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PARECER. FALSIDADE IDEOLÓGICA EM FORMULÁRIOS DO SUS.
CONCEITO JURÍDICO DE DOCUMENTO. ELEMENTOS INTEGRATIVOS DO
TIPO. AUSÊNCIA DE DOLO E DE LESIVIDADE. ATIPICIDADE.
DEFINIÇÃO METODOLÓGICA
1.- Por questão de organização, iniciaremos com a transcrição da denúncia,
descrevendo as condutas e as tipificações, delimitando, na fase seguinte, o campo
probatório juridicamente válido, excluindo-se da avaliação as provas ilícitas.
2.- No que pertine com o mérito, serão decompostas e conceituadas as
elementares do tipo, postas em contraste com o contexto probatório válido, a fim de
possibilitar a verificação da tipicidade e concreta lesividade das condutas descritas, tendo-
se em linha de raciocínio a necessidade de demonstração da antijuridicidade material para
a legitimação da sanção penal.
A DENÚNCIA
Narra o parquet que “no dia 15 de abril de 2002, por volta das 20h, no
Hospital Beneficente N, em P/RS, o primeiro e a segunda denunciada, com o auxílio da
terceira e do quarto denunciados, em conjunção de esforços e união de vontades, inseriram
em documentos públicos declarações falsas com o fim de criar obrigações e alterar a
verdade sobre fatos juridicamente relevantes (fls. 92 e 93 do IP).
“Naquela oportunidade, o primeiro denunciado, na função de médico,
auxiliado pela segunda denunciada, prestou atendimento a um cachorro nas dependências
do ambulatório do Hospital anteriormente mencionado. Para cobertura das despesas com o
material utilizado no atendimento do cão, assim como dos custos do hospital e dos
honorários profissionais do médico, os denunciados acordaram no sentido de que fossem
preenchidas duas fichas de atendimento ambulatorial através do Sistema Único de Saúde
(SUS), ambas com conteúdo diverso da realidade.”
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“Ato contínuo, a segunda denunciada, atendendo determinação da terceira
denunciada, bem como orientação do primeiro denunciado, preencheu duas fichas de
atendimento ambulatorial (fls. 92 e 93), nas quais foram falsamente descritos atendimentos
ambulatoriais inexistentes prestados no quarto denunciado, bem como a seu filho, o infante
G, proprietários do animal. Efetivou ainda, a segunda denunciada, registro dos
atendimentos inexistentes no livro de registros do Hospital Beneficente N (fl.35).”
“O primeiro denunciado concorreu para os crimes ao incentivar o
preenchimento das fichas de atendimentos ambulatoriais do SUS em nome de L e do
infante G, bem como por preenchê-las nos campos n 09, 11 e 12, registrando como motivo
do atendimento como sendo corte na perna, descrevendo como sutura e curativos os
procedimentos médicos realizados e assinando o documento na qualidade de profissional
responsável.”
“O quarto denunciado concorreu para os crimes ao assinar uma das fichas
no campo 14 como paciente de procedimento inexistente, bem como determinar que assim
o fizesse, na outra ficha fraudulentamente preenchida, o infante G, seu filho com 10 anos
de idade.”
“A falsidade ideológica nos documentos públicos foi implementada com a
finalidade de criar obrigação de pagamento de atendimentos médico-hospitalares
ambulatoriais pelo SUS – Sistema Único de Saúde, alterando a verdade dos fatos
juridicamente relevantes, para que nelas constassem procedimentos ambulatoriais
inexistentes. O primeiro denunciado cometeu o crime prevalecendo-se do cargo de médico
credenciado do SUS para atendimentos ambulatoriais no Hospital Beneficente N.”
A seguir, o representante do órgão Ministerial imputa aos denunciados as
sanções do artigo 299 “caput” e parágrafo único, duas vezes e 71 “caput”, todos do CP. O
atendimento do animal não foi objeto da denúncia, uma vez que o crime de infração de
medida sanitária preventiva - art. 268 do CPB - exigiria a existência de algum tipo de
regulamentação genérica ou interna do hospital, vedando o atendimento como forma de
prevenção de algum contágio ou contaminação, o que não existia.
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AS PROVAS ILÍCITAS
3.- Não advertidos os denunciados, em fase de sindicância, de seu privilégio
contra a auto-incriminação1, nenhum efeito negativo pode ser extraído dos depoimentos
por eles prestados naquela oportunidade. “A eventual confissão extrajudicial obtida por
meio de depoimento informal, sem a observância do disposto no inciso LXIII, do artigo 5,
da CF, constitui prova obtida por meio ilícito, cuja produção é inadmissível nos termos do
inciso LVI, do mencionado preceito” (HC n 22371-RJ, 6 Turma do STJ, j. 22.10.2002, DJ
31.03.2003,p. 275, Rel. Min. Paulo Gallotti).
4.- Dos depoimentos prestados por funcionárias do setor de faturamento do
Hospital nos autos da 'sindicância' realizada, posteriormente reiterados na fase policial,
verifica-se que as depoentes, baseando-se nas orientações de um 'advogado' e na presunção
de que os formulários viriam a ser completados pelos denunciados, bem como
encaminhados para cobrança, alteraram o procedimento administrativo usual (esperar o
preenchimento e encaminhamento dos formulários), subtraindo os formulários incompletos
(o diagnóstico e o carimbo do Médico não estavam apostos nos formulários - atos
privativos do Médico - nem o número do atendimento nem os códigos do SUS), o que não
tornavam os formulários aptos a gerar os efeitos jurídicos a que o mesmo se destinava,
como veremos mais adiante.
1 " 4. O privilégio contra a auto-incriminação - nemo tenetur se degetare -, erigido em garantia fundamental pela Constituição - além da inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 CPP - importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta de advertência - e de sua documentação formal - faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em "conversa informal" gravada, clandestinamente ou não. (...) 8. Prova ilicita e contaminação de provas derivadas (fruits of the poisonous tree)." HC nº 80.949-9 - RJ, 1ª Turma do STF, j. 30.10.2001, DJ 14.12.2001, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE. E também: "O privilégio contra a auto-incriminação, garantia constitucional, permite ao paciente o exercício do direito de silêncio, não estando, por essa razão, obrigado a fornecer os padrões vocais necessários a subsidiar prova pricial que entende lhe ser desfavorável. Ordem deferida, em parte, apenas para, confirmando a medida liminar, assegurar ao paciente o exercício do direito de silêncio, do qual deverá ser formalmente advertido e documentado pela autoridade designada para a realização da perícia" (HC nº 83.096-0-RJ, DJU 12,12,2003, 2ª Turma do STF, Rel. Min. ELLEN GRACIE. No mesmo sentido o RESP nº 363.548-SC, j. 02.05.2002, Rel. Min. FÉLIX FISCHER, in RF 368: 392. E, na doutrina, ver "O Direito de não produzir provas contra si mesmo, São Paulo: Saraiva, 2003, de MARIA ELIZABETH QUEIJO.
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5.- Com base neste formulário incompleto, irregular arbitraria e
indevidamente subtraído da gaveta do médico, foi instituído um Inquérito Administrativo,
culminando em severas penalizações descritas nos autos. Tendo sido os formulários
subtraídos de entre os documentos do denunciado, em sua gaveta, sem autorização judicial,
sem estarem devidamente preenchidos e sem terem sido encaminhados para cobrança ou
recebido qualquer destinação pelo seu detentor, ilícita a prova. Ausente o preenchimento
de campos essenciais, faculdade privativa do médico, enquanto não esgotados estes atos,
há que entender-se que o formulário estava na posse do profissional, sendo indevida sua
subtração por terceiros e utilização como prova em processo penal.
