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A VONTADE-BICHO

Romance de

Roberto Carlos Costa

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PREFÁCIO

Quando recebi os originais das mãos de Roberto Carlos, nada imaginei além da delicadeza com que deveria me portar ao ter, comigo, um pedaço da sua inteligência. Os trabalhos de direção de uma peça de teatro, prestes a estrear, me fizeram protelar a leitura. Eu não tinha o direito de fazer isso comigo. Como empurrar pra frente um prazer como o que A VONTADE-BICHO me haveria de proporcionar?

Há pessoas que nascem com o maravilhoso privilégio de saber escrever. De ter o dom da estratégia literária em que a arrumação das palavras expõe, fielmente, as idéias concebidas e que só precisam desse pendor para se tornarem consumidas.

Deitei-me numa rede amiga de uma manhã radiante e, despretensiosamente, iniciei a leitura. Cacá, personagem principal, me foi sendo apresentado paulatinamente, na sala ao lado, e seus dramas de um cotidiano sofrido começaram a compor um cenário sentimental, atraente e vibrante. A TV anunciava 5 minutos para a partida de um Grande Prêmio de Fórmula Um, na sala ao lado. Mergulhei na leitura acompanhando Cacá já, agora, ao lado do gato com quem haveria de ter problemas futuros ao necessitar dividir uma escassa refeição. No intuito de matar a fome lançou-se à

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aventura de subtrair da quitanda do gorduchão avermelhado o que lhe fizesse saciar o apetite.

A criada me pôs em mãos o jornal do domingo, cheio de tudo quanto eu gostaria de saber. Fica no chão. A TV anuncia a volta de apresentação dos pilotos E Cacá é quem larga na frente, deixando para trás Schumaker, Hill, Alesi e Barriquello. Segue até encontrar a família chinesa que haveria de lhe dar a mão.

Tudo se desenvolve numa linguagem que corre numa pista plana onde o talento é posto à prova e vence, com facilidade, os obstáculos aparentemente difíceis. A técnica de estruturar esta Novela-Romance ou este Romance-Novela nos transporta dos planos do foi, do que é e do que será, com habilidade de escritor tarimbado. Não há rebuscamentos, sofisticações, poses e tudo caminha dentro de uma convicção de escrita a par de um objetivo de alcance bem definido.

Li tudo, de um fôlego só. O jornal do domingo haveria de ser lido, somente, à tarde e a notícia da vitória de Damon Hill já não me abalaria em nada, pois Cacá era o grande vencedor da manhã.

Prevejo que a trajetória de Roberto Carlos Costa no campo literário é longa e segura. Tem a inspiração e a capacidade de compor adequadas, a par de um estilo próprio e de uma linguagem polida, rica de imagens que, no conjunto, transmitem ao leitor a satisfação que só os que sabem escrever podem conseguir.

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A VONTADE-BICHO é o arauto de um grande autor. Resta que não se gaste na volúpia de produzir e que burile sua sensibilidade, tão bem herdada do pai, Alderico Costa, inesquecível companheiro de palco do Teatro de Amadores de Pernambuco.

Reinaldo de Oliveira

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Sumário

O INSTINTO HUMANO .............................................................. 8

UM DIA DE CÃO ....................................................................... 10

VIDA DE CÃO ............................................................................ 33

A VIDA É FASCINANTE ............................................................ 37

PODERIA SER A CONSCIÊNCIA ............................................. 45

RETORNO À TERRÍVEL REALIDADE ..................................... 51

A CULPA NÃO ERA DELE... ..................................................... 57

O LIMITE DA CONSCIÊNCIA .................................................. 73

O PEDIDO DE UMA FAMÍLIA AMIGA ................................... 84

NÃO PARARIA MAIS DE PENSAR ........................................... 90

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Capítulo um

O INSTINTO HUMANO

Havia uma névoa à frente, como se uma penumbra cobrisse os olhos daquele que passava a viver um percurso de vida diferente. Apenas golpes de consciência guiavam seus passos até ali, onde não sabia como nem quando chegara. Sentia-se fraco, sonolento e seu instinto humano garantia algumas atividades sobreviventes. Fazia-o reconhecer que era gente, precisava de um teto, de se alimentar e de descanso. Aqui e ali, tropegamente, encontrava apoio numa árvore ou poste daquela calçada que não conhecia de lugares que, por mais que olhasse e fustigasse a memória, não o situavam nem orientavam. Aquele instinto humano, sabia, era seu único trunfo, caso quisesse saber de onde vinham aquelas crianças, aquelas grades, o medo... Mal sentia a pele, a respiração se dava com dificuldade e um suor frio molhava até mesmo sua alma.

Maltrapilho, sujo, mal cheiroso e desorientado, estava exposto ao mundo são e insano. Poderia ser confundido com qualquer pessoa ruim, suspeita, moribunda, capaz dos mais hediondos atos, de verdadeiras atrocidades. Era terrível desconhecer o que fazia ali, onde morava, quem era. As pessoas cruzavam seu caminho apressando o passo, esquivando-se, negando o olhar, indignando-se, temendo-o, assustadas. Por

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quê?... Fechava os olhos e era como um apagão completo onde fagulhas iluminavam pontos daquele escuro desconforto. Imagens iam e vinham desconhecidas, desconectadas, involuntariamente, requerendo descomunal esforço para encontrar uma fresta, uma brecha por onde retornar à realidade que, por mais estranha que lhe parecesse, ainda era seu porto seguro. Não tinha vontades, as dores consumiam seu espírito, seus nervos, suas entranhas, tal o desjejum prolongado, a longa caminhada, insônia e stress. Ninguém lhe estendia a mão ou mostrava interesse pelo seu estado, por aquela situação. Estava à deriva, abandonado e sentindo uma grande fraqueza, muito medo, vergonha e desejo de sumir num estalo de dedos, transportar-se para outro lugar qualquer, possuir outro corpo e outra mente. Estava impelido a desistir de tudo, ali mesmo...

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Capítulo dois

UM DIA DE CÃO

Cacá saia do banheiro já bem atrasado, ou, cedo, dependendo do que desejasse fazer. Tinha a toalha cobrindo suas partes, o que incomodava – nem era sua cueca, bem como, não estava nu -, mas, principalmente, porque havia caído na poça de água que o Box do banheiro ausente permitiu formar durante o banho. Teve vontade de tirar a toalha que lhe impunha todos os incômodos possíveis de se imaginar após um banho frio. O subconsciente evitava, através de sinais invisíveis, que suas partes íntimas congelassem, transferindo o sofrimento para os pés que se agarravam ao chão de cerâmica não aquecida. Andava com dificuldade tentando evitar que, ao levantar cada pé, viesse uma nova surpresa desagradável. Eram pés de batráquio, daqueles quarenta e dois ou quarenta e quatro, brancos, candidatos a um joanete quando ficasse mais idoso e com tufos de pelos pretos encaracolados. O calo no calcanhar não incomodava mais, porém, a unha do dedão do pé direito, o que chuta a bola, tinha encravado e estava mais azulada que as outras nove unhas, cinzentas de frio – eram os pensamentos e preocupações que ocupavam Cacá.

Dirigindo-se ao quarto, sentou no tamborete em frente à pequena penteadeira, onde um espelho revelava uma figura que

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ele via todos os dias, toda vez que se olhava. Nivelou a silhueta da cabeça alinhando uma espécie de crina que ali nascera desde pequeno, no limite superior. Não ficou muito satisfeito porque, em que pese tenha conseguido o que queria, percebeu que teria de continuar a higiene do canto de um dos olhos. Lançou-se para perto do espelho com tanta violência que tomou um susto. Esticou o pescoço, arregalou os olhos e tentou puxar a ponta úmida da toalha, não conseguindo, pois, estava presa a ele e seu peso. Não houve jeito. Repetiria a sequência de atos incomuns de todos os dias, desde que mergulhara naquele poço de insanidade. Então, mesmo condenando a si mesmo, impressionado com o impulso de comportar-se assim, riscou o dedo indicador na toalha, não só para limpar a eterna sujeira, bem como, para coçar aquela região, um de seus maiores prazeres na vida que, agora, experimentava. Na sequência, com toda emoção que pôde captar, apertou o sensível dedo sobre aquela pequena crosta amarelada no canto do olho direito e, aos poucos, foi removendo sem esquecer de aproveitar aquela gostosa coceirinha, comum nessas ocasiões. “Ridículo!” - Esbravejava consigo, segundos após a cena incomum. Logo, lembrou que aquilo que obtivera de si próprio, ainda pela manhã, minutos após um demorado banho, chamava-se remela e não hesitou em guardá-la no lugar de hábito, na parte de baixo do forro do móvel. Tateou e, tranquilizado, confirmou que naquele lugar ainda jaziam as remelas anteriores e outros estandartes que vinha colecionando ali, desde que comprara a penteadeira e passara a viver só naquele quarto de aluguel. Olhou em volta, confirmando que estava só, vivendo aquele

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conturbado momento – vida incoerente, no mínimo. Se pudesse ter domínio de si mesmo, se deixaria derreter num choro incontido. Na verdade, não tinha convicção de estar acordado. Aliás, tinha certeza de muito poucas coisas.

Deu sua primeira risada do dia, seja por mera satisfação, ou, rindo de si próprio, ao verificar a enorme fome que sentia naquele momento e não estava certo se poderia saciá-la. Cacá sabia que o problema não era a falta de dinheiro, já que não dispunha mais desse artigo na sua bagagem. Há quase um mês estava naquela pensão que o acolhera como um salvador da pátria, pois, dos oito cômodos existentes, apenas o dele tinha ocupação. O fato é que seu pouco dinheiro acabara na semana anterior. Novamente fome, medo, ansiedade, insegurança, sonho ou realidade, vai e vem de imagens, lapsos de memória, dúvida sobre tudo. Rir ou chorar, tanto faz... Contou doze sequências de um, dois e três, marcando o ritmo dos dedos da mão sobre o peito, conforme fazia há anos – pensava -, para autorizar a si próprio a tirar a toalha que o cobria e, por fim, conseguiu vestir-se após escolher, com critério, a única roupa que tinha. Pelo menos era uma calça jeans bem desbotada e não estava coronha. A camiseta de malha avermelhada ainda guardava um pouco do cheiro do dia anterior e ele ficou satisfeito, mais uma vez. O par de tênis de marca razoável quase chora ao lembrar a hipótese de ser esquecido ali, no chão, embaixo do tamborete do quarto, tendo que ficar olhando a coleção de sujeiras no forro da penteadeira. Mas não. Cacá, num passe de balé, enfiou os dois batráquios dentro daquela beleza sem precisar desatar os

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cadarços que já haviam falecido há meses. No remexido de acomodação final, os grãozinhos de areia das estradas da vida logo assumiram seus lugares entre os dedos que começaram a suar, vingando-se das intempéries do tempo, quando o frio os havia chicoteado. A partir daquele instante, o par de tênis viveria uma grande aventura, como em outros dias recentes, onde o imprevisto é, sempre imprevisto, como um voo cego. De forma que, não tendo domínio sobre sua mente e seu espírito, Cacá deixava-se levar pelo ocaso, aguçando seus sentidos e seus olhos para pequenas coisas e objetos, para um cotidiano antes discreto, agora, digno de toda sua atenção e cuidados. Enquanto não fosse devolvido à vala comum de onde saíra, nem sabe desde quando, precisava apegar-se a tudo que lhe parecesse plausível, ao alcance de si e que não o ameaçasse, não o perseguisse, que apenas permitisse interagir consigo, seus impulsos e seus instintos.

Podemos dizer que já passava das oito horas daquela manhã e não parecia haver forma de evitar o constrangimento de ter que chegar à pequena cozinha, sentir o cheiro do café quentinho, o barulho de ovos estralando na frigideira e não poder devorá-los, mesmo porque, não se come imaginação fértil. Dona Serena, proprietária da pensão, de si própria e da aflição de Cacá, já que ele imaginou pagar pela refeição, estendia no varal do quintal o produto interno bruto da trouxa de roupas e frangalhos que cobriam os esqueletos da pensão. “Aquele infeliz! De hoje não passa!” – Resmungava entre dentes. Enquanto tentava gostar do que fazia, arrastava os tamancos,

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ótimos, de madeira e palha entrelaçada, dando um tom e um ritmo de desprezo a cada movimento de ir à bacia de arear, rodar nos calcanhares e, de braços estendidos, decorar o varal com aqueles trapos. Havia uma semana que lavava a mesma roupa ali, garantindo-se contra uma possível fuga de Cacá, sem pagar e voltar. Aquela parte do quintal era, portanto, a única via de acesso à rua, uma ladeira suja e lodosa, visto que, o sujeito teria de escalar um paredão se quisesse se mandar pelos fundos ou pelos lados. Na pior das hipóteses, queria a oportunidade de dar um verdadeiro escândalo quando seu ilustre hóspede, de cabeça meio baixa, viesse de mansinho contar uma lorota qualquer, a fim de liberar-se da obrigação de pagar a semana dormida.

Cacá, que acabava de deixar para trás seus aposentos, ciente do seu destino faminto, confirmou que ninguém roncava, sibilava ou tomava banho em nenhum dos outros sete cômodos. Sentiu-se bem ao rever as mesmas linhas cavadas no cimento que revestia o piso do corredor da cozinha e da sala comum, onde uma televisão gorda e uma rádio-vitrola respiravam ofegantes. As linhas quadriculavam o piso e ao mesmo tempo, serviam de estrada para uma fila de formigas que iam fazer turismo no forro de uma penteadeira. Indeciso, quase atônito no meio do corredor, entre os quartos, já nem sabia que direção seguir. Refez a respiração, aguçou a visão em busca de sentido e motivo para encontrar-se ali, assim tão em desvantagem diante do mundo e da vida. Cacá, então, confirmou que, saindo do quarto, fechando a porta e começando a andar ao mesmo tempo em que girava sobre seu eixo, daria exatos dez passos e meio até

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a quina do corredor, e, a partir dali, teria de chegar à saleta, logo à frente, esquecido do que fizera e observara durante o trajeto. Se assim não fosse, seria um inferno. Ele retornaria quantas vezes fossem necessárias até concluir a façanha matinal – uma de suas tantas manias recentes. Mas, naquele dia deu tudo bem e era o caso de dar destino à sua vida a partir dali – uma temeridade.

“Bom dia, Dona Serena. Já está se divertindo aí, não é? Vou arranjar uma lavagem de roupa para a senhora, pra ver se acaba esse tédio.” – Disse Cacá, divertindo-se com o jeitão pesado e bruto daquela mulher. “Vá pentear macaco, seu nojento! Será que já não basta limpar tuas sujeiras e ainda tenho que escutar besteiras? Perece que está viçando, seu condenado. Quando é que me paga?” – Respondeu, aos berros, Dona Serena, disposta a não abrir mão do dinheiro que aguardava havia três semanas. Mas, logo, ouviu outra resposta: “Quando tomar café nesse barraco de quinta categoria, ora! Todo cristão tem direito a tomar o café quando se hospeda em algum lugar. Aqui, não! É um miserê das arábias, só reclamação e desaforo! Está pensando o quê?” – Continuou Cacá, à guisa de brincadeira, tentando estabelecer um clima amistoso com ela, sabendo que não vinha cumprindo com os pagamentos prometidos. Ledo engano.

Foi então que a coisa ficou difícil. Um dos tamancos perece que criou asas e atravessou por cima do varal dando cambalhotas, até desmantelar o arranjo de panelas lavadas, em cima da tampa da quartinha no pé da porta de acesso, o que

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provocou uma barulheira daquelas, além do susto. Não fosse a terceira ou a quarta manhã em que isso acontecera, Cacá teria tomado sua segunda tamancada desde que ali chegara. Mas não. Jogou-se para trás, colando na parede e, de riso amarelo e tudo, saiu de fininho por entre um monte de almas coloridas que faziam trapézio no varal. A Veia - como Cacá gostava de lembrar-se dela -, tinha rodeado pelo outro lado, já conhecendo a manha do caboclo – como ela lembrava-se de Cacá. Parou com ele entre as coxas. A pancada foi bonita e Dona Serena teve que experimentar o chão molhado, ao cair de costas. Rodou apoiada nos quadris e nos cabelos do dito cristão que já estava imobilizado, de quatro, pedindo arrego. E já foi ralhando com ele: “Eu já disse pra me respeitar, seu sujeito! Nunca aprendeu isso de onde você saiu, não? Você, comigo, se lasca e ainda vai apanhar muito, entendeu? Trate de trazer a paga ainda hoje porque senão tua vida vai mudar, viu?” – Bradou, em alto e bom som Dona Serena, dedo em riste, convicta de ter dado o recado definitivo.

