EXCELENTÍSSIMA SRA. DRA. JUÍZA DE DIREITO DA VARA DE FAZENDA
PÚBLICA DA COMARCA DE SALTO DO LONTRA
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO PARANÁ,
representado por seu Promotor de Justiça que esta subscreve, no uso de
suas atribuições legais, vem, respeitosamente, perante Vossa Excelência,
com fundamento nos artigos 37, §§ 1º e 4º, 127, caput, e 129, incisos II e
III, da Constituição Federal, artigo 25, inciso IV, alíneas "a" e "b", da Lei
Federal nº 8.625/93, e com fundamento na lei nº 7.347/85, propor a
presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
Com Pedido de Antecipação dos Efeitos da Tutela
pelo procedimento ordinário, em face do:
MUNICÍPIO DE SALTO DO LONTRA, pessoa jurídica de direito
público interno, representado, na forma do artigo 12, inciso II do Código de
Processo Civil, pela pessoa de MAURÍCIO BAÚ, prefeito de Salto do
Lontra, residente e domiciliado na Prefeitura Municipal de Salto do Lontra,
sediada na Rua Rio Grande do Sul, nº 174, nesta cidade, pelos fatos e
fundamentos que passa a expor:
DOS FATOS
Foi este órgão ministerial procurado por moradores do bairro de
Santa Maria, município de Salto do Lontra/PR, solicitando providências
acerca de recente aprovação do Projeto de Lei nº 026/2013 (anexo I, fl.
04), cujo objeto era a desafetação das áreas verdes constituídas pelos Lotes
12 da quadra 04 e 13 da quadra 05 anexo I, fl. 10, 11 e 14), objetos da
matrícula 03368 do Registro de Imóveis de Salto do Lontra (anexo I, fl. 13),
e afetação das mesmas como áreas de uso dominial. Questionavam a
legalidade de tal ato, apresentando documentação que subsidia a presente,
em especial abaixo-assinado dos moradores do referido bairro, solicitando
ao Prefeito e aos Vereadores a manutenção daquela área em seu estado
original (anexo I, fl. 15 a 32).
Instaurou-se, então, Notícia de Fato nº MPPR – 0126.13.000031-
1, a fim de apurar tais alegações.
Verificou-se que referida área possui natureza jurídica de bem de
uso comum, afetada como “área verde”, fruto de loteamento residencial
Santa Maria realizado pela Companhia de Habitação do Paraná – COHAPAR ,
cujo memorial descritivo foi aprovado em 23 de fevereiro de 1988 (anexo
II, fl. 44/46), transmitida ao Município de Salto do Lontra, por força do
inciso II do artigo 7º da Lei Municipal 072/2007, através de Escritura
Pública de Doação lavrada às fls. 122 do livro nº 01-Aux (anexo I, fl.09).
Ao tomar conhecimento da aprovação do referido projeto de lei,
publicando-se a Lei 029/2013 (anexo I, fl. 33), este órgão ministerial
encaminhou, através de ofício 091/2013, em 24 de julho de 2013,
Recomendação Administrativa nº 01/2013 ao Município de Salto do Lontra,
recomendando a anulação de referida lei, por se tratar, materialmente, de
ato administrativo, por conta da ilegalidade de seu objeto, solicitando
resposta com parecer jurídico, concedendo-se prazo de 05 dias.
Posteriormente, em 22 de julho de 2013 foi encaminhado à
Câmara de Vereadores, Projeto de Lei nº 067/2013 (anexo II, fl. 67) com
objetivo de autorizar-se o Poder Executivo Municipal a alienar na forma de
leilão os bens imóveis supracitados, ressaltando-se o disposto em seu
artigo 2º, no sentido de que “O valor arrecadado com a alienação dos
imóveis será utilizado para Programa habitacional de moradias populares a
ser implementada no Município de Salto do Lontra”, denotando-se que a
alienação de referida área dar-se-á para fins diversos, não especificados.
Desta forma, novamente expediu, este órgão ministerial, em 05
de agosto de 2013, Recomendação Administrativa, registrado sob nº
02/2013, desta vez ao Presidente da Câmara dos Vereadores de Salto do
Lontra, recomendando a retirada de pauta de votação do referido projeto de
lei, enquanto não encaminhado parecer jurídico, pelo Município, em
resposta à Recomendação Administrativa nº 01/2013.
Na mesma oportunidade, requisitou-se à Câmara Municipal
informação acerca do regime de tramitação denominado “Regime de
Urgência Urgentíssima”, utilizado quando da tramitação do Projeto de Lei
026/2013 que culminou na edição da Lei 029/2013, uma vez que o
Regimento Interno da Câmara Municipal de Vereadores de Salto do
Lontra/PR – Resolução 13/2008 – em seu artigo 152 prevê apenas os
regimes de tramitação denominados “Urgência Especial”, “Urgência” e
“Ordinária”.
Não acatando à referida Recomendação, o projeto de lei
067/2013 foi posto em votação e aprovado, segundo Ata nº 20 da 20ª
Sessão Ordinária do dia 05 de agosto de 2013 (anexo II, fl. 73 a 75), tendo
sido publicada a Lei Municipal 065/2013, no Jornal de Francisco Beltrão,
edição de 14 de agosto de 2013 (anexo II, fl. 76). Da mesma forma, até a
presente, não foi enviada quaisquer informações acerca do referido regime
de tramitação denominado “Regime de “Urgência Urgentíssima’”.
Em 09 de agosto de 2013, através de ofício 223/2013, foi
encaminhado a este órgão ministerial parecer jurídico (anexo II, fl. 59 a
63), assinado pelo Sr. Prefeito Maurício Baú, e documentação (anexo II, fl.
64 a 72), em resposta à Recomendação Administrativa nº 01/2013, no
intuito de justificar o referido ato de desafetação.
DO DIREITO
I - Dos Efeitos Concretos Da Lei Municipal em questão e da sua
Ilegalidade e/ou Inconstitucionalidade
É cediço que as leis têm como característica inerente, além da
inovação no mundo jurídico, o caráter abstrato, geral e autônomo. Isso está
ligado à ideia de perpetuação no tempo que a lei sempre visa.
Entretanto, alguns diplomas normativos, justamente por lhe
faltarem esses pressupostos, não são tidos como lei no sentido material ou
real da expressão. São leis sob o aspecto formal porque são votadas pelo
legislativo e sancionados pelo chefe do executivo, mas não gozam de
abstração, generalidade e autonomia. São verdadeiros atos administrativos
revestidos de formalidades e carapuça de lei, mas que produzem efeitos
concretos e infralegais. Exemplo disso são as leis federais que visam
aposentadoria de servidores federais post mortem. Essas leis em mero
sentido formal são úteis e até necessárias em determinadas situações.