6.- Corroborando a tese preconizada, a CF/88, em seu artigo 5º, LVI, dispõe
que: "São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos", ao passo que
o inciso LIV dispõe que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal." Conforme o decidido pelo Superior Tribunal de Justiça: "as provas
ilícitas, porque proibidas, não podem ser consideradas." (RMS nº 8.559 - SC, 6ª Turma do
STJ, j. 12.06.98, DJU 03.08.98, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro). "A prova ilícita
contraria o processo, o inquérito policial, o processo administrativo e a sindicância. A
legalidade pode e deve ser analisada a qualquer momento" (HC nº 6.008 -SC - 6ª Turma
do STJ, j. 10.12.96 - DJU 23.06.97, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro). A prova ilícita é
"eivada de nulidade absoluta e insuscetível de ser sanada por força da preclusão" (HC nº
9338/SP - 6ª Turma do STJ. J. 29.03.2000. DJ 24.04.2000, p. 00076 - RSTJ Vol. 00133, p.
00525 - Rel. Min. Vicente Leal).
FALSIDADE IDEOLÓGICA
7.- O tipo penal do art. 299 do CP, falsidade ideológica, tem por bem jurídico
tutelado a fé pública. Os elementos que lhe integram o tipo são "omitir, em documento
público ou particular, declaração que nele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir
declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar
obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante". Tratando-se de
documento público a pena é agravada, dando-se o mesmo se praticado o crime por
funcionário público que o comete prevalecendo-se do cargo.
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8.- Muito embora trate-se de crime de mera conduta, que não exige o resultado
danoso para materializar-se, a simples mentira não caracteriza ilícito (RT 564/309;
“mera declaração não verdadeira não tipifica o ilícito” (Denúncia n 13.069-0, OESP –
v.u. 08.03.95, TJSP, Rel. Des. Oeterer Guedes) evidenciando-se que “toda mentira é
falso, mas nem todo o falso é crime” RESP 96426-PR, 6 Turma do STJ, V 103:353, DJ
20.10.1997, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; corroborando a distinção, falsas
declarações de emprego subscritas pelo réu não caracterizam falsidade ideológica (ACRIM
n 130.355-3, j. 48.04.94, TJSP, Rel. Des. Djalma Lofrano), assim como inserção, por
oficial de justiça, de declaração falsa no mandado que tinha em mãos, ausente o dolo
específico (ACRIM n 100.361-3, J. 10.06.91, TJSP, Rel. Des. Carlos Bueno), também
declaração de pobreza para fins de obtenção de AJG (HC 124393-3, TJSP, j. 15.04.2002,
Rel. Des. Vanderlei Borges; JTJ 136/530 – TJSP; RT 731/560), inserção de nome falso em
contrato de locação (RT 558/298), omissão, pelo advogado e inventariante, nas primeiras
declarações, da existência de herdeiros e de que o ‘de cujus’ era casado pelo regime de
separação de bens (RT 566/288), declaração em Boletim de ocorrência de ter sido o
declarante o motorista de veículo envolvido em acidente, e não o filho do declarante (RT
602/336), declaração falsa perante autoridade policial, noticiando o extravio de cheques
que haviam sido regularmente emitidos, a fim de instruir contra ordem de pagamento (RT
621/307), inserção de declaração falsa em Boletim de Ocorrência relativa a autoria de
crime (RT 677/338), aposição de endereço incorreto em requerimento de transferência de
propriedade de veículo (RT 701/317), declaração falsa inserida em requerimento para porte
de arma (TJSP, JTJ 150/320), falsa declaração de não estar e nem ter respondido a nenhum
inquérito policial no âmbito penal (TJSP – JTJ 170/297) e aviso de sinistro
ideologicamente falso (ACRIM n 194.955-3, 1 CCRIMTJSP, v.u. 12.08.96, Rel. Des.
Fortes Barbosa).
9.- A realização do tipo exige a prova do dolo (ACRIM n 2001.050.03727, 5
CCRTJRJ, j. 12.11.2002, Rel. Des. Alberto Craveiro; ACRIM n 1999.050.05232, 5
CCRIMTJRJ, j. 27.03.2001, Rel. Desa. Maria Helena Salcedo; Denúncia n 13.066-0,
TJSP, Rel. Oetterer Guedes – OESP, v.u. 08.03.95; “o tipo da falsidade ideológica não
prevê modalidade culposa” ACRIM n 70002283596, 8 CCRIMTJRS, j. 31.10.2001, Rel.
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Des. Marco Antônio Ribeiro de Oliveira; “Falsidade ideológica. Ausência de prova do
dolo. Absolvição que se impõe.” ACRIM n 70001953298, 6 CCRIM TJRS, j. 22.02.2001,
Rel. Des. Sylvio Baptista Neto).
10.- A realização do tipo exige, também, o prejuízo ou a potencialidade
lesiva ao bem jurídico tutelado (STF, RHC n 64.461/SP, Rel. Min. Oscar Correa, j.
02.06.87, DJU 19.06.87; STJ, RESP n 82.296/MG, Rel. Min. Vicente Leal, j. 11.11.96,
DJU 09.12.96; STJ, RESP n 353300-SP, j. 18.08.1993, DJ 20.09.1993, Rel. Min. Jesus
Costa Lima; RTJ 101:311; ACRIM n 70002829448, CESPCRIM TJRS, j. 28.11.2001, Rel.
Desa. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak; ACRIM n 1999.050.04827, 2 CCRIMTJRS, j.
03.04.2001, Rel. Des. Adilson Vieira Macabu; RT 701/317; “o crime, além da conduta,
reclama resultado normativo, acarretando dano, ou perigo (concreto) para o bem
juridicamente tutelado. Faz-se imprescindível evidenciar potencialidade lesiva e seja
relevante para repercutir em alguma relação jurídica” RTJE V. 166:353, Rel. Min.
Luiz Vicente Cernicchiaro; “Falsidade ideológica. Prejuízo. O crime de falso reclama
prejuízo ao bem juridicamente tutelado” RESP 90229-SC, 6 Turma do STJ, j.
29.04.1999, DJ 07.06.1999, p. 134, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro; ).
11.- O meio empregado, por seu turno, deve mostrar-se hábil, apto e idôneo,
sem o que, restará configurado crime impossível pela impropriedade do meio
utilizado. (“Ausência, na hipótese, de elementar do tipo penal de falsidade ideológica,
irrealizável se o meio empregado se mostra ineficaz...” ACRIM n 2001.050.05718, 4
CCRIMTJRS, j. 03.09.2002, Rel. Des. Telma Musse Diuna; “Falsidade ideológica. (...)
Inaptidão iludente e ausência de potencialidade de causar dano. Absolvição mantida”
ACRIM n 133.318-3, 3 CCRIMTJSP, 30.04.96, V.U., Rel. Des. Gonçalves Nogueira;
“Falsidade ideológica. Não configura tal delito a falsidade inócua, eis que logo
percebida, sem capacidade para enganar, a qual acaba por não produzir qualquer
repercussão na esfera dos direitos e obrigações. Fato penalmente irrelevante.
Absolvição mantida.” ACRIM n 70001492842, 6 CCRIMTJRS, j. 25.11.2003, Rel. Des.
Paulo Moacir Aguiar Vieira; RT 597/302, TJSP: RT 469/301, 490/397, 499/307, TJSC:
JCAT 67/333).