Cacá conseguiu recompor-se, ainda de pernas meio bambas, regulou a respiração e tateou a cabeça confirmando a existência de algum cabelo ainda. Ficou na dúvida se revidava, se chorava da dor tamanha ou se gargalhava, lembrando as feições da Veia, de olhos injetados, mordendo a língua e agarrada na cabeleira dele, fazendo um vai e vem que parecia um enxaguado de roupa no tanque de lavar roupa. E ainda gritou: “Ichi! Mas deve ser muito bom ter um besta como eu pra lhe esquentar o dia, heim, minha tia? Vai ver que é por isso que

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o seu Totonho não dorme mais com a senhora. Será que foi feito o mesmo com as trouxas dele, heim?” – Provocou Cacá, tomando o caminho da saída, aproveitando a desorientação momentânea dela. “Rasgue daqui, miserável! Só me volte aqui de noite, com meu dinheiro!”

E, assim, ouvindo o barulho da torneira do tanque aberta, Cacá dava as costas preferindo achar graça no tipo de intimidade que uma pessoa como aquela chegava a ter com ele. Logo ele, que fora outro, possuíra tanto, que tivera outra vida. Voltou a coçar a cabeça e teve a impressão de que tocava o juízo. Parecia que um cachorro o tinha mordido naquele lugar. Estava inseguro, como já há alguns dias, hesitante e desorientado, mal sabendo que rumo tomar, o que teria a fazer, até mesmo se retornaria. “Depois eu vejo isso”... – Pensava ele, conseguindo coordenar um pouco as ideias.

Fechou o pequeno portão enferrujado e quase sem utilidade, virou à esquerda descendo a rua, que era uma ladeira de certo modo incômoda e optou por caminhar pelo calçamento. Evitaria batentes na calçada e poderia aproveitar o barulho das passadas no pedregulho entre um escorregão e outro – pensou. Desde que ali chegou, procurara se desconcentrar daquela caminhada diurna, sem tanta pressão, sem medo talvez, como qualquer pessoa normal, mas não conseguira cair ainda – uma espécie de desejo e prazer seu. Curiosamente, isso já era como uma fixação sua. Masoquismo ou não, as coisas não eram fáceis para ele, por aqueles dias. A descida media uns quatrocentos metros até dar com uma avenida de média importância, que

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ajudava a escoar para o centro da cidade as pessoas dali. O bairro era pobre, mas tinha lá seus atrativos. As casas, na sua maioria, eram bem pintadas, ou, mostravam alguma decoração de fachada com azulejos, ladrilhos ou cerâmica de boa qualidade. Aqui e ali, algum morador conseguira levantar um primeiro andar com varanda, um muro mais alto com portão automático, avisando que era humilde, porém competente. Na verdade, a população daquela comunidade não recebia os benefícios equivalentes às suas contribuições para com o poder público. Mesmo as ruas de casas mais humildes mereciam uma pavimentação adequada, reparos em suas praças, abrigos em paradas de ônibus, saneamento básico - que é o básico dos básicos a ser feito, mas... Algumas dessas residências aparentavam cuidados extremos quando bem pintadas e ajardinadas com esmero. Algumas, evidentemente, estando num bairro de população de classe média baixa, tentavam manter-se em pé abrigando suas famílias, até que as coisas melhorassem. Alguns becos na periferia, no entanto, escancaravam a realidade social que teimam em tentar esconder, ou, simplesmente esquecer. Coisa, aliás, comum em todas as médias e grandes cidades do país.

Cacá já havia derrapado até a metade da ladeira e, por intuição, passara para o outro lado da rua, disfarçando sua distração. Enquanto andava, coçando os dedos do pé dentro do fórmula um, procurava não olhar o chão na esperança de topar em uma saliência qualquer, magoando a unha encravada. Mas, na verdade, seu intuito era outro. Meio convicto do sucesso de

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sua empreitada, aguardou, pacientemente, chegar em frente à casa de muro verde, que guardava o pequeno e bravo cão, já seu conhecido. Caso o portão estivesse aberto, aquela pequena fera teria acesso ao exterior do quintal da casa, arremetendo-se em direção a alguém que detestava com todas as suas forças. Continuou olhando para sua direita, pisando forte e, então, sentiu mudar o batimento cardíaco. Teve vontade de tampar as orelhas com o ombro e semi-cerrou os olhos esperando a hora do impacto. Já não respirava com facilidade e inclinou o corpo um pouco, melhorando o apoio. O bólido vinha, sem dúvida, meio por trás e à sua esquerda, riscando o calçamento, tentando cuspir os dentes. Era o vira-lata da casa de muro verde, certamente – confirmou Cacá. Aquela sopa de cachorro de várias raças estava atrás de um momento de glória havia duas semanas, desde que Cacá terminara a garrafa de cachaça nos olhos dele, quando retornara numa certa madrugada, vindo das noites. Depois dali, todo dia era dia de sofrimento para aquele animal que tinha que aturar um assobio, uma pedrada e, em seguida, uma pancada da dona da casa, por achar que ele latia sem motivo e era até meio doido. Mas, finalmente, chegara a hora da prestação de contas, o grande dia. No espírito de Cacá tomava forma a ideia de que haveria o grande encontro e ele também saberia saborear. O choque foi como o esperado, na altura da batata da perna esquerda. O feroz animal chegou com tamanha velocidade que, após agarrar aquela perna, se permitiu girar no ar, sentindo cair embaixo do corpo de Cacá, que já sorria havia alguns segundos. É fácil imaginar que seu peso havia feito uma bela massagem na espinha do canino, e esse,

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com um grunhido de rapariga saiu meio bambo, de gengivas expostas, rabo duro, tentando desalojar o nariz do focinho, também machucado. Cacá achou que fora justo e correto o ataque, maldizendo o fato de ter caído em cima do bicho, terminando tão rapidamente aquela aventura. Levantou-se, abanando-se atrás e os cotovelos e sentiu-se mais leve e um tanto realizado. No entanto, nos minutos seguintes, o sorriso daria lugar ao semblante pesado e assustado. O prazer, misturado a dor, simultaneamente percebidos, sentidos e expressados vasculhavam o interior de sua mente e do seu corpo, às vezes trêmulo. Mas, era preciso extravasar aquilo que o acometia já há um incômodo tempo, a ponto de retirar-lhe o necessário arbítrio e necessário desejo de pedir ajuda. Sobrava-lhe essa vontade estranha. Era preciso dar asas a essa natureza que, à sua revelia, desconectava-o da realidade cotidiana das pessoas comuns, sãs, normais. “Ainda levaria um tempo”... – Sabia bem disso, aquela atormentada figura humana de homem.

O estômago daquele coitado travava uma verdadeira batalha contra a fome, trazendo um gosto amargo na boca que o fazia ter arrepios. Em dias anteriores, quando passava em frente à padaria perto dali, conseguia comprar um único pão e um bolo, conhecido como Souza Leão, uma verdadeira bucha, apesar do bom sabor, que engolia quase inteiro, com um copo de café quente. A partir daquele dia, no entanto, a barra tinha pesado, definitivamente. Por mais que tentasse se distrair com a bruma daquela manhã agradável, onde, nem o sol aberto chegava a incomodar, mais parecendo um aquecedor

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providencial que também iluminava a vida, vinha sempre à mente a realidade. Em clarões, mas vinha. O cristão estava com fome e pronto, ponto final. Já havia chegado à esquina e considerou oportuno decidir, com critério, que direção tomar – que critério?... Parecia que em apenas duas semanas já havia enjoado das duas opções existentes. Passar todo esse tempo tendo que seguir à direita ou à esquerda, era tudo que injuriava aquela figura absorta em pensamentos lógicos e coerentes – como se isso fosse fato. Era justamente o inverso disso. Cacá tentou ser prático e imaginou-se comendo o bolo Souza Leão, café, ou mesmo, sugando uma fruta fresca que nunca comera por ali. Decidiu seguir à direita, por onde passaria pela banca do fruteiro e, caso tivesse sorte, o dono, àquela hora, já haveria armado os tabuleiros na calçada, conforme já vira antes. Com sabedoria, encurtou o passo, se dando tempo para pensar em algo realmente sublime, algo que o levasse a sair daquele estado de fome, mas, que fosse com estilo. Novamente, aquela irresistível vontade descontrolada submergia em seu espírito e no seu corpo por inteiro, fazendo-o praticamente salivar, seja por prazer ou mera inanição. Seu raciocínio acelerava-se, atropelando a ordem e a lógica do pensamento, bem como, alguns atos subsequentes, pouco importando as perdas decorrentes. Iniciou o futuro e iminente projeto tentando recobrar alguma passagem de sua vida que se perecesse com aquele momento. Viu que era difícil encontrar isso dentro da realidade anterior, de sua infância ou adolescência, onde o atual resultado de uma primeira era de vida, momento propício ao sonhar, nada condizia com os planos ali elaborados, ou algum

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ponto de convergência que fosse. Naqueles tempos, o garoto, absolutamente normal, amado e bem tratado, jamais imaginaria um futuro de aventuras e ou masoquismos, com o qual teria que conviver e se apresentava real, agora. Os motivos disso? Nem nos seus piores pesadelos foi possível vislumbrar. Àquela época, a comida estaria sempre à mesa, a roupa lavada, passada e os afagos e broncas corriqueiros de uma família como outra qualquer, aconteciam imperceptivelmente. Nem nos tempos em que pai e mãe disputavam por nada, naquela baixaria das brigas conjugais, nem quando se alojava na casa pobre dos dois primos queridos, meninos como ele, cúmplices das bagunças e de tardes famintas, em momento algum, Cacá encontrava um exemplo que lhe garantisse ou mostrasse o caminho do sucesso, naquela próxima “presepada” – como dizia um amigo seu. Era o peso da maturidade, aparente que o fosse. Não sendo mais um garoto, pagaria algum preço por seus atos. Poderia sair ganhando, é verdade, e era isso que o lançava nessa aventura, mas, no seu íntimo, algo acendia uma luz amarela de atenção, cuidado. Uma voz interior martelava algo como: “Não vale à pena, Cacá. Você já perdeu muito. Mantenha a calma”... Mas, o fato é que não conseguia ter melhor controle sobre si.

Entre a lembrança de sua momentânea situação e a de uma modelo feminina, daquelas de fechar o comércio, quando passa, ele procurava concatenar a razão e a criatividade. Borbulhavam em sua mente vários absurdos, mas, nenhum o excitava, suficientemente. Parou na esquina onde um gato garimpava um lixeiro bem montado. Nunca havia visto um tonel

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de lixo tão bem arrumado e lustroso, parecendo um arranjo floral de alguma corrente artística alternativa. Confirmou a mais ou menos uns duzentos metros dali, a fachada azulejada da quitanda. Só conhecia o imóvel através da janela do ônibus matinal, de dias anteriores e achou diferente. Passou, a partir daquele momento, a experimentar a sensação de ser responsável por um negócio como aquele, como se fosse seu mesmo. Sim, porque fica diferente quando você vê, de dentro de um ônibus ou de um automóvel, a realidade das coisas que dali se observa – entendia ele. De dentro de um veículo em movimento, não se pode comprar os produtos existentes no comércio, nem ouvir o que lá dentro é conversado. Também, não é possível utilizar ou consumir o produto que não pode ser adquirido, nem saber dos problemas que dono e funcionários vivem, já que não se ouvem as conversas. Porém, a gente sempre acha que o lugar dali observado é tão nosso quanto o veículo que nos conduz... – Assim, ia funcionando a mente de Cacá, aos solavancos, coordenando ideias incomuns, provocando imagens recheadas de falsos e desnecessários jogos psicológicos, golpes de afetividade e desejo desencontrados da realidade cotidiana. Naquela posição, Cacá sentia o fato de que poderia passar em frente à frutaria, olhar para dentro, certificar-se de que outros fregueses distraíam o dono e o balconista, escolhendo queijos e legumes e, numa fração de segundos, agarrar uma ou duas maçãs, que seriam devoradas num lugar tranquilo. Mas, não. A coisa teria, sem dúvida, um enredo mais bem estruturado. O gosto amargo na boca empastada pedia vingança, no mínimo, uma reparação moral e material pelo que vinha sofrendo. Mas, a

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palavra mais próxima da verdade que sentia era vingança. Como era de seu desejo, inclusive: teria um final sublime...

Cacá olhou em volta. Só viu o vulto de carrões, motos e ônibus passando para um lado e para o outro, encostou-se no poste e olhou para cima, onde havia uma placa de trânsito indicando ser possível virar à direita e arrependeu-se de não ser um carro que pudesse virar naquele sentido, porém, sem rumo definido. Era como se rumo e destino fossem as mesmas coisas. Transpirava bastante, além do normal extremamente excitado com a situação. Enfiou a mão no bolso e colheu um charo de maconha confeccionado na noite anterior – presente da última aventura sexual, dias antes. Alisou o vegetal desenrugando o papel, conforme ensinou a garota, e pendurou-o entre os lábios. No bolso esquerdo, encontrou dois palitos de fósforos e uma caixa destruída para não fazer volume. Sabia que estava em perigo. Confirmou que ninguém se dava conta daquele momento de deleite e pôs-se a acender a droga entre uma baforada e outra. O sinal da labareda na ponta do objeto avisou a hora de tragar profundamente, prendendo o ímpeto de aspirar e da tosse. Uma, duas e três vezes, foram o suficiente para achar que estava mais tranquilo e reabastecido, ato que foi interrompido pela dor lancinante do fósforo aceso queimando os dedos. Sacudiu o carvão fora e, depois de tentar separar a mão do braço entre sacolejos, percebeu que espremera demais o cigarro com a boca, babando o suficiente para interromper a evolução da brasa e deixá-la cair no chão. Escorou-se no poste, abriu mais as pernas para não cair e curvou-se para apanhar a metade do baseado

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descartado. O susto foi grande, quando o gato amarelado que encerrava o garimpo naquela hora, se pendurava por dentro do tonel, querendo sair e deparou com aquela cena à sua cena. O bichano recuou e, do fundo do tonel, tomou novo impulso, trepando na beirada fina, tentando encravar as unhas na lata. Ali, estava Cacá apanhando o bico no chão, olhando para frente, vendo o bicho olhar para ele esquisito e dando pequenas risadas silenciosas, como quem diz: “Eu já tomei o café da manhã. Não vem, não!” Considerou as observações do gato coerentes e oportunas, levantou o resto do fumo e, amassando a ponta, voltou a guardar no bolso. Cheirou as pontas dos dedos aproveitando o aroma que perdera com a brisa que corria frouxa, àquela hora. “Muito bem. Agora, podemos falar com os bichos. Era só o que me faltava.” – Percebia, assim, os efeitos incríveis daquela droga que lhe haviam receitado. Tentava lembrar o que estava fazendo ali, sem muito sucesso. Sabia, apenas, que conseguia manter-se em pé. No entanto, a droga havia amenizado, momentaneamente, o sentimento de medo e insegurança de sempre. Na verdade, deixou-o um tanto atrevido.

A árvore do lado de dentro do muro que escondia o tonel de lixo era uma gameleira grande e frondosa, portanto, muito bonita. Aqueles longos cipós flexíveis que decaíam dos galhos mais robustos, quase se entrelaçando, chamaram-lhe a atenção e ele resolveu arrancar um deles. Apoiou-se no muro com a barriga, agarrou um dos cipós maiores, enrolou0o na mão e deixou-se cair para trás, o que fez o cipó rebentar, bem lá próximo à junção com o forte galho. O gato, que abandonara o

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tonel, achou aquele movimento gracioso e tomou amizade pelo desastrado. Quando esse chegara no chão examinando o que tinha nas mãos, sentiu o movimento enamorado do felino se enlameando por entre suas pernas, com um rosnado-gemido tirado da sem-vergonhice. Aquele esforço adicional potencializou o efeito da erva fumada. Entre o princípio de uma dor de cabeça, do leve enjôo e uma sudorese gelada e daquelas, Cacá conseguiu lembrar o que havia feito, o que fazia ali e o quanto estava por fazer. Conforme previra, antes de dar aquelas tragadas, a vida ficou mais branda, o dinheiro, pouco importante e, a fome, passou a ser um prêmio. No entanto, mal sintetizava uma conclusão como essa e, logo, era imediatamente assolado por verdadeiras erupções mentais, carregadas de fobias, ansiedades e de vontade de chorar e sorrir ao mesmo tempo. Eram frações de segundo, é verdade, mas, impunham-lhe uma sensação de sofrimento e torpor indesejáveis, no mínimo.