Pois bem. A Lei Municipal 029/2013 é justamente umas dessas
leis, uma vez que tem mais a "fisionomia" de um ato administrativo do que
um texto legal, já que não apresenta nenhuma das características de norma
jurídica a não ser sua devida promulgação por órgão competente, bem
como transcurso por etapas legislativas. Isso porque traz em si mesmo o
resultado específico pretendido, possuindo, portanto, eficácia temporal
limitada ao ato. Dessa forma, não possui o caráter de generalidade e de
abstração comum à maior parte das leis existentes.
Além disso, toda lei, justamente pelo seu caráter genérico, deve
ter um decreto administrativo que lhe dê eficácia e regularize em que
termos a norma legal será aplicada. Neste caso não há qualquer decreto
promulgado pelo Poder Executivo Municipal que venha dar-lhe fluidez. Ora,
o próprio texto legal carrega em si a sua eficácia; trata-se assim, do que a
doutrina denomina de lei de efeito concreto e, portanto, passível de
invalidação judicial. Não é outra, senão esta, a lição de Hely Lopes
Meirelles:
"Não se confunda lei auto-executável com lei de efeito concreto,
aquela é normativa e independente de regulamento, mas depende
de ato executivo para sua atuação; esta não depende nem de ato
executivo para a produção de seus efeitos, pois atua desde sua
vigência, consumindo o resultado de seu mandamento. Por isso, a
lei auto-executável só pode ser atacada judicialmente quando for
aplicada e ensejar algum ato administrativo, ao passo que a lei
de efeito concreto é passível de invalidação judicial desde
sua entrada em vigência, pois já traz em si o resultado concreto
de seu objetivo. Exemplificando: uma lei autorizativa é auto
executável, mas não é de efeito concreto, diversamente, uma lei
proibitiva de atividade individual é de efeito concreto, porque ela,
por si só, impede o exercício da atividade proibida."1
Prossegue o saudoso Mestre,
1 MEIRELLES, Hely Lopes in Direito Administrativo Brasileiro, 22ª ed., Malheiros, p. 163.
"Dentre os atos ilegais e lesivos ao patrimônio público pode estar
até mesmo a lei de efeitos concretos, isto é, aquela que traz em si
as consequências imediatas de sua atuação, a que desapropria
bens, a que concede isenções, a que desmembra ou cria
municípios, a que fixa limites territoriais e outras dessas espécies.
Tais leis só o são em sentido formal, visto que materialmente se
equiparam aos atos administrativos e por isso mesmo são
atacáveis por ação popular ou por mandado de segurança,
conforme o direito ou interesse por elas lesado"2.
Uma vez superada qualquer dúvida acerca da possibilidade do
controle judicial de referida lei municipal, resta analisarmos os diplomas
legais aviltados.
II – Da Impossibilidade de Desafetação de Área Verde
Demonstrou-se que as áreas, objeto desta lide, são originalmente
bens de uso comum do povo, afetados como áreas verdes, que tem sua
utilização reconhecida à coletividade, sem discriminação de seus usuários
ou ordem especial para sua fruição. Tais bens são inalienáveis e não estão
disponíveis para autorização, permissão ou concessão de uso. Para tanto,
seria necessária sua desafetação através de lei, conforme autoriza o artigo
100 do Código Civil, interpretado pela respeitável doutrina de Gustavo
Tepedino:
“Quanto aos bens públicos de uso comum do povo e de uso
especial, a alienação dependerá de prévia alteração de sua
natureza jurídica, segundo lei específica. Só ao perderem tais
qualificações é que escapam à inalienabilidade dos bens públicos,
pois, se penhorados, passariam do patrimônio do devedor ao do
credor, por meio de execução judicial (Sílvio Venosa, Direito Civil,
2 HELY LOPES MEIRELLES, in Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado
p. 330). [...] Os bens suscetíveis de valoração patrimonial podem
perder a inalienabilidade, que lhes é peculiar, pelo instituto da
desafetação. (...) A desafetação é a mudança da destinação do
bem, visando incluir bem de uso comum do povo, ou bens de uso
especial, na categoria de bens dominicais, para possibilitar a
alienação, nos termos das regras de Direito Administrativo.”.3
(grifei)
Não há empecilhos, portanto, a que um bem de uso comum,
passível de valoração econômica, seja desafetado mediante lei específica.
Ocorre que há determinados bens que são intrinsecamente públicos, vez
que a própria lei assim determina, não podendo, portanto, terem sua
destinação alterada.
Possui aplicação in casu a Lei Federal 6.766/79 que impede a
alteração ou modificação de área transferida ao domínio público em virtude
de loteamento. De fato, assim determina o artigo 22 do referido diploma:
"Art. 22º. Desde a data de registro do loteamento, passam a
integrar o domínio do Município as vias e praças, os espaços
livres e as áreas destinadas a edifícios públicos e outros
equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial
descritivo.". (grifei e negritei)
Da mesma forma, rege o artigo 17 da Lei 6.766/79:
“Art. 17. Os espaços livres de uso comum, as vias e praças, as
áreas destinadas a edifícios públicos e outros equipamentos
urbanos, constantes do projeto e do memorial descritivo, não
poderão ter sua destinação alterada pelo loteador, desde a
de Injunção e Habeas Data", pág. 95, Ed. RT, 14ª ed., 1991.
3 TEPEDINO, Gustavo, Heloisa Helena Barboza, Maria Celina Bodin de Moraes in Código Civil
interpretado conforme a Constituição da República – 2ª ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.
104
aprovação do loteamento, salvo as hipóteses de caducidade da
licença ou desistência do loteador, sendo, neste caso, observadas
as exigências do art. 23 desta Lei.”
Da análise do citado artigo 17, criou-se um vácuo legislativo, vez
que o Legislador silenciou acerca do grau de discricionariedade do Município
para descaracterizar as frações de solo que aufere a partir dos
parcelamentos regularmente aprovados
O Superior Tribunal de Justiça, contudo, manifestou-se,
preenchendo o vácuo legislativo com exercício de hermenêutica sistemática:
“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LOTEAMENTO URBANO.
DESAFETAÇÃO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS. ALEGAÇÃO DE OFENSA
AO ART. 17 A LEI N. 7.347/85. INEXISTÊNCIA. ART. 1º DA LEI N.
7.347/85. MATÉRIA PROBATÓRIA. RECURSO NÃO CONHECIDO.
(...)
Insurge-se o recorrente contra a interpretação que considerou tal
dispositivo [art. 17 da Lei 6.766/79] aplicável também ao
Município. Não resta dúvida de que a norma se dirige
prioritariamente ao incorporador. A questão de fundo está, no
entanto, em saber-se se a finalidade da estatuição legal não revela
alguns princípios que devem ser aplicados à Administração. Para
tanto, creio que o problema se desdobra em duas questões: qual o
espírito da norma em apreço, e a questão da autonomia da
Administração municipal para alterar a destinação do bem público,
depois que fica incorporado a patrimônio do Município.