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12.- No que tange ao conceito jurídico de documento público, JÚLIO
FABBRINI MIRABETE (CP Anotado. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 1586, citado no HC
n 2003.018908-4, 1 CCRIMTJSC, j. 09.09.2003, Rel. Des. José Carlos Carstens Köhler)
ensina que “documento público, para efeitos penais, é o documento expedido na forma
prescrita em lei, por funcionário público, no exercício de suas atribuições”, sendo que
“não existindo documento, na concepção jurídica da palavra, não há de se falar em
falsidade ideológica, que pressupõe sua existência prévia” (ACRIM n 70004609244,
CESPCRIM TJRS, j. 18.10.2002, Rel. Desa. Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak).
13.- Já foi decidido que “só é documento para esse efeito penal, aquele cuja
declaração ou omissão faz uma prova por si só” (ACRIM n 2001.050.02700, 4
CCRIMTJRS, j. 27.11.2001, Rel. Des. Rudi Loewenkron), além do que, “não existe
falsificação ideológica em documento sujeito a exame”(Embargos Infringentes de
Nulidade n 1998.054.00108, Seção Criminal do TJRJ, j. 12.04.2000, Rel. Des. Estenio
Cantarino Cardozo – Revista de Direito do TJRJ, v. 47, p. 296); também: “Falsidade
ideológica (...) Hipótese de inexistência de delito quando cabe a verificação oficial da
veracidade do documento” (ACRIM n 148.079-3, 4 CCRIMTJSP, j. 15.05.95, Rel. Des.
Cerqueira Leite), e, ainda: “Falsidade ideológica. (...) Inexistência do delito quando a
afirmação inverídica depender de averiguação por parte de funcionário” (TJRJ – JTJ
170/297); no mesmo sentido: “Falsidade ideológica. Não configuração. A afirmativa
constante de expediente policial, encaminhando veículo apreendido, cujo chassi
estaria adulterado, sem potencialidade para ‘prejudicar direito, criar obrigação ou
alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante’, não configura falso ideológico,
mesmo porque sujeita a averiguação pelo órgão técnico” (RHC 6385-ES, 6 Turma do
STJ, j. 19.02.1998, DJ 09.03.1998, p. 135, LEXSTJ V. 107:256, Rel. Min. Fernando
Gonçalves).
14.- Referente a importância dos reflexos da conduta para a tipificação,
encontra-se: “Não há crime de falsidade ideológica se inexistiu dano pois não
beneficiou o agente e nem prejudicou a terceiros (TJSP, RT 6093/319 e RJTJSP
81/366). A falsidade inócua, sem qualquer repercussão na órbita dos direitos e das
obrigações de quem quer que seja, não constitui ilícito penal, embora contenha em si,
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ostensivamente, o requisito da alteração da verdade documental (TJSP, RJTJSP
175/148)” (excertos do ACRIM n 2001.050.00926, 1 CCRIMTJRJ, j. 19.03.2002, Rel.
Des. José Carlos Watzl). "Falsidade Ideológica. A dúvida sobre os fatos favorece o réu,
impedindo sua condenação. Sendo inócua a alegada falsidade produzida pelo réu, do
que não restou prejuízo, nem benefício a ninguém, não há como caracterizar o tipo
previsto no art. 299 do CP" (ACRIM nº 70002918365, C.ESP.CRIMINAL, TJRS, Rel.
Des. Cláudio Baldino Maciel, j. 11/12/01).
15.- Outros precedentes de absolvição do crime de falsidade ideológica diante da
ausência de prejuízo são encontrados na RT 566/288.e 609/317. Mesmo em caso onde foi
inserida declaração falsa em requerimento para obtenção de porte de arma, não foi
considerado caracterizado o crime da falsidade ideológica pelo TJSP (JTJ 136/530).
Também há casos de absolvição do crime de falsidade ideológica pela verificação de
motivo nobre (RT 621/307; 588/296; 660/279).
ANTIJURIDICIDADE, AFERIÇÃO ATRAVÉS DA INTEGRAÇÃO DAS
ESFERAS FORMAL E MATERIAL
16.- NILO BATISTA, entre as funções que atribui ao princípio da lesividade,
realça o de afastar a “incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer
bem jurídico”(Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro, Rio de Janeiro: Revan,
1996, p. 24). Como doutrina o prof. MIGUEL REALE JR., “em atenção ao princípio da
lesividade, o bem jurídico deve ser efetivamente afligido. Na perspectiva da
antijuridicidade material, é imperioso que essa ação tenha potencialidade de causar
lesão ao bem jurídico protegido” (Operações casadas no mercado financeiro, estudo in
Direito Penal Aplicado, São Paulo: RT, 1994, p. 38). Esta orientação, como se vê, é
acolhida nas cortes superiores: "Cumpre, pois, para que se possa falar em fato
penalmente típico, perquirir-se, para além da tipicidade legal, se da conduta do
agente resultou dano ou perigo concreto relevante, de modo a lesionar ou fazer
periclitar o bem na intensidade reclamara pelo princípio da ofensividade, acolhido na
vigente Constituição da República (art. 98, I)" (HC 21750-SP, j. 10.06.2003, DJ.
04.08.2003, p. 00433, 6ª Turma do STJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido).
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17.- O Des. NEREU JOSÉ GIACOMOLLI ensina que “O Direito Penal de
um estado democrático e constitucional de direito, estruturado no respeito à
dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF), ultrapassa as barreiras dogmático-
formais subjetivas e se insere na concepção objetiva substancial do Direito Penal.
Dentro desta perspectiva, é de suma importância o bem jurídico protegido; não a
norma em si, mas o que a norma visa a tutelar. A infração penal não é mera violação
da norma. É mais que isto, é violação do bem jurídico, numa perspectiva de resultado
e de relevância da ofensa ao bem jurídico protegido. Um fato – subtração de carteira
– embora concebido pelo legislador como delito – está tipificado e inexiste norma
geral a respeito da ofensividade -, merece uma exegese do ponto de vista do bem
jurídico tutelado, o qual integra a própria previsão abstrata, mais precisamente se
houve relevância ofensiva ao bem jurídico tutelado pela norma, examinando-se as
conseqüências jurídicas. (...) Quando não há lesão ou perigo concreto a um bem
jurídico, o fato não se reveste de tipicidade no plano concreto. A ofensividade a um
bem jurídico integra o tipo penal, de modo que, além da previsão abstrata, da
conduta, da causa, do resultado, o tipo se perfectibiliza na vida dos fatos se houver
ofensa relevante a um bem jurídico.” (ACRIM n 70003739547, 8 CCRIM TJRS, j.
10.04.2002, RJTJRS n 218).
18.- O Des. TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO ensina que “É da essência
do Direito a proteção a bens jurídicos socialmente relevantes, merecendo ênfase, no
Direito Penal, os princípios da lesividade e da subsidiariedade. Pelo primeiro, não há
crime sem dano, ainda que se traduza em mera ameaça ao bem jurídico protegido,
sem acarretar resultado naturalístico. A periclitação do bem, todavia, deve ser
concreta, relevante. A subsidiariedade da incriminação penal diz com a ‘intervenção
mínima’. Como último instrumento a ser utilizado, no intento de controle social, a
repressão penal só é exigível após esgotadas as outras opções jurídicas disponíveis.
Com o advento do estado democrático de direito e, depois, do estado social, tais
princípios ganham destaque, e torna-se evidente a insuficiência da legalidade formal.
Nesse cenário, avulta a categoria dogmática da tipicidade material” (EI n
70001014711, 4 Grupo Criminal do TJRS, j. 30.06.2000). O relator ensina que
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‘proporcionalidade e insignificância são apenas regras voltadas à aplicação de normas
jurídicas’ e que ‘a insignificância social do fato, por seu turno, espécie de que a regra da
proporcionalidade constitui gênero, emergiu da moderna formulação do Estado, que se
abstêm de intervir em questões de somenos, reservando-se para os conflitos de maior
significação social’.