Precisava, agora, dar continuidade ao seu intento. Recalculou sua distância até a quitanda que, achou, havia se aproximado dele. Com a ponta do cipó de dois metros confeccionou uma coleira daquelas que passam por entre as patas dianteiras, cruzando no peito e se amarram no lombo do animal. Enroscou a outra extremidade na mão esquerda e começou a aproximar-se daquele paraíso, onde poderia, finalmente, realizar o que parecia ser um velho sonho. O pequeno animal, já sentindo-se parte daquela aventura inusitada, controlava a entrada e saída de ar dos pulmões apertados pelo nó-cego dado pelo domador pouco experiente, que saiu andando

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na frente com o passo desencontrado. Mal subiu a calçada da outra esquina, o pequeno leão que ainda refazia-se do puxão inicial, confundiu-se com as pernas de Cacá e levou o primeiro pisão. Pulou para o lado e deixou transparecer sua intenção de ficar grudado no cimento da calçada. Cacá olhou para trás, estranhando o peso elevado que representava conduzir o bichano, não lembrou ter visto gato com unhas tão proeminentes e tão, como aquele deixava transparecer. O novo puxão permitiu desenhar finos trilhos riscados no cimento da calçada, provocando arrepios a quem observasse aquela cena. Era uma sensação semelhante a de quem ouve uma tampinha de garrafa sendo arrastada numa parede de azulejos – uma das manias de Cacá. Ato contínuo, o animal deu-se por vencido e, guardando alguma distância, conseguiu acompanhar o dono da coleira de cipó de gameleira. Cacá, que naquelas condições estava longe de reconhecer qualquer anormalidade em seus atos, sentiu a boca enxaguar-se de saliva – verdadeira vontade-bicho, ímpeto animalesco diante do prazer primitivo, de possibilidade de sobrevivência. O sabor do futuro alimento, mas, principalmente, a cara do comerciante diante do que estava por acontecer, era motivo do mais estonteante deleite. Orgulho não lhe faltaria quando pudesse lembrar-se do se propunha a fazer. O porque disso, quem poderia saber? Ofegante, continuava suando frio. Faltavam uns vinte metros para alcançar a quitanda que parecia uma obra cinematográfica. Os tabuleiros de madeira pintados a óleo, na mesma cor da fachada, ostentavam cachos de uvas verdes e graúdas, por entre maçãs, peras, caquis e uma pequena quantidade de acerolas. Eram dois, ocupando cada lado da

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entrada do estabelecimento e, passando entre eles tinha-se acesso à parte visível de um lugar escurecido. Cacá estava sentindo as pernas fraquejando, geladas e achou que era conseqüência da emoção e ansiedade que começa a sentir e só aumentava. Retesou o corpo procurando uma postura mais elegante, garantindo o efeito surpresa que desejava. Não se sentiu muito convicto de suas pretensões, pois, sabia que ninguém elegante puxa um gato preso a uma coleira, por aí afora. Era o de menos. Viu entrar um casal de idosos, imaginou-se dormindo com aquela velhinha, depois com o velhinho e, por fim, com os dois. Não conseguiu imaginar que consistência teria as remelas daqueles dois. Tudo indicava que, por falta de atividade, qualquer substância saída daqueles olhos enfadados, ou, de cada nariz enrugado, se apresentaria, no mínimo, incrustada nas mucosas, como cimento seco. “Pensamento vil, esse meu. Não sou assim, pelo menos não desse jeito... Que coisa!” – Puniu-se, prontamente, Cacá. Voltou a concentrar-se nas frutas percebendo a aproximação de alguém que vinha de dentro, talvez, para atender o casal que chegava. O senhor gordo, de bigodão informou aos fregueses que as frutas eram frescas e estavam à venda por bom preço. O quitandeiro carrancudo, com cara de quem dormiu abraçado a duas garrafas de conhaque, aproveitou para lançar uma olhada para um lado e outro da calçada, esfregando as mãos numa estopa que considerava uma toalha. Percebeu o tipo que se aproximava, achou-o maluco e procurou reconhecer sinais de vida no gato que trazia, com aparência de cotia risonha. De fato, o animalzinho já se acostumara com certa deformação de seu

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esqueleto. Ao ver o viking retornar ao interior da quitanda, Cacá preferiu não aguardar mais e, num lance de aproximação final, adentrou no ambiente escurecido, examinando o estabelecimento. Fez pose de inglês rico e tradicional, o melhor da aristocracia, segurou a coleira com estilo e fixou o olhar no canto superior da loja. Agarrou uma das maçãs e alojou entre os dentes amarelados, que arrebentaram um terço da fruta. Mastigou um pouco sentindo escorrer o caldo de maçã e saliva abundante nos cantos da boca. Sentiu faltar a respiração e, ao tentar suprir os pulmões, esses também tiveram que comer o bagaço da fruta. O golpe de tosse foi tal que chamou a atenção de atendentes, clientes e do dono do estabelecimento que se desconfiavam no balcão oleoso. O viking, percebendo a ousadia do visitante, começou a deslocar-se por trás do balcão, fato que incentivou outra mordida na maçã, cujo resto foi jogado nos pés do gatuno. Cacá, novamente, esticou o braço e apanhou uma pera maduríssima que, de imediato, foi destruída por aquelas mandíbulas cansadas. Dessa vez chegou a molhar a camisa entre mordidas, sugados e engolidos ásperos, que continham a tosse não saciada.

Estava ali, de novo, o animal em forma de gente. Um lado de sua consciência pedia que deixasse aquele lugar, o quanto antes, diante do perigo iminente. Perigo de perder o mínimo que ainda lhe restava – sua liberdade -, a condição de homem livre, doente, mas, livre ainda. Outro lado da mente afrouxava a rédeas, fustigava o que de mais primitivo habita na natureza humana: seu instinto e seu espírito. Perfeita alma inquieta em

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busca de sustento, de água, de alimento..., de afeto, carinho, compreensão, calor humano...

Um dos atendentes, prevendo a confusão, procurou acalmar o patrão. “Calma seu Moraes. Isso deve ser um louco!” O comerciante ouviu e agradeceu, por um instante, a chamada à realidade, mas, aproximando-se, devagar, procurava compreender como e porque aquilo acontecia. Iniciara aquele pequeno, mas, profícuo negócio há quinze anos, quando ali chegara. Já havia visto muita coisa esquisita na vida, no cinema, na televisão, em fim, mas, aquilo?! Voltou o olhar para os fregueses estarrecidos e, numa espécie de momento de indecisão, limpou o suor frio que escorria pelo rosto. Viu o aparelho telefônico e se imaginou totalmente idiota, contando à polícia o que estava acontecendo. Sinceramente, desejou que o visitante fosse um ladrão barato roubando o saldo de caixa do dia anterior. Preferiu que um pedinte esfomeado, bêbado e maltrapilho, dando discurso político, estivesse convencendo-o a doar um pacote de frutas. Sonhou com a presença de um embriagado total achando-se dono da quitanda e planejando reformas na arquitetura interna daquele lugar. O fato é que, enquanto aproximava-sede Cacá, não conseguia entender como um rapaz, até bem aparentado, conseguia devorar tantas frutas, segurando um gato risonho, com a braguilha das calças aberta, membro exposto e olhar fixo no canto superior de sua quitanda, em plena luz do dia.

O gordão de bigodudo tomou forma e cor na sua frente. Aquela tez avermelhada e pálida ao mês o tempo parecia que

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iria desabar em cima dele. Os fregueses e balconistas não sabiam se concluíam suas compras ou tomavam partido na cena ríspida com aquele estranho. Gostariam de uma satisfação pelo que acabaram de, indevidamente, presenciar, mas, também sentiam, honestamente, que haviam ganhado o dia pelo fato de terem dado entrada naquele lugar, em tempos tão difíceis, de poucos motivos para rir. Era algo diferente, inesperado e, acima de tudo, gratuito, o que acabavam de ver. Cacá não se fez de rogado. Sem olhar fixamente para nenhum dos presentes, desarrumou um pouco a postura, sem perdê-la, sacudiu fora o resto de uma pêra destruída e, entre eructações gástricas e suspiros densos, pôs-se em retirada. O bichano, ainda em poder do imprevisível domador, entre passadas velozes e entre pulos, tentava entender seus sinais. E, arremete-se à frente como que puxando o comilão para fora daquele ambiente. Não fosse essa iniciativa, o puxão dado por Cacá teria contorcido comprometedoramente o animalzinho, em plena fase de aprendizado. Viraram à direita e puderam pisar uma calçada de tipo diferente, onde -pequenos pedaços de mármore não polidos, nem nivelados, olhavam asquerosos certo par de tênis, nesse momento, devidamente alimentado. A uns duzentos metros naquele sentido, poderiam chegar a um cruzamento movimentado, e por isso, preferiram entrar à direita, novamente, na esquina anterior, onde não havia placa indicativa de trânsito. “Pronto. O gato, agora, fala e sabe escolher direita ou esquerda. Aonde isso vai parar, meu Deus?”- Falou em voz alta, a fim de se reconhecer dono da situação, ao menos. Cacá desejou que, caso fosse um automóvel entrando ali, desse de cara com algum

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caminhão trafegando corretamente, na sua mão única, em sentido contrário. Estranhou pensar assim naquele momento. Afinal, chegou a urdir e desejar sua própria destruição. Assim, perdeu um pouco sua auto-confiança. Vasculhou a mente procurando um motivo que justificasse um sentimento que doía tanto quanto a dor da fome que sentira ali, até poucos instantes atrás. Era difícil ter paz e conviver com tantos altos e baixos... Precisava reunir forças para continuar...

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Capítulo três

VIDA DE CÃO

Era inevitável ter de reconhecer que entrara no costumeiro processo depressivo que sempre se apresentava após saciar aqueles ímpetos de loucura compreensiva, dos quais se lembrava a cada intervalo de seu tempo. Por que não conseguia controlar aquela coisa, ou melhor, coisas que percebia fazer, fora dos padrões, descabidamente? Qual o motivo que levava uma pessoa a comportar-se tão inconsequentemente, diante de situações que outros, a princípio, conseguem tirar de letra, sem estranhamento, medo, ansiedade? Não era nenhuma novidade para aquele conturbado ser que reações mais comuns, mais enquadradas nos conceitos que lhe pregaram, eram possíveis. Tais certezas nunca abandonaram sua mente, apesar dos frequentes lapsos de memória, nos últimos tempos. As conversar de bar, os noticiários de jornal e TV, os poucos livros e revistas que lera, apontavam, frequentemente, definições lógicas para cada comportamento. Sabia reconhecer que, se precisava evitar a nudez, consequentemente, teria de adquirir vestes, que custam dinheiro. Se quisesse se locomover de ônibus ou de táxi, ao final do trajeto, teria de pagar e assim por diante. Nunca lhe faltou consciência de que um conjunto de atitudes prioritárias como, estudar, se preparar tecnicamente, trabalhar e administrar seus

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ganhos, garantiriam a obtenção de tudo que, comedidamente, desejasse ou necessitasse. Também, conseguia compreender que, por vezes, a lógica inexiste e dificuldades inesperadas aparecem pelo caminho, apesar de um suporte de vida dentro dos padrões de comportamento conhecidos como corretos e sensatos. Ainda, admitia que as pessoas teem uma espécie de direito internacional de não dar satisfação de seus atos, até certos limites. O que parecia não assimilar bem era onde demarcar tais limites, agora, principalmente. Sempre que desejava fixá-los em algum ponto, curiosamente, sentia vontade de rir, uma alegria sem causa definida e a pressuposta linha de limite começava a ondular-se, sem nexo algum. Ela se colocava à sua frente, quando fechava os olhos. O que estava acima da linha começava a se desarrumar, o que estava abaixo se misturava entre cores e brilhos, até que as duas pontas dessa linha pareciam coçar suas orelhas, próximo ao limite de sua visão. Com o que não conseguia identificar atrás de si, de sua mente, via de regra, Cacá era cruel. Pois, nesses casos, dava dois passos à frente e o que ali estivesse se ocuparia da confusão que ele criara com aquela linha. Eis sua tentativa de compreender um estado de loucura, talvez, o seu próprio estado. Era o que se podia exigir de sua mente confusa, do corpo cansado, do espírito abatido.

Ia chegando ao final da rua, após uns duzentos metros de caminhada sem que nada lhe chamasse a atenção, a não ser pelo fato de existir. Dobrou à esquerda, entre pisões e risadas felinas, avistando uma praça que parecia importante, dispondo de

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abundante sombreamento entre árvores e arbustos que venceram na vida. Um banco de granito amarelado puxou-os para ele e Cacá, sem reclamar, fez pose e sentou. Lembrou do banho que tomou logo ao acordar e tentou comparar o frio que sentira àquela hora com o que o encosto do banco provocava nas suas costas. Sem chegar à conclusão convincente, arregaçou a camisa até o peito e voltou a se encostar... Passaram-se bons dez minutos, até que se deu conta que existia, como à instantes atrás. Seus olhos ardiam irremediavelmente. Cacá espreguiçou-se, ouviu um estalo ao afastar-se do encosto do banco e entendeu que a unha encravada estava adormecendo o dedão do pé. Tentou imaginar o que estaria fazendo a dona da pensão, o cachorro da casa de muro verde e a turba da quitanda. Suspirou com satisfação e mirou o pequeno bichano que balançava o rabo como um fio de alta tensão, com a ponta numa poça de água. Sem muito raciocínio, desatou a amarração da coleira e procurou esquecer aquele com quem, logo, teria que dividir a próxima refeição. O forte suspiro desalojou algo dentro do seu nariz. Cacá enfiou o dedo fura-bolo e laçou o molusco com a unha proeminente. Com movimentos giratórios, dedo contra dedo, apertando o espécime, limpou alguma sujeira existente nos dedos e o bólido passou a ser propriedade daquele banco, pois fora alojado na beirada do assento....

Finalmente, deixou-se relaxar enquanto estranhava os tipos que passam pra lá e pra cá, em busca sabe-se lá do que, dirigindo-se para tantos lugares quanto é vária a vida. Não conseguindo concentrar-se em nada, especificamente, até

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mesmo esquecendo a si, deixou-se embalar pela curiosidade aleatória do olhar. E, a praça em que se encontrava, era um prato feito para quem quer ser esquecido ao mesmo tempo em que se diverte com a paisagem, a loucura do tráfego em volta, os pássaros e as manias dos transeuntes. No entanto, a paz desejada, a felicidade almejada, a sensação de um espírito seguro de si e da força das convicções, isso ainda não podia dispor. Continuava perdendo parte da memória durante a maior parte do tempo, doía seu corpo tamanho o stress inconsciente vivido e o medo, o riso e o choro incontido estavam ao seu lado. Ora um, ora outro, acompanhavam-no aonde fosse, durante dia e noite, permeados por instantes da mais pura e genuína felicidade. Mas, esses eram tão rápidos e indefiníveis, tão desejados, mas, tão difíceis de serem apalpados, dominados. Iam e vinham sem avisar, atropelando outros processos mentais, estado de espírito diverso, em fim. Deixavam, contudo, a sensação, quase uma convicção, de que a vida poderia ser diferente, que viver não se resumia apenas àquilo, naquele momento. Acima de tudo, deixava um halo de esperança, mas, mesmo essa, era de difícil manutenção diante de tão atordoado corpo e espírito.

A despeito de tantas opções de passar o tempo, uma começava a provocar-lhe incômoda agitação e mau humor. Precisava encontrar o caminho de volta à pensão, com tudo quanto isso implicava no quesito segurança. Mas, tudo tem jeito – pensou Cacá -, e ali ficou até perto do fim da manhã...

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Capítulo quatro

A VIDA É FASCINANTE

Era difícil para ele acreditar que ali estivesse, sentindo aquele cheirinho de mofo misturado com o raro aroma da hortelã, que se equilibrava na vida naquele estreito canteiro no oitão ao lado de sua janela. Chegara sem ser notado, mesmo por que, não havia ninguém na pensão. Dona Serena devia ter ido comprar suprimentos para si mesma, até que recebesse algum dinheiro. Refletiu sobre aquela manhã que vivera conforme não previra e aproveitara conforme suas possibilidades – era justo. Zangou-se ao não poder ouvir as vinhetas da televisão que sempre funcionava em volume alto, na casa do vizinho. Ficou, assim, deitado no semi-leito, procurando não lembrar-se de nada, até que começou a sibilar. Entre um e outro apagar de vida, percebia que não dormia definitivamente e pôs-se a brincar com o próprio sono. Aqui e ali, roçava o dedão do pé no vizinho provocando uma dor cansada que o ajudava a relaxar. Considerava importante, também, suportar a falta de ar que lhe vinha, pois, estava já há algum tempo prostrado na posição dorsal, coisa que não tinha como hábito. Assim, sempre que faltava fôlego, Cacá achava que chegara próximo à morte e dominava a situação com um puxão de ar semi-voluntário. Divertindo-se? Talvez. Reagiu aquele estado de dormência ou

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demência, achando-se capaz de se resolver a partir daquele momento, apagando qualquer má impressão de si próprio e dormiu.