O art. 17 não pode ser compreendido isoladamente. Ao contrário,
impõe-se uma interpretação sistemática com os arts. 4º, 22, 28 do
mesmo diploma.
(...)
Essa estatuição [art. 22 da Lei 6.766/79] pretendeu, sem
dúvida, vedar o poder de disponibilidade do incorporador
sobre essas áreas. Coloca-as, portanto, sobre a tutela da
Administração municipal de forma a garantir que não terão
destinação diversa. Este parece ser o espírito da lei. De outra
forma, estaria a norma legalizando uma desapropriação indireta
ou, pior, permitindo o confisco por parte do poder público. Por
outro lado, visa, também, a aumentar o patrimônio comunitário,
pois esta é a utilidade e função social dos bens públicos de uso
comum do povo, a de servirem os interesses da comunidade.
Essa tese é reforçada por análise teleológica do art. 17 com o art.
4º do mesmo diploma legal.
(...)
Esse dispositivo destaca os pressupostos mínimos do loteamento
relativamente às áreas de uso comum, cuja fiscalização depende
da municipalidade. Exige, portanto, que o loteador destaque áreas
mínimas, tendo em vista a comodidade da população a saúde e a
segurança da comunidade. Portanto, embora a norma se dirija ao
loteador, parece-me, mais uma vez, que a idéia que lhe é
subjacente é a de proteger o interesse dos administrados,
outorgando ao poder público essa tutela.
(...)
Como salientei, o objetivo da norma jurídica é vedar ao
incorporador a alteração das áreas destinadas à comunidade.
Portanto, não faz sentido, exceto, em casos especialíssimos,
possibilitar à Administração a fazê-lo. No caso concreto, as
áreas foram postas sob a tutela da administração municipal,
não com o propósito de confisco, mas como forma de
salvaguardar o interesse dos administrados, em face de
possíveis interesses especulativos dos incorporadores.
Ademais, a importância do patrimônio público deve ser aferida em
razão da importância da sua destinação. Assim, os bens de uso
comum do povo possuem função ut universi. Constituem um
patrimônio social comunitário, um acervo colocado à
disposição de todos. Nesse sentido, a desafetação desse
patrimônio prejudicaria toda uma comunidade de pessoas,
indeterminadas e indefinidas, diminuindo a qualidade de
vida do grupo. (STJ. Recurso Especial n. 28.058-SP. Segunda
Turma. Relator Ministro Adhemar Maciel. Julgamento: 13 de
outubro de 1998).
Assim, se o loteador não podia modificar essa destinação, já que
no momento em que o loteamento é registrado tais bens passam a ser bem
público de uso comum do povo, a Municipalidade, por igual, também não
pode fazê-lo, já que a população tem direito à sua fruição. Aliás, o titular
dos direitos de uso do bem público de uso comum do povo é a comunidade,
cabendo ao Poder público Municipal apenas sua guarda, administração e
fiscalização, por comezinho. Mais uma vez, Hely Lopes Meirelles:
"Enfim, todos os locais abertos à utilização pública adquirem esse
caráter de comunidade, de uso coletivo, de fruição própria do
povo. Sob esse aspecto – acentua Rui Cenre Lima – pode o
domínio público definir-se como a forma mais completa de
participação de um bem na atividade de administração pública.
São os bens de uso comum, ou do domínio público, o serviço
mesmo prestado ao público pela administração, assim como as
estradas, ruas e praças".4
O eminente Paulo Affonso Leme Machado, um dos juristas
brasileiros que mais se debruçou sobre o Direito Ambiental, assim deixou
estatuído:
"Retirou-se de modo expresso o poder dispositivo do loteador
sobre as praças, as vias e outros espaços livres de uso comum
(art. 17 da Lei 6.766/79) mas, de modo implícito, vedou-se a
livre disposição desses bens pelo município. Este só teria a
liberdade de escolha, isto é, só poderia agir discricionariamente
4 MEIRELES, Hely Lopes op. cit. p. 418.
nas áreas do loteamento que desapropriasse e naquelas que
recebeu a título gratuito. Do contrário, estaria o município se
transformando em município-loteador através de
verdadeiro confisco de áreas, pois receberia as áreas para
uma finalidade e, depois, a seu talente as destinaria para
outros fins"5. (negritei)
Importante ressaltar que a preocupação do legislador não foi
proporcionar acréscimo patrimonial ao Município. A lei tem o claro propósito
de evitar o crescimento desordenado da cidade, aumentando sobremaneira
a densidade de determinadas áreas do Município sem nenhum controle ou
regulação por parte do Poder Público. Ademais, a reserva da "área
institucional" não se refere, somente, ao atendimento de uma demanda
atual, pois também assegura a reserva fundiária para a consecução de
políticas públicas e sociais pro futuro. Nem é por outra razão que, nos
dizeres de Marçal Justen Filho:
“a desafetação dos bens de uso comum e de uso especial
depende de lei, mais isso não significa que a lei possa
produzir a desafetação dos bens intrinsecamente públicos”6
(grifei e negritei)
Desta feita, é do teor implícito da Lei n. 6.766/1979, que as áreas
institucionais sejam bens intrinsecamente públicos, subtraindo-se, portanto,
à margem de discricionariedade do administrador e ao juízo de
oportunidade do Poder Legislativo.
Consentânea é a opinião sustentada por Lúcia Valle Figueiredo:
"Assim sendo, é dever do Município o respeito a essa
destinação, não lhe cabendo dar às áreas que, por força da
5 MACHADO, Paulo Affonso Leme in Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: RT, 1989, p. 244
6 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 925
inscrição do loteamento no Registro de Imóveis, passaram
a integrar o patrimônio municipal qualquer outra utilidade.