19.- O STJ já expressou que “o princípio da insignificância como causa de
atipicidade conglobante, afetando a tipicidade penal, diz com o ínfimo, o
manifestamente irrelevante em sede de ofensa ao bem jurídico protegido” (RESP
456.679-RS, 5 Turma do STJ, j. 10.06.2003, Rel. Min. Félix Fischer), considerando-se que
“o princípio da insignificância se refere à hipótese de ofensa mínima ao bem jurídico
que não deve ser confundido com a proporção de dano em relação ao patrimônio do
sujeito passivo” (RHC n 6319-PR, 5 Turma do STJ, j. 10.05.1997, DJ 23.06.1997, Rel.
Min. Félix Fischer).
20.- LUIZ FLÁVIO GOMES doutrina que “o resultado jurídico penalmente
relevante (a ofensa – lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) deve reunir
algumas características: a) transcendental, isto é, resultado jurídico perturbador dos
direitos ou liberdades de terceiras pessoas (ninguém pode ser punido por ter afetado
direitos ou liberdades próprias) e b) significativo (não insignificante; princípio da
insignificância)”e, mais adiante, arremata o autor “o delito, destarte, não é só desvalor
da ação (seu fundamento não reside exclusivamente na conduta do agente, criadora
de riscos proibidos) senão, sobretudo, desvalor do resultado (produção de um
resultado jurídico penalmente relevante para o bem jurídico). A tipicidade, por seu
turno, passa a ser entendida em sentido material (fato materialmente típico), porque
foi enriquecida pelo sentido e conceito material de antijuridicidade (lesão ou perigo
de lesão ao bem jurídico protegido)” (Teoria Constitucionalista do Delito – Bases e
Perspectivas, Revista Jurídica n 308, junho/2003, Porto Alegre: Notadez, p. 74/75). Para o
autor, mesmo nos crimes formais ou de mera conduta, não há que se falar que o crime se
consuma sem qualquer resultado, uma vez que o art. 14 c/c o art. 13 do CP impõe a
existência de um resultado jurídico (obra citada, p. 78).
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21.- Em exemplo concreto de necessidade de consideração da tipicidade material
em seqüência à tipicidade formal, vê-se:
“RHC. Penal. Entorpecente. Quantidade Mínima. Todo crime, além da
conduta, tem resultado. No caso, prevenir a saúde, o bem estar fisico do
paciente para não sofrer dependência física ou psíquica, à qual a lei se
refere. Tratando-se, no caso concreto, de um cigarro de maconha e não
havendo informação de esse comportamento traduzir repetição, seqüência
de outros da mesma natureza, é evidente que a pequena quantidade não é o
bastante para causar o evento. Se houve a conduta, não houve, entretanto,
o resultado relativamente relevante. É importante demonstrar se a
substância trazia potencial para afetar o bem juridicamente tutelado”(RHC n
7252-MG, 6 Turma do STJ, j. 30.03.1998, DJ 01.05.1998, Rel. Min.
Anselmo Santiago).
22.- ALEXANDRE AYUB DARGÉL ampara-se em FERRAJOLI para entre
os critério identificados como aptos para justificar a intervenção penal, ressalta que: a) só
serão penalmente relevantes os ataques a bens jurídicos fundamentais, ressaltando-se que o
dano ou perigo de dano deve ser verificável a partir das características de um
comportamento concreto proibido, devendo considerar-se passível de proteção penal
apenas aquele bem que tiver um valor maior do que aquele solapado pela aplicação da
pena; b) deve-se investigar se há exigência da lesividade do resultado para que se possa
levar a efeito uma punição, considerando-se como essencial para a configuração do
delito a concreção do dano ou do perigo ao bem jurídico tutelado (Princípio da
Lesividade, Garantismo e Direito Penal Mínimo, Revista de Estudos Criminais n 02, Porto
Alegre: Notadez, 2001, p. 107). O mesmo autor cita FRANCESCO PALAZZO para
sustentar que “na aplicação da norma, o princípio da lesividade deve comportar para o
Juiz, o dever de excluir a subsistência do crime quando fato, no mais, em tudo se
apresenta na conformidade do tipo, mas, ainda assim, concretamente é inofensivo ao
bem jurídico específico tutelado pela norma” (obra citada, p. 108).
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23.- ÂNGELO ROBERTO ILHA DA SILVA ensina que “os crimes de dano
são aqueles que só se consumam com a lesão efetiva de um bem ou interesse jurídico,
enquanto os crimes de perigo são aqueles que se aperfeiçoam com a probabilidade de
dano, ou seja, são aqueles que, sem destruir, representam uma ponderável turbação ao
objeto da tutela. Os crimes materiais não se confundem com os crimes de dano, assim
como os crimes formais e os de mera conduta distinguem-se das infrações de perigo” (Dos
Crimes de Perigo Abstrato em face da Constituição, São Paulo: RT, 2003, p. 148).2
24.- Considerando-se que “em sede de Direito Penal não se admite a
incidência da responsabilidade objetiva” (STJ, RHC n 11119-PI, 6 Turma, j. 03.10.2002,
DJ 12.05.2003, p. 358, Rel. Min. Fontes de Alencar), e que a intervenção penal somente se
legitima (conceito material, ligado à idéia de justo, inconfundível com o de legalidade,
ligado à idéia de forma, que poderá, ou não, ser legítima) e se justifica (princípios da
efetividade e da necessidade) diante da concreta lesão ou potencialidade de lesão a bem
jurídico tutelado, pode-se afirmar que os chamados “crimes de mera conduta” aproximam-
se, na sua tipificação, dos “crimes de perigo abstrato” na medida em que aquela, como
visto, não pode ser meramente formal.
25.- De acordo com ÂNGELO ROBERTO ILHA DA SILVA, “se o direito
penal deve ser chamado a preservar bens valiosos e essenciais de certas condutas que a ele
sejam ofensivas, deve-se examinar de qual maneira e em que medida elas se apresentam,
aferindo-se, assim, a potencialidade lesiva” (obra citada, p. 95), convindo o autor que “todo
crime apresenta ilicitude formal, que consiste contrariedade entre o fato e a norma. Fala-se
também em ilicitude material, significando a lesão ou exposição de perigo do bem ou
interesse jurídico penal tutelado pela norma. O perigo será concreto ou abstrato
(presumido). Aquele deverá ser constatado caso a caso pelo juiz. Este é presumido, mas a
2 O autor transcreve trecho de Parecer do Procurador de Justiça gaúcho LÊNIO LUIZ STRECK, colhido do acórdão da ACRIM n 70001098631, j. 28.06.2000, Rel. o Des. AMILTON BUENO DE CARVALHO, referente à tipificação do crime de embriaguez no volante, nos seguintes termos: “(...) Não fosse isso suficiente, ainda assim o apelo mereceria provimento, em razão do princípio da secularização do direito, próprio do Estado Democrático de Direito. Com efeito, no Estado Democrático de Direito não se pode admitir a punição de condutas ou comportamentos que abstratamente possam colocar em risco a sociedade. O Direito Penal somente pode estar voltado à punição de condutas ou comportamentos que violem concretamente bens jurídicos especificados. Afinal, não há crime sem vítima. E não se diga que, no caso, a vítima é a sociedade. Ora, a “sociedade” nada mais é do que um conceito metafísico. Assim, só pode haver
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presunção não deverá ser arbitrária. Deverá ser decorrente da natureza da infração, com
base na experiência e no bom senso, nos casos em que o perigo é ínsito na conduta, ou
seja, próprio da conduta. (...) constatando-se o julgador não se tratar de perigo ínsito de
forma absoluta na conduta, deverá averiguar a presença ou ausência do perigo, no caso
concreto, ao bem ou interesse tutelado” (obra citada, p. 137).