Já passava das quatro horas da tarde e muito já havia acontecido na irrealidade dos sonhos de Cacá Pereira. Naquela tarde, ele sonhou que acordara e dormira em seguida, e, acordara sonhando com o que só se vê sonhando. Antes de abrir os olhos e reconhecer a irrealidade de se achar acordado, teve que experimentar um doloroso período de transição entre o sono e o acordar, a partir de uma vassourada que Dona Serena desferiu em seus joelhos. A primeira pancada desmantelou o sono, a segunda doeu como tudo e, a terceira, colocou Cacá na espera da quarta. Durante esse período de tempo, a luz, a dor, a raiva, a compreensão, o escuro e o raciocínio se misturaram na velocidade possível, parindo um estado de êxtase que pouquíssimas vezes experimentou. Com tudo isso, reacendeu em seu espírito uma conhecida vontade, tirada de algum lugar recôndito de sua alma inquieta e um tanto irresponsável. Veio a excitação e salivação abundante junto a uma coragem, um destemor e uma vibração estimulantes. Tudo isso precisava ser extravasado, expelido da mente e do corpo e não havia protelar. Então, o inesperado aconteceu quando, num contorcido habitual, Cacá conseguiu desabotoar a calça e, com os polegares nos quadris, deslizou-os até os joelhos comprometidos, deixando a genitália à mostra. Dona Serena parou sobressaltada com o que viu à procura de explicações para aquela cena inusitada. Assim, concluiu Cacá, até que tivesse que reconhecer seu equívoco,

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pois, estava sentindo a dor lancinante da quarta vassourada que, não se sabe por que atingiu mais o chão do que a ele. Depois do pulo que deu da cama, colocou a respiração no mesmo ritmo das bravatas de Dona Serena e começou a pisar o chão no mesmo balanço(compasso) da vassoura que, de vez em quando, chegava próxima à sua cabeça. Com mais meia hora, ele estava na calçada livre dela e esquecido de comer qualquer coisa.

Sentou à beira da calçada e comparou a subida com a descida, não reconhecendo diferença marcante entre uma e outra. Ali, absorto, tentou imaginar outra pessoa passando pelas mesmas intempéries que provara e gozou com o resultado. Por outro lado, renegou o fato de o cachorro da casa de muro verde não poder dormir naquela cama à mesma hora. Mas... Passou pela sua cabeça a possibilidade de outras pessoas, à sua semelhança, conhecerem aquelas formas de prazer. Sim, porque foram, são e serão milhares de homens, mulheres e crianças nesse mundo que, achava, davam abrigo a tais sensações. Todos com necessidades, obrigações semelhantes, período de vida e dificuldades comuns. Por que não haveria outros cuja personalidade, expectativas e sensibilidade fossem as mesmas que as suas. Era, no mínimo, uma forma de não sentir-se tão só.

O fascínio por outra aventura inédita começou a desenhar-se na mente e a tomar seu corpo por inteiro. Percebeu certa sensação de alívio, talvez inconsciente, por compartilhar aquele seu mundo particular com outra pessoa ou várias. Nesse caso, evitaria alguns momentos auto-depressivos decorrentes da consciência de ser diferente, vez por outra. Afinal, isso doía

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mais do que se imagina. Sim, Cacá Pereira precisava se lançar nesse trabalho. Localizar amigos, garotas, em fim, pessoas que entendessem sua forma de ver e sentir as coisas, tal qual um músico reconhece o outro, um sábio reconhece a virtude, etc. Isso exigia pensar bastante por onde começar, mas, preferiu romper a inércia, saindo ao léu, mais uma vez sem destino definido, jogando por terra o halo de conexão com a realidade que acabava de provar. Considerou que erguera a ladeira com os braços e mudara de posição. Queria seguir aquela direção, porém, no sentido contrário, o que permitiria sentir o cão da casa de muro verde... Ao virar a posição da rua, percebeu que algo estava sem nexo, pois, ao invés de subir, coisa que almejara, estava descendo e não sentia fome, nem esperava uma sensação estimulante se projetando por trás dele, cuspindo os dentes, em alta velocidade. Saiu por ali afora, ainda sem definição de como proceder ao primeiro contato. Lembrou-se de que há muito tempo não conversava com alguém. Não conseguiu definir o porquê desse fato, mas imaginou que os motivos eram os mesmos que o levaram a tantas atitudes e emoções desvairadas. Uma coisa parecia certa: queria gente, convivência, afago – estava muito sozinho.

Sua percepção de coisas como, seus antigos afazeres no colégio, o tipo de diálogo que tinha com a família em certos momentos, as partidas sofridas e gloriosas de futebol a que assistia, em fim, fatos corriqueiros que vivera, era sempre muito tumultuada. Cacá não conseguia obter um resultado satisfatório de qualquer análise sobre tais fatos. Sempre haveria uma dúvida

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sobre se fora correto ou errado, bom ou ruim, cedo ou tarde. Normalmente, no ato de decifrar esses enigmas, a solução se misturava com pensamentos exóticos que contracenavam com sensações alheias à sua expectativa. Ele não podia deixar essa realidade atrapalhar seus próximos objetivos. Não conseguira sentir-se seguro, coisa que quase desconhecia, mesmo porquê, tentava, naquele momento, reagir à forma de se levar sem rumo, motivo e definição de vida. Achou-se mais estranho que de costume, pensando com relativa clareza e gostou de saber que nada valeria à pena. Seu caso, possivelmente não tinha solução. Com esforço procurou adivinhar quais os benefícios que adviriam se mudasse para o lado daquele tipo de gente que lhe passava aos olhos. Os homens e mulheres, ditos normais, posicionados e contidos num código de comportamento que tanto o incomodava, poderiam, se ele assim o quisesse, ser considerados delinquentes, desajustados e muito estranhos.

Olhou para cima, distendendo a pele do pescoço, vendo uma mancha azul no céu - uma surpresa, como se tivesse tido outra cor, algum dia. Não havia pássaros voando, nem aviões, apenas algumas poucas nuvens que não formavam nenhuma figura conhecida – uma pena. Levantou-se, fechou os olhos e rodopiou até se perder. Queria tomar destino, involuntariamente, portanto, começando a andar, ainda de olhos cerrados. Preferiu achar que não havia, ali, nenhuma ladeira e sentiu-se caminhando numa via plana – nada mal. Segundos depois, entrou pela porta da frente – gratuitamente – de um ônibus que poderia conduzi-lo a algum lugar aprazível. Algum tempo

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depois, percebeu que se afastava da cidade. Começou a se preocupar com o primeiro contato, o encontro inicial. Como seria aquela futura desconhecida, aquela gata, namorada, esposa, ex-esposa, mãe, tia, prima, ou, tudo ao mesmo tempo, dele ou não? Olhando pela janela do ônibus viu passar feiras, casario, indústrias e prédios abandonados. Percebeu cidadãos entrando em carros novos e as mãos com cinco grandes dedos estendidos dos pivetes pedintes, ouvindo, desolados, o barulho d ignição e um NÃO! Já tão gasto. Continuou com o rosto colado na janela. O que via era uma sequência interminável de imóveis residenciais e comerciais. As atividades dali eram domínio de alguns e desejo de outros que não se compreendiam e pareciam não tentar reverter isso. Sentiu um leve calafrio ao lembrar, sem acreditar, que o motor daquele ônibus pudesse movimentar tanto peso a tal velocidade. Quem inventara aquilo? No ponto em que desceu, havia uma escola profissionalizante, vizinha a uma pequena praça que beirava um açude, com tudo para ser belíssimo não fosse o descaso da administração pública. Ele próprio não sabia se o era, mas gostou do lugar. Tentou respirar melhor sentindo uma esquisita sensação de frieza no suor que secava com a brisa agradável. Deduziu que não era uma escola para crianças, pois, não havia a algazarra costumeira da meninada. Decidido, aproximou-se de pipoqueiro que cozinhava como quem soltava fogos na calçada da praça. Deixou-se levar até reconhecer o gosto oleoso da manteiga derretida. Havia entornado aquela garrafa com tal violência que quase cai para trás. Considerou o pipoqueiro um sujeito sensato e afastou-se mastigando o punhado de pipocas que havia apanhado de um só

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golpe. Pela ousadia, esperou uma pedrada por trás, ou coisa assim, mas não veio. Ficou desapontado. Cacá afastou-se dali, aos poucos, sem saber ao certo para onde olhar, esperando o que quer fosse acontecer. Sua mente vacilava como nunca, a sensação de friagem aumentava e sua respiração era irregular.

O açude não tinha águas muito claras, porém, guardava um sem número de dotes de beleza que convidava qualquer um que se aproximasse. O seu desenho, meio entrecortado, garantia uma dimensão suficiente. Na parte menos explorada de suas margens, bem à frente de Cacá, era possível apreciar uma vegetação mais densa que emergia de dentro d’água. Havia também, daquele lado uma mata fechada, parecendo pouco tocada, que sombreava virtuosamente parte do açude – relíquia da natureza. Algumas baronesas floreavam e vestiam aquela nudez, permitindo que outros aspectos fossem notados, como diferentes tons de verde, reflexos, sinais de um recanto de natureza saudável. Sentiu-se um leve momento de calmaria e silêncio. Ali existiam, unidos, Cacá, sua demência e a cor cinza azulada do que podia ver. Ele já havia sentadona relva, escorado no tronco de uma árvore derrubada, com as duas mãos na cabeça, segurando-a, evitando que explodisse. Em poucos segundos foi invadido por um leque de estranhas sensações, inclusive, o choro detido pelo nó na garganta que parecia estrangulá-lo. Sentiu uma dose de alegria e não sabia porquê enxergava com maior nitidez..., sensivelmente com maior nitidez. Somente aquela escuridão mental e espiritual que lhe tomava quebrava a leveza do momento. Não sabia se estava

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sendo generoso consigo ao se permitir ficar naquela condição pouco explicável. Era fato, apenas, que uma ponta de prazer ascendia, intercalando-se com óbvios momentos de angústia e ansiedade. O canto mais estridente de pássaros que ali habitavam, tiravam-no da profunda escuridão que o prendia. Em alguns momentos, sem saber por que, percebeu que ainda tinha chance de reencontrar a serenidade, a lógica e a coerência em seus atos e pensamentos. Lutou quanto pôde para manter-se alerta e no caminho da brecha, da fresta que haveria de libertá-lo.

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Capítulo cinco

PODERIA SER A CONSCIÊNCIA

De uma forma ainda meio incipiente, marcada, sempre, pelo estampido daqueles adoráveis animais, sua mente esquadrinhava acontecimentos diversos. Numa profusão de falsas imagens, Cacá procurava definir o que, exatamente, devolvera-lhe a esperança. Não sabia, ainda, de onde provinha aquela sensação de vitória, reconquista, possível retorno. Sem dúvidas, estava vivendo um momento diferente do que vinha experimentando há um bom tempo. Não estava procurando, apenas, sentir o inusitado, ou, tentando dar vazão a alguma vontade tresloucada. Nem mesmo se sentia ali, naquele lugar. Já passava das seis horas da tarde e, aquela quase noite, naquele lugar inóspito, começava a oferecer algum perigo. Cacá não distinguia mais entre a escuridão da noite e a de sua mente, apesar dos lampejos recentes. Seus olhos delimitavam essas duas realidades com imperceptível, porém, infalível perfeição. Sim, noite e mente, porque pareciam tão iguais naquele momento? Impalpáveis que são, profundas como se apresentam, não fosse a mera realidade premente, não saberia que existiam.

Imaginou que pudesse estar dirigindo em alta velocidade, numa autoestrada, à noite. Os faróis dos veículos à sua frente o intranquilizavam. Ele tentava aumentar a velocidade dos

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limpadores do parabrisa, pois, a chuva aumentava. Num esforço surpreendente, obteve a concentração necessária e constatou que apenas via um céu estrelado. Suas pálpebras limpavam seus olhos encharcados. Cacá chorava convulsivamente e percebia que, há muitos anos, isso não acontecia. Seus músculos experimentavam movimentos de contração e desfalecimento, de forma absolutamente involuntária. Tentava evitar, com grande esforço, engasgar-se durante o choro salgado e abundante. Espalmou as mãos e se imaginou colecionando nelas pedaços de criança ainda recém-nascida, que expelia, daquela forma. O ar que lhe entrava pela boca estava pesado, lotado de verdades, realidades, e mesmo, ideais perdidos e esquecidos, não sabia quando nem onde. Horas depois, o dia mal clareava, quando Cacá se reconheceu à beira do pequeno açude. Já não era um espelho, pois, o vento beliscava sua superfície, agitando-a até parecer uma porta ondulada de acrílico de um grande boxe de banheiro. Fazia frio no momento e a vegetação orvalhada dava verdadeiros golpes nos braços e no corpo meio exposto. Doíam todas as suas partes. Fora uma noite agitada enquanto dormia. O que via e sentia naquela manhã lhe trazia medo e satisfação ao mesmo tempo. Percebia sua fraqueza física e mental. Estremecia todo corpo a cada movimento para se levantar. O controle sobre seus movimentos era difícil e mal conseguia equilibrar-se nas pernas. Respirou profundamente e amassou o rosto com as mãos molhadas. Olhou tudo a sua volta. Se fosse um pintor, pintaria uma grande tela que perpetuasse aquele belo lugar e seus encantos.

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Reconheceu o caminho que percorreu até ali e, aos poucos, foi deixando o lugar que, talvez, o tivesse devolvido ao mundo real - também, bastante complicado e insano, mas, real. Ganhou o calçadão em frente à escola e não encontrou o pipoqueiro. À sua esquerda, o único movimento que se via era o de três pessoas que tentavam arrumar algumas caixas em um caminhão. Aproximando-se, notou que a mercadoria saia de uma modesta casa onde funcionava uma pequena indústria de salgados e doces. Pai e filho esforçavam-se para encher o veículo. Eram chineses. O casal naturalizado e o filho já nascido no Brasil. Inesperadamente, Cacá ofereceu-se para ajudar e, embora desconfiado e relutante, o pai indicou um monte de sacos de salgadinhos a serem colocados no caminhão. Depois de, aproximadamente, meia hora naquela atividade, uma súbita e incontrolável fraqueza abateu Cacá, fazendo-o recostar-se no canto do muro, quase desfalecido. Puxava a respiração e pouco conseguia articular uma palavra que explicasse aos patrões o que acontecia. Seu abdômen e suas feições contraíam-se de forma aparente. O casal entreolhou-se, reconhecendo aquele estado. Já haviam passado fome quando aqui chegaram, vindos de sua terra natal. A mulher entrou em casa por um instante. Em pouco tempo trouxe uma caneca com chá e um prato cheio de uma espécie de paçoca, à base de arroz integral, legumes cozidos e pão. Ela mesma ajoelhou-se e fez menção de alimentar Cacá e todas as pessoas que passam fome nesse país. Cacá, antes de aceitar, olhou para o velho e reconheceu seu ar compassivo. O filho, ajoelhado e em cima do caminhão, olhava para o pequeno lago, trazendo as mãos ao peito numa possível oração. Cacá

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recebeu a primeira porção do alimento esforçando-se para não beber, também, as lágrimas que vazaram pelos cantos dos olhos. A mulher, pequena e de cabelos presos, não esboçava qualquer reação, apenas, trazia e levava a colher com alimento até Cacá. Olhava fixamente para aquele homem e não se espantava com coisa alguma.