Não se insere, pois, na competência discricionária da
Administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada
a estas ruas, praças, etc. A destinação já foi previamente
determinada."7 (grifei e negritei)
Finalmente, vale citar o magistério do eminente Prof. José
Afonso da Silva, pioneiro no estudo de direito urbanístico em nosso país:
"O que é certo é que a via urbana pública, assim como as praças,
como tal, será inalienável, impenhorável e imprescritível. Tornar-
se-á alienável se deixar de ser via urbana ou praça, pela
desqualificação jurídica ou desafetação, com o que a área
respectiva passará à qualificação de bem patrimonial e sujeitar-se-
á ao seu regime jurídico, tornando-se alienável nos termos da
legislação que regula a alienação de bens públicos, que, no
mínimo, exige autorização legislativa, prévia avaliação e
concorrência, salvo as exceções quanto a esta. É claro que,
assim mesmo, há que levar-se em consideração o interesse
dos usuários moradores ou não da rua. Vale dizer, a rua só
pode ser desafetada de sua qualificação de bem de uso
comum do povo mediante lei municipal, que somente será
legítima se a rua perder, de fato, sua utilização pública, por
ter-se tornado desabitada e perdido seu sentido de via de
circulação pública. Sem esses pressupostos de fato,
qualquer pessoa do povo pode impugnar a desafetação,
porque lhe ocorre o direito subjetivo de transitar pela via e,
consequentemente, o direito de exigir da Municipalidade
que se abstenha de perturbar-lhe ou impedir-lhe o livre
trânsito por via que venha sendo usada regularmente pelo
povo, pois a livre circulação em via existente é
manifestação do direito fundamental de ir, vir e ficar, em
7 FIGUIREDO, Lúcia Valle. Disciplina Urbanística da Propriedade. São Paulo: RT, 1980, p. 41.
situação mais rigorosa ainda do que aquela que já referimos antes
em relação à estrada pública, dada a vocação urbanística da via
urbana, sempre predisposta ao interesse do povo e,
particularmente, de seus moradores, tema que examinaremos
depois"8.
Não é diferente a orientação jurisprudencial, consignada em
diversos V. Acórdãos. Já em 1961 o Conselho Superior de Magistratura
do Tribunal de Justiça de São Paulo firmou a seguinte tese (RT
318/285):
"Aprovada a planta do loteamento, e inscrito este, tornam-se
inalienáveis por qualquer título as vias de comunicação, praças e
espaços livres. Não pode, portanto, a Municipalidade
transformar uma praça, destinada ao uso comum do povo,
em propriedade sua para doá-la a uma entidade particular".
O nunca assaz citado Prof. José Afonso da Silva comenta o
referido acórdão:
"A forma, como a situação se apresentara, realmente tornava
ilegítima a conduta da Municipalidade, pois, mal o loteamento fora
inscrito, já pretendeu transformar a área em bem patrimonial
para, em seguida, doá-la a uma entidade desportiva
particular. Parece que, no caso, muito sinteticamente
apresentado no acórdão, ocorrera verdadeiro desvio de
finalidade, além da falta de motivo de interesse público que
justificasse a medida, e não está indicado se a medida fora feita
por prescrição de lei"9.
8 DA SILVA, José Afonso in Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros, p. 184/185
9 DA SILVA, José Afonso op. cit. p. 184
Outrossim, pela razoabilidade e fundamentação que a respalda, o
Poder Judiciário pátrio tem acatado essa interpretação, como demonstram
seguidos julgados dos diversos Estados da Federação:
DUPLO GRAU DE JURISDICAO E APELACAO CIVEL. ACAO
POPULAR. AFRONTA A LEI FEDERAL. HIERARQUIA DAS LEIS. LEI
MUNICIPAL ILEGAL. LOTEAMENTO. DESAFETACAO. PERMUTA.
VEDACAO AO MUNICIPIO. 1 - REGENDO A HIERARQUIA DAS LEIS,
HA A IMPOSICAO DE QUE AS LEIS MUNICIPAIS DEVEM SE
ADEQUAR AS LEIS ESTADUAIS E FEDERAIS. HAVENDO
CONFRONTO ENTRE ELAS, PREVALECE A LEGISLACAO QUE SE
ENCONTRAR EM NIVEL MAIS ELEVADO NA PIRAMIDE
HIERARQUICA. 2 - APOS A APROVAÇÃO DO LOTEAMENTO E
CONSEQUENTE PASSAGEM DE DETERMINADAS ÁREAS PARA
O PODER PÚBLICO MUNICIPAL, É VEDADA A MODIFICAÇÃO
DA DESTINAÇÃO CONFERIDA A TAIS ÁREAS, DADA A
REDAÇÃO INEQUÍVOCA DO INCISO I, DO ARTIGO QUARTO
DO ARTIGO 22 E DO ARTIGO 28 DA LEI N. 6766/79. 3 - A LEI
N. 6766/79 AO FIXAR A RESERVA DE AREAS INSTITUCIONAIS
NOS LOTEAMENTOS URBANOS, OBJETOU VEDAR UTILIZACAO
DIVERSA DESSAS ÁREAS, COLOCANDO-AS SOB A TUTELA DA
ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL, PRESERVANDO ASSIM O
INTERESSE COLETIVO E SUA DESTINAÇÃO PRÓPRIA E A LEI
COMPLEMENTAR MUNICIPAL N. 111/05, LC N. 111/05
DESAFETOU BEM DE USO COMUM DO POVO CONSISTENTE
NAS AREAS VERDES DESTINANDO-AS A LOTEAMENTO,
PADECE DE ILEGALIDADE POR DESCONFORMIDADE COM A
LEI FEDERAL MENCIONADA. O MUNICIPIO TEM O PODER
DEVER DE REGULARIZAR LOTEAMENTO URBANO. 4 – É
INADMISSÍVEL A DESAFETAÇÃO E PERMUTA DOS BENS
PASSADOS AO DOMÍNIO DO MUNICIPIO, EM DECORRÊNCIA
DAS REGRAS CONSTANTES DA LEI N. 6766/79; A
FINALIDADE DO LEGISLADOR AO PASSAR TAIS ÁREAS
PARA O DOMÍNIO PÚBLICO FOI, EXATAMENTE, A DE COIBIR
O USO DESSES ESPACOS PARA OUTROS FINS QUE NÃO
AQUELES PREVISTOS NO PROJETO ORIGINAL. REMESSA
CONHECIDA E IMPROVIDA. PRIMEIRA APELACAO CONHECIDA E
PARCIALMENTE PROVIDA. SEGUNDA APELACAO PREJUDICADA
(TJGO. 1ª CÂMARA CÍVEL. RELATOR: DES. VITOR BARBOZA
LENZA. FONTE: DJ 93 DE 21/05/2008).
Ação popular - Bem público - Desafetação - Praça pública - Não
podendo o bem público destinado à praça pública ter sua
destinação desvirtuada por acarretar verdadeira
desafetação e lesão ao meio ambiente ao suprimir área
verde e urbanística, a ação era de ser julgada procedente.
Recursos providos (TJSP. Recurso n° 399.097.5/6-00, Relator
Desembargador Lineu Peinado, julgado em 13 de agosto de 2009).
REEXAME NECESSÁRIO. Lei Municipal que desafetou parte de
praça, fins de doá-la à Escola de Samba. Manifesta
ilegalidade da referida lei. Reconhecimento da nulidade da
doação, assim como da impossibilidade da edificação, via
ação civil pública (TJRS. 1ª. Câmara Cível. Reexame Necessário
nº 597.166.016, Relator Desembargador Armínio José Abreu Lima
da Rosa, julgado em 28.10.1998).