26.- WINFRIED HASSEMER alerta para a tendência do legislador penal
desconsiderar sua natureza subsidiária e transformá-lo em sola ou prima ratio, tendendo o
Direito Penal muito menos a reações às lesões mais graves ao interesse de liberdade dos
cidadãos do que a tornar-se um instrumento de defesa da política interna, aproximando-se
das funções do Direito Civil ou do Direito Administrativo. Nesta senda, abusa-se da forma
delitiva dos crimes de perigo abstrato. Renunciando-se à prova do dano, afasta-se a prova
da causalidade, sobressaindo-se a prova da conduta incriminada. Assim, diminui-se o papel
do juiz, reduz-se o papel da interpretação e limita-se sobremodo as possibilidades de
defesa, reduzindo-se a clareza e a percepção do injusto, orientando-se pela criminalidade
sem vítimas ou com vítimas completamente rarefeitas e pela verificação do injusto
mediante pura avaliação técnica. Segundo o autor “A característica clássica da reação
penal, de ser distanciada e proporcionalmente uniforme, passa para o segundo plano. Em
vez de chegar a uma resposta a um injusto e à compensação por meio da reação justa, leva
agora à prevenção dos futuros injustos ou até mesmo ao vencimento de futuras desordens.
Em outras palavras, de agora em diante, também no Direito Penal não se trata mais de dar
uma resposta apropriada ao passado, mas de dominação do futuro” (Características e
Crises do Moderno Direito Penal, Revista de Estudos Criminais n 08, Porto Alegre:
Notadez, 2003, p. 60/63).3
27.- É evidente a necessidade de que a conduta revista-se de gravidade para
legitimar a intervenção penal: “A intervenção punitiva do Estado, só se justifica quando
está em causa um bem ou um valor social importante. As lesões a bens jurídicos só
crime se, no caso concreto, ficar provado que houve risco para um determinado bem jurídico” (obra citada, p. 126). 3 outras considerações interessantes sobre o tema são fornecidas por ALEXANDRE WUNDERLICH, em Uma reflexão sobre os delitos de perigo abstrato ou presumido, Revista Jurídica n 270, abril/2000, Porto Alegre: Notadez, p. 49 e segs. Também o acórdão da ACRIM nº 70003645462, 8ª CCRIMTJRS, j. 19.02.2003, Rel. Des. TUPINAMBÁ PINTO DE AZEVEDO, in RJTJRS nº 225, DEZ/2003.
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podem ser submetidas à pena, quando isso seja indispensável para ordenada vida em
comum.” (RCCR 01286845, 4 Turma do TRF da 1 Região, j. 06.04.99, DJ 14.05.99, p.
260, Rel. Mário César Ribeiro). “Realmente, inconcebível na atualidade movimentar-se
a dispendiosa máquina judiciária por questões desprovidas de significação pela
absoluta ausência de potencialidade ofensiva social e econômica, em detrimento de
crimes verdadeiramente graves que chegam ao Poder Judiciário (...) A uma
irrelevante infração impende uma reprimenda com efeito proporcional a seu
potencial ofensivo, jamais uma sanção com conseqüência subjetiva peculiar aos
crimes mais graves” (Rec. em sentido estrito n 291063840, Rel. Des. Léo Afonso Einloft
Pereira, cit. no ACRIM n 70003058872, 8 CCRIM TJRS, j. 17.10.2001, Rel. Des. Roque
Miguel Fank). "(...) 5. Ausente conduta penalmente relevante, de rigor a absolvição do
agente. Eventual irregularidade administrativa, não gera responsabilidade criminal.
(...)" 2ª Turma do TRF da 3ª Região. Ap. Criminal nº 8114-SP, j. 09.10.2001, DJU
10.12.2001, p. 132, Rel. Juíza Sylvia Steiner
28.- Também evidenciando a importância da proporção entre a conduta e a pena,
o TRF da 4ª Região, no HC 199904010071953-PR, (j. 13.05.1999, DJ. 07.07.1999, p. 232,
Rel. o juiz Vilson Darós) já teve oportunidade de determinar o trancamento de ação penal
de facilitação de descaminho pela ausência de dolo e insignificância da conduta,
demonstradores da ausência de justa causa.
29.- Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é possibilitar que as
pessoas conduzam-se com segurança jurídica. Isto significa uma suficiente clareza e
previsibilidade referente às conseqüências de seu comportamento.
30.- Verificando-se os precedentes jurisprudenciais colacionados, constata-se
que condutas com muito maior gravidade do que as praticadas pelos denunciados foram
consideradas atípicas. Se Desembargadores, técnicos experientes controvertem quanto à
tipificação da falsidade ideológica, o que dizer de pessoas comuns, alheias às
especificidades do Direito? Se a dúvida beneficia o réu, impondo a absolvição, deve-se, em
nome da segurança jurídica, absolver quando a própria jurisprudência e os julgadores
controvertem acerca da tipificação.
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31.- O médico denunciado apresenta contra-cheques emitidos pelos SUS,
datando da época dos fatos até o momento presente, dando conta de que o destinatário dos
“documentos ideológicamente falsos” descritos na denúncia não considerou os fatos
relevantes, não promovendo qualquer medida contra o seu indicado autor e nem sequer
aplicando-lhe penalidade administrativa ou descredenciado-o. Ao contrário, manteve o
denunciado entre seus prestadores de serviço credenciados e habilitados.
32.- A denunciada C preencheu campos do formulário a lápis. O caráter de
definitividade e de inalterabilidade que caracteriza um 'documento' encontra-se ausente,
uma vez que a inscrição a lápis permite a adulteração e demonstra sua provisoriedade,
impedindo que fosse utilizado para o fim a que se destina e evidenciando meio
absolutamente ineficaz. Mesmo que se quisesse imaginar que tenha havido uma tentativa
de prática de crime, o art. 18 do CP dispõe que “Não se pune a tentativa quando, por
ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível
consumar-se o crime.”
33.- Os denunciados R e C são funcionários antigos do Hospital, detendo
conhecimento das rotinas burocráticas, que praticam diariamente. O preenchimento dos
campos referentes ao CID e Diagnóstico, além do carimbo do médico, são atos privativos
do médico. Estes campos não foram preenchidos, tendo a prova testemunhal esclarecido
que somente são encaminhados para cobrança formulários total e corretamente
preenchidos. A informação de que funcionários da cobrança preenchiam os 'brancos' dos
formulários não podem ser interpretados como direito da praticar atos privativos para os
quais não estão legalmente habilitadas (CID e diagnóstico).
34.- A informação do CREMERS evidencia que os funcionários podem fazer
preenchimentos por ordem do médico e segundo suas orientações, ou copiar dados já
inserido pelo médico em prontuário, sem, contudo, substituir-se ao mesmo. Ressalte-se
que, no presente caso, não foi preenchido pelo médico nenhum prontuário, o que
desautoriza concluir-se que terceiros, apenas copiando estes dados, iriam completar os
dados dos formulários, perfectibilizando-o como documento, na acepção jurídica do termo.
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35.- Assim, não é dado supor que os formulários foram parcialmente
preenchidos na suposição de que alguém, sem habilitação, iria preencher campos
privativos, e, sem consulta aos envolvidos no preenchimento, sobrepor, à caneta, partes
preenchidas a lápis para possibilitar a diferenciação daquele formulário em específico e
deliberação quanto ao destino a ser dado a ele. Os depoimentos dos réus dão conta de que
não tinham certeza de iriam cobrar os atendimentos pelo SUS e, mesmo possuindo o
domínio dos fatos, não concluíram o preenchimento dos formulários, mantendo em branco
itens essenciais. Não tiveram oportunidade de deliberar sobre o destino a ser dado aos
formulários em função de sua subtração e imediata instauração de sindicância, na qual
foram duramente punidos.