O sol começava a esquentar a manhã e o rapaz, com a toalha na mão, aguardou que Cacá deixasse o banheiro que lhe fora cedido para que ele pudesse fazer a higiene completa. Passava das sete e meia da manhã, quando o caminhão partiu levando Cacá e aquelas três pessoas para algum lugar na parte central da cidade. Aos poucos, o mundo ia tomando forma e cor de uma realidade que parecia perdida. O vento fazia colar o cabelo na cabeça de Cacá que, de cima do veículo, tentava concatenar possíveis pensamentos lógicos. Percebia a auto-confiança tomando seu espírito que, há muito, só revelava sensações um tanto incompreensíveis. Viu certa relação entre esse estado de espírito e a atitude daquela família para com ele. Fechava os olhos em busca de uma recordação ou sensação que o orientasse e levasse a ser tal qual observava nas outras pessoas. Precisava não mais sentir-se diferente dos outros, por mais prazer que isso ou suas atitudes tresloucadas pudessem proporcionar. Mas, ainda não conseguia coordenar suficientemente o pensamento. Havia uma única certeza: a que tinha relação com a bondade daquela família desconhecida, ajudando-o e abrindo sua casa a um também desconhecido e necessitado. Era nítida a sensação de prazer e estima que

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assolava-o quando dirigia sua atenção àquelas pessoas que o acolheram. Como recompensá-las? Que retribuição poderia dar a tamanha bondade de espírito por eles dispensada? Depois de quase uma hora de percurso, pararam em frente a um mercadinho e estacionaram ao lado. Haviam atravessado quase toda cidade, que se revelava completamente nova para Cacá. Fazia um dia de sol brando e o comércio, naquela parte da cidade, era concorrido. Cacá e o garoto desceram do caminhão, bem como, o casal que vinha na cabine. O chinês apressou-se em entrar no mercado para localizar o gerente encarregado. Precisava negociar a quantidade a ser adquirida pelo estabelecimento. Retornou com ar de satisfação estampado no rosto, orientando o descarrego de mais da metade da mercadoria que trouxera.

Enquanto ajudava no trabalho, Cacá se esforçava para entender aquele instante que vivia. Tinha poucas lembranças dos dias anteriores. Apenas alguns momentos que protagonizara vinham-lhe à lembrança sem, entretanto, trazer-lhe qualquer grau de satisfação ou prazer experimentado antes. Algumas figuras apareciam rapidamente em sua mente: um quarto com móveis e objetos pessoais, uma praia belíssima e águas azuis e límpidas, uma sala com pessoas à vontade, assistindo televisão ou conversando. Não reconheceu ninguém. Mas, sentia que aqueles lugares e pessoa tinham algo de familiar. Recebeu sinal para subir no veículo, pois, haviam terminado o trabalho, inclusive, de arrumação dos pacotes nas pequenas cantoneiras do mercadinho. Viu todos já acomodados em seus lugares no

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caminhão, olhando para ele, como se estranhando seus movimentos. Cacá tentava, num esforço descomunal, mover-se na direção do veículo, mas, uma força estranha pregava seus pés no chão e não lhe permitia emitir qualquer som ou sinal a seus amigos. Sentia o choro contido, a garganta apertada e a respiração insuficiente. Uma tontura repentina desgovernou-o definitivamente e, após cambalear, caiu pesadamente no chão, completamente desacordado.

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Capítulo seis

RETORNO À TERRÍVEL REALIDADE

Estava tudo muito escuro, aliás, totalmente escuro. Isso era possível de ser observado entre momentos de sonho e de intervalos indefinidos no tempo e espaço. Cacá conseguia reconhecer que dormia e acordava frequentemente, porém, sem poder abrir os olhos ou responder com o corpo a qualquer tentativa ou impulso de mover-se. Havia, de vez em quando, o som de uma forte respiração mecanizada ao seu lado e alguns batidos de porta. Levou um tempo infinito para lembrar que podia estar hospitalizado, embora não conhecesse a causa. Apertou a garganta que se mostrou sensível, encontrou algo rígido presente ali e desconfiou que fosse uma sonda respiratória. Fazia sentido, agora e ele ficou tentando identificar qualquer estímulo externo que percebesse. Porém, logo adormecia por um tempo que parecia pequeno, contudo indeterminado. O quarto do hospital era relativamente espaçoso e bem conservado. A Instituição pertencia a uma entidade religiosa e filantrópica que conseguia prestar um serviço de ótima qualidade. Dispunha de um quadro médico dos melhores, além da atenção acolhedora de freiras, enfermeiras daquela irmandade. Num determinado instante, um estado de realidade

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se apresentou novamente e Cacá experimentou outras sensações, percebendo que lhe davam um banho e conversavam algo que não compreendia, pois, ouvia muito baixo, perdendo grande parte das palavras. Reconheceu mãos que pegavam na sua e em seu braço, manipulando algo que lhe causava alguma dor. Depois, alguém apalpou suas pálpebras inferiores. Viu uma luz forte à sua frente que, logo, foi apagada. Era evidente que estava recuperando-se de um estado crítico de saúde, porém, sem conseguir, ainda, coordenar qualquer movimento. Tentou manter-se assim, lúcido, pelo maior tempo possível, na esperança de acordar completamente. Procurava ajudar-se no sentido de colaborar consigo mesmo para sair daquela situação. Logo, dormiu novamente sonhando com situações as mais diversas.

Devia ser o dia seguinte e se encontrou lutando com o incômodo tubo em sua garganta. Alguém falava baixinho ao seu ouvido e pegava sua mão chamando por ele, insistentemente. “Cacá, acorde. Aperte minha mão, se puder, meu irmão. Vamos. Você vai conseguir! Cacá, se puder, se estiver entendendo, faça qualquer sinal. É sua irmã, Ana, quem está aqui”. O tubo continuava incomodando sua garganta e foi possível perceber uma tentativa de tossir, ficando ofegante por um momento. Ouviu uma voz de homem ordenar que retirassem a sonda e aplicassem certo medicamento. Ouviu conversas alegres e agradecimentos a Deus. Notou que melhorava daquele estado crítico. A partir dali, era só ter um pouco mais da paciência que lhe faltava ao não conseguir abrir os olhos. Não tendo como

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lutar contra o efeito do sedativo aplicado, relaxou, prometendo a si próprio que recobraria toda a sua consciência e já sentiu uma gostosa emoção ao lembrar a irmã Ana, que iria estar ali presente quando isso acontecesse.

Podia ser dia claro, já que a lâmpada no teto estava apagada, havendo luminosidade suficiente para enxergar. As imagens e detalhes das coisas se embaraçavam de vez em quando, permitindo uma visão quase totalmente turva. Havia algo incomodando na região do pescoço, proveniente de uma sensação não bem definida. Mas, o melhor era a mistura de incontrolável alegria por estar vivo e a constatação de que tudo poderia voltar a acontecer. Cacá fechou os olhos e rezou. Em suas preces, suplicou a Deus que salvasse a si e aos seus de mazelas e sofrimentos, aos quais sucumbiu por um tempo. Logo, sentiu-se mais seguro e confortável, adormecendo novamente. Passado algum tempo, que não pôde precisar, algo o despertou. O barulho era da janela sendo fechada, já que uma forte chuva começara a cair naquela tarde. Sim podia ouvir a chuva, o barulho relaxante da natureza de água abundante, o que lhe trouxe uma sede enorme. Cacá abriu os olhos deixando a cabeça perder um pouco de lado, tentando ver quem estava com ele. A mulher, que, de costas, abria a cortina da janela, deixando entrar a claridade, postou-se em posição de oração, com o olhar perdido naquele infinito. Logo, voltou para onde estava Cacá, ainda imóvel, com ar de inconfundível alegria. Aproximou-se controlando o choro contido e passou as mãos nos cabelos do irmão, afagando-o carinhosamente. “Aonde você andou, meu

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irmão? Todo esse tempo sem dar notícias! Você sofreu um grave acidente, uma forte pancada na cabeça e passou muito tempo em estado de coma. Mas, graças a nosso bom Deus já está se recuperando. Tenha um pouco de paciência e, logo, poderá deixar o hospital. Está me entendendo?” Cacá respondeu com um breve fechar de olhos e promoveu um leve aperto na mão de Ana, que o aconselhou a procurar não se esforçar muito, aliás, uma recomendação do médico. Ana seguiu a orientação das enfermeiras, passando um algodão embebido em água nos lábios ressequidos dele – outro agradecimento.

A queda que Cacá sofrera, fez com que batesse, fortemente, com o crânio numa saliência da calçada. Os médicos não sabiam, ainda, o grau de comprometimento de sua saúde, porém, tinham certeza de que o pior já passara. O quadro de coma profundo que durou mais de três meses, estava, a princípio, afastado. O quadro clínico geral era bom e tudo indicava que, logo, poderia deixar o hospital. Mas, ainda tinha um longo caminho a percorrer. Bastante enfraquecido, apesar de ansioso por sair daquela cama, das sondas e do catéter e tubo de soro, também, para rever a natureza e o mundo, sabia que seu estado ainda requeria cuidados. Restava dormir e acordar quando o corpo sentisse possível. Não precisava tentar controlar isso, agora. Num desses mergulhos na escuridão do sono algo chamou sua atenção. Era um sonho com imagens bem definidas. Ora aparecia um apartamento onde morava, ora via Dona Serena, que até sorria. Apareceu, também, um pequeno cão, mas, eram cenas rápidas, sem sentido, que se misturavam com

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paisagens diversas e diálogos sem nexo. Após um tempo, a escuridão desapareceu, de repente, indicando que acenderam a luz do quarto. Sentiu a presença de alguém que lhe tomava o pulso e colocava um termômetro clínico sob a axila – parecia tudo normal. Uma voz de homem chamou-o, pedindo que abrisse os olhos, o que só foi possível mediante grande concentração, mas conseguiu algum movimento das pálpebras. Perguntou se Cacá sentia alguma dor ou incômodo e, caso negativo, respondesse fechando os olhos. Cacá assim procedeu e fez menção de abrir a boca tentando falar. O médico, prontamente, impediu-o dizendo que, logo, poderia fazer o que quisesse, porém, era indispensável que evitasse maiores esforços, até segunda ordem.

Nada a fazer. Entre banhos e procedimentos rotineiros de enfermagem, restava a Cacá a capacidade ilimitada de pensar. Sim, pensar, incansavelmente, em tudo, na vida e no que poderia fazer ao sair dali. A presença de sua querida irmã era reconfortante e esperava não mais desapontá-la. Aos poucos, um estado de extrema lucidez tomou conta daquele homem que, aos trinta e oito anos de idade, via-se entre o fim e o início de vidas distintas. Lembrou-se de alguns momentos vividos, recentemente, reconhecendo que estivera um tanto desequilibrado, instável emocionalmente e, por que não dizer, infeliz. O tempo que passou naquele estado precário era-lhe incerto e trazia sensações de angústia e tristeza que, agora, assustavam-no de forma diferente. Traçou um comparativo entre as personagens que vivera, até então. O Cacá de antes,

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equilibrado, produtivo, idealista e aquele que viveu nos últimos meses. Resolveu aproveitar seu estado de impossibilidade físico-motora para fazer uma grande retrospectiva de sua vida. Era incrível como, a cada instante, assolava-o verdadeira curiosidade, uma quase saudade de lembranças de sua vida, suas experiências, sua memória e, inevitavelmente, de desconhecidas surpresas que chegavam a assustar. Sabia que algo ainda estava por vir à tona e era importante para ele. Finalmente, precisava recomeçar sua caminhada para o futuro, livre, no que fosse possível, de tudo o que de ruim e pejorativo houvesse carregado consigo, até ali.

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Capítulo sete

A CULPA NÃO ERA DELE...

Antônio Carlos Pereira era filho de uma família comum, que nasceu e viveu no Nordeste, no Recife. Seu pai, professor de história de uma universidade local e em algumas escolas particulares, tinha proporcionado-lhe e a toda família, um mínimo básico de condição de vida. Cacá amava-o e respeitava-o em todos os aspectos. Jamais sentiu sua ausência ou a falta de uma palavra de apoio, na hora certa, sua mão quente, seu afago e carinho infinitos. Os amigos chamavam-no Toinho e era querido por muitos. Moravam num apartamento de três quartos simples, porém, confortáveis que adquiriram quando a Zona Sul da cidade ainda estava começando sua expansão. A praia completava o lazer de toda família e Cacá, ao longo de sua infância e juventude, soube tirar dali, daquele ambiente tranquilo e estável, tudo que fora possível no que concerne ao lazer e apoio material, em busca de forjar um futuro promissor. Os muitos amigos e companheiros de escola preenchiam, confortavelmente, os rápidos, mas, frequentes episódios de desentendimentos entre pai e mãe. Ela, Dona Marta, mais do que sua mãe e amiga, era seu porto seguro, ombro para descansar a mente e as inseguranças da juventude. Convicta de seu papel na vida e junto à família, correta e firme quanto às

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suas diferenças conjugais. No entanto, trazia consigo, desde a infância, vários problemas de saúde, devido a um tumor na cabeça que, a qualquer momento, poderia levá-la à morte. Porém, mesmo diante disso, seu exemplo era o de mulher que a tudo superava e, por seu próprio esforço e mérito, conseguiu, também, encontrar lugar no mundo profissional. Dividia a sociedade de uma pequena escola de inglês, que ajudava a completar o orçamento familiar.

Toda orientação recebida por Cacá, vinda de seus pais, tinha um conteúdo expressivo de otimismo quanto ao futuro seu e do país em que viviam. Aprendeu que estudando com afinco e trabalhando com seriedade, o sucesso seria inevitável. Não deveria desesperar-se, mas sim, fazer com que a vida corresse tranquilamente, sem demasiada pressa. Ainda, que nem tudo, ou, toda felicidade estava no dinheiro, apenas. Não havia precipitar-se em busca de riqueza desmedida e, em muitos momentos, filosofavam aos filhos que a felicidade podia ser encontrada nas coisas simples da vida. Sua irmã, Ana – que o acompanhava -, parecia ter sido feliz até ali, onde usufruía de uma vida farta junto a um bom homem. Seu marido, médico, completava a felicidade junto aos três saudáveis filhos. Da família, portanto, Cacá trazia boas, ou, suficientemente boas recordações, para que compensassem seu profundo sofrimento com relação à outra realidade que se lhe apresentava no dia-a-dia. Entre momentos lúdicos e de indiscutível felicidade e realizações, Cacá não perdia o senso sobre uma problemática social existente. Isso o atingia seriamente, abalava seu espírito e

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seu humor, quase sem trégua, provocando uma espécie de revolta, um verdadeiro asco a certas circunstâncias sócio-políticas. Desde que se entendeu por gente, durante períodos escolares, no ginasial, ainda, Cacá deparou-se com uma gama de informações e experiências que, ao longo do tempo, não encontravam nexo, fugindo à lógica, para ele, mais elementar. Falava-se, naquela época, no final da década de sessenta, que mais de sessenta milhões de jovens como ele, logo, iriam precisar trabalhar. Ouvia, insistentemente, que o futuro do país estava nas mãos daquela juventude. A miséria de um contingente importante de pessoas incomodava, Ouvia, ainda, de dirigentes e governamentais que esforços eram feitos para que, logo, aquele estado de coisas tivesse fim. Entre conflitos políticos que só lhe foram possíveis de entender na adolescência, e, noticiários de TV que multiplicavam a certeza de um estado social desesperador, Cacá tentava encontrar um caminho a seguir. Tudo que mais o angustiava era saber que não poderia escolher errado. Os seus: família e amigos, bem como, outros, por acaso necessitados precisavam que ele escolhesse certo, pois, do contrário, não haveria volta. O caminho perdido era irrecuperável e não havia tempo a perder. Desde aqueles tempos, passado o período do anunciado Milagre Econômico Brasileiro, a despeito dos ufanismos e de práticas repressivas usadas pelo governo militar e denunciadas pela mídia mais aguerrida, as poucas oportunidades de trabalho, disputadas por uma multidão de jovens como ele, pareciam um campo de outra batalha sangrenta, onde virtudes e desventuras se evidenciavam a cada processo de seleção de candidatos. Surgiram ou