No mesmo diapasão, inolvidável citar o Egrégio Tribunal de
Justiça do Estado do Paraná, que firmou símile entendimento no bojo da
Apelação Cível n. 983837-1, originária da Comarca de Londrina:
Inclusive, referida legislação federal com redação dada pela
Lei nº 9.785, de 29.01.1999, DOU de 01.02.1999,
estabeleceu área “non edificandi” obrigatória, sendo que tal
espaço é cedido obrigatoriamente ao Município, tornando-
se bem público. Denota-se, portanto, que a legislação quis
proteger, portanto, os bens de uso comum do povo, nos quais se
incluem as praças e áreas verdes preservadas nos loteamentos
urbanos. Além disso, devesse levar em conta que, os planos de
urbanização e os planos habitacionais devem ater-se às diretrizes
das normas de direito federal, estadual e municipal, sendo as
vedações impostas nestes aos particulares também sejam
adotadas aos entes públicos, a fim de que não haja violação ao
disposto no art. 225 da Constituição Federal, que impõe
expressamente o dever de preservação do ambiente não apenas
pelos cidadãos, mas também pelo Poder Público. (...) Entender
de maneira diversa estaria a conceber ao município a
possibilidade de ter afetadas áreas e após alguns anos, o
mesmo dar destinação diversa que foi dada quando de
referido ato, configurando, assim, verdadeiro confisco de
áreas (TJPR. Apelação Cível nº 983837-1, da Comarca de
Londrina, 2ª. Vara Cível. Relator: Des. Luiz Mateus de Lima. Data
do Julgamento: 26 de fevereiro de 2012).
E, alfim, remeta-se novamente à clara síntese da Corte
Superior:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
PRAÇAS, JARDINS E PARQUES PÚBLICOS. DIREITO À CIDADE
SUSTENTÁVEL. ART. 2º, INCISOS I E IV, DA LEI 10.257/01
(ESTATUTO DA CIDADE). DOAÇÃO DE BEM IMÓVEL MUNICIPAL DE
USO COMUM À UNIÃO PARA CONSTRUÇÃO DA AGÊNCIA DO INSS.
DESAFETAÇÃO. COMPETÊNCIA. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA
150/STJ. EXEGESE DE NORMAS LOCAIS (LEI ORGÂNICA DO
MUNICÍPIO DE ESTEIO/RS).
1. O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul ajuizou
Ação Civil Pública contra o Município de Esteio, em vista da
desafetação de área de uso comum do povo (praça) para a
categoria de bem dominical, nos termos da Lei municipal
4.222/2006. Esta alteração de status jurídico viabilizou a doação
do imóvel ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com o
propósito de instalação de nova agência do órgão federal na
cidade.
2. Praças, jardins, parques e bulevares públicos urbanos
constituem uma das mais expressivas manifestações do
processo civilizatório, porquanto encarnam o ideal de
qualidade de vida da cidade, realidade físico-cultural refinada
no decorrer de longo processo histórico em que a urbe se viu
transformada, de amontoado caótico de pessoas e construções
toscas adensadas, em ambiente de convivência que se pretende
banhado pelo saudável, belo e aprazível.
3. Tais espaços públicos são, modernamente, objeto de
disciplina pelo planejamento urbano, nos termos do art. 2º,
IV, da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade), e concorrem,
entre seus vários benefícios supraindividuais e intangíveis,
para dissolver ou amenizar diferenças que separam os seres
humanos, na esteira da generosa acessibilidade que lhes é
própria. Por isso mesmo, fortalecem o sentimento de
comunidade, mitigam o egoísmo e o exclusivismo do
domínio privado e viabilizam nobres aspirações
democráticas, de paridade e igualdade, já que neles
convivem os multifacetários matizes da população: abertos
a todos e compartilhados por todos, mesmo os
“indesejáveis”, sem discriminação de classe, raça, gênero,
credo ou moda.
4. Em vez de resíduo, mancha ou zona morta – bolsões vazios e
inúteis, verdadeiras pedras no caminho da plena e absoluta
explorabilidade imobiliária, a estorvarem aquilo que seria o destino
inevitável do adensamento –, os espaços públicos urbanos
cumprem, muito ao contrário, relevantes funções de caráter social
(recreação cultural e esportiva), político (palco de manifestações e
protestos populares), estético (embelezamento da paisagem
artificial e natural), sanitário (ilhas de tranquilidade, de simples
contemplação ou de escape da algazarra de multidões de gente e
veículos) e ecológico (refúgio para a biodiversidade local). Daí o
dever não discricionário do administrador de instituí-los e
conservá-los adequadamente, como elementos
indispensáveis ao direito à cidade sustentável, que envolve,
simultaneamente, os interesses das gerações presentes e
futuras, consoante o art. 2º, I, da Lei 10.257/01 (Estatuto
da Cidade). (...) Quando realizada sem critérios objetivos e
tecnicamente sólidos, maldotada na consideração de
possíveis alternativas, ou à míngua de respeito pelos
valores e funções nele condensados, a desafetação de bem
público transforma-se em vandalismo estatal, mais
repreensível que a profanação privada, pois a dominialidade
pública encontra, ou deveria encontrar, no Estado, o seu
primeiro, maior e mais combativo protetor (STJ. Relator:
Ministro Herman Benjamin. RECURSO ESPECIAL Nº 1.135.807 –
RS. Julgamento: 15 de abril de 2010).
Vislumbra-se nos autos que o Poder Público Municipal pretende
“justificar” a referida desafetação com o argumento de que “a área em
espeque terá como destino a venda para aquisição de imóvel adequado à
implantação de projeto habitacional” (anexo II, fl. 61).
Já no relatório desta petição inicial, atentou-se para a redação do
artigo 2º do Projeto de Lei 067/2013 (anexo II, fl.51), enviado à Câmara
Municipal em 22 de julho de 2013, que tem por objeto autorizar o Poder
Executivo Municipal a alienação dos referidos imóveis:
“Art. 2º. O valor arrecadado com a alienação dos imóveis será
utilizado para Programa Habitacional de moradias populares a ser
implementada no Município de Salto do Lontra”.
Ora, assume expressamente, o Poder Executivo Municipal que sua
intenção em relação a tais áreas é aliená-lo para fins outros, que não
aquele que atenda diretamente o interesse público primário. Se é certo que
em casos excepcionalíssimos a Jurisprudência Pátria admite10 a
desinstitucionalização como modalidade especialíssima de desafetação de
bens públicos, exigindo ritos e critérios igualmente particulares, como para
fins de regularização fundiária (que, diga-se, não implica em alienação da
10 (STJ, Recurso Especial n. 448216/SP, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma. Julgado em 14/03/2003)
propriedade pública, mas sim em concessão de direito real de uso aos
particulares hipossuficientes, quando já exista ocupação historicamente
consolidada na área, o que apenas se permite mediante juízo de
proporcionalidade sobre a menor lesão aos bens jurídicos fundamentais em
colisão), de fato não se trata da hipótese no presente caso.