36.- Ficou provado que foi terceiro que preencheu a caneta partes preenchidas a
lápis, e não o Dr. R ou a enfermeira C. Como vislumbrar então o exigido “dolo específico”
para a tipificação? Pode-se concordar que os denunciados agiram com imprudência ao
preencher parcialmente os formulários e foram negligentes em deixá-los misturados aos
demais e ao alcance de terceiros. Mas o dolo encontra-se muito distante destas condutas.
“A responsabilização criminal exige prova escorreita das elementares
constitutivas do tipo penal imputado ao denunciado. Quando da prova não
emergem elas modo consistente, solidifica-se a insuperável dubiedade, a
ensejar conclusão exculpatória” (ACRIM n 70002910690, CESPCRIM TJRS, j.
18.12.2001, Rel. Des. Reinaldo José Rammé). “Denúncia por crime de falsidade
ideológica. (...) Não havendo certeza objetiva e isenta da prática do delito pelo
acusado, autor de assinatura lançada imprudentemente nos espelhos em
branco, impõe-se a sua absolvição”(APN 144-RJ, Corte Especial do STJ, j.
03.05.2000, DJ 01.08.2000, p. 181, Rel. Min. Fernando Gonçalves).
37.- O Parecer CJ n 113/2003, emitido e aprovado pelo Conselho Regional de
Medicina do Estado – CREMERS, pronunciando-se acerca da exclusividade do
preenchimento dos campos pertinentes ao CID, Diagnóstico, Assinatura e Carimbo do
médico em formulários de atendimento de pacientes do SUS, explicita que:
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“A questão apresentada é bem peculiar, porquanto não envolve, em princípio, ato
médico em sentido estrito. Parece-me, em verdade, a comum situação do médico
que atende o paciente e que faz apontamentos no prontuário e que
posteriormente, um servidor ou empregado efetuará o preenchimento do
formulário do SUS para assinatura do médico. Não há exatamente como ter
certeza pela ausência de maiores elementos nos autos. O ponto nodal, contudo,
pode ser dividido em duas considerações específicas.
1) O atendimento do paciente, e a realização de anamnese, diagnóstico e
prognóstico de seu estado de saúde, devem ser considerados como ato médico e,
sob este prisma, são, efetivamente, atos de prática exclusiva do profissional
médico. Apenas o médico regularmente habilitado e inscrito no Conselho de
Medicina de sua circunscrição está apto à prática de atos médicos, e tal
entendimento (esposado pelo STJ, STF e TRF da 4 Região) vem sendo
pacificado entre os profissionais da área da saúde, em que pesem pequenas
divergências absolutamente vencíveis. Neste diapasão, a identificação e
diagnóstico de qualquer patologia de qualquer paciente somente podem ser
feitos por médico, quando dentro de sua área de atribuições.
2) A consulta, como antes afirmado, tenho como referente estritamente quanto ao
preenchimento do formulário do SUS e dentro dessa perspectiva entendo que
apenas a assinatura do médico não poderá ser preenchida por outra pessoa,
porquanto ato personalíssimo. O ato de preencher o formulário, tendo em vista a
realidade médica do interior do Estado e da própria Capital, exige
flexibilização, ou seja, auxiliares de enfermagem, enfermeiros, ou até mesmo a
secretária do médico poderão efetuar tal conduta, uma vez que estas pessoas
também estão obrigadas a manter o sigilo profissional sobre as informações das
quais tenham conhecimento no exercício de suas funções.”
38.- Repita-se que, no caso, o médico não efetuou anotações no prontuário, para
possibilitar a funcionários a cópia dos dados nos formulários do SUS. Não há nos autos
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qualquer prontuário médico e nem referência à existência do mesmo. Assim, evidente que,
para que fossem preenchidos elementos essenciais nos formulários, aptos a conferir-lhes o
status de documento e servir para a finalidade que foram criados, somente o médico
poderia preencher os campos referentes ao CID e Diagnóstico. Terceiro que praticasse tal
ato estaria incorrendo em exercício ilegal da medicina a invadindo seara privativa.
O CRIME CONTINUADO
39.- A agravante do art. 71 – crime continuado – merece algumas considerações.
Ficou evidente nos autos que as únicas pessoas presentes no atendimento que gerou a
polêmica foram R, C e L. Os demais depoentes estavam alheios aos fatos.
40.- L sempre sustentou ter sido arranhado, recebendo um curativo. O mesmo
sempre foi dito pelo Dr. R. A enfermeira C não nega que isto tenha ocorrido, apenas
ressalta que não foi feito em sua presença. Deste modo, não há como afirmar que isto não
seja verdadeiro, não sendo falsos os dados constantes de um dos formulários parcialmente
preenchidos e assinado por L. O fato do procedimento não corresponder – ‘retirada de
pontos’ – é irrelevante, uma vez que foi escrito a caneta por terceiro, sobrepondo
observação feita a lápis e sem buscar informações com C e, em seguida subtraindo os
formulários. Incabível, assim, considerar-se passível de aplicação a mencionada agravante.
CRIME COMETIDO POR FUNCIONÁRIO PÚBLICO
41.- A qualificação do 'médico credenciado' como 'funcionário público por
equiparação legal' constitui-se em burla semântica à conhecida vedação da interpretação
analógica ou extensiva da Lei Penal4, obtendo-se, por agressão à lógica, a imposição
burocrática de uma conseqüência legal abusiva e desproporcional, criadora de uma
situação gravosa sem qualquer contrapartida positiva ou beneficiadora.
4 A legislação penal não admite critério de interpretação extensiva ou analógica (Savatier, Les Métamorphoses Economiques e Sociales de Droit Civil d'Aujourd'hui, Paris, 1952, n. 60; Alípio Silveira "O Fator Político Social na Interpretação das leis, 1946, p. 75 e seguintes; STF, Ministro Fontes de Alencar, RT 244/481 e 278/582 e Alípio Silveira, Hermenêutica no Direito Brasileiro, 1968, 11/435), encontrando-se os tipos penais rigidamente definidos em virtude do princípio constitucional da reserva legal insculpido no art. 5º , XXXIX.
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42.- Os Poderes Executivo e Legislativo, cientes de que o Estado não atende sua
obrigações constitucionais para com os direitos do cidadão à saúde, e fiel à filosofia do
Estado Mínimo, transfere aos particulares todos os ônus de sua incompetência política e
administrativa. O atendimento médico à população fica delegado a estabelecimentos
particulares, que utilizam profissionais de seu próprio quadro ou terceirizados. Estes
profissionais não possuem qualquer vínculo com o Poder Público. Não têm direito a
qualquer benefício previdenciário a que fazem jus os funcionários públicos. São
remunerados arbitrariamente de acordo com uma Tabela emitida e imposta pelo próprio
SUS, o qual, ainda, para não ter qualquer responsabilidade ou de exercer qualquer dever de
vigilância, transfere o ônus civil e criminal de sua atividade burocrática aos médicos e
enfermeiros, os quais, sem direito a qualquer benefício inerente a uma função ou cargo
público, ganha uma equiparação apenas para efeitos penais, sendo brindado com uma
qualificadora. Estado Mínimo em competência e responsabilidade e, para os particulares,
todos os ônus e riscos da atividade administrativa. Ilário e patético não fosse a violência
encerrada no comportamento, juridicamente inaceitável.