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ganharam força vários sindicatos, as figuras das entidades de classe, dos órgãos protecionistas, a maioria a serviço de uma pequena parte dos trabalhadores do país, aqueles mais organizados, próximos aos grandes centros, não raro, impregnados e orientados por grandes conglomerados financeiros, inclusive, estrangeiros. Mentiras ou verdades, só o futuro poderia mostrar. Mas, eram essas as coisas que presidiam o discurso de governantes, leigos e intelectuais, engajados ou não na luta política, aumentando a pressão psicológica da juventude da época. A manipulação dos processos sociais, ou, entidades desqualificadas mostrava um quadro assustador de desperdício e descaso para com a coisa pública. Poucos enriqueciam rapidamente, enquanto muitos se desesperavam, irremediavelmente, em favelas, verdadeiros protótipos de cemitérios públicos. Crianças morriam aos montes por todos os motivos criados pela irresponsabilidade de maus dirigentes públicos e descansados, como se não fizessem parte daquilo. A indiferença de grande parte da população, diante daquele estado de coisas sinalizava que a humanidade era de uma bondade efêmera. Algum equilíbrio social dependia da boa vontade de um pequeno grupo de bem intencionados, as instituições filantrópicas - no futuro próximo, denominadas ONGs -, nem sempre éticas, aliados ao poder do instinto de sobrevivência dos homens. Era claro e certo que os meios de comunicação: as conhecidas, mídia ou imprensa, já adjetivadas como pilares da Democracia, não serviam ao todo social. Antes, priorizavam suas necessidades econômico-financeiras e as benesses dos afagos governamentais. Era visível, também, que os recursos

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públicos de uma das maiores economias do mundo, à época, não chegavam aos seus destinos com a devida racionalidade e de forma republicana. Isso o abatia profundamente. Vivia um misto de indignação versus certa incapacidade de reação, por que não dizer, terríveis dúvidas a respeito de tudo. O país pisava uma lama movediça, traiçoeira, onde apenas os afortunados e privilegiados políticos encontravam espaço e trânsito facilitado. No princípio de sua adolescência, era comum encontrar Cacá sentado no barranco da praia, à beira mar. Olhar perdido no horizonte, ele procurava sentido para o sofrimento momentâneo de seus pais, diante de mais um desentendimento conjugal. Buscava também, sentido para aquele enigma representado pela presença do Deus inegável e o sofrimento de tanta gente. Ali, com a cidade às suas costas, uma oração era pronunciada baixinho, os olhos cheios e o coração apertado. Uma emoção profunda tomava conta daquele peito diante de um mundo que se apresentava disforme, injusto e muito louco. Desde então, comprou a ideia de viver por si e pelos que sofriam. Suas orações não seriam apenas suas. E, assim, ficava Cacá, pensando, indefinidamente, numa comunhão entre o homem que surgia e a natureza que o ouvia e reconfortava. Mais tarde, as mesas de bares infinitos e muitos amigos ouviam suas confidências a respeito de sentimentos íntimos. Os amores que lhe foram possíveis, até então, dividiam com o seu sofrimento os momentos marcantes na vida. Em alguns casos, seu processo de indignação inspirava a atenção de alguma pretendente, idealista como ele, mas, logo, a realidade se apresentava, roubando-lhe quem quer estivesse ao seu lado. Era comum que o

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confundissem com um alienado, ou, psicótico pelas desgraças de outrem. Pior, no entanto, era imaginar-se imune aqueles pensamentos, o que, comumente, reconhecia na personalidade e caráter da grande maioria das pessoas que pôde conhecer. Muitos pareciam enlouquecidos aos seus olhos. Dava-lhe uma sensação de inutilidade diante da vida pensar em viver alheio à coisa dos excluídos da sociedade. Viver precisava ser um sacerdócio a serviço do bem comum. Não compreendia a vida digna e feliz ao lado da miséria de famílias inteiras, cujos filhos pequenos, morriam de fome a poucos metros de um supermercado.

Aos dezoito anos, Cacá ingressou na universidade com o objetivo de cursar economia. Não demorou a perceber que algo não estava bem naquela instituição. As greves de estudantes e professores eram corriqueiras, chegando a provocar a perda de dois semestres consecutivos. Outra não foi sua atitude, senão, abandonar os estudos, dirigindo seu tempo noturno a complementar seus ganhos. Trabalhava, então, num banco particular, como escriturário e, à noite, assumia o papel de sócio no trailer-lanchonete que dividia com um amigo, onde se vendia cachorro-quente e refrigerantes, próximo à universidade. A frustração pela falta de estudos era compensada com a poupança financeira que conseguia fazer crescer, apesar de toda crise que assolava o mundo dos negócios, no país inteiro. Ainda voltaria aos estudos um dia. Percebeu que o trabalho era o principal veículo de condução à dignidade e se contorcia ao imaginar a vida daqueles desempregados que eram noticiados na TV,

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diariamente, como personagens de um filme sobre uma história distante e imaginária. Casou-se com uma mulher que em tudo representava harmonia e virtude. Seriam como um só corpo e mente. A paixão foi avassaladora, o que untou de prazer o amor que cresceu entre eles – era a felicidade batendo à sua porta. A família cresceu rapidamente e com dois anos de casamento, já tinham dois filhos adoráveis, Antônio Carlos Júnior e o caçula, Pedrinho. Inês, sua esposa, trabalhava como secretária executiva do escritório de uma multinacional e já pensava em fazer mestrado num curso de comunicação social. Sua mãe, Dona Lise, morava com eles, o que permitia conciliarem as necessidades dos filhos com as atividades de trabalho e estudo dos dois. Inês compartilhava, definitivamente, das opiniões e conceitos defendidos pelo marido e, por isso, muito o respeitava e admirava como ser humano, orgulhando-se de estar junto a ele naquele começo de vida. Só que a vida não era apenas isso...

Era noite de São João, quando o telefone tocou. Sua irmã, aos prantos, dava-lhe a triste notícia da morte do pai, após um acidente cardíaco fulminante. Compungido ao extremo com aquele acontecimento inesperado, Cacá pegou-se entre o sofrimento pela morte do tão querido ente e o pensamento em busca de motivos que pudessem ter acelerado a morte do seu pai. Sabia, através de confidências, que o velho há muito se queixava de pressões por parte das escolas particulares onde lecionava. A necessidade de reformulação da estrutura de custos da maioria das empresas e, naquele caso, das escolas, levava a tentativa de demissão de antigos funcionários professores para

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admissão de outros com salários menores. Seu pai alegava que, com os ganhos da universidade, apenas, não se sentiria mais o mesmo, pois, sua esposa, praticamente, teria que assumir a responsabilidade financeira da casa, o que muito constrangia uma personalidade como a dele, naquela época. Já não eram tão jovens e as despesas com remédios e plano de saúde consumiam boa parte da renda deles. A possibilidade de ser esse o fato causador da perda precoce do seu pai abrira-lhe uma ferida ainda maior, ao lado de tantas outras que trazia consigo. O homem que trabalhara toda a vida em favor da educação de jovens como ele, mal pôde sentar-se para usufruir de seu esforço e partira antes dos sessenta anos de idade. A partir daquela experiência, Cacá passou a viver outra grande preocupação, no caso, com sua mãe que, após a morte do marido e companheiro apresentava um sério estado depressivo, o que poderia complicar seu quadro de saúde, visto que trazia um tumor na cabeça. Suas preocupações não eram em vão. Três meses após a morte do companheiro, apesar de tantos desentendimentos ao longo da vida - insuficientes para separá-los -, Dona Marta amanheceu em estado de coma, provocado por um acidente vascular que lhe fez falecer trinta dias depois, a despeito da luta de médicos e tratamentos intensivos. Após assimilar, como pôde, a perda de seus pais, Cacá promoveu uma viagem de férias com a família. Entre passeios e tentativas de diversão no Rio de Janeiro, procurava fazer dormir sua revolta e indignação diante de tamanho descaso com as pessoas, patrocinado por ele, através do seu trabalho e impostos e conduzido por governantes ladrões. Inês chamou-lhe a atenção sobre a possibilidade de ele

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esquecer tudo e procurar ser um pouco mais desprendido, feliz, compensando o lado sofrível de seus pensamentos e emoções. No entanto, era nítido que Cacá mal dormia suas noites, num mexido na cama que parecia o retrato de seus discursos sobre a miséria alheia. Ela sabia exatamente onde estava o coração daquele homem e tudo faria para ajudá-lo.

Retornaram ao Recife após quinze dias de férias e Cacá tratou de dar feito ao que planejara, de posse de algum pouco recurso de herança deixado pelos seus pais. A venda do apartamento que herdou, trouxe-lhes o montante de, aproximadamente, trinta mil dólares que, correspondia à sua parte, cabendo a outra metade à sua irmã. A esse valor, somaram-se mais oito mil dólares, correspondentes à metade da poupança de sua mãe. Cacá resolveu dirigir esse recurso financeiro extra à execução de um sonho. Orientado por uma irmandade filantrópica, abriu uma creche para crianças excluídas, tendo utilizado mais da metade do dinheiro na reforma do prédio alugado, numa periferia da cidade e na aquisição de camas e outros equipamentos. Durante mais de um ano, conseguiu manter a creche que acolhia mais de cinquenta crianças de todas as idades, valendo-se da doação de amigos e entidades sociais e de assistência. Não era fácil. Por mais que se esforçassem e controlassem os recursos, começava a crescer uma pequena dívida com fornecedores e entidades financeiras, onde Cacá, em seu próprio nome, tomava emprestado para manutenção das vidas daqueles pobres seres humanos. Não tendo muitas alternativas e, mais pensando nas pobres crianças,

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aceitou proposta de um amigo, candidato a deputado federal nas eleições do final do ano. Deveria contribuir com uma cota financeira para financiamento da campanha. Em troca, a creche receberia tratamento diferenciado, conforme planejamento do amigo político, inclusive, do seu próprio partido, assim que tivesse o poder parlamentar nas mãos. Além do dinheiro, queriam o prestígio de Cacá: amigo de tantos, orador articulado, que envolvia a todos com seu discurso politicamente correto e até inflamado. Assim, Cacá direcionou toda a renda que recebia da lanchonete, que crescera, para a campanha política. Não era nenhuma fortuna, mas era líquido, era seu e não afetava o orçamento familiar. Era uma boa aposta. Tinha grandes chances de dar certo – prometia o amigo e seus correligionários. Como ocupava, então, a função de gerente da agência do banco em que trabalhava, conseguia facilitar crédito, não só para a obtenção de recursos para as despesas correntes da creche, como para a militância política. Logo, as coisas se encaixariam e Cacá vislumbrava, até mesmo, ocupar algum cargo público estratégico, que o permitisse planejar e executar projetos sociais mais amplos, ampliando o leque de suas realizações em favor de pessoas tão sofridas. Alguns amigos mais próximos cogitavam, inclusive, sua indicação para a câmara de vereadores, numa outra eleição, mas, ele desdenhava procurando manter-se com os pés no chão. Afinal, a prioridade eram as crianças. Inês o apoiava em tudo e era de grande ajuda nos detalhes administrativos da creche. Seus filhos, a cada evento festivo na entidade, dividiam espaço com as crianças, compartilhando brinquedos, atividades esportivas e refeições. Não raro, nos

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finais de semana, davam uma mão nos afazeres da rotina, ajudando a colecionar roupas, remédios, brinquedos e outros donativos que chegavam eventualmente. Mas, havia muito mais a ser feito. As necessidades de uma instituição como essa requeriam, além de alimentos e roupas básicas, atendimento médico, odontológico, psicológico, além de apoio às famílias que localizavam os filhos desaparecidos que ali eram recolhidos. Exigências sanitárias consumiam grande parte dos recursos, também. Em fim, suas responsabilidades eram maiores do que previra e algo precisava ser feito para garantir aquele necessário serviço à comunidade. O poder público jamais olhou para o que acontecia ali. Jamais contribuiu nem mesmo com o poder institucional que chancelasse devidamente os compromissos assumidos com algumas entidades de apoio. De forma, que as coisas eram assim e muito estava por acontecer...

Estava numa segunda-feira, pela manhã, atendendo alguns clientes na agência, quando o telefone tocou. Sua sogra, aos prantos, contava-lhe uma terrível tragédia que o deixou lívido, sem chão, mal se contendo. O carro que sua esposa, Inês, usava fora encontrado num terreno baldio e, ali perto, seu corpo maltratado e degolado, davam indícios de uma ação de sequestro e sadismo poucas vezes vista. Foi muito difícil assimilar tal perda. Mal perdera os pais e, agora, aquela notícia. Deixou o trabalho, dirigindo sem pressa, aturdido, tentando assumir o controle da situação. Imediatamente veio-lhe a lembrança das crianças, seus filhos e os da creche. Não tinha o direito de aumentar-lhes o sofrimento com suas próprias lágrimas, sua

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tristeza e insegurança. De fato, era como se tivessem tirado o chão e o mundo debaixo dos seus pés. Mas, era hora de cumprir com sua obrigação de pai e ele não fugiria a isso. Não foi tarefa fácil. Quão deprimente fora contar às crianças, ainda tão pequenas, que não poderiam mais ver a mãe, querida e companheira. Nesses momentos, as palavras perdem o poder que teriam normalmente. São insuficientes, não conseguem atingir os sentidos tanto quanto necessário. Cacá abraçou-os demoradamente, sentindo seus corpos vibrarem de medo e insegurança. Mas, tinha que manter-se firme, substituir, naquilo que fosse possível, o vácuo causado pela ausência de Inês. E seria pra sempre. Não sabia se bem o conseguiria, mas, não havia outro jeito. O sepultamento foi aclamado por muitos, virou notícia e algum tempo foi gasto, pacientemente, com assuntos policiais de praxe, devido à morte violenta de Inês. Sua sogra e Ana assumiram parte de algumas responsabilidades para com a escola das crianças, dividindo com ele os momentos de diversão, das tarefas escolares, das festinhas, passeios, em fim... Cacá tirou férias antecipadas do banco procurando ficar, naquele momento, mais próximo aos dois filhos. Por mais que sua irmã e amigos tentassem reconfortá-los, não conseguiu alcançar dimensão suficiente para entender por que acontecia tal coisa com ele. Logo ele, que tinha pensamentos e atitudes tão nobres, e bondade de espírito infinita. Onde estava a justiça divina? Onde estava a coerência das coisas da vida? O que fizera para merecer aquilo? Finalmente, por que a morte não havia levado a ele, ao invés de tão doces criaturas – perguntas que martelavam sua cabeça, sem dó. E a vida foi se encarregando do tempo que

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cura e de acomodar as coisas, abrindo portas e desnudando caminhos por onde prosseguir aquela família. Mas, ainda havia algumas surpresas. Certo dia, Cacá estava em casa, acompanhando pela TV a contagem dos votos da eleição, tentando ver o resultado da campanha do amigo. Ao final, uma grande decepção foi sentida com a derrota que sofrera. A realidade, então, era aquela, pior, naquele momento, do que antes de decidir investir naquela maldita campanha eleitoral. Amigos esconderam-se, correligionários esqueceram seu nome e alguns credores começaram a bater em sua porta com maior frequência.

O estado emocional de Cacá, após a morte de Inês, deixou-o como que absorto em todas as suas atividades. Uma quase alienação conturbava seu espírito, pois, perdera o estímulo para boa parte de suas obrigações. A dívida junto ao banco, que ele amortizava um pouco, mensalmente, com o aumento da inflação, chegou a um patamar insustentável. Outros fornecedores que vinham tendo infinita paciência com as dificuldades de Cacá foram obrigados a protestar títulos de compra de mantimentos para a creche, de cujas operações, ele era o fiador. O resgate da apólice do seguro de vida pessoal de Inês, no montante de cem mil dólares, teve trinta por cento do valor dedicado à quitação de algumas dívidas e a protelação de prazos de outras tantas. O restante desse dinheiro extra, Cacá entregou a sua sogra, Dona Lise, garantindo-lhe recursos financeiros para si – que fora dependente de Inês e que, agora, dedicava-se inteiramente às crianças. Por sua vez, ela não

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deixaria aquele a quem aprendera a amar como a um filho, sozinho em meio a tragédia que caía sobre eles. Também, tal era seu apego e afeto às duas crianças que já não poderia ver a vida longe deles. Em meio a tudo isso, o número de crianças assistidas na creche, praticamente, duplicou e, consequentemente, as despesas da instituição, também.