E nem se argumente, como faz o Poder Executivo Municipal de
que “o Município estará afetado na autonomia de planejamento urbano e
desenvolvimento de políticas públicas da habitação” (anexo II, fl. 63). Isto
porque o Município não só pode, como deve, proceder ao planejamento
urbano e desenvolvimento de políticas públicas de habitação, desde que
adequadas ao ordenamento jurídico pátrio, sob pena de controle judicial de
tais atos, o que de maneira alguma viola o princípio da separação dos
poderes (art. 2º, CF/88). Pelo contrário, o respeita, tendo em vista o
sistema dos freios e contrapesos, bem como respeita a inafastabilidade da
jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, CF/88). Segue breve comentário da
doutrina acerca do referido princípio,:
“O modelo clássico de separação de poderes, seja na formulação
de Montesquieu, seja na formulação madisoniana, tem aplicação
mitigada hoje em dia por um primeiro aspecto, que é de
conceberem uma tripartição de poderes, enquanto atualmente se
falam em cinco, seis ou até mais exercendo funções estatais.
(...)
Na verdade, pode-se concluir que o modelo clássico de separação
de poderes, de nítida feição liberal, não dava conta da
complexidade da ordem jurídica e do sistema social, de modo que
hoje é uma função estatal a implementação de direitos
fundamentais de vários matizes, tarefa compartilhada por uma
série de órgãos e mesmo pela sociedade.
Assim, a discussão sobre como e quando implementar direitos
sociais, como meio ambiente, trabalho, moradia e saúde,
componentes de uma nova perspectiva de vida humana, plena em
suas múltiplas dimensões, coloca sob os ombros do Estado, muitas
vezes a tarefa de discutir como atender a tantos anseios em um
quadro de escassez de recursos.
(...)
Uma política pensada no âmbito do Poder Executivo, com análise
em vários de seus Ministérios, pode vir a ser complementada por
alguma legislação editada pelo Parlamento e, ao final, quando
discutida a constitucionalidade do pacote de medidas
governamentais e da legislação que lhe completa, o Judiciário
pode ainda dar sua colaboração, aprimorando o debate, e
afastando alguma das medidas governamentais ou
indicando a forma como executá-la que mais atenda a
direitos fundamentais.
(...) Essa é a nova realidade; esse, o admirável mundo novo
na ordem jurídico-política, da qual não mais se pode
afastar, invocando modelos apriorísticos sem
correspondência com a realidade e deletérios aos próprios
anseios da sociedade.”.11 (grifei e negritei)
Busca ainda, o Município, justificativa no sentido de que “não
houve supressão de área de uso comum, mas sim redimensionamento da
área verde para outro local mais adequado” (anexo II, fl. 61). Tal
compensação seria dada por conta da afetação como área verde dos Lotes
14 da quadra 107 (RGI 07361, Livro nº 2 – AJ, Ficha 1, fl. 16, e planta,
documentos em anexo II, fl. 68/69); 18 da quadra 01; 01 da quadra 02; 02
da quadra 02; 03 da quadra 02; e 04 da quadra 02 (estes constantes do
RGI 09275, Livro 02-AT, Ficha 1, Fl. 075 e planta, documentos em anexo II,
fl. 70/73), todos do patrimônio de Salto do Lontra, conforme Lei 064/2013
(anexo II, fl. 65), publicada em 07 de agosto de 2013.
11 DE PAULA, Daniel Giotti in Ainda Existe Separação de Poderes? A Invasão da Política pelo Direito
no Contexto do Ativismo Judicial e da Judicialização da Política in As Novas Faces do Ativismo
Judicial. 2ª Tiragem. Editora: Juspodium. 2013. p. 307/309
Ocorre que, ainda que fosse possível a compensação, o que
restou afastado, segundo argumentos acima expostos, da mera leitura dos
documentos referentes à “nova área verde”, vislumbra-se não haver real
compensação. Isso porque foram afetados diversos lotes separados (foto
extraída do Google Earth em anexo II, fl. 64). O que antes eram duas áreas
retangulares contíguas, agora estaria “espalhada” pelo bairro em três
“pedaços”. Em primeiro plano, nota-se que a proteção das áreas
institucionais in situ deriva da necessidade de que se proceda a um modelo
de urbanização controlada, sem excessivo adensamento regional. A
desproporção é patente. Vez que sua destinação inamovível, ex vi das
disposições legais, é recepcionar espaços e equipamentos públicos e
comunitários, não basta aferir a equivalência quantitativa de tais lotes sob
permuta, mas, sobretudo, sua adequação qualitativa para o fim propício.
Analogicamente falando, seria trocar um diamante de 1kg por cem de 10g.
Em suma, não resta dúvida que a pretendida desafetação da área
em questão, através de sua transformação de bem de uso comum do povo
em bem dominial, visando sua alienação, viola a Lei 6.766/76, bem como a
Constituição Estadual em seu art. 151, incisos I, IV e VI e a Constituição
Federal em seu art. 24, I, além de ferir o próprio bom senso e a própria
lógica das regras de parcelamento do solo através de loteamento.
III – Da Tutela de Remoção do Ilícito
Como apontado e devidamente demonstrado pela documentação
encartada, constitui ato contrário ao direito, portanto, ilícito, a desafetação
de áreas verdes, tendo em vista serem consideradas bens de uso comum
“intrinsecamente públicos”, nas quais subtrai-se a discricionariedade do
administrador público na sua destinação. Por se tratar, também
demonstrado, de ato administrativo material, referida Lei Municipal é
passível de ter seu objeto reconhecido como ilegal, com a consequente
declaração de nulidade.
A tutela jurisdicional pretendida neste ponto encontra guarida no
próprio direito material, por se tratar de ato que viola normas de proibição,
quais sejam, os artigos 17 e 22 da Lei Federal 6.766/79. Por já ter havido a
violação ao direito, e permanecendo tal violação, surge imperiosa a tutela
jurisdicional de remoção do ilícito. Nesse sentido, são as lições de Luiz
Guilherme Marinoni:
“A legislação processual tem apenas o dever de instituir técnicas
processuais que sejam capazes de viabilizar a obtenção da tutela
do direito prometida pelo direito material. Ou seja, a legislação
processual deve se preocupar com as técnicas processuais – p.
ex., técnicas antecipatória e sentença mandamental – e não com
as tutelas do direito – p. ex., tutela inibitória.
(...)
