul que Arosted ainda não visitara,enquanto o seu trabalho era passado de mão em mão para que as pessoasexaminassem.

No início, ele ofereceu as coisas acessíveis e decorativas: broches,pentes, alfinetes decorados para vestidos, colares e braceletes, todos emouro, prata, cobre e bronze, com ou sem incrustações esmaltadas. Esteano, pela primeira vez, algumas peças exibiam incrustações esmaltadascom o azul e o vermelho lado a lado; trabalhos belgas, trazidos das ofici-nas de aprendizes no continente. O azul era muito semelhante à cor dosmantos dos icenos, e essas peças saíram primeiro, seguidas de perto poroutras, com incrustações de coral ou âmbar, ou delicadamente trabalha-das em prata e ouro. Muito antes do anoitecer, ele já vendera todas aspeças que queria e se dirigira para a forja para negociar com Eburovic,permutando, entre outras coisas, vários tabletes de esmalte azul cru porum espelho de prata e um broche engenhosamente fabricado de modo aparecer uma cabeça de lança vista de frente, mas uma ursa nutrizsituava-se em arco no reverso.

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