Passaram-se alguns meses, quando Cacá foi chamado a uma reunião na diretoria do banco, onde recebeu a notícia de que estava despedido. Foi alegado o fato de o banco estar sob investigação por parte da Polícia Federal, mediante uma denúncia anônima de envolvimento ilícito nas últimas eleições. Ao chegar em casa, já encontrou nas mãos de Dona Lise uma intimação policial para prestar depoimento sobre procedimentos suspeitos na mesma campanha eleitoral. Mesmo constituindo um experiente advogado, não conseguiu evitar que as investigações caminhassem para comprometê-lo, indubitavelmente. A Receita Federal, numa ação conjunta com a Polícia Federal, encontrou na conta corrente de Cacá, movimentação financeira extraordinariamente grande para um contribuinte de classe média. A imprensa, que nunca o vira antes, fazia questão de mostrá-lo e falar em seu nome na mídia que, estranhamente, não citava outros nomes, realmente comprometidos com as irregularidades apontadas. Era o lado podre da política. Pegaram-no como bode expiatório de uma ação que, até então, era vista como algo comum no mundo dos negócios. No seu caso, a despeito dos altos valores movimentados em sua conta, tudo se referia ao dinheiro para

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manutenção da creche, somados com os recursos advindos da herança deixada pelos pais. Alguns valores eram relativos a alguns empréstimos feito em seu nome, para amortizar dívidas da creche, reabrindo o crédito junto a importantes fornecedores. Como boa parte dos alimentos era comprada em feiras livres, em busca de melhores preços, sem notas fiscais, como de praxe, a creche não tinha como comprovar a utilização de parte dos recursos movimentados em sua conta bancária, muitas vezes, usada em benefício da instituição. Como gerente de agência bancária, naturalmente, autorizara concessão de empréstimos a amigos, clientes correntes e, claro, entre eles, alguns correligionários. Tudo isso era uma rotina nos serviços bancários de várias instituições. Não foi no seu caso. Tudo era usado contra ele, acusando-o por crime eleitoral, crime contra o patrimônio, sonegação fiscal, formação de quadrilha e falsidade ideológica. Só faltaram acusar as crianças do crime de sentirem fome e não terem onde dormir, ou de não terem escolas que lhes dessem abrigo, ou uma família que lhes desse um lar. Era o preço a pagar por ter se exposto ao movimento subterrâneo da política que se conhece e que se impregna no espírito de figuras aparentemente distintas, mas que agem como um câncer, a princípio, tão invisível, mas, logo, capaz de destruir alguém com uma voracidade avassaladora...

Não havia como reagir. Tudo e todos se voltavam contra ele, não havendo na lei esteio e esperança de perdão. Enquanto aguardava o julgamento, Cacá preocupava-se em preparar o espírito dos filhos para um futuro constrangedor. Também,

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cuidava de identificar alguém que o substituísse na administração financeira da creche. Estava incrivelmente só, mesmo porque, sua lealdade e prudência não permitiam que acusasse ou envolvesse outras pessoas, na tentativa de pedir ajuda ou mesmo de amenizar sua culpa perante a justiça. Precisaria usar o tempo, sem saber o quanto, mas, precisaria de muito mais coisas, ainda...

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Capítulo oito

O LIMITE DA CONSCIÊNCIA

O juiz não conseguia mirar nos olhos de Cacá, como, possivelmente, não pôde, naquele dia, se olhar no espelho. Lendo a sentença, acusava o réu de vários crimes, os quais poderiam levá-lo a mais de 12 anos de prisão. Como poderia prender um homem como aquele? Quantos réus haviam dado tanto de si pela sociedade? Mas a lei, a justiça, diziam que ele fosse condenado..., morto. Ao final daquela fatídica audiência, ouviu o Juiz proclamar uma pena de seis anos de reclusão, a qual poderia ser reduzida mediante atenuante de sua condição de réu primário. Seu advogado previu que antes de dois anos estaria livre. Algemado e humilhado diante das câmeras dos repórteres, Cacá foi conduzido dali para uma cela do tribunal e, no dia seguinte, para o presídio. Essa primeira noite foi terrível. Seu corpo tremia descontroladamente. Mal conseguia organizar o pensamento. Aquilo era uma terrível novidade na sua vida. Arrependeu-se de não ter diploma superior que lhe garantisse um espaço um pouco mais dignamente humano. Durante o processo, teve esperança de ver sua história de vida sensibilizar promotores e o juiz da Corte. Quem sabe, uma pena branda, que pudesse cumprir em liberdade, sem precisar afastar-se tanto de seus queridos filhos. Mas não. No máximo, seus advogados

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conseguiram atenuar um pouco o tempo da pena a cada crime imputado. Sua irmã sinalizou que não o abandonaria e que os garotos estariam em segurança, devidamente assistidos. Não era consolo suficiente para aplacar a dor do momento. Cabia-lhe dormir e acordar no dia seguinte, em busca da sobrevivência possível. No trajeto, dia seguinte, seu olhar perdido no horizonte captava o pouso dos aviões no aeroporto, carros de luxo conduzindo respeitáveis motoristas e enormes arranha-céus com suas guaritas imponentes. Nos semáforos, conhecidas mãos estendidas aos veículos pedindo um pouco para comer. Enormes mãos de tão pequeninas crianças, obras de arte de uma sociedade que mal lhes conhecia a dor. No console do carro que o conduzia, um pequeno pacote de erva de maconha, amarrada a outro de um pó branco. Possivelmente, aquilo seria entregue ao setor competente para destruição – pura inocência...

Depois de cumprir as formalidades de praxe, Cacá foi conduzido a uma cela, no mais alto andar do prédio da penitenciária. Dividiria aquele espaço de pouco mais de quinze metros quadrados com outros cinco detentos, uma situação até privilegiada, diante da superlotação carcerária da qual se tinha notícia. Teve a perfeita noção do que experimentaria ali, quando no trajeto entre os corredores e celas, recebeu votos de todas as intenções e assobios provocantes. Após algumas recomendações, foi avisado de que, às três da tarde, poderia passear no pátio por alguns minutos. Olhando um por um nos olhos de seus novos companheiros, Cacá não conseguia identificar culpa naqueles homens. Foi tomado de súbita

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compaixão por cada um deles, prometendo a si mesmo que tudo faria para amenizar seus sofrimentos. Teve a nítida impressão que experimentava um destino traçado por Deus e que aquele aprendizado seria de algum valor para a vida futura. Sentiu-se confortável e auto-confiante, certo de que superaria tudo aquilo que via por trás daquelas grades.

As informações chegadas aos líderes dos grupos organizados, lá dentro da prisão, referindo-se à atividade filantrópica de Cacá nas comunidades carentes, garantiram-lhe certa imunidade e, até, alguma autoridade entre os detentos. Era uma espécie de código de conduta típica das falanges criminosas, que orientavam algumas rotinas dentro do presídio. Era o menino rico, bacana, mas, agora, apadrinhado por grupos de pessoas capazes de cometer as mais incríveis atrocidades, talvez, a que foi usada contra sua querida Inês. Será? Sucumbiu à rotina da prisão: dormir, acordar, comer, voltar à cela, tomar banho de sol, almoço, voltar à cela, ler, contar sua história, ouvir histórias, jantar, assistir TV, tomar banho, ler, dormir... Três vezes por semana, podia jogar futebol ou basquete. Também ocupava o tempo em jogos de damas, dominó e cartas. Ainda, dedicava-se a acalmar ânimos exaltados de alguns, tentativas de justiça com as próprias mãos, vinganças. Aconselhava quanto à saúde, às drogas e às discussões políticas inerentes às facções ali existentes. Gastou algum pouco dinheiro ajudando familiares de alguns deles, desesperados por verem mulher e filhos morrendo de fome. Encaminhou alguns familiares para a creche, quando o caso era crítico. Evitava aparecer ou destacar-se muito, mas era

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inevitável sua liderança entre os detentos. No entanto, tudo isso era, apenas, um passa-tempo, uma forma de espantar a loucura e a humilhação. Durante um ano e seis meses, aquele homem se pôs a refletir em tudo quanto ocorrera em sua vida. Um ponto provocara-lhe uma profunda angústia, que era a decepção que devia ter tomado o pensamento de seus dois filhos. Coitados..., após perderem os avôs e a mãe, presenciaram o pai em situação tão humilhante e deprimente. Como estariam, realmente, as cabeças daquelas inocentes crianças, já adolescentes? Não conseguia encontrar lógica nem nexo nos acontecimentos que protagonizava. Parecia que era um sonho, uma grande mentira virtual. Sua irmã visitava-o, mensalmente, procurando reconfortá-lo e animá-lo. Ela, também, sofria profundamente com o movimento já vagaroso do olhar de Cacá, um olhar vazio, com pouco brilho.

Conforme as previsões, seu advogado conseguiu a sua libertação antes de completar o segundo ano de reclusão. Seu comportamento exemplar e os recursos utilizados em seu favor, permitiram à lei libertá-lo antes de concluir a pena aplicada. Ao dirigir-se para a saída da penitenciária, Cacá, estranhamente, sentiu pena de todos aqueles homens que ficavam ali, morrendo um pouco, a cada instante e mais aprendendo a serem marginais especializados da sociedade. Muitos gritaram seu nome e sacudiram objetos pelas janelas gradeadas repletas de mãos acenando um adeus. Fez uma oração em favor de todos eles, chegando à saída, onde sua irmã aguardava-o muito emocionada. Haviam preparado uma festa na casa de Cacá, onde

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Dona Lise continuava morando com seus dois filhos. Era final da tarde e, subindo o elevador, Cacá não continha a profunda emoção por ver os garotos, depois de tanto tempo, já que não permitiu que o visitassem no ambiente da prisão. Iria dizer-lhes que estava livre e tudo seria como antes. O filho menor, Pedrinho, logo que o viu correu para ele e pulou em seus braços. De seus doze anos, dois ficaram em algum lugar pagando uma pena que não era dele. Correu para dentro de casa, gritando, chamando o irmão para conhecer a inesperada novidade. O maior, Antônio Carlos, aproximou-se, trêmulo, sem conseguir fitar os olhos de Cacá e abraçou-o sem convicção. Respondeu algumas perguntas feitas pelo pai e, logo, voltou a brincar com os primos e colegas do prédio. Era óbvio que as cartas que enviou não tinham surtido todo o efeito esperado. Cacá nunca mais esqueceu o semblante daquele garoto que, de seus treze anos, dois ficaram perdidos no seu subconsciente, conturbado, também, por um crime que, certamente, não cometera. A televisão continuava a mostrar a repetição de cenas horríveis do cotidiano da cidade. Crimes, mortes e miséria em todo canto. Poucos homens ricos e muita pobreza bem perto deles. Políticos respeitáveis abraçando suas diferenças e mostrando seus sorrisos largos nos vídeos e nos jornais. Cacá morrera e nascera, novamente, para viver um segundo estágio de sua vida. Perdera a noção de muitas coisas durante sua estada na prisão. Seus valores eram outros e uma profunda sensação de impotência foi experimentada por ele. Sim, não podia com o Sistema e estava perdendo uma batalha atrás da outra.

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A festa acabou cedo e Cacá dormiu com seu filho Pedro, na cama dele. Acordou por volta das oito horas da manhã e olhou pela janela a cidade que estava lá embaixo. Quando tomava café, observou o semblante de Antônio, que não se modificara, não conseguindo mirá-lo nos olhos. Cacá afagou sua cabeça, carinhosamente, percebendo, porém, que o garoto afastava-se, instintivamente. Deus..., como suportaria aquilo? O que haviam feito com tão inocente criança? – Perguntava-se Cacá. Em minutos, já se levantando da mesa, viu que Ana entrou na sala, cumprimentando a todos e fazendo um sinal de que precisava falar-lhe em particular. Chegando na varanda, recebeu o relato de alguns acontecimentos que lhe diziam respeito. Entre eles, a execução, pela justiça, da penhora de seus bens, incluindo o apartamento. Serviriam para amortizar apenas uma pequena parte da dívida junto ao fisco, que conseguiram encontrar, responsabilizando-o. O que, ainda, caberia defesa, afinal, era seu único imóvel, sua residência e de seus filhos. A outra notícia referia-se ao fechamento da creche, onde foram descobertas irregularidades promovidas pelo administrador atual, que se envolveu no tráfico de drogas e aliciamento de menores. Um verdadeiro horror, considerando os laços de amizade e confiança mútuas entre Cacá e ele, seu amigo de infância, e a exposição a que devem ter sido submetidas as crianças ali recolhidas. Quem sabe até, seria envolvido em mais essa ação criminal, à medida que era o principal responsável pela instituição. Causou-lhe dor profunda a notícia da morte de dois garotos encontrados por ele, ainda com dois e três anos de

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idade, à míngua, abandonados no centro da cidade, a quem Cacá deu acolhida na creche, dedicando atenção e amor especiais.

Cacá vestiu uma velha calça jeans, camisa vermelha, par de tênis da sua preferência e resolveu andar um pouco para arejar a cabeça, tentando rever amigos. Quando descia o elevador, teve a impressão de que não conhecia aquela residência. Chegando ao pavimento térreo, viu seus filhos correndo com um amigo no sentido de pegar o elevador, para subir. Antônio passou por ele sem olhá-lo e subiu. Cacá despediu-se de Pedrinho, com um demorado abraço e ganhou a rua, sem saber para onde estava indo. Uma leve tontura o fez cambalear e ele entrou no primeiro ônibus que passou, sem se preocupar com o próprio destino. Subiu, apanhou algumas moedas que já não tinham valor algum, devido aos efeitos da inflação, percebendo o cobrador zombar da sua inocência. Recebeu de volta as moedas e perguntou qual cédula entregar que fosse suficiente para a passagem. Sentou-se bem na frente, tentando observar o que estava mudado no trajeto do ônibus. Percebeu, apenas, a confirmação das notícias que, eventualmente, assistia pela TV da prisão. Ruas esburacadas, trânsito caótico e verdadeiros zumbis pedindo esmolas nos cruzamentos. Pessoas fechavam os vidros dos carros, acelerando, ameaçadoramente, para aquelas crianças, algumas com menos de quatro anos de idade. Um pedinte, paraplégico, que se locomovia numa espécie de carro de rodas de rolimã, parecia defender os pequeninos, por entre os automóveis parados no semáforo. A alguns metros dali, mães administravam

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os ganhos obtidos com a humilhação dos filhos pequenos. Os guardas de trânsito acompanhavam aquela cena sem poder descuidar de seu trabalho. Por ali, deviam estar passando alguns políticos, juízes, governantes, porém, certamente, tinham coisas mais importantes para cuidar. Out Doors, aqui e ali, mostravam figuras políticas em campanha para as próximas eleições. Imponentes e simpáticos, praticamente garantiam aos transeuntes que tudo estaria resolvido com sua eleição. O ônibus fez uma parada antes da Ponte Duarte Coelho, onde Cacá resolveu descer. Atravessou a Rua da Aurora e caminhou pela ponte, lembrando de carnavais passados, ali, assistindo à evolução do imenso bloco carnavalesco Galo da Madrugada. O trânsito quebrava, um pouco, sua concentração, mas foi possível perceber algo diferente. Estava admirando, de forma sublime, o que de melhor aquela sua cidade tinha para mostrar. Imaginou que grande parte das pessoas nascia, crescia e morria sem conhecer aquelas paisagens, dali, daquela forma. Passando de carro, sem poder notar o movimento da maré, fazendo o Rio Capibaribe correr, muitas pessoas perdiam a oportunidade de sentir a cidade pulsar. De um lado, o casario antigo da Rua da Aurora, do outro, prédios de arquitetura imponente olhando para as pessoas e poetas eternos da Av. Guararapes. Que insistência salvadora, a do pescador de siri, com seu jereré, ao pé da ponte... Dois pivetes passaram correndo, roçando em Cacá, tentando arrancar-lhe o relógio do braço. Pararam no final da ponte e olharam furiosos para ele, fazendo gestos obscenos e falando um monte de impropérios. Cacá teve dúvidas se não deveria tirar o relógio e entregar aos pequenos garotos que aparentavam menos

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de oito anos de idade. Uma dupla de soldados caminhando garbosamente assistia a tudo com cuidado para não amassar as fardas impecáveis. Já do outro lado da calçada, os dois garotos obtiveram sucesso conquistando a bolsa de uma senhora desatenta. Correram, atravessando o tráfego da ponte e passaram por Cacá, cumprimentando-o, sorridentes e com um gesto positivo com o dedo polegar da mão.