A exposição didática recomenda acompanhar a trajetória dos atos
de agressão dos direitos. Se a tutela inibitória se destina a impedir
a lesão do direito, o próximo passo na visualização das formas de
tutela deve parar no instante em que um ato viola uma norma,
mas não acarreta um fato danoso.
(...)
É certo que a admissão de uma outra fonte de tutela contra o
ilícito implica superação de um dogma que vem desde o direito
romano. A assimilação entre ilícito e dano é o resultado de um
processo histórico que levou a doutrina a admitir que a tutela
contra o ilícito seria apenas o pagamento do equivalente ao valor
da lesão ou, quando muito, a aceitar que determinados danos
poderiam ser reparados in natura.
Contudo, na dimensão do Estado constitucional, em que avulta o
dever de o Estado proteger os direitos fundamentais mediante a
proibição ou a imposição de condutas, a necessidade de tutela
contra o ilícito exige uma nova postura dogmática voltada a
explicar a necessidade de uma outra forma de tutela,
derivada da existência de normas de natureza protetiva,
características a um Estado ciente do seu dever de
proteção.
(...)
Num Estado preocupado com a proteção dos direitos
fundamentais, o processo civil também deve ser utilizado como
instrumento capaz de garantir a observância das normas de
proteção, para o que a ocorrência de dano não tem importância
alguma.
(...)
Não existindo dano, mas uma simples situação antijurídica, a
tutela jurisdicional deve estabelecer a situação que lhe era
anterior. Daí por que essa forma de proteção do direito constitui
uma tutela jurisdicional de remoção do ilícito, a qual também é
uma tutela específica, na medida em que não se conforma com a
transformação do direito em dinheiro.
A tutela de remoção do ilícito é imprescindível para a
jurisdição dar atuação específica às normas de proteção dos
direitos fundamentais. Alias, sem esta espécie de tutela
jurisdicional, o dever de proteção estatal aos direitos se
tornaria impossível e o direito de proteção normativa dos
direitos fundamentais quase que inútil.”12 (negritei e grifei)
Para tal, é imprescindível a atuação jurisdicional para que cesse o
ilícito, declarando-se a nulidade da Lei Municipal 029/2013, com o retorno
ao status quo ante no que tange à natureza jurídica das áreas objeto deste
processo.
IV – Da Antecipação dos Efeitos Práticos da Tutela
Tutela antecipada, segundo as lições de Leonardo Greco, é:
12 MARINONI, Luiz Guilherme in Teoria Geral do Processo – 6ª ed. rev. – São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2012 – (Curso do processo civil; v. 1), p. 252/254
“Uma decisão interlocutória de mérito que o juiz pode proferir no
próprio processo de conhecimento, a requerimento do autor,
quando houver prova inequívoca e verossimilhança das suas
alegações e, por meio da qual se antecipam provisoriamente os
efeitos da sentença final (CPC, art. 273). A finalidade, na lição
precisa de José Roberto Bedaque, é ‘acelerar a produção de efeitos
práticos do provimento, para abrandar o dano causado pela
demora do processo’”.13
Acelerar a produção dos efeitos práticos do provimento. Ou, nas
palavras de Luiz Guilherme Marinoni, “garantir a frutuosidade da
eventual tutela final do direito ou de impedir que, enquanto essa não é
concedida, possa ser produzido dano”.14
Ou seja, requer-se apenas a antecipação dos efeitos práticos da
tutela requerida, consistente na suspensão dos efeitos da Lei Municipal
029/2013, ora impugnada.
Segundo o artigo 273 do Código de Ritos, no caso da tutela
antecipada de urgência, para que tal medida seja concedida, são
necessários os requisitos da verossimilhança da alegação em conjunto com
o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
O primeiro, verossimilhança da alegação, nada mais é do que do
que o fumus boni iuris, ou seja, a probabilidade da existência do direito.
Nas palavras de Leonardo Greco:
“A verossimilhança da alegação, fundada em prova inequívoca,
nada amis significa, em linguagem exótica, do que o mesmo juízo
13 GRECO, Leonardo in Instituições de Processo Civil, volume II: processo de conhecimento – Rio
de Janeiro: Forense, 20120. p. 401
14 MARINONI, idem, p. 363
de probabilidade da existência do direito (fumus boni iuris), que é
pressuposto das medidas cautelares”.
Ora, no presente caso, por toda a documentação acostada, bem
como pelos entendimentos doutrinários e jurisprudencial transcritos, a
verossimilhança das alegações trazidas se mostra latente.
O segundo, e último requisito, está previsto no inciso I do citado
artigo 273 do CPC, que é o mesmo pressuposto de qualquer medida
cautelar, um juízo firme de que o dano ocorrerá, se a tutela não for
concedida em caráter de urgência, ou seja, o periculum in mora. Acerca
deste requisito, são as lições de Luiz Guilherme Marinoni:
“De outra parte, é preciso considerar que o tempo necessário para
o juiz formar a sua convicção pode obstaculizar a efetiva tutela do
direito material. A antecipação da tutela contra o perigo derivado
da demora do processo objetiva propiciar a efetividade da tutela
preventiva (inibitória), isto é, da tutela que tem por fim evitar a
violação do direito, assim como a efetividade das próprias tutelas
posteriores ao ato contrário ao direito (de remoção do ilícito) e ao
dano (ressarcitória).
(...)
Contudo, a técnica da antecipação fundada em perigo não é
necessária apenas para dar ao juiz oportunidade de apreciar a
ameaça de lesão de modo tempestivo, mas também para permitir
a tempestividade da tutela de remoção do ilícito e até mesmo da
tutela ressarcitória.
(...) A tutela de remoção se volta contra a conduta que viola a
norma, mas não produz dano, sendo imprescindível para atuar o
desejo de proteção da norma violada, qual seja o de evitar a
prática da conduta presumida pela norma como capaz de produzir
dano.”15
15 MARINONI, idem, p. 279/280
Nem se diga ser incabível a concessão de referida medida em
demandas de cunho declaratório, como a presente, visto que, por serem
antecipados apenas os efeitos práticos do provimento jurisdicional
almejado, não há incompatibilidade para tal, como leciona abalizada
doutrina processualista:
“Cabe antecipação de tutela em relação a efeitos de direito
material de pedidos de qualquer natureza (declaratória,
constitutiva ou condenatória), ressalvados certos efeitos que, pela
sua própria natureza, dependem do trânsito em julgado.”16
“Além disso, a antecipação da tutela também é viável nas ações
declaratória e constitutiva.”17
Da mesma forma, resta clara a possibilidade de dano de difícil
reparação, visto que, uma vez que foi aprovada e promulgada Lei Municipal
067/2013 autorizando a alienação dos referidos imóveis através de
leilão, a realização deste ato demandaria gastos de recursos públicos, bem
como ampliação do objeto da presente demanda, a fim de anular-se
referida alienação, havendo, inclusive, necessidade de inclusão no pólo
passivo de eventuais adquirentes.