DÚVIDA QUE ENSEJA A ABSOLVIÇÃO TRANSCENDE À PROVA,
ABRANGENDO A CONTROVÉRSIA JURISPRUDENCIAL
43.- Sabe-se que a dúvida favorece o réu e reflete na absolvição. Esta assertiva
merece receber um enfoque mais amplo, a fim de que favoreça a necessária efetividade dos
direitos e garantias individuais e coletivos constitucionalmente tuteladas. Na esteira desta
raciocínio, há que se salientar que, sendo a norma contida e vertida em palavras, destinada,
pela sua abstração e generalidade, à toda a comunidade, há que ser inteligível e respeitar as
noções e intelecções correntes da linguagem, uma vez que constitui-se em inegável
produto cultural e veículo natural das idéias humanas.
44.- As noções correntes de crime, conduta penalmente relevante, o conceito de
documento, tudo isto deve ser absolutamente claro e inteligível àqueles a quem a norma se
destina. Nisto reside a segurança jurídica e a possibilidade de os agentes terem uma clareza
e previsibilidade razoáveis acerca das conseqüências jurídicas de suas condutas.
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45.- Nesta linha de pensamento, indaga-se: na linguagem corrente, alguém diria
que preencher partes de um formulário, sem dar-lhe destinação, geraria efeitos jurídicos
relevantes, ou seria o mesmo que formar um documento? se o próprio Judiciário, através
de seus membros detentores de experiência e qualificação técnica, controverte acerca de
determinados elementos da tipificação - lesividade, por exemplo -, esta dúvida não deveria
beneficiar os denunciados, gerando sua absolvição? Como exigir de cidadãos comuns uma
percepção da lei mais adequada do que aquela que os próprios técnicos lhe emprestam?
46.- Concorda-se com a tese esposada pelo Des. TUPINAMBÁ PINTO DE
AZEVEDO, do TJRS, no sentido de que, assim como a lei nova mais benéfica retroage
para beneficiar o réu já processado ou condenado, o mesmo deve dar-se em relação à
consolidação de uma jurisprudência mais benéfica. Aproveitando o mesmo pressuposto
lógico, a controvérsia jurisprudencial deveria beneficiar os réus, uma vez que o papel dos
tribunais, além de solucionar os conflitos, é o de interpretar a lei e dar-lhe sentido, e,
através da publicidade das decisões, oferecer previsibilidade e segurança jurídica aos
cidadãos.
47.- A tese proposta, além disto, concretiza o princípio constitucional da
isonomia, traduzido na impessoalidade, permitindo e incentivando o necessário tratamento
isonômico, pedra angular do Estado Democrático de Direito.
AUSÊNCIA DE ELEMENTOS ESSENCIAIS DO TIPO
48.- Para caracterizar-se o tipo previsto no art. 299 do CP - falsidade ideológica -
, todos os seus elementos constitutivos devem estar presentes. No caso, faltam,
evidentemente, os seguintes requisitos, essenciais à tipificação.:
a) existência de um documento, uma vez que o formulário (particular, por
encomendado pelo Hospital, e não público) somente viria a constituir-se
em documento (podendo fazer prova ‘por si só’) no momento em que
fosse integralmente preenchido (declarações do Sr. P e das funcionárias
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responsáveis pelo serviço de faturamento do Hospital, sem o que, os
formulários não tornam-se documentos e nem são encaminhados para
cobrança) sendo sujeito a exame prévio pelo setor de faturamento.
b) o requisito do dolo específico, uma vez que R e C são funcionários
antigos do Hospital, conhecedores de suas rotinas e trâmites
burocráticos. Quisessem implementar o delito, teriam preenchido todos
os campos dos formulários, tornando-o um documento e dando-lhe
aparência regular. C preencheu parte dos formulários a lápis (meio
ineficaz) e o Dr. R apenas assinou, não preenchendo os demais campos
privativos do médico (CID, Diagnóstico e Carimbo), sem o que, o
formulário não torna-se documento e nem é encaminhado para cobrança
(depoimentos do Sr. P e das funcionárias responsáveis pelo
faturamento). Os meios estavam ao seu alcance e eram de seu
conhecimento, porém os réus não os utilizaram. Também não o fizeram
depois e nem encaminharam os formulários incompletos para cobrança,
mesmo tendo o domínio dos fatos.
49.- O CREMERS, em parecer aprovado pela Diretoria, assim como o Dr. P,
informam que os campos referentes ao CID, Diagnóstico e Carimbo são atos privativos do
médico, podendo ser delegados a terceiros a inserção destes dados através da cópia de
dados antes inseridos pelo médico ou inseridos sob sua licença, ordem e supervisão. Não
há como um funcionário prescindir do médico para tais atos, substituindo-se ao mesmo.
50.- No estado em que encontravam-se os formulários, não estavam aptos a
produzir efeitos jurídicos ou criar obrigações,5 sequer constituindo-se em documento no
seu sentido jurídico. Conclui-se, assim, que as elementares do tipo não encontram-se
presentes para a pretendida incriminação, o que resulta na imposição de conclusão de
necessária absolvição dos denunciados.
5 Segundo doutrina Damázio de Jesus, o momento consumativo do crime de falsidade ideológica "ocorre com a omissão ou inserção direta ou indireta da declaração, i. e., no momento em que o documento, contendo a falsidade, se completa (RT 739:570), não exige a produção de dano, bastando que a conduta se apresente capaz de produzir prejuízo a terceiro. Nesse sentido: RT, 579:309, 583:351, RTJ 101:315, etc..." CP Anotado, Saraiva, 2002, p. 917, nota ao art. 299 do CP.
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51.- Tendo ficado demonstrado que a antijuridicidade autorizadora da punição
penal não contenta-se com a mera adequação formal da conduta ao tipo, devendo ser
demonstrada a antijuridicidade material, caracterizadora de lesão ou concreto perigo de
lesão ao bem jurídico tutelado, verifica-se que, ainda que completo o tipo, estaria ausente a
antijuridicidade material.
52.- Em vista da finalidade e destinação do 'documento' é que deve ser verificada
a ofensividade e a potencialidade lesiva da conduta em face ao bem jurídico tutelado e, no
caso, estas características, autorizadoras da intervenção penal, não existem.
53.- O formulário do SUS não é documento, muito menos público. Importante
lembrar que o próprio Hospital manda imprimi-lo em gráfica particular. Não é impresso e
nem enviado ao Hospital pelo SUS. Trata-se de um formulário particular. A única e
exclusiva finalidade do "formulário do SUS" é a de, uma vez integral e corretamente
preenchido, embasar uma cobrança àquele órgão. O formulário é sujeito a verificação antes
de ser feita a cobrança, além do que, possui campos de preenchimento essencial, ato
privativo do profissional médico, sem o que, não é remetida a cobrança ao SUS. O
formulário não possui finalidade e nem lhe pode ser dada qualquer destinação
juridicamente relevante sem que os campos essenciais estejam devidamente preenchidos.
54.- Diferente de um traslado ou escritura, que destinam-se a fazer prova perante
o público em geral dos fatos que consignam, possuindo, por isso, uma fé pública, os
formulários não são levados a público (mesmo porque, consignam dados da relação
médico paciente, cobertos pelo sigilo profissional), mas apenas arquivados para eventual
conferência com as faturas de cobrança remetidos. Se os primeiros podem conter ínsita
uma lesividade ao bem jurídico, por 'fazerem prova por si só' e estarem expostos ao
público, o mesmo não se dá com o aludido formulário. Primeiro, porque não chegou a
constituir-se em documento, por ausente o preenchimento de campos essenciais, segundo,
porque, parcialmente preenchido, ainda que com dados inverídicos, não possui aptidão
iludente, ou seja, não lhe pode ser dada qualquer destinação juridicamente relevante e,
terceiro, sequer foi encaminhado ao setor competente (e sim indevidamente subtraído).