Cacá esperou na parada outro ônibus que o conduzisse à creche. Precisava rever aquele lugar, onde sentira as mais lúdicas emoções. Desceu na parada mais próxima, situada numa rua do Bairro de Casa Amarela, Zona Norte da cidade. Após caminhar algumas quadras, avistou a grade do muro, com suas pontas de flecha. A ferrugem devorava tudo e, ao aproximar-se, percebeu que pouco poderia ser feito por aquele lugar. Era uma casa de cinco cômodos em cada um dos dois pavimentos. Dispunha de uma área lateral que, antes, servia à criadagem. Cacá havia adaptado todo o espaço para dormitórios. A construção, pintura e boa parte da manutenção, eram feitas por ele e os residentes, numa saudável experiência de aprendizado para aquelas sofridas crianças. O jardim, que havia sido todo preparado pelos garotos, estava morrendo, olhando para a pintura enrugada das paredes da casa. No portão, já imprestável, uma tabuleta anunciava o imóvel para vender e um número telefônico para contato com a imobiliária. Do outro lado da rua, a carrocinha de bombons e cachorro-quente amparava Seu Juvenal que, tantas vezes, distribuiu com a garotada o que não conseguira vender até o final do dia. Cacá foi até ele,

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cumprimentou o pobre velho, que tentava articular alguma palavra, sem conseguir. Olharam-se nos olhos por alguns poucos segundos, o suficiente para dizerem, um ao outro, tudo aquilo que nem toda sabedoria do mundo poderia contar. Cacá, igualmente, não conseguia falar e, enxugando uma lágrima que lhe escorria no rosto, saiu dali, quase correndo, sem olhar para o lugar. Atrás dele, de mãos dadas e cantando modinhas aprendidas no tempo da residência, na creche, mais de cinquenta almas infantis mostravam que ainda podiam ser felizes. Formavam coreografia, ajudavam pessoas a atravessar a rua, dirigiam ônibus e carros oficiais, com prudência e respeito pelos outros, atendiam o público nas agências dos bancos, lecionavam, empreendiam, abraçavam-se e oravam com fervor e confiança em Deus. Um deles, com menos de cinco anos, vestia na cabeça uma alegoria representando o boi do bumba-meu-boi, que chegaram a ensaiar. Outra garota, de um moreno lindo, mostrava sua adolescência exuberante trajando vestes de rainha do maracatu, que estavam preparando para representar. Tudo perdido. Para onde teriam ido todas aquelas crianças? – Perguntava a si mesmo, numa angústia sem tamanho. Cacá levou as mãos ao rosto, tentando conter um ímpeto de choro e revolta, consequência do descaso que seres humanos faziam de acontecimentos como aqueles. Lembrou a imponência de prédios, como os das universidades locais, dos tribunais de justiça e órgãos arrecadadores. Será que seria possível alimentar os excluídos do futuro com nacos de reboco daqueles prédios? - Quase berrou, absolutamente transtornado, com punhos cerrados e o olhar em transe. Escorou-se numa árvore, evitando tombar

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devido à tontura e forte dor de cabeça que sentia, naquele momento. Sentiu um escurecimento na vista e escorregou, até sentar-se encostado na árvore.

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Capítulo nove

O PEDIDO DE UMA FAMÍLIA AMIGA

O relógio no balcão da recepção do hospital marcava oito e vinte da manhã. Ana já estava na metade da imponente escadaria que levava ao primeiro pavimento do prédio, onde estava Cacá, quando ouviu um chamado que vinha da entrada. Ali, na parte principal de acesso, três pessoas, timidamente, olharam na direção dela e, o Sr. Chiang acenava, como se chamando-a. Tinham vindo visitar Cacá, por quem, sem maiores motivos, haviam adquirido simpatia. Não sabendo, exatamente, qual era o estado atual de saúde dele, temiam cometer alguma gafe, ou mesmo, alimentar uma falsa expectativa quanto ao quadro que encontrariam. O fato é que se sentiam impelidos a oferecer o que fosse possível, na tentativa de ajudar o rapaz. Ana desceu a escada e dirigiu-se ao grupo que ocupava lugar cativo em suas orações noturnas. Afinal, não fosse a bondade daquela família, dando amparo a seu irmão e prestando-lhe pronto socorro após o acidente, talvez, Cacá não estivesse mais vivo. Não só o haviam transportado até o hospital, como também, assumiram responsabilidades de praxe, por ocasião do internamento dele. A funcionária responsável pela admissão de pacientes, reconhecendo a nobreza da atitude daquela gente e,

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diante de informações prestadas por eles quanto à garantia de pagamento e endereço para contado, facilitou-lhe as coisas. Recebeu um cheque, como caução, cuidando para que Cacá tivesse tratamento adequado, até ser devidamente identificado. Ana apressou-se em estender a mão num forte cumprimento aquele senhor que, acompanhado pela esposa e filho, faziam rápidos e respeitosos movimentos com a cabeça, em sinal de respeito e, também, sincero cumprimento. “A senhora deve ser Ana, irmã do rapaz que socorremos, não?” – Perguntou o Sr. Chiang – “A recepcionista nos fez um sinal indicando sua chegada. Muito prazer!” – Ao que Ana apressou-se a responder, emocionada – “O prazer é todo meu, Sr. Chiang. Aguardei um momento melhor para procurá-los, não só para agradecer-lhes, como também, informá-los da boa recuperação da saúde do meu irmão. Passado todo esse tempo, só agora estamos tendo alguma esperança na sua melhora, pois, já saiu até do coma profundo que o acometeu. Mas, sabemos que, não fosse pela sua bondade e disposição em ajudá-lo e...” Sua voz ficou presa por um choro contido e, baixando a cabeça, Ana abraçou o casal, num sinal definitivo de sua infinita gratidão. “Calma, minha filha - aconselhou a senhora Chiang, afagando-lhe os cabelos -. Afinal, a notícia que você traz é motivo de alegria! Não sofra por isso.” Após outros esclarecimentos sobre a evolução do tratamento, juntos dirigiram-se para o apartamento onde estava Cacá. Ana entrou, convidando a família Chiang a acomodar-se no sofá, ao lado do leito. Depois, aproximou-se do irmão, num procedimento já usual e, segurando uma de suas mãos, tentou fazê-lo responder a seu chamado. Entre afagos e a entonação

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quase maternal de sua voz, Ana buscava contato com Cacá. Sabia que ele já podia ouvi-la e entender seu chamado e outras informações. Havia, no entanto, sempre o receio de que uma regressão daquele quadro pudesse levá-la a perder o querido irmão. Mesmo assim, por recomendações dos próprios médicos, tentava, periodicamente, estabelecer contato com Cacá. Aos poucos, ele foi saindo daquele estado de sono que o recuperou, completamente, do esforço mental que experimentou à noite. Reconheceu, prazerosamente, a voz da irmã e direcionou seus reflexos no sentido de poder respondê-la com um aperto de mão, o que conseguiu. Concentrando-se mais um pouco, chegou a abrir os olhos e exprimir um singelo sorriso que emocionou Ana e os presentes. Era incrível a sensação de melhora que experimentava a cada dia. Havia recuperado a sensibilidade em quase todo o corpo, conseguindo alguns movimentos com a cabeça, mãos e pés. A audição já era quase perfeita, o que facilitava sua comunicação com a equipe médica e com Ana.

“Cacá, você tem visita, hoje. Uma importante visita.” – Informou Ana -. “É a família Chiang, que socorreu e salvou sua vida.” Cacá deixou pender a cabeça na direção do sofá, esforçando-se para reconhecer os três amigos. Esboçou leve sorriso, piscando lentamente os olhos, como um sinal de agradecimento. O Sr. Chiang levantou-se e aproximando-se do leito com um sorriso de satisfação, falou: “Cacá deu muito trabalho ao amigo Chiang.” – Disse – “ Ficamos dois dias sem trabalhar até localizar sua família. Cacá deu muito trabalho” – Repetiu o chinês, continuando - “ Viemos ver seu estado de

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saúde e pagar uma pequena dívida.” - Falou Chiang, tirando do bolso um cheque -. “Este dinheiro paga o dia de trabalho que Cacá ajudou a família Chiang.”

Ana não acreditava no que via e fez menção de devolver o cheque, de valor pequeno, é verdade, mas era sem sentido naquele contexto. Percebeu, logo, que poderia magoar, profundamente, aquela família e conteve-se, um tanto encabulada, dizendo: “Sr. Chiang! Não precisava preocupar-se assim. Afinal, já nos ajudou tanto, que nó que temos uma grande dívida para com o senhor.” Chiang, enigmaticamente, fez sinal para que a esposa e o filho se levantassem e, com o ar sério e um olhar meio no infinito, falou: “Realmente existe uma dívida, Ana. Viemos aqui, também, para cobrá-la.” Ana chegou a decepcionar-se um pouco com a atitude de Chiang. Será que eles, na verdade, tinham em mente, cobrar pelo socorro que prestaram a Cacá? Pensou ela. “Não entendo, Sr. Chiang! Há algo que não sabemos? Algum prejuízo causado pelo meu irmão?” “Vou explicar-lhe, Ana – disse Chiang, que abraçara junto a si sua esposa – Eu e minha esposa chegamos muito jovens aqui no Brasil. Estabelecemo-nos no Recife com o pouco de dinheiro que meus pais deixaram, ao morrerem. Quase todo esse dinheiro foi roubado por um homem muito mau, que disse ser advogado e a quem pedimos orientação para regularizar nosso negócio. Ficamos sem nada, nem mesmo para comer. Até que encontramos um homem bom que nos deu trabalho e orientação. Também, com algum tempo depois, emprestou-nos um pouco de dinheiro, com o qual, montamos nossa pequena

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fábrica. Por isso sabemos reconhecer o sofrimento de quem está com fome, sozinho e sem recursos. Foi nesse estado que encontramos Cacá.” Ana continha-se para não chorar, diante das palavras do chinês. “Nossos pais nos ensinam, lá de onde viemos que o sofrimento dignifica e prepara o homem para ser melhor e compreender melhor a vida. Não poderíamos deixá-lo naquele estado, enquanto tínhamos comida sobrando e oferta de trabalho. O fato de tê-lo socorrido foi como um ato instintivo e não há o que nos agradecer por isso. Queremos, apenas, aquilo que é nosso, de direito. Estamos cobrando algo - que já sabemos - Cacá poderá pagar, porque, tem como pagar.” Ana desesperou-se: “Por favor, Sr. Chiang, do que se trata, finalmente?” “Confirmo que o amigo Cacá não é uma pessoa despreparada. É estudado e foi bom trabalhador. Sei, agora, os motivos que podem tê-lo desequilibrado, mas, só por um breve tempo. Cacá ainda tem muito a oferecer ao mundo em que vive. Portanto, o que tenho a exigir, como pagamento, é fácil de entender e possível de realizar. Exijo que não desista de buscar sua total recuperação e que não perca o senso que o norteou até aqui. Não são todas as pessoas que se entregam ao mundo, tal qual fez o amigo Cacá. Foi fácil, pra mim, e minha sábia esposa, reconhecer o amor e a compaixão contidos no olhar desse rapaz. Não há como guardar todo esse sentimento num só peito. Precisa ser compartilhado, conduzido aos que necessitam, colocado disponível aos excluídos e miseráveis que nos olham quando passamos. Esse é o nosso pedido a quem já amamos como nosso filho, se me permite falar assim.” Houve uma pausa que parecia infinita. Apenas o choro já incontido de Ana se fazia

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ouvir naquele quarto. Cacá abriu a mão direita como se pedindo o toque do amigo chinês que, percebendo, respondeu-lhe com um fraternal aperto de mão. Uma lágrima escorrida marcou a face de Cacá que, estranhamente, não sentia o peso do mal que lhe forçava a ficar ali, prostrado. Chiang insistiu para que Ana o informasse, periodicamente, do estado do irmão. Ao saírem do prédio e, após se despedirem, carinhosamente, Chiang voltou-se e disse: “Será uma grande honra se o amigo Cacá quiser continuar a trabalhar com a família Chiang. Ele tem muito a nos ensinar e tem um grande coração. Grande coração...”

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Capítulo dez

NÃO PARARIA MAIS DE PENSAR

Decorreram quase sessenta dias. Era espantoso o grau de evolução da saúde de Cacá. Já andava com a ajuda de uma bengala e podia fazer, praticamente, tudo que desejasse. Escreveu aos filhos, contando o acidente que sofrera – confirmando o que Ana já havia dito a eles – e desculpando-se pela ausência naqueles dias, mal havia voltado para casa. Soube que Chiang quitara seu débito na pensão da Dona Serena. Também, informaram sobre o amigo do seu pai que o reconhecera, ao sair da quitanda, próxima a pensão. Sua forma estranha de comportamento fez com que o homem procurasse comunicar-se com sua família, tendo sido assim que Ana chegara ao seu paradeiro. Quanto ao Sr. Chiang, através de informações lembradas pelo filho que, em conversa com Cacá, ouvira-o referir-se ao bairro e pensão que morava, teve, assim, condições de localizar a pensão. Constatou-se que durante todo o processo de alienação que envolveu Cacá, ele permaneceu na mesma cidade. Um estado de profunda desorientação e abstração tomara conta de seu cérebro e mente, fazendo-o vagar sem destino, sem cuidado, prudência, em fim...

A caminho de casa, em que pese a auto-confiança que sentia, não pôde deixar de lembrar e observar que as coisas

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continuavam as mesmas. O mundo estava ali, com seus problemas e injustiças. Ana, percebendo os pensamentos que, certamente, ocupavam a mente do irmão, chamou-lhe a atenção para um fato de seu interesse: seu filho Antônio, durante o jantar da noite anterior, quando Ana visitou-os, preparando o que fosse possível para a chegada de Cacá, pediu a ela para dizer ao pai que estava profundamente arrependido do tratamento que lhe dispensou, na última vez que se viram. Estava sentindo uma incontrolável saudade e, aos prantos, adormecera no colo da tia, repetindo que amava o pai. Cacá já não sabia identificar a emoção, ou emoções que sentia naquele momento, a caminho de casa. Toda uma nova vida estava para ser enfrentada e seus filhos, quer quisessem ou não, faziam parte dela e do seu futuro, com tudo o quanto aquilo devia representar material e espiritualmente. A cidade, que durante um tempo incompreendido, parecia-lhe a tela de um cinema, passando um filme de uma história e imagens distantes, começou a correr em suas veias, novamente. Os rios, o mar e sua história pereciam conduzir aquele homem, solitário em suas convicções e conceitos. Haveria um momento de conciliação entre ele e o estado de coisas que se estabelecera, até então. Só não poderia definir, exatamente, quando e onde isso se daria. Precisava coordenar suas atividades e esforços, como também, as dos filhos que, possivelmente, estivessem sentados no barranco de areia, à beira mar, olhando, indefinidamente, o que pudessem encontrar...

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Ana parou o carro numa vaga, à beira mar, próxima ao prédio onde haviam nascido e vivido uma relativa e saudosa felicidade. O sol estava se pondo e uma brisa leve soprava do mar. A areia fofa e branca da praia chegava a estar fria. Cacá seguiu os gestos da irmã que, calada, tirou os sapatos e subiu as pernas da calça. Caminharam em direção a água, sem muito que falar. Cacá sentiu uma leve sensação de solidão e, procurando atrás de si, não viu a irmã. Não compreendendo o que podia estar acontecendo, pôs-se a gritar seu nome, estranhando tal conduta, pois, Ana bem sabia de sua urgência em encontrar os dois filhos. Seu coração quase salta pela boca ao olhar em direção ao carro. Ana e Dona Lise traziam, pelas mãos, duas crianças que pareciam dois deuses. Poderiam, ali, representar o perdão e o renascimento de uma humanidade ainda incompreensível. Tentou imaginar o que poderia estar passando pelas cabeças daqueles garotos. Deus...! O que haviam feito com eles? – Pensou consigo. Ana parou e soltou as mãos dos sobrinhos que, numa descontrolada e desesperada corrida, avançavam na direção de Cacá que esperou-os, pacientemente, de braços abertos. Uma bola surgiu na mão de Pedrinho que, com um chute sem direção, extravasou algo que foi, perfeitamente, captado pelo pai. Abraçaram-se e beijaram-se efusivamente, até sentirem gastar boa parte daquele amor. O calor dos braços que, há muito, não sentiam, funcionou como a comida que sacia a fome e a água que mata a sede. Estavam melados de areia até o pescoço e não viam como parar uma gostosa brincadeira de pega-pega, ali, na beira da praia, os três, pai – ainda com uma bengala - e filhos que iriam seguir adiante,

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sem limites, culpas ou constrangimentos. Iriam, agora, compartilhar, juntos, uma saudade gotosa da esposa e mãe, cuja força e inteligência, ensinaram-lhes um pouco a viver, superando obstáculos. Ana, encostada no carro, junto à Dona Lise, observava aquela cena. Lembrava de todo o sofrimento que suportou vendo o estado de saúde do irmão, quase à morte. Compreendeu e reviveu, novamente, o sentido e valor do amor que sentia por Cacá, seu irmão, companheiro, que se transformara, ali, numa espécie de guru ou entidade em quem pudesse encontrar paz e boa vontade. Ela olhava-os, os três, abraçados e contemplando o infinito do horizonte que escurecia e que refletia três pares de olhos cheios...

FIM

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