Ademais, Excelência, vislumbra-se, uma nova, e iminente,
violação à ordem jurídica pátria, eis que o artigo 17, inciso I da Lei
Federal 8.666/93 impõe a concorrência como modalidade de licitação
aplicável à alienação dos bens imóveis da Administração Pública,
excepcionando-a apenas, no que se autoriza o uso da modalidade leilão,
nas hipóteses do §5º do artigo 22 c/c artigo 19, situações não enquadráveis
no presente caso.
16 GRECO, idem, p. 403
17 MARINONI, idem, p. 280
Demonstrou-se, afinal, que está havendo uma ofensa
continuada à ordem jurídica e, nessas hipóteses, a lei permite ao
magistrado a concessão de medida liminar. Assim prevê a Lei da Ação Civil
Pública:
“Art. 12 - Poderá o Juiz conceder mandado liminar, com ou sem
justificação prévia, em decisão sujeita a agravo, [...] para evitar
grave lesão à ordem [...]”.
Tratando-se de um ilícito permanente, isto é, de um ilícito
instalado pelo então Prefeito Municipal e que ainda se encontra em plena
consumação, é imperiosa a atuação emergente do Poder Judiciário para
cessar a sua continuação e resguardar a ordem jurídica.
Antecipando eventual argumentação de não cabimento de tutela
antecipada contra a Fazenda Pública, destaca-se que a Lei 9.494/97, que
aplicou à tutela antecipada as regras da Lei 8.437/92 não o fez em relação
ao artigo 2º deste diploma normativo, do que se conclui pela possibilidade
de concessão de antecipação de tutela, conforme autoriza o artigo 12 da Lei
Federal 7.347/85, bem como o artigo 273, inciso I do Código de Processo
Civil.
Deve-se anotar, portanto, que esta Ação Civil Pública busca a
declaração de nulidade da Lei 029/2013 (lei de efeitos concretos,
conforme demonstrado), resguardando-se o patrimônio público.
Para restabelecer a ordem jurídica (“congelando” o ilícito) e
acautelar o interesse da coletividade, é indicada a antecipação da
suspensão dos efeitos da Lei Municipal 029/2013, e, por via de
consequência, a imposição de não realização ou, se já em trâmite, a
suspensão de quaisquer atos que visem à alienação dos imóveis objetos da
referida lei, sob pena de multa diária, aplicando-se, a esta última hipótese,
se for o caso, o disposto no §7º do artigo 273 do Código de Processo Civil.
V – Dos Pedidos
Ex positis, requer o Ministério Público:
a) seja a presente recebida e autuada;
b) seja o Município notificado para se manifestar dentro do prazo
de 72 (setenta e duas) horas, nos termos do art. 2º da Lei
Federal 8.437/92;
c) liminarmente, seja determinada, até a análise definitiva do
mérito, a suspensão dos efeitos da Lei Municipal 029/2013,
bem como dos atos decorrentes da mesma, em especial, da
anotação/averbação na matrícula dos imóveis referentes aos
Lotes 12 da quadra 04 e 13 da quadra 05, objetos da
matrícula 03368 do Registro Geral do Cartório de Registro de
Imóveis da Comarca de Salto do Lontra/PR, dando conta da
alteração de sua destinação, retornando os imóveis à
categoria de bens de uso comum do povo, afetados como área
verde;
d) em decorrência da decisão concedendo o pedido em “c”, seja
determinado ao Município de Salto do Lontra/PR,
liminarmente, a abstenção, ou, se já em trâmite, a
suspensão, de quaisquer atos que visem a alienação dos
imóveis expostos em “a”, até análise definitiva do mérito da
presente demanda, sob pena de multa diária18, conforme
18 PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO - RECURSO EPECIAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA -
autoriza o §3º do artigo 273 em conjunto com o §4º do artigo
461, todos do Código de Processo Civil, no valor de
R$5.000,00 (cinco mil reais), a ser recolhida em favor do
fundo estadual de reparação dos interesses difusos lesados a
que se refere o art. 13 da lei 7.347/95;
e) seja o requerido citado para integrar o pólo passivo da
relação jurídico-processual, dando-lhe oportunidade para, se
quiser, apresentar resposta ou reconhecer a procedência
do pedido, no prazo legal, sob pena de revelia, devendo
constar do mandado a advertência do artigo 285, segunda
parte, do Código de Processo Civil;
f) no mérito, seja a presente demanda julgada procedente,
para fins de declarar-se a nulidade da Lei Municipal 029/2013
de 03 de maio de 2013, bem como dos atos realizados em
decorrência da mesma, em especial da averbação/anotação na
matrícula (RGI nº 03368) dos imóveis referentes aos Lotes 12
da Quadra 04 e Lote 13 da Quadra 05, retornando os mesmos
à categoria de bens de uso comum do povo, afetados como
área verde;
g) seja comunicado o Serviço de Registro de Imóveis da Comarca
de Salto do Lontra para que proceda às devidas providências
em decorrência da decisão que julgar procedente a presente
demanda;
LOTEAMENTO IRREGULAR - MULTA DIÁRIA COMINATÓRIA - ASTREINTES - APLICABILIDADE
CONTRA A FAZENDA PÚBLICA - POSSIBILIDADE. 1. Inexiste qualquer impedimento quanto a
aplicação da multa diária cominatória, denominada astreintes, contra a Fazenda Pública, por
descumprimento de obrigação de fazer. Inteligência do art. 461 do CPC. Precedentes. 3. Recurso
especial provido. (STJ - REsp: 1360305 RS 2012/0272164-3, Relator: Ministra ELIANA CALMON,
Data de Julgamento: 28/05/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/06/2013)
h) a condenação do réu às custas processuais, honorários
advocatícios e demais verbas de sucumbência, a serem
revertidos em favor do Fundo Especial do Ministério Público
(Lei Estadual n. 12.241/98);
i) a observância do art. 18 da Lei 7.347/85 e do art. 27 do
Código de Processo Civil quanto aos atos processuais
requeridos pelo Ministério Público;
j) a intimação pessoal do Ministério Público para acompanhar
todos os atos praticados no processo civil ora instaurado;
k) produção de todos os meios de prova em direito admitidos, em
especial, prova testemunhal e documental, muito embora, em
princípio, se trate de causa em que está presente a
possibilidade do julgamento antecipado da lide, vez que
se trata de prova eminentemente documental, não havendo
necessidade de prova testemunhal (CPC, art. 330, I, segunda
parte);
Dá-se à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais),
exclusivamente para fins de alçada.
Nestes termos, pede deferimento.
Salto do Lontra, 16 de agosto de 2013
HERIC STILBEN
Promotor de Justiça