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55.- Os formulários parcialmente preenchidos não tornaram-se documentos,
aptos a ‘fazer prova por si só’ e nem adquiriram capacidade iludente. O SUS, pretenso
destinatário das declarações, nada viu de relevante nos fatos, tanto que R permanece
cadastrado, atendendo pelo SUS e recebendo regularmente pelos serviços (contra cheques
em anexo). Como órgão público, submetido ao dever de legalidade e de fiscalização, o
SUS nada fez a respeito. Como, então, pretender ver afligida a ‘fé pública’ quando o
destinatário dos expedientes ditos ideológicamente falsos nada viu de relevante e nada fez
a respeito? E o SUS era o único interessado no episódio, fornecendo tabela na qual
verifica-se que os valores em questão (fossem os formulários integralmente preenchidos e
enviados para cobrança) ficariam em torno de R$ 30,00, considerando-se, ainda, que
apenas uma fração disto caberia ao médico. O assunto beira ao ridículo, demonstrando que
o verdadeiro crime á a tabela do SUS, violadora da dignidade humana e profissional.
56.- O mero preenchimento parcial de formulário, ainda que com dados
inverídicos, sem que o mesmo saia da esfera privativa de seu autor, não pode ser
considerado crime, uma vez que sem qualquer relevância jurídica, sem agressão a qualquer
bem jurídico tutelado, sendo penalmente irrelevante a conduta. Não há lesividade nos
formulários parcialmente preenchidos, sob posse e guarda do médico, além do que,
tratando-se de crime contra a fé pública, há que salientar-se que, em momento algum,
qualquer dos denunciados trouxe à público os formulários (não concluíram seu
preenchimento nem lhes deram qualquer destinação), o que veio a dar-se por ato imputável
às funcionárias do hospital que os subtraíram sem o conhecimento ou consentimento dos
denunciados.
57.- Os formulários não estavam aptos a produzir efeitos jurídicos e nem gerar
obrigações. Não tendo o médico completado campos essenciais dos formulários, não é
possível considerá-los documentos, na acepção jurídica do termo e, não o tendo, ainda,
dado-lhes publicidade, encaminhando-os para cobrança, não é dado presumir-se fosse ele
fazê-lo. Os formulários sequer possuem número de série, podendo ser rasurados ou
destruídos sem qualquer efeito jurídico. Ou seja: por si só, nenhum valor possuem.
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58.- Para que pudessem causar eventual lesão à fé pública, os formulários devem
sair da esfera da posse de seu autor e, como visto, estarem total e corretamente
preenchidos, sem o que, não virão a constituir-se como tal. O Livro de Registros do
Hospital apenas registra quem teve contato com o médico. A documentação que
comprovaria o tipo de atendimento, identificando o paciente, a patologia, os procedimentos
praticados, etc..., é o prontuário. Este documento inexiste no caso presente. Anotação no
Livro de Registros, por si só, desacompanhado de um prontuário, não servem para produzir
qualquer efeito relevante. A atendente que efetuou o registro dos nome de L no referido
Livro não agiu com dolo e nem gerou, com isso, qualquer reflexo jurídico com
repercussões penais, mesmo porque, não participou do atendimento e nem poderia ver ou
saber o que se passava no ambulatório. Somente registrou o nome de quem apresentou-se
requisitando acesso ao médico de plantão.
59.- No contexto avaliado, poder-se-ia, no máximo, talvez, imaginar que deram-
se início a atos preparatórios de um estelionato, o qual sequer chegou a ser tentado. O
processo em apreço derivou de açodamento por parte de funcionárias, as quais, com base
em suposições, adiantaram-se aos fatos que presumiram fossem acontecer e
desencadearam uma série de eventos, tais como um Inquérito Administrativo (do qual
resultaram severas punições aos denunciados) e um Inquérito Policial (do qual resultou a
presente denúncia ao Juízo Criminal, com pretensão de imposição de severas penas). O
Hospital não representou em face a interesse seu – que, em tese, poderia ser meramente
patrimonial, referente ao valor de umas poucas ataduras, ou seja tão insignificante que
sequer foi objeto de reclamação.6
6 Assim, “aplica-se o princípio da insignificância ao não pagamento de impostos e valores que o próprio Estado expressou o seu desinteresse pela cobrança” RESP n 246.590-PR, 6 Turma do STJ, j. 17.05.2001, DJ 09.09.2002, p. 248, Rel. Min. Paulo Gallotti. Em sentido análogo já foi decidido que "o ínfimo valor da mercadoria de procedência estrangeira apreendida autoriza a aplicação do princípio da insignificância, descaracterizando o crime de descaminho. Se o valor dos tributos incidentes sobre os bens apreendidos não ultrapassa o valor de R$ 1.000,00, incensurável a decisão a quo que, em analogia à legislação fiscal (Lei nº 9.469/97, art. 1º, e MP 1.542/97, art. 20), aplicou o princípio da insignificância ao caso sub examine" (RESP 221489-PR, j. 16.03.2000, DJ 17.04.2000, p. 00078; LEXSTJ v. 131:369, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Arnaldo da Fonseca; também o RESP 236702-PR, DJ 22.10.2001, p. 00345, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, o RESP 235151-PR, DJ 08.05.2000, p. 000116, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp e o RESP 246602-PR, DJ 29.10.2001, p. 000238, 5ª Turma do STJ, Rel. Min. Gilson Dipp). Do mesmo relator, na mesma sintonia, com conclusões aqui aproveitáveis, o RESP 111010-RN, 5ª Turma do STJ, DJ. 26.05.1997, p. 22556, na qual ficou assentado que "uma condenação criminal, in casu, seria, na verdade, pelas suas conseqüências, desproporcional ao dano decorrente da conduta praticada pelos recorridos, todos primários e de bons antecedentes".
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60.- A proporcionalidade pressupõe, além da legalidade, uma justificação
teleológica, tendo, como requisitos extrínsecos a judicialidade e a motivação, e como
requisitos intrínsecos a adequação da medida a sua finalidade – idoneidade –, a intervenção
mínima – necessidade –, e a ponderação dos interesses – proporcionalidade em sentido
estrito. A regra de proporcionalionalidade exige, também, uma ação valorativa do
magistrado, indagando se a conduta adquiriu intensidade suficiente para efetivamente
agredir ou colocar em risco relevante o bem jurídico tutelado (ofensividade ou
potencialidade lesiva), justificando a sanção penal, sempre tendo-se em conta a sua
subsidiariedade. A avaliação do contexto indicará a efetiva necessidade da intervenção
penal, bem como sua legitimidade.
61.- A ponderação, ou balanceamento de valores, impõe sejam contrastados os
interesses juridicamente tutelados – honra e liberdade dos réus em contraste com o bem
jurídico dito agredido, no caso a 'fé pública' -, a fim de que possa ser aferido qual destes
bens deve ser preferencialmente tutelado na decisão a ser prolatada.
62.- Submeter os denunciados a uma condenação criminal, neste contexto, de
mera irregularidade administrativa, originado de um acontecimento que seria prosaico, não
fossem os graves desfechos que sucederam-se, é absolutamente desnecessário, ilegítimo e
desproporcional. Os bens jurídicos honra e liberdade, instituídos no catálogo dos direitos
individuais da CF/88, prevalecem ante uma pretensão punitiva sem utilidade ou
necessidade, lembrando-se que a intervenção penal deve ser sempre a ultima ratio, o que
aconselha a absolvição e mesmo o trancamento da ação penal, na via do Habeas Corpus,
por evidente ausência de justa causa.
É o parecer.
Leandro Bittencourt Adiers
OAB/RS 40.273